Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
548/12.4PTPDL-A.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REINTEGRAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Não basta a prática de outro crime doloso, para desde logo concluir que as finalidades que fundaram a suspensão da execução de uma pena foram defraudadas; é necessário aferir se o juízo de prognose positiva que esteve na base da anterior condenação em pena de prisão suspensa na sua execução se deve ou não manter, dentro do quadro da factualidade e ilicitude espelhada nos factos que deram origem a essa anterior condenação.

II- Quando o arguido acatou a ajuda que lhe foi prestada no período da suspensão da execução da pena, esforçou-se por dar um rumo diverso à sua vida assumindo obrigações familiares e mantendo hábitos de trabalho, geriu com senso os seus parcos recursos económicos para sustentar a sua família, o Tribunal não pode deixar de concluir por uma prognose positiva da reintegração futura do arguido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO.

O Mº.Pº. não se conformando com o despacho que não revogou a suspensão da execução da pena em que o arguido M…R…. fora condenado nestes autos, vem do mesmo interpor recurso.

Consta deste despacho, recorrido, o que a seguir se transcreve.

Por sentença proferida no dia 18 de Julho de 2012, transitada em julgado, o arguido M…R…. foi condenado, pela prática de dois crimes de condução de veículo, um sem habilitação legal, outro em estado de embriaguez, ocorridos no dia 17 de Julho de 2012, além do mais numa pena única de 150 dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, sob a obrigação de o arguido frequentar um curso de prevenção e de segurança rodoviária.

No dia 1 de Julho de 2013 e por factos ocorridos no dia 29 de Junho de 2013, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, numa pena de um ano de prisão, substituída pela prestação de 365 horas de trabalho a favor da comunidade.

Nesta sequência, o Ministério Público promove a revogação da suspensão da execução da pena, por preenchimento da hipótese legal da alínea b) do n.° 1 do artigo 56.° do Código Penal, atenta a comissão de crime da mesma natureza no período da suspensão, revelando a falta de efeito preventivo deste instituto, concretamente aplicado.

Dado o contraditório ao arguido, o mesmo veio defender-se, alegando que não foi condenado em pena privativa da liberdade na segunda das condenações pois se encontra socialmente inserido, vive com os pais idosos, dependentes e de quem cuida, está a frequentar um programa de ocupação, através do Centro de Emprego, pelo qual recebe mensalmente 509,00€ e que usa para satisfazer as necessidades familiares e o pagamento da pensão de alimentos ao filho, está inscrito em Escola de Condução, cumpriu o Curso de Prevenção e Segurança Rodoviária, está a cumprir a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, sendo a revogação da pena desproporcionada e contrária à reinserção social.

O tribunal ordenou que a D.G.R.S.P. elaborasse um relatório sumário averiguando a realidade da alegação do arguido, o qual se encontra a fls. 73 e seguintes e que comprova a mesma e conclui pela postura de forte colaboração com os Serviços de Reinserção Social ao longo do acompanhamento, cumprimento das obrigações impostas e positivo enquadramento sociofamiliar e profissional.

Cumpre apreciar e decidir:

Dispõe o artigo 56.°, n.° 1, b), do Código Penal que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão da execução da pena não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

Chegados a este ponto, cumpre questionar:

Cometeu o arguido crime durante o período da suspensão da execução da pena? A resposta é afirmativa, uma vez que essa suspensão, atenta a data do trânsito em julgado da sentença, se prolongava até ao dia 1 de Outubro de 2013 e o crime foi cometido a 18 de Julho de 2013.

A segunda questão é desdobrável em duas subquestões: quais as finalidades da suspensão a execução da pena; e se as mesmas saíram goradas com a prática daquele crime.

As finalidades das penas são de prevenção geral e especial, em ambos os casos positivas e negativas.

