Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
259/20.7JAFUN.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
FRIEZA DE ÂNIMO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O que diferencia o homicídio simples do qualificado é uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente em qualquer homicídio.

O que se exige, de harmonia com o princípio da legalidade em Direito Penal, na vertente da tipicidade, é que a qualificação do crime de homicídio resulte sempre da conjugação dos dois números 1 e 2 do art. 132º funcionando concatenadamente.

A agravante modificativa prevista no art. 132º nº 2 al. j) não exige a verifica-se cumulativa da frieza de ânimo, da reflexão sobre os meios empregados e da persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, como resulta, desde logo, do uso da disjuntiva «ou» entre as expressões «reflexão sobre os meios empregues» e «ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas», mas, sobretudo, porque essa é a solução que se coaduna com a razão de ser da inclusão destas circunstâncias como índices da agravação do homicídio.

É especialmente na execução criminosa que a frieza de ânimo tem o seu âmbito de revelação.

Para o preenchimento da al. j) do nº 2 do art. 132º basta que a execução do crime, nas circunstâncias concretas que envolvem a sua consumação, demonstrem a existência desse calculismo, persistência e despojo de emoções, em ordem à produção da morte, sem que o agente se deixe perturbar ou influenciar pelos eventuais obstáculos com que se vai defrontando nesse iter, sejam, relacionados com alguma influência que as razões de ser da incriminação do homicídio possam ter ao nível da reponderação do desígnio criminoso, ou com algum imprevisto atinente, por exemplo, ao sofrimento da vítima ou a alguma dificuldade imprevista na execução que determine um repensar da decisão e uma inflexão de posição ou desistência, a partir dela.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO 


Por acórdão proferido em 25 de Março de 2021, no processo comum colectivo nº 259/20.7JAFUN do Juízo Central Criminal do Funchal, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira foi decidido:

Julgar parcialmente procedente a acusação deduzida no âmbito do presente processo e, em consequência:
a)-condenar o arguido NVS______ pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131° e 132° n°s 1 e 2 al. j) do C. Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;
b)-condenar o arguido NVS______ pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3°, n°1 e 2 do DL n° 2/98, de 3.01, por referência ao art. 121° do Cód. Estrada, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
c)-condenar o arguido NVS______ pela prática, em autoria material de um crime de furto simples, p.p. pelo art. 203° do C. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; 
d)-condenar o arguido NVS______ pela prática, em autoria material, na forma tentada, de um crime de burla informática, p.p. pelo art. 221°, n°s 1 e 2, 22°, n°s 1 e 2 a) e 72° do CP, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
e)-julgar extinto o procedimento criminal correspondente ao crime de furto de uso de veículo p. e p. pelo art. 208°, n.° 1 do Código Penal, por falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da respectiva acção penal, com o consequentemente arquivamento dos autos no que a este crime respeita.
f)-Em cúmulo jurídico, condenar o arguido NVS______ na pena
única de 19 (dezanove) anos de prisão. 

O Mº. Pº. interpôs recurso deste acórdão, tendo formulado as seguintes conclusões:
O arguido NVS______ foi condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 131.° e 132.°/1/2-j), do Código Penal.

Porém, o arguido deveria ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio simples p.p. pelo art° 131° do Código Penal, e não pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts 131° e 132° ns 1 e 2 al. j) do Código Penal.

Com efeito, no caso em apreço o arguido NVS______ não agiu com especial censurabilidade ou perversidade como exige o art° 132°, n° 2, al. j), do Cód. Penal.

A conduta do arguido NVS______ subsume-se à prática do crime de homicídio simples p.p. pelo art° 131°, do Cód. Penal.

O tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 131° e 132°, n° 2, al. j), ambos do Cód. Penal.
Nestes termos, entende-se ser de dar provimento ao recurso e, em consequência, condenar o arguido NVS______ como autor material de um crime de homicídio p. p. pelo artigo 131°, do Código Penal, devendo o processo ser reenviado à primeira instância para a determinação concreta da pena e reformulação do cúmulo jurídico das penas parcelares. 

O arguido também interpôs recurso deste acórdão, tendo sintetizado as razões da sua discordância, nas seguintes conclusões:
I.O Recorrente, não se conformando com o acórdão que o condenou pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j) do C. Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão; pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3º, nº1 e 2 do DL nº 2/98, de 3.01, por referência ao art. 121º do Cód. Estrada, na pena de 7 (sete) meses de prisão; pela prática, em autoria material, de um crime de furto simples, p.p. pelo art. 203º do C. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; pela prática, em autoria material, na forma tentada, de um crime de burla informática, p.p. pelo art. 221º, nºs 1 e 2, 22º, nºs 1 e 2 a) e 72º do C. Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão; 
E em cúmulo jurídico na pena única de 19 (dezanove) anos de prisão, vem do mesmo interpor Recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
II.O presente recurso tem como objecto toda a matéria da decisão proferida nos presentes autos.
III.Considera, o Recorrente, incorrectamente julgados os pontos 19. e 35. da matéria de facto provada.
IV.Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na valoração da prova nos termos do artº 127º C.Penal.
V.Por outro lado, não concorda o Recorrente com o enquadramento jurídico e respectiva motivação quanto à condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma consumada, previsto e punido pelos art.ºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j) do C. Penal, pugnando-se nesta sede pela condenação do Recorrente pela prática de um crime de homicídio simples previsto e punido pelo art. 131º do Código Penal.
VI.Sem prescindir, e ressalvado o devido respeito, considera ainda o Recorrente que o Tribunal a quo decidiu mal a medida das penas parcelares a aplicar ao ora Recorrente que o condenou pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j) do C. Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão; pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3º, nº1 e 2 do DL nº 2/98, de 3.01, por referência ao art. 121º do Cód. Estrada, na pena de 7 (sete) meses de prisão; pela prática, em autoria material, de um crime de furto simples, p.p. pelo art. 203º do C. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; pela prática, em autoria material, na forma tentada, de um crime de burla informática, p.p. pelo art. 221º, nºs 1 e 2, 22º, nºs 1 e 2 a) e 72º do C. Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão.  Da matéria de facto provada Ponto 19.
VII.Da prova produzida em audiência de julgamento, verifica-se que apenas as declarações do Arguido podem esclarecer o que ocorreu nos momentos imediatamente anteriores aos factos descritos no ponto 20. da matéria de facto provada, inexistindo qualquer outra prova que faça referência àqueles factos.
VIII.E foi com recurso às declarações do Arguido que o douto tribunal a quo deu como provado o ponto 19., porque inexiste nos autos ou foi produzida qualquer outra prova, quanto a estes factos.
IX.Para além de “uma abordagem física de cariz sexual” que não se contesta, mas insistente, diga-se, a vítima recorreu ao uso de uma faca de forma a obrigar o  Recorrente à prática de actos sexuais.
X.É o que resulta das declarações do Recorrente constantes da gravação digital 20210304145641_1703111_2871379 aos 15:00 minutos e mais detalhadamente conforme consta da gravação digital 20210304145641_1703111_2871379 aos 17:41 minutos.
XI.Aliás o douto Acórdão do Tribunal Colectivo abordou esta versão do Arguido a sua Motivação descrevendo as declarações do mesmo, mas nada mais se disse para confirmar ou afastar tais factos o que, pela sua importância acerca do circunstancialismo em que o crime ocorreu, deveria, salvo melhor opinião, constar dos factos dados como provados.
XII. Salvo melhor opinião, a utilização pela vítima de uma faca é um facto essencial que deveria integrar a matéria de facto provada.
XIII.O douto Acórdão que ora se impugna, não toma posição sobre esta versão do Recorrente, pelo que, salvo melhor opinião, na dúvida, o Tribunal deverá favorecer o Arguido.
XIV.Aliás, o raciocínio do douto Tribunal a quo para dar como provado “uma abordagem física de cariz sexual” sendo conforme os princípios que enformam as decisões judiciais em matéria penal, haveria de ser aplicado à relevante circunstância da vítima ter recorrido a uma faca no momento imediatamente anterior aos factos descritos no ponto 20.
XV.Sempre com o devido respeito, o “salto” que o douto Tribunal a quo deu entre os pontos 19. e 20. da matéria de facto provada, não deixará de ser contrário às regras da experiência comum e da lógica, porquanto não bastaria uma abordagem física de cariz sexual para imediatamente criar no Arguido a resolução de matar.
XVI.Pelo exposto, a douta decisão recorrida, violou o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal, tendo em conta que, de acordo com a prova produzida, o Tribunal a quo deveria ter proferido decisão diversa, quanto a esta questão, da que foi proferida.
XVII.Nestes termos deverão os factos ser alterados e passar a constar no ponto 19. da matéria de facto provada a verdade material do circunstancialismo fáctico dos acontecimentos passando a ter a seguinte redacção: “A hora não concretamente apurada, ÁA_____  fez uma abordagem física de cariz sexual ao arguido que lhe causou forte repulsa, tendo aquele ordenado ao arguido que tirasse as calças e agarrou numa pequena faca de queijo, altura em que o arguido lhe apertou a garganta e a vítima largou a faca, envolvendo-se em confronto físico”.
Ponto 35.
XVIII.Desde já, o Recorrente impugna a expressão “frieza de ânimo” inserta neste ponto.
XIX.Da análise dos restantes pontos da matéria de facto provada, o douto acórdão recorrido, não refere concretos factos em que se evidencie a calma, reflexão e sangue frio ou persistência na sua execução.
XX.Inexiste qualquer prova nos autos que, ressalvado o devido respeito, apele àqueles conceitos.
XXI.É a partir do assédio ao Arguido e após a execução da manobra conhecida por “mata leão”, e necessariamente em poucos minutos, porque nada mais se provou, que o encadeamento fáctico dos acontecimentos levam o arguido a matar a vítima.
XXII.O Tribunal a quo concluiu que o período de convívio e consumo de bebidas teria que ser, forçosamente, superior a 1 (uma) hora conforme consta da gravação digital 20210304145641_1703111_2871379 aos 10:10 minutos.
XXIII.O Tribunal a quo deu como provado no ponto 18. que o Arguido e a vítima estiveram na residência desta a partir das 21.10 horas e que às 23.57 horas já o Arguido se encontraria na freguesia da C______ conforme disposto no ponto 26. da matéria de facto provada.
XXIV.E assim considerando, resta uma janela de oportunidade muito curta para a ocorrência dos factos no interior da habitação.  
XXV.Aliás, os pontos 20. a 23. da matéria de facto provada descrevem toda a ação como um acto contínuo sem interrupções, sem momentos de reflexão e inclusivamente sem uma verdadeira preparação do ilícito ou persistência na sua execução.
XXVI.Na verdade, o Arguido nunca havia estado na casa da vítima, assim desconhecendo onde a mesma guardava os seus pertences, conclusão que se extrai das declarações do ora Recorrente, conforme consta da gravação digital 20210304145641_1703111_2871379 aos 4:13 minutos.
XXVII.Salvo melhor opinião, não se pode olvidar que tudo aconteceu na sequência de um acto físico de assédio sexual, como se provou, e sem prejuízo da alteração dos factos provados no ponto 19. do douto Acórdão supra alegada. 
XXVIII.E que nesse contexto, o arguido ficou perturbado emocionalmente, 
XXIX.O Arguido havia fumado “Maligno” [erva sintética] e ingerido várias bebidas alcoólicas.
XXX.Ressalvado o devido respeito, tudo considerado, não será de entender in casu qualquer calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito que aliás não foi preparado, como também se entende, considerando a dinâmica dos acontecimentos, não ter havido persistência na sua execução. 
XXXI.Assim decidindo, o douto Tribunal a quo violou o princípio consagrado no art.º 127º do Código Penal.
XXXII.E nestes termos deverá ser retirada a expressão “frieza de ânimo” do ponto 35. da matéria de facto provada merecendo uma redacção diversa, mais consentânea com tudo aquilo que foi apurado em sede de audiência de julgamento e que pode ser formulada nos seguintes termos: “O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a ÁA_____, através de um golpe violento que era apto a colocar a vítima inconsciente ou mesmo sem vida, como previu, quis e logrou, aproveitando-se da confiança e intimidade que cultivou na vítima, a qual não ofereceu resistência.”
Do enquadramento jurídico do crime de homicídio qualificado e respectiva aplicação dos factos ao direito.
XXXIII.O Recorrente vem condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al.j) do C. Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão.
XXXIV.Não se conforma o Recorrente com aquela qualificação jurídica aplicada ao caso concreto, devendo, outrossim, ser condenado pela prática de um crime de homicídio simples previsto e punido pelo artº. 131º do Código Penal.
XXXV.Por razão de economia processual e para os presentes efeitos, dão-se por reproduzidas as conclusões do presente recurso supra explanadas de XXIV a XXX.
XXXVI.No entanto exige-se, para a aplicação do art.º 132º, nº 1, que as circunstâncias revelem especial censurabilidade ou perversidade que in casu não verificam, recorrendo o legislador a exemplos padrão no art.º 132º, nº2, tendo o douto Tribunal a quo, recorrido à previsão contida na alínea j).
XXXVII.Como já se disse, os pontos 20. a 23. da matéria de facto provada descrevem toda a acção como um acto contínuo sem interrupções, sem momentos de reflexão e inclusivamente sem uma verdadeira preparação do ilícito ou persistência na sua execução.
XXXVIII.Não resulta dos factos provados a especial censurabilidade ou perversidade na conduta do Arguido, ora Recorrente, ou quanto à “frieza de ânimo”. 
XXXIX.E tudo sopesado, não deveria o Arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j) do C. Penal, mas antes condenado pela prática de um crime de homicídio simples previsto e punido pelo artº 131º do Código Penal.
Das medidas das penas parcelares
XL.Com o devido respeito entende o Recorrente que o Tribunal a quo decidiu mal a medida das penas parcelares a aplicar ao ora Recorrente.
XLI.O Arguido confessou os factos demonstrou arrependimento.
XLII. O Arguido tinha 24 anos e procurava ofertas laborais.
XLIII.O Arguido não tinha qualquer crime averbado no seu Certificado de Registo Criminal.
XLIV.O Arguido tem uma filha a quem prestava alguns cuidados.
XLV.No que diz respeito ao crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3º, nº1 e 2 do DL nº 2/98, de 3.01, por referência ao art. 121º do Cód. Estrada, e pelo qual vem condenado na pena de 7 (sete) meses de prisão, a confissão foi essencial para a descoberta da verdade, o que deveria ter sido considerado na medida concreta a aplicar por tal crime, reduzindo-a.
XLVI.Quanto ao crime ao crime de burla informática, p.p. pelo art. 221º, nºs 1 e 2, 22º, nºs 1 e 2 a) e 72º do C. Penal, condenado que vem na pena de 7 (sete) meses de prisão, o enriquecimento ilegítimo que o Arguido tentou obter foi de 40€ (quarenta euros), o que, pelo seu valor diminuto, haveria de conduzir igualmente a uma pena inferior a 7 (sete) meses de prisão. 
XLVII.Na mesma senda, no que concerne ao crime de furto simples, p.p. pelo art. 203º do C. Penal, condenado que vem na pena de 10 (dez) meses de prisão, apenas se apurou o valor de um tablet em quantia não inferior a 50€ (cinquenta euros), o que necessariamente imporia uma pena menos gravosa a aplicar ao Arguido.
XLVIII.De igual modo se considera excessiva, a condenação pela prática de um crime de homicídio – ainda que - qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j) do C. Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão.
XLIX.A medida das penas imposta ao Arguido é onerosa para a situação em concreto, não cumprindo a tão necessária finalidade da reintegração do agente na sociedade. 
L.Entende o Recorrente que, ressalvado o devido respeito, as penas parcelares aplicadas se encontram acima do quantum óptimo para a realização das finalidades da punição.
LI. Ora, salvaguardado o devido respeito, as penas parcelares e as medidas concretas aplicadas exorbitam este princípio consagrado constitucionalmente, bem como os da proporcionalidade, adequação e da necessidade.
LII.Assim, salvo melhor opinião, o douto Tribunal a quo, não atendeu ao preenchimento dos critérios que sopesados poderão beneficiar o arguido “temperando” de forma adequada com a necessidade de prevenção especial de ocialização.
LIII.O douto Tribunal a quo, ressalvado o devido respeito, não atendeu às circunstâncias favoráveis ao ora Recorrente.
LIV.A subsunção dos factos ao direito pelo Tribunal a quo é excessivamente gravosa para o caso em concreto.
LV.O douto Tribunal a quo foi excessivo nas penas parcelares consideradas, entendendo o Recorrente que a decisão proferida não alcança o Direito e não permite a realização de justiça.
LVI.Pelo que, requer o Recorrente a V/ Ex.cias, a substituição das medidas das penas em que foi condenado por outras não tão gravosas, e que se coadunem com as  exigências de prevenção especial exigidas para o caso concreto.
LVII.Pugnando-se que, ponderada a ilicitude global dos factos, a culpa do recorrente e as exigências de prevenção requeridas, penas situadas abaixo das penas parcelares concretamente aplicadas, ainda realizará, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição nos termos dos artigos 40º e 71º do Código Penal.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o douto acórdão ser revogado e substituído por outro que altere os pontos 19. e 36. da matéria de facto provada; devendo o arguido, ora recorrente ser condenado como autor material de um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal; substituir as penas parcelares concretamente aplicadas por penas menos gravosas.

