Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2205/18.9T9ALM.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: DESPACHO DE ADMISSÃO DO RAI
INSTRUÇÃO
PRINCÍPIO DO ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I-Tendo o Tribunal proferido despacho, que admitiu a abertura da instrução e agendou data para a realização de determinadas diligências, criou-se a legítima expectativa de que iria praticar todos os actos atinentes a essa fase processual, não podendo, por despacho posterior, reponderar a sua decisão sem que qualquer alteração de circunstâncias tivesse sobrevindo, e decidir não admitir o que já se mostrava admitido, pois que sobre tal matéria se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional;
II-A consequência da prolação de decisão em violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional tem sido maioritariamente considerada como sendo a da sua inexistência jurídica, entendendo outros que será a da invalidade stricto sensu ou ineficácia processual. Independentemente de qual seja a mais curial designação do vício de que padece, certo é que a decisão proferida em violação de tal princípio não pode subsistir, devendo os autos prosseguir, nos termos que haviam sido determinados antes do despacho recorrido, até ao termo da instrução cuja abertura foi oportunamente admitida, com a obrigatória realização de debate instrutório e subsequente prolação de decisão instrutória.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos autos que, com o n.º 2205/18.9T9ALM, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal de Almada, o assistente, AA, identificado nos autos, não se conformando com o despacho que rejeitou o seu requerimento de abertura da instrução, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, veio dele interpor o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1.° Por despacho judicial, de 22/04/2021, a Meritíssima Juiz de Instrução, do Tribunal, a quo, não admitiu a instrução requerida pelo assistente, com fundamento em inadmissibilidade legal, nos termos do n.° 3 do artigo 287.° do Código de Processo Penal.
2.° Sempre com o devido respeito, e que é muito, entende o agora recorrente, e assistente, que respeitou o preceituado nos artigos 287.°, n.° 2, e 283.°, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
3.° O requerimento de abertura de instrução apresentado, contém a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação dos denunciados (cfr. requerimento de abertura de instrução), que consistem no seguinte: no âmbito do processo-crime com o número 1241/15.1GCALM, Juízo Local Criminal de Almada, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, todos os denunciados prestaram depoimento como testemunhas, com o devido juramento legal, nas sessões de dia 06/12/2017 e de dia 27/11/2017, e todos os depoimentos foram falsos por não corresponderem à verdade.
4.° Na situação concreta, BB e todos os restantes denunciados, em concluio, montaram toda uma mentira para prejudicar o agora recorrente e levar este a ser condenado por um crime de violência doméstica que nunca praticou.
5.° Convém também não esquecer que o juiz de instrução não está dispensado de investigar o caso, como bem decorre do que se preceitua no artigo 288.°, n.° 4, do Código de Processo Penal, praticando todos os atos necessários à realização das finalidades da mesma.
6.° Sendo que o despacho judicial, de 04-08-2020, a fls. 187 dos autos, tinha precisamente como conteúdo, e fim, a audição do assistente e os demais denunciados, que oportunamente foram constituídos arguidos, não se compreendendo, deste modo, o despacho de arquivamento proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução, de 22/04/2021.
7.° Mais entende o agora recorrente que com o despacho de abertura de instrução, de 23-06-2020, se formou um caso julgado, que vale juridicamente, pelo menos, no presente processo, não podendo agora o despacho de arquivamento, de 22¬04-2021, colocar em causa, sob pena de quebra da estabilidade jurídica do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
8.° Por conseguinte, na situação concreta, deveria ter sido aberta instrução, como foi oportunamente feita por despacho judicial, em 23-06-2020, a fls. 145 dos autos, sendo que o agora despacho de arquivamento, de 22-04-2021, a fls. 332 dos autos, é ilegal, pois coloca em causa o caso julgado formal daquele, e viola os artigos 287.°, n.° 2, e 283.°, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal, pois o assistente respeitou os requisitos legais preceituados nas normas mencionadas.
Nestes termos, e nos demais de Direito, requer-se a V. Exas. o provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a decisão recorrida, sendo admitido o requerimento de abertura de instrução do recorrente e declarada a abertura da instrução, com as demais consequências legais.»
2. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 420 dos autos.
3. Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido nos termos do articulado de fls. 433-435, no qual conclui (transcrição):
«1- O requerimento do assistente para a abertura de Instrução, no caso de arquivamento do processo por parte do Ministério Público, é que define e limita o respectivo objecto do processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim e além do mais, deverá dele constar descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminatórias.
2- Como tal deve conter todos os elementos de uma acusação.
3- Da análise do requerimento de abertura de Instrução apresentado desde logo se constata que tem razão a Mina JIC do Tribunal "a quo", na medida em que aquele não respeitou o disposto nos arts. 287º, n.°2 e 283°, n.°3. aI. b) e e) do CPP.
4- Em face desta violação. a consequência legal é o indeferimento limiar do requerimento, por inadmissibilidade legal.
5- O que, e resto, foi observado pela Mma Juiz do Tribunal “a quo”.
DEVE ASSIM NEGAR-SE PROCEDÊNCIA AO RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, MANTER A DECISÃO RECORRIDA, UMA VEZ QUE SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA.»