Se é certo que a prática do novo crime implica a violação da prevenção especial negativa e de prevenção especial positiva, não é menos certo que o cumprimento das demais condições da suspensão permitiu ao arguido a tão desejada integração social, fundamento futuro para uma conduta recta em sociedade. E assim mesmo foi ponderado quando da escolha da segunda pena: o juiz da condenação, ciente da possibilidade de a pena anterior vir a ser revogada, ainda assim evitou que o arguido fosse cumprir uma pena de prisão por poder o mesmo reintegrar-se com uma pena não privativa da liberdade. E a verdade é que o tem feito, estando hoje social, familiar e profissionalmente integrado, nenhum beneficio havendo para a sua reinserção social o cumprimento da pena de prisão aplicada nestes autos, pois que a revogação da suspensão não é um castigo, uma sanção, mas um meio de competir à reinserção social, que já está sendo alcançada em liberdade, com um escolho no percurso, é certo.

Em face do exposto e por considerar que não estão irremediavelmente comprometidas as finalidades inerentes à suspensão da execução da pena, entendo não a revogar e, constando que já decorreu o seu período, declaro extinta a pena aplicada ao arguido pelo cumprimento, nos termos dos artigos 57.° do Código Penal e 475.° do Código do Processo Penal.

Notifique, com cópia, e remeta boletins ao registo criminal.

Dê conhecimento à D.G.R.S.P.”

***

É discordando do ali decidido, que o Ministério Público vem interpôr recurso daquele despacho, formulando as conclusões que vão transcritas:

1º É por demais evidente que se verifica a previsão do art. 56.°, n.° 1, al. b), do Cód. Penal, ou seja, que, no decurso do período de suspensão, o condenado cometeu crime pelo qual veio a ser condenado, e revelou que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

2° O que implica que tenha de ser revogada a suspensão da execução da pena.

3° Pois o cometimento de crime idêntico durante o período de suspensão sem que tal facto acarrete qualquer consequência para o condenado, equivale à total impunidade e absoluta ineficácia e até irrelevância da condenação, não se logrando obter qualquer das finalidades preventivas e ressocializadoras das penas.

4° Pelo que, ao não revogar a suspensão da execução da pena, a decisão ora recorrida violou o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 40 n.° 1, 50.°, n.° 1 e 56.°, n.° 1, a). b), do Cód. Penal.

5º Não podendo este tribunal ficar refém de um outro juízo de prognose favorável, feito num outro processo de um outro Juízo.

6º E sendo as duas alíneas do n.° 1 do art. 56.° do Cód. Penal aplicáveis em alternativa, pelo que a não verificação dos pressupostos de uma delas não pode servir de fundamento para a não revogação da suspensão da execução da pena com base na verificação dos pressupostos da outra.

*

Nestes termos, revogando a decisão ora recorrida e substituindo-a por outra que determine a revogação da suspensão da execução da pena,V. Ex. farão a costumada Justiça.

***

A estas alegações respondeu o arguido, formulando nas suas alegações as conclusões que vão transcritas.

1- Sendo que as conclusões do recurso interposto pelo M.P. delimitam o seu âmbito, constata-se que esse recurso cinge-se tão só à parte do Despacho Judicial em que este considera que a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado o arguido nestes autos não deve ser revogada.

2-Pois da segunda parte da Decisão contida no Despacho Judicial: “ constando que já decorreu o seu período, declaro extinta a pena aplicada ao arquido pelo cumprimento nos termos dos artigos 57º CP e 475° CPP” o M.P. não recorre, nem sequer põe em causa a aplicação destas concretas normas pelo Despacho Judicial. E por conseguinte, esta parte da Decisão contida no Despacho Judicial revela-se-nos transitada em julgado, afigurando-se-nos pois ora despido de utilidade este recurso do M.P.

3-Mesmo que assim não se entenda, mas sem concedermos, sempre se diria que os alegados fundamentos que o M.P. invoca no seu recurso não podem “in casu” ser considerados bastantes para, nos termos do artigo 56°/1,b) CP se decretar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada

4-Para aplicar-se o art° 56°/1 ,b) CP- norma j. cuja aplicação é pugnada e solicitada pelo M.P. na sua motivação de recurso- a Lei Penal não se basta com o cometimento de um facto ilícito, mas antes exige como requisito cumulativo: “ revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser aIcançadas”

5-Pois é de Lei, Direito e Justiça, crermos na reinserção social do indivíduo concreto, sendo esta a Principal e Fundamental finalidade de aplicação das penas, sendo que tal norma constante do art° 56°/1 ,b), assim como todo o nosso Diploma Penal tem como assente que qualquer pena de prisão, e ainda mais quando efectiva, é sempre a “ultima ratio”, só aplicada em último caso.