Admitidos os dois recursos, apenas o Mº. Pº. apresentou resposta ao recurso do arguido, na qual deu por reproduzido todo o circunstancialismo de facto e de direito plasmado nas suas motivações e conclusões, concluindo, no sentido de ser dado provimento ao recurso e, em consequência, o arguido NVS______ ser condenado como autor material de um crime de homicídio p. p. pelo artigo 131°, do Código Penal, devendo o processo ser reenviado à primeira instância para a determinação concreta da pena e reformulação do cúmulo jurídico das penas parcelares.

Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador da República, emitiu parecer no sentido da eliminação da expressão «frieza de ânimo» do ponto 35 da matéria de facto provada, da qualificação da conduta do arguido como crime de homicídio simples, a redução das penas aplicadas para 14 anos, 6 meses, 4 meses e 4 meses, respectivamente, para os crimes de homicídio simples, de furto simples, de burla informática, na forma tentada e de condução sem habilitação legal.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência prevista nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO 

2.1.Do âmbito do recurso e das questões a decidir: 
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. 
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de  apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).

Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão; 
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;  Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito. 

Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes:
Erro de julgamento, nos termos do art. 412º do CPP, no que se refere aos pontos 19 e 35 da matéria de facto provada (recurso do arguido); 
Erro de direito, no que se refere à qualificação jurídica dos factos como crime de homicídio qualificado, por não se verificar o exemplo-padrão frieza de ânimo previsto no art. 132º nº 2 al. j) do CP (recursos do arguido e do Mº.Pº);
Violação do princípio da proporcionalidade quanto à dosimetria concreta de todas as penas aplicadas. 

2.2.Fundamentação de facto
Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria provada e não provada e a forma como o Tribunal a quo fundamentou a mesma (transcrição):
A) Da acusação
1.-O arguido conheceu ÁA____, nascido em 1959.03.01,  em meados de 2019, e com ele manteve contactos.
1.-No dia 23.1.2020, através da rede social Facebook e da aplicação Messenger, o arguido enviou uma mensagem escrita a ÁA_____solicitando o empréstimo de € 400 (quatrocentos), alegando que pretendia ajudar um tio a pagar “uma multa’”.
2.-ÁA_____negou o pedido, desculpando-se por não poder ajudá-lo naquele momento, e o arguido insistiu, dizendo que tinha arranjado € 250, perguntando se estaria disponível para emprestar o restante.
3.-Em 06.05.2020, às 05:12 da madrugada, o arguido tomou a iniciativa de entrar em contacto com ÁA_____, enviando cinco fotografias de conteúdo não apurado, acompanhadas do comentário "vai sonhando”, o que fez através da mesma aplicação Messenger, do Facebook, na qual tem conta pessoal, com o URL
http://www............/com/......./.....? id=1..............7, perfil de nome   e uma fotografia do seu rosto. 
4.-Pelas 18:28 horas, o arguido enviou mensagem a sugerir a ÁA_____  que se encontrassem para tomar umas bebidas, ao que aquele respondeu que os estabelecimentos se encontravam fechados, reportando-se às medidas de contenção da propagação do Coronavírus - COVID 19, implementadas em regulamentação da Situação de Calamidade, decretada por Resolução do Conselho de Ministros n.° 33-A/2020, de 30 de abril, que sucedeu ao Estado de Emergência, decretado pelo Presidente da República através do Decreto do Presidente da República n.° 17-A/2020, de 2 de abril, sucessivamente prorrogado.
5.-O arguido sugeriu então que comprassem cervejas no supermercado “Pingo Doce” e bebessem por “ali”; perguntou a ÁA_____  como é que deslocava a casa dele, que por sua vez propôs que o encontro ficasse para o dia seguinte, ao que o arguido respondeu “Na boa”, sugerindo as 20:00 horas, que colheu a concordância da vítima.
6.-Pelas 22:16 horas, ÁA_____  propôs-se a ir buscar o arguido à parte de “baixo do bairro” e questionou-o se tinha transporte, ao que o arguido respondeu negativamente e com  instruções sobre o ponto de encontro: “Lembraste onde estavas a minha espera ,
                   ?
7.-ÁA_____  respondeu “Si ao pé da paragem”, referindo-se à última paragem de transporte público rodoviário .
8.-Às 22:18 horas, o arguido respondeu “Então, sobes aí firas a tua primeira direita depois a direita outra vez”, “Que vou tsr la a espers”.
9.-A vítima respondeu “Ok as 20 h”, “Eu durante a tarde vou a S_____ comprar vinho”, “Quando vier vou aí.”
10.-No dia 7.5.2020, pelas 19:40 horas, ÁA_____  dirigiu-se à C_____ para ir buscar o arguido, fazendo o percurso pela VE5 da Via Expresso, no sentido C____ - C_____, ao volante do seu veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Smart, modelo Fortwo Coupé, cinzento,  . 
11.-Na C_____, às 19:51 horas, ÁA_____  parou no C_____ Shopping, na Rua ..... ..... - C_____, e efetuou uma consulta de movimentos no ATM, da conta que titulava na CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL.
12.-De seguida, ÁA_____dirigiu-se na viatura ao ponto de encontro e não encontrou o arguido.
13.-Circulou pelas imediações, voltando a passar no local duas vezes, até às 20:25 horas.
14.- Às 20:35 horas, o arguido enviou mensagem a confirmar se o encontro se mantinha: “Sempre vais vir?”.
15.-ÁA_____ respondeu pelas 20:37 horas, dizendo que já tinha passado no local combinado às 20h00, às 20h10 e às 20h25 horas, não o tinha visto e tinha regressado a casa.
16.-O arguido justificou a sua ausência com a necessidade de ir a casa para enviar sms e ÁA_____ voltou a dirigir-se ao ponto de encontro e recolheu o arguido, pelas 20:57 horas, após o que, se dirigiram à residência da vítima, uma casa composta por duas assoalhadas, na Rua....., concelho de S____- C____.
17.-Estiveram na residência a partir das 21:10 horas, a conviver e a ingerir bebidas alcoólicas.
18.-A hora não concretamente apurada, ÁA_____ faz uma abordagem física de cariz sexual ao arguido, que lhe causou uma forte reação de repulsa.
19.-Nesse instante, o arguido posicionou-se na retaguarda da vítima e com o braço fletido à volta do pescoço, apertou-o com força e puxou com um gesto brusco e firme, aplicando o golpe conhecido por “mata-leão”, que provocou, como pretendia, o estrangulamento e a quebra da cartilagem da tiroide da vítima, que perdeu imediatamente os sentidos.
20.-Seguidamente, o arguido arrastou o corpo da vítima até à casa de banho e colocou-o no polibã, em decúbito dorsal na base do chuveiro, com a cabeça encostada a um canto, as pernas na vertical, ligeiramente fletidas sobre o abdómen, e os pés encostados à parede da torneira.
21.-Nesse instante, percebendo que ÁA_____estava inconsciente, mas respirava e poderia sobreviver, envolveu a cabeça do mesmo em várias camadas de película aderente, que encontrou numa gaveta do móvel da cozinha.
22.-Por fim, para assegurar que a vítima não conseguia remover a película, prendeu os pulsos e as mãos com abraçadeiras de plástico finas, que foi buscar a uma gaveta do móvel da sala.
23.-Nesse seguimento, deitou as calças de ganga e um lenço de mão da vítima sobre o corpo, que manteve vestido com um polo de manga comprida e roupa interior, e abriu a torneira deixando a água a correr.
24.-O arguido abandonou o local no referido veículo Smart da vítima, apesar de não ter carta de condução nem outro tipo de licença para conduzir.
25.-Seguiu ao volante do veículo até à C_____, às 23:57 horas, passou na Estrada E_____ - C____ S____, estacionou-o na berma da estrada, sob a varanda de uma casa devoluta e abandonada, paralelo à via pública.
26.-O arguido apropriou-se da carteira de documentos pessoais da vítima, com dinheiro, em montante não apurado, e cartões bancários, assim como um tablet de marca LG, modelo V490, de valor não concretamente apurado, mas não inferior a € 50 (cinquenta euros), que recolheu no domicílio ou na viatura da vítima. 
27.-Em seguida, na posse da carteira, do tablet e das chaves do veículo, dirigiu-se apeado à sua residência, localizada no Complexo ...... ......, na Rua....., onde vivia com familiares.
28.-Pela 01:19 horas, o arguido acedeu ao sítio de apostas desportivas www...../...../.pt, e entrou na sua conta de jogador, que criara anteriormente e à qual associara o seu email ..............0....@gmail.com, o número de telemóvel +9........, o seu nome completo e a sua data de nascimento.
29.-Na posse do cartão de crédito número 4.................., associado à conta titulada por ÁA_____, na CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, com o IBAN PT..... ......, deu ordem de carregamento de €40 (quarenta euros) naquela conta de apostas, inserindo o número do cartão bancário, a data de validade e o código “.....” que constava do verso do mesmo.
30.-Contudo, o pagamento foi recusado pela SIBS, porquanto o saldo da conta era insuficiente para satisfazer o valor da operação.
31.-No dia 10.5.2020, pelas 18:30 horas, os Bombeiros Municipais de S____ C____ entraram na residência com autorização de familiares da vítima que suspeitaram do seu estado, pelo facto de não abrir a porta e o seu telemóvel tocar no interior.
32.-Encontraram as luzes ligadas e o cadáver de ÁA_____ na posição em que o arguido o deixara, com água a escorrer da torneira sobre o corpo, o que atrasou o processo de decomposição.
33.- ÁA_____ faleceu no dia 7 de maio de 2020, em consequência direta e necessária de asfixia mecânica por oclusão extrínseca dos orifícios respiratórios e/ou constrição do pescoço infligida pelo arguido nos termos descritos.
34.- O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a ÁA_____, através de um golpe violento que era apto a colocar a vítima inconsciente ou mesmo sem vida, como previu, quis e logrou, com frieza de ânimo, aproveitando-se da confiança e intimidade que cultivou na vítima, a qual não ofereceu resistência.
35.-O arguido sabia que manietando a vítima, impedia-a de se libertar da película aderente que colocou para oclusão da boca e do nariz, bem sabendo que o plástico conduziria inevitavelmente à asfixia, caso não fosse removido, conforme sucedeu, de acordo com a vontade do arguido, que pretendeu, com a sua aplicação, reforçar o processo de produção da morte, na eventualidade de a mesma não resultar do golpe aplicado no pescoço.
36.-O arguido agiu com tenacidade e total insensibilidade pelo valor da vida humana.
37.-O arguido sabia que não tinha carta de condução ou qualquer outra licença que o habilitasse à condução de veículos a motor em vias abertas ao trânsito em geral.
38.-O arguido subtraiu o cartão de crédito da vítima, sem a sua autorização e contra a sua vontade; utilizou-o no sistema informático bancário, através da inserção de dados que seriam aptos a desencadear a operação de carregamento, com a intenção de se apropriar em benefício próprio de saldo bancário, o que sabia não ser legítimo e diminuir o património da vítima, e que não se concretizou devido à insuficiência de saldo, circunstância que foi alheia e contrária à vontade do arguido.
39.-O arguido fez sua a carteira, os documentos, os cartões, o dinheiro, e o tablet, da vítima e proprietária, bem sabendo que não lhe pertenciam e que agia e contra a sua vontade.
40.-O arguido quis subtrair o veículo de matrícula de matrícula XX-XX-XX contra a vontade e sem o consentimento de ÁA_____, seu legítimo proprietário, para nele circular até às proximidades da sua residência. 
41.-O denunciado agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com conhecimento que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei como crime.
42.O arguido trabalhava num estabelecimento do ramo da hotelaria e estava desempregado desde novembro de 2019.
43.-Não constam quaisquer condenações judiciais do certificado de registo criminal do arguido.
44.- O arguido revelou arrependimento.