6-Nestes autos os factos ilícitos por que foi condenado o arguido em pena de 150 dias de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano sob a obrigação de frequentar um curso de prevenção e segurança rodoviária, datam já de 18-07-2012 tendo o prazo da suspensão da execução da pena terminado em 1-10- 2013.

7-O M.P. promove em 17-12-2013 a revogação dessa suspensão tendo por base que o arguido cometera novo ilícito em 29-06-2013, cuja Sentença transitada em 16-09- 2013 condenara-o pelo mesmo tipo de ilícito numa pena de 1 ano de prisão substituída por 365 horas de trabalho a favor da comunidade

8-O Arguido encontra-se efectivamente bem inserido social, familiar e profissionalmente, sendo que vive com os seus pais já idosos, o pai com 82 anos (com sérias limitações na sua locomoção), aposentado, e a sua mãe com 78 anos de idade, acamada (visto não ter um dos membros inferiores), portadora de algália e completamente dependente.

9- É o arguído quem desde sempre cuida dos seus pais (ajudando-os na sua higiene, alimentação e vestuário diários idas ao medico e lides domesticas enfim no dia-a dia), visto o seu irmão estar no Canada e a sua irmã ser casada e viver com o seu agregado não tendo estes irmãos disponibilidade para cuidar dos pais.

10-A nível profissional, frequentou o Programa de Ocupação designado “Recuperar” desde 19Agosto de 2013, na Clínica do Bom Jesus, através do Centro de Emprego no qual está ínscnto; ajuda economicamente os pais, e ainda contribui sempre que pode com uma pensão de alimentos (no valor de 50,00 euros mensais acrescidos das despesas escolares) a filho menor.

11-Encontra-se inscrito na “Escola de Condução Campos”, para obter título que o habilite a conduzir veículos ligeiros; e nestes autos já cumpriu adequada e assiduamente a obrigação de frequência a suas próprias expensas do Curso de Prevenção/Segurança Rodoviária, cfr. Plano de Reinserção Social.

12- Após a promoção do M.P. de revogação da suspensão da execução da pena de prisão ao arguido, foi ordenada nestes autos a realização de Relatório Social pelos Serviços de Reinserção Social (fls. 73 ss.), o qual comprova toda a situação pessoal, social, familiar e profissional supra descrita e alegada pelo arguido no seu requerimento de 27-01-2014, e formula, com bastante actualidade, juízo de prognose favorável sobre a sua reinserção social, frisando a sua positiva inserção sócio-familiar e profissional, assim como a sua postura de forte colaboração com esses Serviços ao longo do acompanhamento por estes do cumprimento das obrigações impostas durante todo o período de suspensão da execução da pena.

13-Todos estes factos supra explanados foram e bem tidos em conta pelo Douto Despacho judicial recorrido, o qual conclui, como facilmente é de concluir, que quanto às finalidades que estavam na base da suspensão no presente processo, não se pode afirmar que não tenham sido alcançadas.

14-O Despacho Judicial não comete atropelo ou violação de qualquer norma jurídica que seja. Aliás, muito bem fundamenta, sensata e sabiamente, com respeito pela Lei e pela realidade do caso concreto e da vida, a sua Decisão de não revogação da suspensão da execução da pena de prisão: “E assim mesmo foi ponderado quando da escolha da segunda pena: o juiz da condenação, ciente da possibilidade de a pena anterior vir a ser revogada, ainda assim evitou que o arguido fosse cumprir uma pena de prisão por poder o mesmo reintegrar-se com uma pena não privativa da liberdade. E a verdade é que o tem feito, estando hoje social, familiar e profissionalmente integrado, nenhum benefício havendo para a sua reinserção social o cumprimento da pena de prisão aplicada nestes autos, pois que a revogação da suspensão não é um castigo, uma sanção, mas um meio de competir à reinserção social, que já está sendo alcançada em liberdade, com um escolho no percurso é certo. “(...)não estão irremediavelmente comprometidas as finalidades inerentes à suspensão da execução da pena”

15- Sufragamos inteiramente este entendimento do Despacho Judicial, e acrescentamos que se agora em meados de 2014 fosse revogada a suspensão da pena aplicada ao arguido, tal corresponderia na prática a uma segunda condenação nestes autos, na vertente de puro castigo para este cidadão.

16-Pelo exposto, o alegado fundamento que o M.P. invoca na sua Motivação de recurso, não deve “in casu ser considerado o bastante para revogar a suspensão da execução da pena de prisão nos termos do art° 56°/1 ,b) CP, sob pena de se assim se não entender, incorrer-se na violação dos arts. 56° e 50° CP, além de que uma eventual revogação da suspensão seria descabida neste momento temporal e face a tudo o por nós supra exposto, e completamente contrária à almejada reintegração do arguido já em grande medida alcançada.

17-Assim, atento o supra explanado, deve ser mantido o Douto Despacho Judicial que decidiu nomeadamente pela não revogação da suspensão na sua execução da pena de prisão em que foi condenado o arguido (art° 50° CP), devendo no mais improcedente o recurso ora interposto pelo M.P..

Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o Douto Suprimento de V. Exas. venerandos Juízes Desembargadores, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, no mais devendo manter-se o Douto Despacho Judicial que decidiu pela não revogação da suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado nestes autos o arguido, e já declarou além disso extinta a pena- tudo nos termos e com os fundamentos supra expostos.

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

Neste Tribunal, no visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex.mº. Procurador-Geral Adjunto emitiu o visto.

Corridos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

II- MOTIVAÇÃO.

É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Ac. do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).

                                

Como resulta do enunciado supra, o Mº.Pº./recorrente coloca em causa a justeza do decidido no despacho judicial que não ordenou a revogação da suspensão da pena de 150 dias de prisão que havia sido aplicada ao arguido nestes autos em 18/7/2012, e, suspensa na sua execução pelo período de um ano.

Fundamenta a sua discordância do decidido, no facto de o arguido ter praticado no decurso do período da suspensão da execução da pena (terminava em 1/10/2013)- em 29/6/2013- um crime de condução ilegal, tendo sido condenado na pena de 1 ano de prisão, substituída por 365 horas de trabalho comunitário. Assim extrai deste facto a conclusão de que o arguido “desperdiçou” a oportunidade que lhe foi dada com a suspensão da execução da pena, “demonstrando com o seu comportamento que não está reintegrado na vida em sociedade, não tendo a suspensão da execução da pena nestes autos surtido qualquer efeito”- fls. 31 destes autos.

Conhecendo.

***

Vejamos antes algumas considerações de ordem jurídica a fim de melhor enquadrarmos a questão que vem colocada.

Na versão original do Código Penal de 1982 consagrava-se a revogação da pena suspensa na sua execução como consequência do cometimento pelo condenado, no decurso do período de suspensão, de crime doloso pelo qual viesse a ser punido com pena de prisão- o nº 1 do art. 51º estabelecia que “a suspensão será sempre revogada se, durante o respectivo período, o condenado cometer crime doloso por que venha a ser punido com pena de prisão”.

Nas alterações introduzidas pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, passou a  dispor a al. b) do nº 1 do actual art. 56º:

“1 - A suspensão da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regrasde conduta impostos ou o plano de reinserção social, ou[1]

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.”

Nesta parte final “ revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”, determinou-se o afastamento automático da revogação da suspensão como mera decorrência do cometimento de um novo crime no período da suspensão, deixando ainda de se exigir a natureza dolosa do novo crime cometido e a condenação em pena de prisão.

Deixando-se totalmente afastado o automatismo do Código de 82, [2] a actual Lei exige do julgador uma apreciação das circunstâncias em que ocorreu o cometimento do novo crime, o que, ainda será ponderado segundo o critério dos fins das penas. Com efeito, o juiz verificará se o cometimento do novo crime infirmou definitivamente o juízo de prognose que justificou a suspensão da execução da pena, permitindo alicerçar a convicção de que a suspensão se revela insuficiente para garantir o respeito futuro pelos valores jurídico-criminalmente tutelados ou se, pelo contrário, apesar da prática do novo facto criminoso, subsistem ainda fundadas expectativas de ressocialização, sendo razoável admitir um comportamento futuro conforme com os ditames do direito.