***

B) Condições pessoais e sócio-económicas do arguido
NVS______, de 24 anos, tem a sua rede familiar de origem a residir no B____ -- N_____ (avós paterna e materna), mas permanecia integrado, no período anterior à prisão preventiva, no agregado familiar dos pais da companheira, também residentes no mesmo bairro social. O sistema familiar era constituído, então, pela companheira, de 24 anos, desempregada; pela filha do casal, de 4 anos; pelos pais da companheira, calceteiro e doméstica; e por uma irmã daquela, estudante. Neste agregado, beneficiava de apoio, mas quer a companheira, quer os seus progenitores reprovavam o uso de substâncias psicoativas por parte do arguido. A relação afetiva mantém-se há 11 anos e a dinâmica entre o casal reveste-se de proximidade e de suporte, sem prejuízo de ter existido alguns fatores de conflito, associados ao estilo de vida do arguido (uso de substâncias ilícitas, prisão no Reino Unido e agressões mútuas).
Quanto à família de origem, NVS _____  tem mantido o apoio, mas fez referência a vários problemas familiares ao longo do seu processo de desenvolvimento, destacando que a mãe, atualmente residente no Reino Unido, teve problemas com o uso de bebidas alcoólicas, o pai foi ausente, o avô paterno cumpriu pena de prisão, a avó paterna (com quem cresceu) abusava do consumo de álcool e os irmãos mais novos foram integrados em residências de proteção.
NVS _____  tem o 6° ano de escolaridade. O seu percurso escolar foi problemático, com várias retenções, absentismo e comportamentos violentos com pares, tendo sofrido suspensões por este tipo de conduta. Ainda tentou integrar o ensino profissional, num curso de cozinha, mas desistiu antes de o concluir. Com baixas qualificações, optou por emigrar para o Reino Unido, onde trabalhou na área da restauração, como copeiro e cozinheiro. Porém, no decurso da emigração, teve problemas com o Sistema de Justiça Britânico, após o seu envolvimento numa conduta violenta, pelo que cumpriu uma pena de prisão, de 1 ano e 6 meses, em Guernesey. Na RAM, trabalhou, alguns meses em 2019, numa unidade hoteleira do P____ S____ na área da cozinha, após o que ficou desempregado, tendo-se inscrito no Instituto de Emprego M_____ em 03/12/2019 para procura de ofertas laborais.
À data dos factos, permanecia sem trabalho e sem fontes de rendimento, pelo que a sua situação económica era precária.
Antes da prisão preventiva, o seu modo de vida era passado no bairro social de residência, onde prestava alguns cuidados à filha, visitava familiares e contactava com amigos, com os quais partilhava consumos de canabinóides e de álcool. O uso de álcool era pontualmente excessivo e o de canabinóides era regular consoante a sua capacidade económica.

Em termos pessoais, NVS_____manifesta problemas de autocontrolo, de gestão da raiva e impulsividade, fazendo uso da conduta violenta como forma de resolver problemas. Este funcionamento pessoal evidenciou-se desde a idade escolar.

Em situação de privação da liberdade, o arguido sofreu já uma sanção de internamento em cela disciplinar por conduta violenta com outro recluso. Manifesta interesse em ter uma ocupação laboral e investir na sua formação em contexto de reclusão, uma vez que antecipa sofrer uma sanção gravosa e longa.

No EPF, tem contado com o apoio de familiares, recebendo visitas.
A companheira mantém a visitas, mas descreve que o futuro da relação é muito incerto face às perspetivas de vida do arguido nos próximos anos. 

IMOTIVAÇÃO

A formação da convicção do Tribunal acerca da decisão sobre a matéria de facto, baseou-se na análise crítica e global do conjunto da prova produzida e examinada em audiência, perspectivada esta, no essencial, à luz das regras experiência e da livre apreciação, conforme resulta do art. 127°, do Código de Processo Penal.

A componente fundamental da valoração crítica desenvolvida no âmbito da livre apreciação da prova é a presunção judicial. Na verdade, a actividade jurisdicional não está estritamente vinculada às afirmações e negações dos declarantes e das testemunhas, assim como não pode prescindir da valoração dos depoimentos à luz de um juízo crítico, considerando as regras da experiência. É esse trabalho de análise crítica que consolida a livre convicção do tribunal, permitindo-lhe considerar como provados os factos merecedores de uma certeza judiciária e como não provados todos aqueles que sejam inegavelmente desmentidos pelas regras da experiência ou que não se mostrem comprovadamente demonstrados. É esse convencimento racional, lógico-dedutivo e fundamentado, desde que devidamente explicitado, que permite ao juiz afirmar a verdade do caso concreto, fixando a correspondente matéria de facto, assim se efectivando a “livre apreciação da prova” consagrada no art. 127° do CPP.

A certeza judiciária subjacente ao provado afirma-se através de uma presunção judicial inserida no processo de formação da livre convicção do julgador por apelo a juízos que não ponham em causa as máximas da experiência, exigindo, no entanto, a verificação de uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge, sem “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas. Essa presunção conduz a um facto real que assim se firma como facto provado desde que não se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado atingido e sem que o funcionamento da presunção colida com o princípio “in dubio pro reo”.

Tudo isto teve o tribunal presente no caso agora em apreço. 

Assim, e concretizando, para dar como provados e não provados os factos atinentes à conduta delituosa do arguido, circunstâncias que os rodearam e suas consequências, baseou-se o tribunal, desde logo, com as declarações do arguido que, no essencial, confirmou, os factos constantes da acusação. O arguido referiu que comunicava com a vítima via Messenger desde o Verão de 2019 e que apenas o conheceu pessoalmente em Janeiro de 2020, altura em que foram ao J____ S_____ beber uma poncha. Como estava desempregado, a vítima já lhe havia dito que o poderia ajudar a encontrar trabalho, visto que sendo feirante conhecia muita gente. Quando enviou a mensagem a que alude o artigo 4° da acusação - “Vai sonhando”, estava a referir-se à possibilidade de o FCP ser campeão. Na residência da vítima, ambos ingeriram várias cervejas e licores, tendo o arguido bebido um pouco mais do que a vítima.

Acresce que já havia fumado uma erva sintética denominada “maligno”, cujo efeito é muito superior ao do haxixe. Estiveram a falar sobre a possibilidade de o arguido regressar ao P____ S____ e depois do último shot começou a sentir-se estonteado e sentou-se no sofá. A dada altura sentiu a mão da vítima pelas suas pernas acima e afastou-se repelindo-o. Como a vítima investia e lhe pedia para tirar as calças e agarrou numa pequena faca de queijo, apertou-lhe a garganta e a vítima largou a faca. Envolveram-se em confronto físico e, a dada altura, aplicou-lhe a manobra de mata-leão, e a vítima perdeu os sentidos. Percebendo que ÁA_____ continuava a respirar, teve medo que ele acordasse e lhe fizesse mal ou à sua família pelo que procurou um saco plástico para lhe envolver a cabeça, tendo, no entanto encontrado película aderente e abraçadeiras na cozinha. Amarrou-lhe os pulsos e envolveu-lhe a cabeça com a película aderente. Sabia que dessa forma ele não conseguiria respirar. Não se recorda que ter aberto a torneira e hoje percebe que não estava em si. Questionado pelo motivo pelo qual não abandonou o local quando percebeu que ÁA_____estava apenas desmaiado, respondeu, sem convencer o tribunal, que tentara sair pela porta da frente e que não conseguiu. Está arrependido e pediu perdão às irmãs da vítima que se encontravam na sala de audiências.

Assim, em face das declarações daquele e do depoimento do inspector da Polícia Judiciária, titular da investigação, não restaram dúvidas ao Tribunal da apurada conduta do arguido, posto que conjugados com a Reconstituição dos Factos de fls. 753 a 779, com o Relatório de Inspecção Judiciária de fls. 81 a 97, com o Auto de exame ao cadáver de fls. 47, o Auto de apreensão e exame de telemóvel e computador de fls. 98 a 188, a Reportagem fotográfica de fls. 51 a 80, dúvidas não restaram ao Tribunal da supra apurada factualidade. Como reforço da prova dessa autoria surgem, ainda, o relatório de autópsia médico-legal junto a fls. 1074 a 1076, e o Exame pericial de fls. 1014 a 1018 e 1079 a 1080 do Laboratório de Polícia Científica.

Quanto à eventual colaboração do arguido, dir-se-á que este apenas colaborou após ser identificado como autor do homicídio, já que as provas carreadas pelos investigadores para os autos é que levaram até à identidade do autor do crime.

No que respeita ao tablet, o arguido referiu que não o retirou da habitação da vítima e que já se encontrava no automóvel daquela. Contudo, dúvidas não subsistiram sobre o animus de subtracção já que o tablet foi encontrado aquando da busca domiciliária na residência do arguido.

O dolo que presidiu à actuação do arguido retirou-o o tribunal do comportamento do arguido: manobra de mata-leão, envolvimento da cabeça da vítima com película aderente, atadura das mãos da vítima, para impedir que retirasse a película aderente. Quanto ao dolo de apropriação do tablet da vítima, retira-o o Tribunal da circunstância de tal objecto ter sido apreendido na residência do arguido (Cfr. auto de busca e apreensão de fls. 705-706 e 729), pelo que, ainda que o mesmo pudesse se encontrar no interior da viatura quando o arguido nela se dirigiu para a sua residência, o certo é que o retirou dali e o levou para a sua residência, local onde veio a ser apreendido.

De resto, essa intencionalidade, facto do foro psicológico, extrai-se claramente da objectividade da conduta do arguido, que de modo claro e linear a permite presumir, em conformidade com as regras da experiência comum (cfr., neste sentido, a título meramente exemplificativo, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/12/2008, disponível em www.dgsi.pt).

A matéria factual referente às condições sociais e pessoais do arguido, seu percurso de vida e sua personalidade, a que se aludiu supra, decorre do conteúdo do Relatório Social a ele referente, com que os autos foram instruídos.
Por fim, a convicção do tribunal, quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido, a que se aludiu na fundamentação de facto, alicerçou-se na análise do seu CRC.

***

2.3. Apreciação do Mérito do Recurso

Quanto ao erro de julgamento e alterações a introduzir aos pontos 19. e 35. da matéria de facto provada.
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação. 
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).

Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».

O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6..

Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, a mesma «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorrectamente julgado» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art. 412º., pág. 1144).

Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação.

«(…)Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância (…)» (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

«O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida» (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).

No que se refere à especificação das provas concretas, o ónus previsto no art. 412º do CPP «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art. 412º., pág. 1144).

Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado.

Este ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, apresenta, pois, uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada uma das declarações e depoimentos gravados. 

Assim, se a acta contiver essa referência, a indicação dos excertos em que se funda a impugnação faz-se incluindo a referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º (nº 4 do artigo 412º do C.P.P.).

Mas, se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (Acs. da Relação de Évora, de 28.05.2013, proc. 94/08.0GGODM.E1 e da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).

Em qualquer das duas hipóteses, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.

Essa modificação será, ainda, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art. 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série,  nº 77 de 18 de abril de 2012).

«É em face dessa prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, cuja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância» (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).

Caso se limite a indicar a totalidade de um documento ou de uma perícia, ou de uma escuta telefónica, por reporte a um determinado período, ou as declarações prestadas por um certo número de testemunhas, na sua globalidade, não pode considerar-se cumprido o ónus, nem viabilizada a possibilidade de reapreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de recurso. 

Tal forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma excepção, desvirtuando completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.

Além disso, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjecturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objecto. 

É, igualmente, inadmissível, à luz dos princípios da imediação e oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica, partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento.

«(…) Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório». (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18.04.2012).

A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os referidos princípios que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso como um remédio. 

Trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efetivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e os princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos. 

«É em face dessa prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, cuja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância» (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).

A reapreciação da matéria de facto em sede de recurso só pode determinar a sua alteração, se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa, ou seja, quando, perante o conteúdo dos meios probatórios pertinentes, se constatar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu quanto ao modo como decidiu a matéria de facto. 

Se o Tribunal de recurso verificar que dos meios probatórios indicados pelo recorrente, apenas seria possível uma decisão diferente, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual.

Assim, a convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efetivamente produzida no processo, deveria necessariamente ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).

Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso. 

«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção
(…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, por todos, Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1 in http://www.dgsi.pt).

«Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto;
«Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
«Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.03.2021, processo 179/19.8JDLSB.L1-9, in http://www.dgsi.pt).

O recorrente pretende que a alteração do ponto 19 da matéria de facto provada - «nesse instante, o arguido posicionou-se na retaguarda da vítima e com o braço fletido à volta do pescoço, apertou-o com força e puxou com um gesto brusco e firme, aplicando o golpe conhecido por “mata-leão”, que provocou, como pretendia, o estrangulamento e a quebra da cartilagem da tiroide da vítima, que perdeu imediatamente os sentidos», para aquela que propôs na conclusão XVII do recurso - «A hora não concretamente apurada, ÁA_____ fez uma abordagem física de cariz sexual ao arguido que lhe causou forte repulsa, tendo aquele ordenado ao arguido que tirasse as calças e agarrou numa pequena faca de queijo, altura em que o arguido lhe apertou a garganta e a vítima largou a faca, envolvendo-se em confronto físico».

Para o efeito, invocou que sendo o arguido a única pessoa que poderia esclarecer a sucessão de eventos que antecedeu a morte da vítima e tendo prestado declarações, o Tribunal deveria ter dado total acolhimento à versão dos factos que o mesmo apresentou e, de acordo com ela, deveria ter sido dado como provada a redacção do ponto 19 proposta na mencionada conclusão XVII por ser a que corresponde à prova produzida, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CP.

O que o recorrente invocou como fontes do erro de valoração e apreciação da prova que imputou ao Tribunal recorrido centra-se, afinal, no uso de «uma pequena faca de queijo» pela própria vítima, numa ordem por esta emitida e dirigida ao arguido de que despisse as calças que vestia e num estado emocional do arguido – a «repulsa» que adjectivou de «forte» quando confrontado com a proposta ou abordagem de natureza sexual que a vítima lhe dirigiu.

Ora, a abordagem sexual feita pela vítima ao arguido e a repulsa por este sentida em resultado da mesma, nos momentos que antecederam a morte, já se encontram descritas no ponto 18., de resto, em sentido totalmente coincidente com a pretensão do recorrente e com aquele que terá sido o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido em audiência de discussão e julgamento, segundo o que se descortina da descrição da prova em sede de motivação da decisão de facto, no acórdão recorrido e das motivações e conclusões, no presente recurso, como se conclui facilmente do teor literal deste ponto 18. da matéria de facto provada.

Com efeito, o ponto 18 dos factos provados diz que «18. A hora não concretamente apurada, ÁA_____ faz uma abordagem física de cariz sexual ao arguido, que lhe causou uma forte reação de repulsa.» 

E sendo assim, a única real divergência que o recorrente tem em relação à sucessão cronológica de eventos que antecederam a morte da vítima, refere-se ao comportamento desta última, em dois pormenores: a ordem de que dirigiu ao arguido para que tirasse as suas próprias calças e a utilização de uma pequena faca de queijo. 

Pretende o recorrente que a omissão destas duas circunstâncias no elenco dos factos que o Tribunal considerou demonstrados viola o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do CPP.

O princípio da livre apreciação da prova genericamente consagrado no artigo 127º do CPP, assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no art. 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art. 32º nº 8 da Constituição.  

Este sistema de livre apreciação da prova tem várias implicações, desde logo, no que se refere ao processo de fixação da matéria de facto e da sua exposição, na decisão final, quanto à formação da convicção do Tribunal e às exigências de fundamentação da decisão de facto, nos termos previstos no art. 374º nº 2 do CPP.

«O julgador, em vez de se encontrar ligado a normas préfixadas e abstractas sobre a apreciação da prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia e às máximas da experiência» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, p. 298).

Porém, a livre convicção é um mecanismo de descoberta da verdade, não é a afirmação infundada da verdade.  

A apreciação da prova é livre, mas não pode ser arbitrária. Tem de alicerçar-se num processo lógico-racional, de que resultem objectivados, à luz das máximas de experiência, do senso comum, de razoabilidade e dos conhecimentos técnicos e científicos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro qualquer.

Trata-se de uma «liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3).

«A liberdade de que aqui se fala não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionisto-emocional que se furte, num incondicional subjetivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se antes de uma liberdade para a objetividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objetividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, i. é, uma verdade que transcenda a pura subjetividade e que se comunique e imponha aos outros» (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, págs. 50-51).

O princípio da verdade material é um princípio com dignidade constitucional, sendo certo que a justiça material baseada na verdade dos factos é um direito indisponível. «(...) No processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada à utilização de um certo meio de prova préestabelecido pela lei. E recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.

É que o Estado, como titular que é do ius puniendi, está interessado em que os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados (…)» (Ac. do Tribunal Constitucional nº 578/98. No mesmo sentido, Acs. do TC nº 137/2012 e 198/2004, in http://www.tribunalconstitucional.pt e Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30).

Efectivamente, a violação deste princípio pode alicerçar com sucesso a impugnação ampla da matéria de facto se, porventura, o Tribunal descurar a análise crítica da prova sob orientação das regras de experiência comum, de regras de lógica ou de critérios de razoabilidade humanas, quanto àqueles meios de prova que estão sujeitos ao crivo da livre convicção do julgador, porque, então, o que haverá é uma fixação arbitrária de factos, como já se disse, a propósito das diversas causas e manifestações do erro de julgamento relevante, nos termos do art. 412º do CPP.

As declarações do arguido, mesmo que correspondam a uma confissão integral e sem reservas de factos integradores de crimes puníveis com penas de prisão superiores a cinco anos, estão entre os meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 344º nºs 1, 2 e 3 al. c) do CPP).

É nelas que o recorrente assenta o erro de julgamento do Tribunal recorrido ao não ter incluído aquelas duas circunstâncias nos factos provados.
Num sistema, como o processual penal português, de livre apreciação da prova, não tem qualquer eficácia jurídica o aforismo “testis unus testis nullus”, pelo que, um único depoimento, mesmo sendo o da própria vítima, pode ilidir a presunção de inocência e fundamentar uma condenação, do mesmo modo que as declarações do arguido por si só, isoladamente consideradas, podem fundamentar a sua absolvição.

E o que é igualmente certo, é que as declarações de um arguido ou de um assistente (tal e qual como um depoimento testemunhal), podem não ser necessariamente todas verdadeiras, nem necessariamente todas falsas e ainda assim serem perfeitamente válidas para fundamentar a convicção do Tribunal na consideração como provados ou como não provados de todos ou parte dos factos sobre que tenha incidido, desde que, à luz das regras de experiência comum, dos critérios de razoabilidade humana, das regras da ciência ou da técnica ou do valor probatório pleno de determinados meios de prova pré catalogados pela lei com essa especial eficácia, nas correlações que o Tribunal possa estabelecer com os demais meios de prova, tais declarações se mostrem credíveis, consistentes e fiáveis, para tal também contribuindo, além da análise global e concatenada de todas as provas,  outros factores mais relacionados como o modo como as declarações são prestadas e tão díspares como a linguagem corporal, as expressões faciais, a espontaneidade das respostas, as lacunas ou inflexões, coerência e grau de pormenorização do discurso, as emoções exteriorizadas ou as diferenças de comportamento conforme o interlocutor seja o Mº. Pº., o Defensor, o Advogado do assistente ou de uma parte civil ou o próprio Juiz (cfr., nesse sentido, Rui Abrunhosa Gonçalves e Carla Machado, (coord.), Psicologia Forense, Quarteto Editora, Coimbra, 2005, p. 345 e Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, Barcelona, p. 615).
 
Não emerge, pois, do princípio da livre apreciação da prova qualquer obrigação de inserir na matéria de facto provada todas as circunstâncias, todos os pormenores, todo o relato feito pelo arguido, pelo assistente, pela parte civil ou por uma testemunha, até ao ínfimo detalhe, como se uma assentada se tratasse, apenas a partir da consideração das suas declarações como um meio de prova credível.

Refira-se, ainda, que além de, por efeito do princípio da livre convicção do julgador, estar consentida a atribuição de credibilidade a apenas parte dessas declarações, em muitos casos, os factos a que tais declarações se referem nem sequer revestem qualquer importância ou interesse para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, e, noutros casos, nem sequer podem ser tidos em consideração, sob pena de nulidade da decisão, nos termos do 379º nº 1 al. b) do CPP.   
   