É que, também o simples incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, deixou de justificar a revogação, passando a exigir-se que o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção social (al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal). Ou seja, deixando-se totalmente afastado o automatismo do Código de 82, a actual Lei exige do julgador uma apreciação das circunstâncias em que ocorreu o cometimento do novo crime, o que, ainda será ponderado segundo o critério dos fins das penas. Com efeito, o juiz verificará se o cometimento do novo crime infirmou definitivamente o juízo de prognose que justificou a suspensão da execução da pena, permitindo alicerçar a convicção de que a suspensão se revela insuficiente para garantir o respeito futuro pelos valores jurídico-criminalmente tutelados ou se, pelo contrário, apesar da prática do novo facto criminoso, subsistem ainda fundadas expectativas de ressocialização, sendo razoável admitir um comportamento futuro conforme com os ditames do direito.

É que, o simples incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, deixou de justificar a revogação, passando a exigir-se que o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social (al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal).

 No caso, e, percorrendo o teor do despacho judicial, desde logo se percebe que o Sr. Juíz ao citar a ponderação do outro Sr. Juíz que aplicou a pena ao crime praticado pelo arguido no período da suspensão da execução da pena anterior, quis apenas realçar a sua concordância no que toca aos juízos de valor e prognose efectuados quanto à reintegração social do arguido nesse processo e não ficar “refém” desses juízos, como parece ter sido entendido pelo recorrente.

Aliás, é bem visível o rigor da recolha de elementos no processo, nomeadamente sobre a personalidade e percurso de vida do arguido, antes da prolação da decisão de não revogar a suspensão da execução da pena anterior, agora sob recurso.

Exemplo desta circunstância é a junção aos autos do Relatório Social de fls.24 e 25 destes autos, datado de 18/2/2014, no qual se podem verificar os factos apurados sobre a situação pessoal, social e familiar do arguido, que resumimos:

a) -O arguido é separado e tem uma filha de menor idade que reside com a mãe e á qual o arguido presta regularmente ajuda monetária e alimentar, existindo entre todos um bom relacionamento;

b) -Vive com os pais, de 78 e 82 anos de idade, respectivamente, com dificuldades motoras e doentes, dos quais cuida com particular atenção;

c) - Desde Agosto de 2013 que frequenta a “Clínica do Bom Jesus” ao abrigo do programa “Recuperar” onde tem desempenho adequado, recebendo € 509,25, quantia que entrega em casa quase na sua totalidade;

d) - Quando acompanhado pela equipa de reinserção social “foi assíduo às entrevistas agendadas, nas quais revelou uma postura adequada e de colaboração”;

e) -Nos dias 21 e 28 de Setembro de 2013 frequentou o curso de “Prevenção Rodoviária”, com assiduidade, tendo demonstrado “uma postura adequada no decorrer do Programa e sido participativo e interactivo com o grupo”;

f) -Encontra-se inscrito na Escola de Condução com vista a adquirir a licença de condução de ligeiros;

g) -não existe notícia de outros processos pendentes.

Conclui depois o referido relatório.

“ M….R….. revelou adesão ao cumprimento da medida que lhe foi aplicada, revelando ao longo da mesma, uma postura de forte colaboração com os Serviços e tendo cumprido as obrigações que lhe foram impostas. O tutelado desfruta actualmente de positivo enquadramento sócio-familiar e profissional, não se encontrando recentemente referenciado noutros processos-crime.”

Na verdade, exigindo a lei tais requisitos materiais (acima mencionados) para a revogação, impõe-se ao Tribunal o dever de realizar as diligências que se revelem úteis, para além do exercício do contraditório, para uma decisão ponderada e justa, sendo certo que “o critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma”[3] .

Ao que nos é dado perceber dos autos, foi realizado relatório social, ouvido o arguido sobre a sua situação e percurso de vida desde a condenação, com a finalidade de que o Tribunal pudesse perceber a evolução do arguido no seu percurso de vida, para aquilatar quanto ao futuro comportamento do mesmo.