É que também há que ter em atenção que, de harmonia com o princípio do acusatório vigente em processo penal, é a descrição factual inserta na acusação ou na pronúncia que determina duas consequências importantes: a vinculação temática e a delimitação dos poderes de cognição do juiz do julgamento, sendo por efeito da estrutura acusatória do processo que o respectivo objecto é tendencialmente imutável e deve ser acompanhado da correspondência ou uma correlação próxima entre a acusação (ou a pronúncia) e a sentença.

É certo que essa correspondência admite excepções em sintonia com razões de economia processual e de paz jurídica do arguido, que são as que, verificadas as condições e as formalidades previstas nos arts. 358º e 359º do CPP, permitem que, depois de discutida a causa, sejam considerados na sentença factos novos, não inicialmente descritos na acusação, mesmo que representem uma alteração (substancial ou não substancial) desta. 

Mas não é o caso.

A circunstância de a vítima ter dito ou ter ordenado ao arguido que despisse as calças que vestia não tem o menor interesse, porque a sua única utilidade seria introduzir o tema da proposta de acto sexual formulada pela vítima ao arguido e esse contexto já está assente e descrito no ponto 18 dos factos provados.

No que se refere ao uso da faca, a essa circunstância nenhuma menção foi feita na acusação e, portanto, esse já seria motivo bastante para que tal circunstância não pudesse ser incluída no acervo factual considerado provado, pelo menos, não sem antes ser dado cumprimento ao preceituado no art. 358º ou 359º do CPP. 

Mas, além dos limites impostos pela estrutura acusatória do processo, sempre se dirá que a pretensão do recorrente de ver incluído este pormenor na matéria de facto provada sempre esbarraria no limiar da relevância para a decisão da causa, pelas seguintes razões: 
Do teor das conclusões XI a XV, apesar de o recorrente nunca o ter conseguido afirmar de modo explícito, parece fazer depender a importância que atribuiu ao uso da faca por parte da vítima, de a mesma configurar uma espécie de causa de justificação, eventualmente, por legítima defesa, ou excesso de legítima defesa, ou ainda, uma circunstância de natureza atenuante pelo significado de ameaça contra a própria vida ou integridade física do arguido que a utilização de uma faca na sua presença e apontada na sua direcção envolveria, naquelas circunstâncias, possivelmente integradora de uma compreensível emoção violenta susceptível de privilegiar o homicídio, segundo a previsão do art. 133º ou, pelo menos, de enquadrar uma circunstância atenuante integrada no regime da atenuação especial previsto no art. 73º, ou tão-só para arredar a agravante modificativa prevista no art. 132º nº 2 al. j), todos do CP.  

Qualquer um destes intuitos se poderá retirar das afirmações de que «(…) a utilização pela vítima de uma faca é um facto essencial que deveria integrar a matéria de facto provada» (conclusão XII), assim como de que o «acórdão que ora se impugna, não toma posição sobre esta versão do Recorrente, pelo que, salvo melhor opinião, na dúvida, o Tribunal deverá favorecer o Arguido» (conclusão XIII), ou ainda que «o raciocínio do douto Tribunal a quo para dar como provado “uma abordagem física de cariz sexual” sendo conforme os princípios que enformam as decisões judiciais em matéria penal, haveria de ser aplicado à relevante circunstância da vítima ter recorrido a uma faca no momento imediatamente anterior aos factos descritos no ponto 20» (conclusão XIV) e, por fim, a de que «(…) não bastaria uma abordagem física de cariz sexual para imediatamente criar no Arguido a resolução de matar», na conclusão XV.

Como o recorrente não assumiu claramente o que pretendia, nem retirou de forma expressa qualquer consequência jurídica da invocada necessidade de inclusão nos factos provados da utilização da faca pela vítima, não tem este Tribunal de especular ou conjecturar sobre qual seria o alcance desta alegação, limitado como está, nos seus poderes de cognição, pelas conclusões do recurso.

Por conseguinte, mesmo que não fosse o obstáculo quase intransponível da vinculação temática emergente da estrutura acusatória do processo penal, a falta de clarificação da pretensão recursiva também, só por si, seria suficiente para negar provimento ao recurso, nesta parte.

Acrescente-se, por fim, a faca em apreço, sendo «uma pequena faca de queijo», para usar as palavras do próprio recorrente, quer na audiência de discussão e julgamento, quer no presente recurso, pelas suas próprias características, não tem poder perfurante e sem qualquer concretização sobre o modo como possa ter sido usada pela vítima muito menos poderá qualificar-se como algo de ameaçador, minimamente apto a induzir algum tipo de medo ou receio, no espírito do arguido, para o efeito de o motivar ou ajudar a determinar-se a tirar a vida à vítima, naquelas circunstâncias descritas, nos pontos 16. a 41. dos factos provados. 

Por fim, este tipo de argumentação nem sequer tem virtualidade para ser considerado impugnação ampla da matéria de facto, seja porque o erro de julgamento tem de reportar-se aos factos que integram o objecto do processo, tal como ele estiver descrito e delimitado na acusação e não a factos novos, sejam eles meramente circunstanciais ou essenciais, seja porque desta argumentação não resulta nenhuma arbitrariedade, insustentabilidade lógica, uso de método proibido de prova, desconsideração de especial valor probatório de algum meio de prova a que a lei atribua esse valor específico, ou violação de regras de senso comum de lógica que possam ser imputados ao Colectivo que julgou a causa.

Tudo não passa de fazer passar por erro de julgamento, algo que não ultrapassa o nível da mera divergência de opinião acerca da inclusão ou omissão da circunstância de a vítima ter manipulado uma pequena faca de queijo, apenas porque, segundo a visão do recorrente, tal lhe seria útil para justificar ou contextualizar o seu próprio comportamento ulterior de execução do crime de homicídio e para finalidades que nem concretizou com clareza. 

Ora, a impugnação ampla da matéria de facto não serve este tipo de propósitos, estando circunscrita à correcção de erros no exame crítico da prova e consequente fixação da matéria de facto que deles resultem. 

Por todas estas razões, o ponto 19. dos factos provados não será alterado.

Já no que se refere ao ponto 35., a primeira anotação a fazer é a de que não é o ponto 35. que contém a expressão «com frieza de ânimo», mas antes o ponto 34. da matéria de facto provada, no acórdão recorrido.

Feita essa ressalva, apesar do lapso material na indicação do concreto ponto da matéria de facto a alterar, não pode deixar de se concordar com o recorrente, quando preconiza a supressão da expressão «frieza de ânimo» na justa medida em que a mesma reproduzindo o teor literal de parte da al. j) do nº 2 do art. 132º, constitui um dos exemplos padrão susceptíveis de qualificar o crime de homicídio, mas cuja verificação depende da demonstração de circunstâncias objectivas, concretas, que reflitam essa frieza de ânimo e integrem o seu conteúdo e significado. 

Como a expressão frieza de ânimo não contém a especificação das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que a conduta integradora do crime ocorreu, logo, não é passível de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art. 32º nº 1 da CRP, não pode servir de suporte à qualificação jurídica da conduta do agente, porque é ela própria essa qualificação.

Por isso, a mera inserção da expressão, na matéria de facto, não pode deixar de assumir natureza conclusiva que deve, por isso mesmo, ser retirada do acervo factual, já que de factual não tem nada.

Tal alteração não é, porém, da matéria de facto, por erro de julgamento, mas uma simples correcção do texto da decisão recorrida que se impõe para suprir e corrigir uma má prática que consiste em misturar factos e reproduções de textos de normas incriminadoras, como se fossem uma e a mesma coisa, o que não é tecnicamente correcto, mas não tem que ver com o modo como o Tribunal formou a sua convicção a partir da prova produzida, nem com acerto ou desacerto do sentido em que interpretou e examinou criticamente a prova, que este sim, é que é pertinente ao erro de julgamento e à impugnação ampla da matéria de facto.

E também não chega a ser um vício decisório, pois não traduz qualquer insuficiência, obscuridade, incongruência, ou erro notório enquadrável em alguma das alíneas do art. 410º nº 2 do CP.  

Trata-se, tão-só, de um erro técnico-jurídico, inicialmente cometido na acusação, em cuja descrição tal expressão foi inserida e não devia ter sido e que, depois, foi também erradamente transposta para os factos provados, no acórdão recorrido, como se fosse um facto, mas que, na realidade, é apenas a reprodução de uma expressão legal.   
     
Consequentemente, o ponto 34 da matéria de facto provada passará a ter o seguinte conteúdo: «O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a ÁA_____, através de um golpe violento que era apto a colocar a vítima inconsciente ou mesmo sem vida, como previu, quis e logrou, aproveitando-se da confiança e intimidade que cultivou na vítima, a qual não ofereceu resistência».

Quanto ao erro de direito, na vertente de saber se o comportamento do arguido preencheu a agravante modificativa «frieza de ânimo», ou se apenas o tipo simples de homicídio.

O acórdão recorrido, em sintonia com o enquadramento jurídico-penal feito na acusação, condenou o arguido pelo crime de homicídio qualificado, com fundamento na verificação da circunstância frieza de ânimo prevista no art. 132º nºs 1 e 2 al. j) do CP.

O art. 131º contém o tipo incriminador base dos crimes contra a vida humana, sendo a partir dele que a lei tipifica os restantes crimes contra o mesmo bem jurídico, ora qualificando-o, como faz no art. 132º, ora privilegiando-o, como acontece nas previsões contidas nos arts. 133º; 134º e 136º, ou introduzindo especificidades quanto ao modo de execução da morte de outrem, nos arts. 135º; 138º e 139º e, ainda, especializando o tipo subjectivo de ilícito, com a incriminação da negligência contida no art. 137º, todos do Código Penal.

O crime de homicídio consuma-se com a verificação do resultado morte, o que pressupõe retirar a vida a uma pessoa já nascida e ainda viva (tornando-se, a este nível, fundamental aferir quais os momentos do começo e do fim da vida, relevando, a este propósito, quanto ao momento em que começa a vida, as teses acerca do início do acto do nascimento ou, em alternativa, a do nascimento completo e com vida, importada do Direito Civil – art. 66º do CC e, quanto àquele em que a vida já não existe, a da chamada morte cerebral).

Trata-se de um crime de resultado, pelo que qualquer acto ou omissão desde que ligada ao resultado, por um nexo de imputação, à luz da teoria da causalidade adequada, nos termos do art. 10º do Código Penal, é susceptível de conduzir à sua verificação, do ponto de vista objectivo.

A nível subjectivo, a imputação do resultado ao seu autor faz-se com base no dolo, em qualquer das modalidades, directo, necessário ou eventual, a que alude o art. 14º do citado diploma.

As normas incriminadoras contidas no art. 132º do Código Penal, prevêem formas qualificadas do crime de homicídio, fazendo-o com recurso à combinação entre uma cláusula geral extensiva e assente em conceitos indeterminados – a especial censurabilidade ou a especial perversidade –, no seu nº 1 e entre os exemplos-padrão, nas diversas alíneas do nº 2 do mesmo normativo, que mais não são do que circunstâncias cuja verificação objectiva é indiciadora dessa especial perversidade ou censurabilidade, referindo-se umas aos factos, outras ao seu autor, mas em qualquer das hipóteses, sendo determinantes de um especial tipo de culpa.

Com efeito, «especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta a qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere a formas especialmente graves de execução do crime.

«Parece ser (...) o pensamento da lei (...) o de pretender imputar à "especial censurabilidade" aquelas condutas que em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à "especial perversidade" aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo I, pág. 29).

Haverá especial censurabilidade quando «as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores», podendo afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às «componentes da culpa relativas ao facto», fundando-se, pois, «naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude». Haverá especial perversidade quando se esteja perante «uma atitude profundamente rejeitável», no sentido de «constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade», estando aqui em causa as «componentes da culpa relativas ao agente» (Teresa Serra Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, páginas 63 e 64. No mesmo sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes Contra as Pessoas, págs. 48 e ss.; Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, 1979, pág. 25).

«O que motiva a agravação … tem a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples» (Figueiredo Dias, Homicídio qualificado», Colectânea de Jurisprudência, ano XII – 1987, tomo 4, pág. 52).

Trata-se, pois, de uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples. 