E, foi assim com base na recolha destes elementos e, da sua avaliação que o Tribunal ponderou e decidiu pela não revogação da suspensão da pena que havia sido aplicada ao arguido.

Com efeito, resulta do despacho recorrido, embora de forma simples, mas ainda assim suficiente em nosso entender, que o Tribunal relaciona os factos criminosos entre si com a personalidade do arguido, e avalia de forma crítica o impacto que a nova condenação teve sobre as finalidades que haviam justificado a suspensão da execução da pena, apoiando-se na documentação e declarações do próprio arguido devidamente comprovadas pelo Relatório Social.

Não basta portanto, a prática de outro crime doloso, para desde logo concluir que as finalidades que fundaram a suspensão da execução da pena foram defraudadas, é necessário aferir se o juízo de prognose positiva que esteve na base da anterior condenação em pena de prisão suspensa na sua execução se deve ou não manter, dentro do quadro da factualidade e ilicitude espelhada nos factos que deram origem a essa anterior condenação, ou seja, deverá verificar-se uma coincidência ou íntima relação entre os bens jurídicos de ambos os ilícitos, já que é o juízo de prognose favorável de socialização e de prevenção “da reincidência” que determina a suspensão da execução da pena, e só a demonstração da sua posterior dissipação poderá determinar a revogação da suspensão.

E, também, não será o facto da condenação posterior ter sido também em pena de prisão ainda que substituída, que conduz de forma automática a que se possa pensar que a prognose na recuperação do arguido já não é possível. Concluir, como pretende o recorrente, que o cometimento de novo crime no período de suspensão sem acarretar a revogação da suspensão “equivale á total impunidade e absoluta ineficácia e até irrelevância da condenação” é, salvo o devido respeito, continuar a acatar a aplicação automática da legislação já revogada.

O primitivo juízo de prognose favorável ao afastamento do arguido da prática de futuros crimes e à sua recuperação e integração social, foi-o com apoio no cumprimento de condições impostas e de ajuda social. Passado algum tempo verificou-se que o arguido acatou a ajuda que lhe foi prestada, esforçou-se por dar um rumo diverso à sua vida, assumindo obrigações familiares e mantendo hábitos de trabalho, gerindo com senso os seus parcos recursos económicos. O resultado não pode deixar de fundamentar uma prognose positiva. A sua submissão agora, ao cumprimento de uma curta pena de prisão traria seguramente maior perigo de reincidência criminal para o arguido, que a aposta na sua reintegração, mesmo que a mesma tenha sofrido alguns “precalços” até agora.

Invocou o arguido na sua resposta ao recurso, que a 2ª. Parte do despacho recorrido não foi impugnada e, por essa razão teria transitado em julgado, mas não tem razão. Primeiramente porque a segunda parte, que declara a extinção da pena aplicada ao arguido é consequência de se ter entendido que não haveria que revogar a suspensão da execução da pena aplicada e que é o cerne da questão recorrida. Depois porque o próprio recurso tem como objecto todo o despacho e não apenas uma parte autonomizada. E, também porque, processualmente não é admissível cindir o próprio despacho recorrido, que se não enquadra nos casos a que alude o disposto no artigo 402 e 403 do C.P.P.

Pelo exposto, temos por justa e equilibrada a decisão recorrida, improcedendo por isso o recurso do Mº.Pº.

III- DECISÃO.

Face ao exposto, acordam os juízes da 9ª. secção criminal deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto Mº.Pº. e, manter a decisão na sua íntegra.

Sem custas.

Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2 do CPP)

Lisboa, 02/10/2014

                                                                                                               Maria do Carmo Ferreira

Cristina Branco

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[1] Com a reforma penal de 2007 passou a dizer-se “plano de reinserção social”, em vez de “plano de readaptação social”

[2] É pacífico na nossa doutrina e jurisprudência que esta revogação não é automática. (cfr.Ac.Rel.Porto de 1/2/2012, R.Lx de 28/2/2012 e da R.Guimarães de 22/3/2010).

[3] Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 2.ª edição, 236.