Essa diferença de grau tem, necessariamente, repercussões na agravação do desvalor da conduta, em sede de ilicitude. Mas é a existência de um especial tipo de culpa que constituí a matriz da agravação, que justifica também o não funcionamento automático dos exemplos padrão. 

É preciso ter presente que o tipo simples previsto no art. 131º do CP já é de acentuada gravidade, por atentar contra o bem jurídico mais valioso que é a vida humana e por ser motivado por sentimentos e razões que quase nunca merecem uma valoração positiva ou sequer aceitável.

As circunstâncias agravantes modificativas não são de funcionamento automático, como resulta da inclusão da expressão «é susceptível», no mesmo preceito.

Por outro lado, a introdução da expressão «entre outras» no nº 2 do art. 132º do CP, parece implicar, desde logo, que a enumeração de circunstâncias aí contida não é taxativa, mas meramente exemplificativa, apesar de o Tribunal Constitucional ter declarado «inconstitucional a norma retirada do nº 1 do art. 132º do CP, na relação deste com o nº 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do nº 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo art. 29º da Constituição» (Acórdão do TC nº 852/2014 de 10.12.2014, publicado no DR, 2ª Série, de 10.3.2015).

Este acórdão, porém, não pode ser interpretado no sentido da inadmissibilidade legal do assim denominado crime de homicídio qualificado atípico, já que é o próprio texto do mencionado art. 132º do CP que o admite, de resto, partindo da constatação de que podem concorrer circunstâncias envolventes da consumação do homicídio que, apesar de formalmente não preencherem qualquer dos exemplos-padrão enumerados nas diversas alíneas do nº 2, comungam, no entanto, de uma estrutura axiológica ou valorativa afim, semelhante ou equivalente, de uma proximidade ou analogia substancial, de idêntico ou equivalente grau de gravidade, que impõem a mesma agravação.

Mas, a contrapartida do reconhecimento feito pelo legislador penal das limitações na sua capacidade de previsão no que tange a enumerar circunstâncias indiciadoras de especial perversidade e de especial censurabilidade e do propósito expresso de não pretender esgotar todas as possibilidades de agravação do homicídio com o elenco inserto nas várias alíneas do nº 2, tem de ser um especial rigor e severidade na qualificação jurídica dos factos como crime de homicídio qualificado, quando as circunstâncias do facto criminoso não correspondam literalmente a qualquer daquelas alíneas, mas sejam substancialmente análogas a alguma delas, sendo-lhe valorativa e axiologicamente equivalentes. 

«Nesta compreensão só podem punir-se por homicídio qualificado atípico as condutas que, embora não correspondendo ao teor expresso de qualquer dos exemplos-padrão, seja, todavia, possível, por via de interpretação extensiva (assente numa indiscutível comunicabilidade teleológico-axiológica) incluir no “tipo orientador” de ilícito (danosidade social/desvalor de ação) e de culpa de um dos exemplos-padrão. Só depois de uma prévia, e necessariamente positiva, resposta às exigências de um exemplos-padrão será admissível, num segundo momento, questionar a especial censurabilidade ou perversidade». Isto porque «as noções de especial perversidade e censurabilidade, desapoiadas de qualquer elemento concretizador extraído de uma das alíneas do nº2 do artigo 132º, ficam à mercê das précompreensões do legislador, construídas com base nas suas convicções, morais, sociais, culturais, filosóficas, religiosas, etc, introduzindo um fator de incerteza intolerável na lei penal» (Acórdão do TC nº 852/2014 de 10.12.2014, publicado no DR, 2ª Série, de 10.3.2015. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 02.04.2008, proc. 07P4730, de 14.10.2010, proc. 494/09.9GDTVD.L1.S1., de 12.09.2013, proc. 680/11.1GDALM.L1.S1, de 12.03.2015, proc. 40/11.4JAAR.C2, de 4.11.2015, proc. 122/14.0GABNV.E1.S1, de 30.03.2016, proc. 158/14.1PBSXL.L1, de 26.06.2019, proc. 763/17.4JALRA.C1.S1, in http://www.dgsi.pt).

Assim, o que se exige, de harmonia com o princípio da legalidade em Direito Penal, na vertente da tipicidade, é que a qualificação do crime de homicídio resulte sempre da conjugação dos dois números 1 e 2 do art. 132º, nos seguintes termos: em primeiro lugar, é indispensável que os factos se subsumam directamente a algum (ou a vários) dos exemplospadrão, no seu literalismo, ou que se verifique uma, algumas, ou várias circunstâncias que correspondam à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de algum dos exemplos padrão; em segundo lugar, depois de analisadas à luz da cláusula geral da especial perversidade e/ou da especial censurabilidade do nº 1, é preciso que revelem formas particularmente desvaliosas de realização do facto pelo agente, ou a existência de qualidades especialmente desvaliosas na sua personalidade e, precisamente por efeito dessa conjugação, uma imagem global do facto especialmente agravada, um plus de culpa do agente, aos quais a moldura penal abstracta do tipo simples não dá resposta adequada nem suficiente, nem assegura os fins das penas, pelo que seria materialmente injusto, não as incluir na agravação.

É preciso, pois que essa imagem global do facto seja aferida à luz dos dois números do art. 132º funcionando concatenadamente. Nem será suficiente o mero preenchimento das alíneas do arts. 132º nº 2 do CP, nem a verificação da existência da especial censurabilidade ou da especial perversidade exigidas no nº 1, se desligadas da ocorrência de um exemplo padrão, ou de alguma circunstância de grau de gravidade equivalente, ou de estrutura valorativa ou axiológica semelhante.

Se o modo de execução do homicídio nem sequer integrar algum exemplo-padrão ou situação substancialmente análoga, mesmo que indicie uma especial censurabilidade ou perversidade, jamais poderá dar origem à qualificação como homicídio qualificado, sendo desnecessário averiguar da especial censurabilidade ou da especial perversidade.

Assim sendo, se nem sempre a prova de factos integradores de alguma das circunstâncias expressamente previstas no nº 2 do art. 132º desencadeará a agravação, também da não verificação de qualquer delas, não se segue que não possam descortinar-se outras que justifiquem a qualificação do homicídio. 

Tudo depende da valoração que puder ser realizada a partir da chamada imagem global do facto e da interpretação comparativa e conjugada da cláusula geral do nº 1 com os exemplos padrão do nº 2 do art. 132º do CP.

Esta é a única solução que permite salvaguardar o equilíbrio entre as razões de justiça material e de proporcionalidade das penas à gravidade dos crimes e ao grau de culpa dos seus autores que justificam a enumeração meramente exemplificativa das alíneas do art. 132º nº 2, por um lado, e os princípios da tipicidade e da legalidade vigentes em Direito Penal, por outro lado, de harmonia com os quais é imperioso prevenir que a qualificação do homicídio se converta, contra o sentido e a razão de ser da Lei, em modalidade regra de consumação, esbatendo e ilidindo as diferenças entre o tipo simples e as suas formas agravadas e banalizando estas últimas.

«O que o aplicador tem de fazer é partir da situação tal como ela foi representada pelo agente. E a partir dela perguntar se a situação, tal como foi representada corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente» (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, I, pág. 43).

«Qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º, no caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado “Leitbild” dos exemplos-padrão, que, de alguma maneira, faz com que o caso deva ser considerado como pertencente a um grupo de valoração estratificado a partir do tipo fundamental» (Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, pág. 64.).

«Ao juiz apenas é concedido integrar nas alíneas do nº 2 circunstâncias que, embora não estejam aí expressamente previstas, correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão», sendo «absolutamente vedado o recurso ao chamado homicídio qualificado atípico sem passar por nenhum dos exemplos-padrão do nº2» (Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª ed., revista e atualizada, ed. da AAFDL, Lisboa, 2007, págs. 25 e 26).

«A aceitação de outras circunstâncias agravantes, não expressamente previstas na lei, depende da possibilidade de vislumbrar, nova situação, o grau de desvalor e a estrutura valorativa de algum dos exemplos-padrão», não podendo o  juiz «apelar diretamente à cláusula geral do º1 para afirmar um homicídio qualificado atípico nem acrescentar novas alíneas ao nº2 do artigo 132º. Só lhe é permitido identificar um homicídio qualificado atípico, por via de uma conclusão por analogia do caso em apreço com um dos exemplo-padrão da lei» (Teresa Quintela de Brito In, “O Homicídio Qualificado (art. 132º), Direito Penal-Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, pág. 178).

Em suma, os exemplos padrão encerram, pois, circunstâncias que, além de meramente exemplificativas e de funcionamento não automático, são elementos constitutivos de um tipo de culpa agravado (Neste sentido, além dos autores citados, ainda, Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191; Cristina Monteiro, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1996, 122 e seguintes; Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes Contra as Pessoas, p. 48 e ss; Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, págs. 40 e 41; Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, págs. 24 e 29. Na Jurisprudência, Acs. do STJ de 14.10.2010, proc. 494/09.9GDTVD.L1.S1, de 17.04.2013, proc. 237/11.7JASTB.L1.S1, de 30.10.2013, proc. 40/11.4JAAVR.C2.S1, de 24.09.2014, proc. 994/12.3PBAMD.L1.S1, de 18.03.2015, proc. 351/13.4JAFAR.E1.S1, de 25.03.2015, proc. 866/13.4GBGMR.S1, de 04.11.2015, proc. 122/14.0GABNV.E1.S1, de 05.07.2017, proc. 1074/16.8JAPRT.P1, de 20.06.2018, proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2, de 12.07.2018 proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, de 15.01.2019, proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, de 27.03.2019, proc. 316/17JAFUN.L1.S1, de 27.05.2020, proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1, in http://www.dgsi.pt).

A frieza de ânimo vem prevista na alínea j) do arts. 132º nº 2 do CP, conjuntamente com a reflexão sobre os meios empregados e com a persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

Encerra, como indício de especial censurabilidade e/ou de especial perversidade, um dos três subentendimentos tradicionalmente atribuídos à premeditação, a qual, por seu turno, também pode assumir a forma de reflexão sobre os meios empregados e/ou persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas. 

A premeditação tanto pode referir-se ao processo de formação da vontade de cometer o crime, como à sua concretização e assinala particulares características a um e a outro.

Assim, no que concerne à frieza de ânimo, ela envolve certas características como tibieza, impassividade, indiferença ou insensibilidade à dor, a sentimentos ou emoções de outrem, firmeza de reflexão e amadurecimento, irrevogabilidade e intensidade da resolução criminosa e na correspondente execução do crime.

A propósito da inclusão desta circunstância agravante, como uma das possíveis manifestações da premeditação, na tipificação do crime de homicídio qualificado, Eduardo Correia esclarecia que: «(…) tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, a mora habens, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal forma intensa que o agente sem hesitação, como mero “déclancher” da decisão tomada prévia e longinquamente».

E acrescentou que «o critério referido envolve uma relativa margem de incerteza, na medida em que o tempo de permanência de uma resolução previamente tomada, até à sua execução, considerado necessário para revelar uma especial perigosidade ou a possibilidade de uma normal intervenção de contra - motivos, só pode ser fixada por apelo às regras da experiência. Mas isto corresponde à natural fragilidade de todos os conceitos que se relacionam com os factos humanos e pode ser corrigido pela exigência formal da fixação de um certo lapso de tempo, especialmente quando à premeditação correspondam efeitos agravantes particularmente graves» (Direito Criminal, II, 1965, págs. 301 a 303).

«A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo» (Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, revista e actualizada de acordo com a Lei n.º 59/2007, Quid Juris, 2008, pág. 80).

Assim, a frieza de ânimo verifica-se quando o crime tenha sido praticado a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo de preparação e execução do crime, congeminado por forma a denotar insensibilidade, indiferença pelos outros e profundo desrespeito pela pessoa humana, pela saúde e integridade física e vida alheias, residindo a justificação da agravação na insensibilidade e resistência persistente às contra-motivações sociais e ético-jurídicas que o levariam a desistir do seu desígnio, reveladora de uma vontade criminosa particularmente intensa e, portanto, de especial perigosidade.

A frieza de ânimo tem sido definida como uma actuação criminosa «de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida, um comportamento traduzido na firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa» (Ac. do STJ de 06.04.2006, proc. 362/06-5, in http://www.dgsi.pt).

«A frieza de ânimo é uma acção praticada a coberto de evidente sangue-frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, (…), por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas» (Ac. do STJ de 26.09.2007, proc. 07P2591. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 15.05.2008, proc. 07P3979, de 21.01.2009, proferido no proc. 08P4030, de 06.01.2010, proc. 238/08.2JAAVR.C1.S1, de 14.10.2010, proc. 494/09.9GDTVD.L1.S1, de 20.10.2011, proc. 1909/10.9JAPRT.S1, de 12.03.2015, processo 405/13.7JABRG.G1.S1, de 18.03.2015, proc. 351/13.4JAFAR.E1.S1, de 12.05.2016, proc. 974/13.1PIVNG.G2.S1, de 30.05.2019, proc. n.º 21/17.4JAFUN.L1.S1, de 27.11.2019, proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1, de 27.05.2020, proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1, in http://www.dgsi.pt).
O Mº. Pº. invocou (conclusões 3ª e 4ª do seu recurso) que, o arguido NVS______ não agiu com especial censurabilidade ou perversidade como exige o art. 132°, n° 2, al. j), do Cód. Penal e que a sua conduta se subsume à prática do crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131°, do Cód. Penal, por entender que os factos aconteceram de forma rápida na sequência e em resultado da proposta de cariz sexual feita pela vítima ao arguido e da forte repulsa deste perante tal comportamento, sendo notório que não houve preparação antecipada e reflectida sobre a decisão de matar, sendo certo que a perversidade e censurabilidade revelada no modo de execução do crime não é maior do que aquela que já está ínsita à configuração do tipo simples.

O arguido também considera que o crime por si cometido é um homicídio simples porque, segundo o que invocou nas conclusões XXIV a XXX e nas conclusões XXXIII a XXXIX, com argumentação semelhante, ou seja, a de que agiu sob emoção violenta, quer em virtude da repulsa sentida pelo acto físico de assédio sexual praticado pela vítima contra a sua pessoa, quer por ter ingerido bebidas alcoólicas e substâncias estupefacientes sendo que a descrição contida nos pontos 20. a 23. da matéria de facto provada ilustra bem como não existiu qualquer reflexão antecipada e que tudo aconteceu de forma muito rápida e súbita, portanto, sem qualquer preparação da execução.

Percorrida toda a descrição exarada nos pontos 1. a 37. dos factos provados, não existem, efectivamente, circunstâncias que consintam a conclusão de que, quando o arguido combinou encontrar-se com a vítima para beberem juntos e conversarem, naquele dia 7 de Maio de 2020 já teria formulado o propósito de matar ÁA_______, pelo que o excerto em que o acórdão recorrido alude a que «o arguido agiu com calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito» não merece concordância.

Mas já o mesmo não pode dizer-se quanto ao modo de execução deste homicídio.

É que se para o arguido foi inesperada e súbita a proposta de praticar actos sexuais com a vítima, muito mais inusitada, desproporcionada e violenta foi a sua reacção em resposta ao tal «acto físico de assédio sexual» que lhe foi proposto pela vítima.

Segundo um critério de razoabilidade e de senso comum, tendo por referência uma evolução das coisas normal, à luz de um padrão médio de inteligência, sagacidade e prudência de que qualquer cidadão livre e consciente é capaz, o arguido tinha tido a oportunidade de ter abandonado a casa de ÁA_____  e assim ter dado concretização prática à sua «forte repulsa», pois nada nos factos permite a conclusão de que estivesse coarctado na sua liberdade de decisão e acção, a que se soma o facto de o arguido ser um jovem com 23 anos, na altura dos factos e a vítima, uma pessoa com 61 anos de idade.

Ainda poderia tê-lo agredido fisicamente e/ou insultado sob a influência dessa sua recusa em manter relações de sexo com a vítima e assim ter dado a perceber que não estava disponível para tal tipo de interacção com ÁA_____, ainda que já nesta hipótese, com exagero e desproporção, pois se estava em causa apenas tomar uma posição de discordância relativamente a algo que lhe havia sido proposto, num contexto de um convívio voluntário combinado entre ambos, não haveria, à partida, razões para usar de violência física ou verbal.  
 
Ao invés, disso, o arguido decidiu aplicar na vítima um golpe de artes marciais e de sistemas de defesa pessoal, conhecido como «mata-leão» que não é mais, nem menos, do que uma técnica de estrangulamento, que é realizada com o uso dos braços e mãos à volta do pescoço do oponente, quando este está de costas para o executante. 

Todavia, até este momento, apesar do uso excessivo de violência e da sua desproporção e inadequação para manifestar uma simples recusa em aceder ao assédio sexual da vítima, o que se pode ainda concluir é apenas isso: uma reacção completamente desajustada ao contexto do momento e ao comportamento da vítima, tanto mais, que bastou um «mata leão» para deixar a vítima caída e inanimada, o que revela como foi fácil para o arguido neutralizar fisicamente ÁA_____.

Só que tudo quanto aconteceu depois é que revela uma especial força de vontade de matar ÁA_____, tibieza e desrespeito profundo pela vida humana, pelo sofrimento da vítima, muito para além do que seria necessário para lhe tirar a vida.

Com efeito, o que se provou foi que no instante em que a vítima lhe propôs praticarem sexo, o arguido lhe desferiu o tal golpe «mata leão» e este provocou o estrangulamento e a quebra da cartilagem da tiróide da vítima, que perdeu imediatamente os sentidos.

Por isso, se o que estava em causa para o arguido, era apenas livrar-se do assédio sexual da vítima, tal objectivo ficara plenamente conseguido, neste momento.

Mais do que isso, foi causa directa e necessária da morte de ÁA_____, como descrito no ponto 34. dos factos provados.

Mas é em todo o comportamento seguinte adoptado pelo arguido que se revelam a sua total falta de emotividade, de compaixão perante o sofrimento da vítima, que ficou depois do «mata leão», numa situação de total desamparo, impotência e incapacidade de reacção ou de defesa, estrangulada e inanimada, no chão, momento em que, pela segunda vez, o arguido teria tido a oportunidade de se ter contramotivado da prossecução do seu desígnio criminoso, socorrendo a vítima, ou no limite, deixando-a entregue à sua própria sorte e abandonando a casa onde os factos ocorreram e tal omissão de auxílio já teria sido o suficiente para lhe causar a morte.

Ao invés, optou por arrastar o corpo da vítima até à casa de banho e coloca-lo no polibã, em decúbito dorsal na base do chuveiro, com a cabeça encostada a um canto, as pernas na vertical, ligeiramente fletidas sobre o abdómen, e os pés encostados à parede da torneira, numa posição da qual lhe seria já muito difícil, senão mesmo impossível livrar-se a fim de procurar socorro e assistência médica, estando, como estava já inanimado e sem forças, fruto da fractura da cartilagem da tiróide.

Ora, isso mesmo foi percepcionado pelo arguido, mas ainda assim não considerou essa manobra suficiente para garantir que a vítima não sobreviveria, pois ainda sentiu necessidade de lhe envolver a cabeça em várias camadas de película aderente e manietá-lo através dos pulsos, amarrando-os com abraçadeiras em plástico e abrir a torneira, deixando a água a correr, por cima do corpo da vítima, quando constatou que o mesmo ainda respirava e para assegurar que não sobreviveria.

Ora, se esta forma de proceder não é frieza de ânimo, desconhece-se o que possa ser.

Os recorrentes centram o foco da sua discordância dirigida à qualificação do homicídio pela agravante da frieza de ânimo, na ausência de premeditação, em sentido próprio, ou seja, na falta de antecipação temporal da decisão de matar em relação à ocorrência da morte, em função do contexto em que os factos ocorreram e da relativa rapidez e encadeamento dos eventos que conduziram ao resultado.

O problema é que esta argumentação não é eficaz para alterar esse enquadramento jurídico.

A frieza de ânimo é só uma das três possíveis manifestações de premeditação e refere-se tanto ao processo de formação da vontade criminosa, como ao processo de execução dessa vontade, ou seja, ao modo de consumação do crime, sendo certo que a verificação da agravante modificativa prevista no art. 132º nº 2 al. j) não exige a verifica-se cumulativa da frieza de ânimo, da reflexão sobre os meios empregados e da persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, como resulta, desde logo, do uso da disjuntiva «ou» entre as expressões «reflexão sobre os meios empregues» e «ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas», mas, sobretudo, porque essa é a solução que se coaduna com a razão de ser da inclusão destas circunstâncias como índices da agravação do homicídio.

Aparte as críticas que se podem fazer à inserção desta última vertente da premeditação e da fixação deste limite temporal para ilustrar a firmeza da vontade  criminosa, o que importa salientar, neste recurso, é que até é especialmente na execução criminosa que a frieza de ânimo tem o seu âmbito de revelação.

O art. 132º nº 2 al. j) prevê «agir com frieza de ânimo», o que envolve necessariamente, que a execução do crime seja levada a cabo com a tal calma imperturbada, eficiente e fidedigna a uma vontade firme e inabalável de matar outrem, reveladora da tal indiferença e ausência de emoções perante a saúde, a integridade física e a vida humanas e destituída de qualquer tipo de respeito ou compaixão perante o sofrimento da vítima. 

Para tanto, nem sequer é necessário que a vontade de cometer o crime de homicídio se tenha formado com grande planificação ou com grande antecipação, porque esses atributos já são os pertinentes ao preenchimento dos outros dois significados da premeditação, embora, a frieza de ânimo também possa incidir na formação da vontade de matar alguém. 

Mas, para o preenchimento da al. j) do nº 2 do art. 132º basta que a execução do crime, nas circunstâncias concretas que envolvem a sua consumação, demonstrem a existência desse calculismo, persistência e despojo de emoções, em ordem à produção da morte, sem que o agente se deixe perturbar ou influenciar pelos eventuais obstáculos com que se vai defrontando nesse iter, sejam, relacionados com alguma influência que as razões de ser da incriminação do homicídio possam ter ao nível da reponderação do desígnio criminoso, ou com algum imprevisto atinente, por exemplo, ao sofrimento da vítima ou a alguma dificuldade imprevista na execução que determine um repensar da decisão e uma inflexão de posição ou desistência, a partir dela.   

No caso sub judice,além da total tibieza, desconsideração e insensibilidade manifestadas pelo arguido perante o valor da vida humana e pelo real sofrimento da vítima, há uma resiliência na busca de soluções de inflição de sofrimento crescente, muito para além do que seria necessário para retirar a vida de ÁA_____, que demonstram um à vontade do arguido com a violência extrema, acrescentando penosidade e obstáculos adicionais a uma eventual tentativa de reacção da vítima, na inversa proporção das suas possibilidades de defesa, porquanto quer a colocação das várias camadas de película aderente em torno da cabeça, quer a colocação das abraçadeiras em plástico a prender os pulsos e as mãos de ÁA_____, foram praticados quando o mesmo já nem sequer tinha qualquer força anímica ou capacidade de resistência.

E este modo de agir só pode ser explicado por uma enorme persistência e uma grande dose de despojamento de sentimentos de solidariedade, compaixão e respeito pela saúde e integridade física alheias, revelando até um desprezo pela vida humana, que é completamente intolerável.

Acresce que, durante todo este iter, o arguido ainda teve de arrastar o corpo da vítima e posicioná-la em decúbito dorsal e com as pernas elevadas para outra divisão da casa, de seguida, ainda teve de fazer buscas, na cozinha e na sala, para encontrar a película aderente e as abraçadeiras em plástico com que acabou de asfixiar a vítima e a manietou, pelo que, mesmo que os factos tenham decorrido durante uma hora ou menos, o que não faltaram, foram tempo e oportunidades para o arguido ter desistido do seu propósito de matar ÁA_____e ter-se deixado determinar pelas tais contramotivações éticas e jurídicas que estão na base das proibições legais de tirar a vida a outrem e do valor que a ordem jurídica atribuí à pessoa humana. Sobretudo, perante a falta de capacidade de reacção da vítima e o seu desamparo, tendo ficado completamente exposta e à mercê das investidas do arguido, numa manifestação de persistência e determinação não só em matar, mas em infligir um tal sofrimento tão absolutamente gratuito e desnecessário, que só a frieza de ânimo prevista no art. 132º nº 2 al. j) do CP pode enquadrar. 
      
Também se provou que o arguido sabia que manietando a vítima, a impedia de se libertar da película aderente que colocou para oclusão da boca e do nariz, sendo igualmente sabedor de que o plástico conduziria inevitavelmente à asfixia, caso não fosse removido, de resto, como realmente aconteceu, precisamente para garantir a produção da morte, prevenindo a eventualidade de a mesma não resultar do estrangulamento inicial.

Também se provou que arguido agiu com tenacidade e total insensibilidade pelo valor da vida humana.

O que vale por dizer que este modo de execução do crime de homicídio, além de se subsumir de pleno, na agravante modificativa da frieza de ânimo, por efeito de tais características especialmente desvaliosas da personalidade do arguido manifestadas na execução do crime, integram a especial perversidade, nos termos do nº 1 do art. 132º do CP.

É verdade que a ingestão de bebidas alcoólicas e os consumos da tal substância «Maligno» poderiam ter tido algum efeito obnubilador na capacidade de discernimento e de actuação do arguido, mas nem isso resulta da matéria de facto provada e o contrário até emerge das próprias declarações do arguido.

Delas resulta inequivocamente que o mesmo se apercebeu, em cada momento, do estado físico da vítima, se motivou em função de um propósito que formulou firmemente quer era o de tirar a vida à vítima, como ilustrado nas explicações que apresentou quando confrontado com os porquês de não ter abandonado a casa da vítima e de mesmo depois de ter estrangulado ÁA_____, ainda o ter asfixiado com a película aderente e colocado totalmente indefeso debaixo de água corrente, com a cabeça literalmente embrulhada na película aderente e com as mãos e os pulsos amarrados, tudo condutas planeadas, queridas e executadas com a perfeita noção da sua potencialidade para aumentar substancialmente o sofrimento da vítima e da sua irreversibilidade para  assegurar eficazmente a produção do resultado.

Por isso que o acórdão recorrido não merece qualquer censura quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos integradores do crime de homicídio, sendo também correcta a agravação pela frieza de ânimo, que não será, pois, alterada.

Por fim, resta apreciar o recurso, no que se refere à dosimetria concreta das penas aplicadas.

Nos termos do art. 40º nº 1 do CP, é função da pena, salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes e, na medida do possível, assegurar a reintegração do agente na sociedade, consagrando a prevenção geral e a prevenção especial como fundamentos legitimadores da aplicação das penas e acrescentando, no seu nº 2, que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Este art. 40º veio, pois, concretizar no âmbito do Direito Penal e em matéria de escolha e dosimetria das penas, os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, consagrados no artigo 18º nº 2 da CRP.

Por seu turno, o art. 71º nº 1 do CP impõe que a determinação da pena seja realizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Com efeito, «o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena» (Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194).

«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva, nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL, pág. 25).

A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.

E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas.

Assim, em primeiro lugar, a medida da pena será fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva).

De seguida, dentro desta moldura, a medida concreta da pena será doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.

Por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.  

«A culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção» (Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322). 

Culpa e prevenção são, por conseguinte, os dois limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena e prosseguindo a necessidade de assegurar este equilíbrio, entre a medida óptima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar» (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229).

O art. 71º do Código Penal enumera as circunstâncias que contribuem para agravar ou atenuar a responsabilidade, a que o Tribunal deverá atender, para tal efeito.

Dispõe este preceito, no nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

O nº 2 do mesmo artigo enumera, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender, dispondo o nº 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, em correspondência com o artigo 375º nº 1 do CPP, que impõe que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Nessa enumeração exemplificativa vislumbram-se critérios, tanto associados à prevenção geral, como é o caso da natureza e do grau de ilicitude do facto (que impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como relacionados com exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Com efeito, esses critérios referem-se, uns, à execução do facto – als. a), b), c) e e), parte final, como é o caso do grau de ilicitude do facto, do modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência e os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; outros, à personalidade do agente, como sejam as suas condições de vida e a sua preparação ou falta dela, para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – als. d) e f) – e, outros, ainda, à conduta anterior e posterior ao facto – al. e) - especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.

Mas estas circunstâncias a que se refere o mencionado nº 2 do art. 71º, são aquelas que não integram os elementos constitutivos do tipo, sob pena de violação do princípio do «ne bis in idem».

No entanto, tais circunstâncias, na parte em que a sua intensidade concreta ultrapasse os limites necessários que a lei considera no tipo incriminador para a determinação da moldura penal abstracta, devem ser consideradas na fixação concreta dessa moldura.

Estas circunstâncias devem ser, ainda, valoradas de acordo com a teoria da margem da liberdade.

O acórdão recorrido aplicou ao arguido NVS______, as penas parcelares de dezoito anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131° e 132° n°s 1 e 2 al. j) do C. Penal, de sete meses de prisão pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelo art. 3°, n°1 e 2 do DL n° 2/98, de 3.01, por referência ao art. 121° do Cód. Estrada, de dez meses de prisão, pela prática de um crime de furto simples, p.p. pelo art. 203° do C. Penal e sete meses de prisão pela prática pela prática, de um crime de burla informática, na forma tentada, p.p. pelo art. 221°, n°s 1 e 2, 22°, n°s 1 e 2 a) e 72° do CP.

O Mº. Pº. pretende a redução da pena aplicada ao crime de homicídio para catorze anos e a consequente reformulação do cúmulo jurídico e o arguido pretende a redução de todas as penas parcelares.

E a este propósito, o acórdão recorrido, depois de tomar posição e enunciar as razões da sua opção pela aplicação de penas de prisão aos crimes de condução sem habilitação legal, furto simples e burla informática tentada discorreu o seguinte, sobre a dosimetria concreta de cada uma das penas (transcrição parcial):
Isto dito, e determinando a medida da censura a atribuir ao arguido, impõe-se ter presente, desde logo, todo o circunstancialismo do caso.

No crime de homicídio, o grau de ilicitude do facto é o mais elevado que se pode conceber, pois que a violação do direito à vida é o bem primeiro, o suporte de todos os bens da tutela jurídica.

Também o dolo se revela na sua modalidade mais intensa (dolo directo) pois o arguido quis atingir o ofendido de forma a retirar-lhe a vida, tendo-o conseguido.

Por outro lado, fortes razões de prevenção geral estão presentes na pena a encontrar, pois importa alertar os potenciais delinquentes para as consequências que lhes podem advir da sua prática e, deste modo, tentar evitar que seja praticado o crime em apreço, que claramente afecta a tranquilidade e ordem públicas. 

Importa, por isso, desmotivar outros de quererem imitar o arguido deixando aqui a mensagem clara de que, afinal, “o crime não compensa”.

Cumpre também atender à prevenção especial, na medida em que o arguido tem de ser alertado para a gravidade do seu comportamento, de modo a corrigir-se, evitando-se assim futuros actos de delinquência.

Nada de verdadeiramente relevante se provou capaz de suscitar alguma compreensão da sua conduta, tanto mais que para repelir uma investida de cariz sexual teria bastado a primeira manobra aplicada pelo arguido à vítima que, aliás, o fez perder os sentidos.

A factualidade apurada outrossim, dá do crime em apreço uma imagem global de repugnância e do arguido uma imagem de personalidade fria, insensível e distanciada do direito além de revelar uma culpa elevada. Não obstante o que vem de se dizer, não pode deixar de se ponderar o arrependimento do arguido.

Sem esquecer ainda a personalidade do arguido, o seu percurso de vida, até agora relativamente normativo; a sua condição sócio económica, tal como vêm espelhados no relatório social a ele referente.

O arguido, ao actuar do modo violento, intenso, decidido e persistente acima descrito, revelou qualidades particularmente desvaliosas e censuráveis e uma atitude profundamente distanciada em relação a uma determinação normal com os valores, apresentando um comportamento que revela um egoísmo abominável, merecedor de grande reprovação. Por outro lado, importa atender outrossim ao facto de o arguido não ter estabilidade laboral, nem económica, vivendo na casa dos pais da companheira, bem como as características da sua personalidade (indivíduo tolerante à quebra das convenções sociais, uma vez que fazia uso de substâncias ilícitas, num registo regular consoante a sua disponibilidade económica). Acresce que embora o arguido nunca tenha sido condenado pela prática de crime em Portugal, tem antecedentes criminais no Reino Unido, onde cumpriu uma pena de prisão por conduta violenta. Assim, o seu percurso de vida retrata-o como um indivíduo com problemas de autocontrolo e impulsividade, legitimando condutas violentas como forma de resolver contrariedades. Não obstante, em situação de privação da liberdade, mantém algum apoio da família e da companheira. 

Feita a devida ponderação e sopesados os devidos factores, acreditamos ser justo e adequado aplicar ao arguido:
- a pena de 18 (dezoito) anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado consumado que cometeu;
- a pena de 10 (dez) meses de prisão para o crime de furto simples;
- a pena de 7 (sete) meses de prisão para o crime de condução sem habilitação legal;
- para a tentativa de burla informática, a pena de 7 (sete) meses prisão (fim de transcrição).  
  
A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo embora vinculada a critérios legais, pelo que, só em casos em que se justifiquem alterações significativas, resultantes da inobservância ou de algum desvio importante a tais critérios normativos é que o tribunal de recurso deve alterar as penas concretas.

Não é o que se passa, no caso vertente.

Com efeito, a intensidade dolosa, na modalidade de dolo directo tem sentido muito agravante, na medida em que se trata do tipo de dolo mais intenso das modalidades enunciadas no art. 14º do Código Penal, a que acresce o modo de execução, revelador de enorme eficácia e de uma determinação invulgar para usar a expressão exarada no acórdão recorrido e a enorme ilicitude da conduta, atendendo à natureza dos bens jurídicos tutelados e das ofensas concretamente cometidas e ao enorme desvalor da conduta criminosa. 

O grau de ilicitude é, pois, de uma grande densidade, por referência ao modo de actuação, à natureza concreta dos factos integradores do crime de homicídio e demais crimes cometidos, assim como ao desvalor do resultado, assinalando que a vida humana é o bem jurídico a que a ordem jurídica portuguesa atribuí maior valor e que como se referiu a propósito da verificação da especial perversidade, o arguido revelou nos factos características de personalidade muito desvaliosas e um à-vontade com a violência e com o recurso a tratamentos cruéis, de uma agressividade extrema que chegam a ser desconcertantes e que ademais coadunam com a sua impulsividade e falta de capacidade de autocontrole, correspondendo assim a uma tendência de personalidade.

E a verdade é que as circunstâncias de ter 24 anos, não ter antecedentes criminais embora só em Portugal e ter apoio familiar não o impediram de praticar factos de extrema gravidade como os que se provaram neste processo, sendo certo que ser trabalhador, não ter antecedentes criminais, não é mais, nem menos, do que o que é de exigir e de esperar de todos os cidadãos.

O que vai contra todas as expectativas e o Direito Penal não pode tolerar são comportamentos como os ilustrados nos factos, em face da sua grande gravidade, de resto ilustrada também nos crimes cometidos em momentos temporais imediatamente subsequentes ao homicídio que eles próprios revelam a naturalidade com que o arguido lida com situações de violência extrema e um profundo desrespeito pelas mais elementares regras de convívio social e por valores tão básicos como a vida humana e o património alheio, particularmente o da pessoa que havia acabado de matar.

Como defluí de forma evidente do texto do acórdão recorrido, o Tribunal teve todo o cuidado na análise da gravidade dos factos, do grau de ilicitude e de culpa do arguido, das exigências de prevenção geral e especial, de sopesar todos estes factores que dada a sua gravidade jamais poderiam conduzir a penas tão brandas como aquelas que o arguido e o Mº. Pº. pretendem lhe sejam aplicadas, sob pena de a dimensão da pena como instrumento de protecção de bens jurídicos ficar totalmente comprometida e de graves prejuízos para os fins de prevenção geral e especial.
 
O recurso improcede, pois, nesta parte, mantendo-se na íntegra as penas parcelares fixadas na primeira instância.

Consequentemente, também a pena única de dezanove anos será mantida, dada a sua adequação e proporcionalidade à gravidade global dos factos e à personalidade do seu autor, neles revelada.

Os recursos improcedem, pois, na totalidade.

III–DISPOSITIVO

Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
 
Em negar provimento ao recurso do Mº. Pº. confirmando, na íntegra, o acórdão recorrido.
Sem custas – art. 522º do CPP
Em negar provimento ao recurso interposto por NVS______, confirmando, na íntegra, o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, que se fixam em 4 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique. 

***

Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pela Mma. Juíza Adjunta.




Tribunal da Relação de Lisboa, 10 de Novembro de 2021
 
 
                                    
Cristina Almeida e Sousa
-Relatora -
 
Rosa Vasconcelos
- Adjunta -