4. O arguido CC apresentou resposta ao recurso, na qual conclui (transcrição):
«A) Vem o presente recurso interposto do douto despacho de indeferimento do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, aqui recorrente por o mesmo não obedecer ao preceituado nos artigos 287, n.° 2 e 283.°, n.° 3 alínea b) ambos do CPP uma vez que se mostra absolutamente omisso quanto à narração circunstanciada de factos e indícios que possam levar a que se possa concluir que a conduta daqueles que pretende sejam constituídos arguidos, constituí a prática de um ou vários ilícitos criminais, limitando-se a manifestar a sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público.
B) Entende o Recorrente que o requerimento de instrução por si formulado respeita os requisitos legais porque do mesmo podem depreender-se os elementos objetivos e subjectivos dos crimes em presença.
C) E ainda que o juiz de instrução não está dispensado de investigar o caso e que se formou caso julgado em relação ao despacho judicial de 23/6/2020, concluindo que no caso concreto deveria ter sido aberta a instrução, devendo a Meritíssima Juiz de instrução praticar todos os atos necessário à realização das finalidades da instrução, pronunciando os arguidos pelos crimes anteriormente melhor descritos.
D) Assim, sem se perceber, muito bem, que concretos pontos de facto imputa ao Recorrido uma vez que formula meras conclusões, o Recorrente limita-se referir "falsidade de testemunho" e “alegado concluio, mentira com o intuito de o prejudicar" e que "agiram sempre com a protecção aos senhorios militares da GNR de entre os quais o aqui recorrido, o que configura uma verdadeira cabala contra si”
E) , sem , contudo, concretizar quaisquer factos a este propósito.
F) O que faz o Recorrente é extrair conclusões, que só se consubstanciam na sua "verdade" e
G) Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao Recorrente relativamente à sua pretensão.
H) É do conhecimento geral que os recursos são meros "remédios jurídicos" que visam corrigir erros “in judicando” ou “in procedendo” que devem ser expressamente indicados pelo Recorrente com a indicação dos meios de prova que impõem decisão diversa.
I) Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção formada pelo Tribunal no processo n.° 1241/15.1GCALM do Juízo Local Criminal de Almada 2 que conferiu credibilidade às declarações do recorrido, sem que tal merecesse qualquer reparado quer na 1.ª instância quer na instância de recurso.
J) Em bom rigor, e à mingua de melhor argumentário, o Recorrente utiliza os presentes autos, para tentar a todo custo revogar/ alterar a sentença Processo n.° 1241/15.1GCALM do Juízo Local criminal de Almada 2 onde o Recorrido prestou o seu depoimento., sem ter merecido qualquer reparado quer pelo Tribunal de 1.ª Instância e quer pelo Tribunal de Recurso.
K) De ressalvar ainda que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente não constitui uma acusação, limita-se a extrair juízos meramente conclusivos sem preencher materialmente a alegada conduta incriminatória, as ilicitudes e culpa tipificadas nos termos da Lei, no sentido de incriminação do arguido.
L) Pelo exposto, é inevitável, por justa, criteriosa e legal, a manutenção da Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, por ser esta o corolário da perfeita subsunção jurídico-penal, ancorada no apuramento táctico exaustivo rigoroso e silogístico, imerecedora de reparos, de resto, completamente infundados.
M) Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso, ser julgado totalmente improcedente, por não provado, com a consequente manutenção, in totum, da Douta sentença recorrida nos seus exactos termos, por assim ser de inteira.
JUSTIÇA»
5. Também a arguida DD respondeu ao recurso, concluindo (transcrição):
«A
Ao contrário do que defende o Recorrente, nenhum reparo merece o Douto Despacho proferido e recorrido, o qual como se verá adiante, fez uma correta análise jurídica relativa à inadmissibilidade legal do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo Assistente, pelo que, deverá o mesmo ser mantido na íntegra.
B
Por seu turno, o n.° 2, do art. 287º., do mesmo diploma legal, estabelece que “O requerimento (para abertura da instrução) não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leva a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3, do artigo 283º.3[1] (…)
C
Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate, e o exercício do contraditório” – in www.dgsi.pt – Proc. n.º 03P2299
D
Na realidade, há que não olvidar que o nosso sistema processual penal tem uma estrutura acusatória (veja-se o art. 32º., n.º 5, da C.R.P.), o que implica que a acusação tem além do mais a função de delimitar com exatidão o objeto do processo (princípio da vinculação temática) sob pena de violação das garantias de defesa do arguido.
E
De igual sorte, o requerimento de abertura da instrução do assistente fixa o objeto da instrução e vincula, factualmente, o juiz quanto à decisão a proferir no final da instrução, pois que, não obstante o juiz investigue autonomamente o caso submetido a instrução, fá-lo "tendo em conta a indicação constante do requerimento para abertura da instrução" (Cfr. art. 287º., n.º 4, do C.P.P.).
F
Ora, no caso sub judice, o Assistente veio requerer a abertura de instrução, por se mostrar inconformado com o despacho de arquivamento, expondo a sua discordância relativamente ao mesmo, em vez de, como se lhe impunha, narrar e datar factos, imputando-os a agentes determinados e subsumi-los jurídico-penalmente, pois que, analisando tal requerimento, verifica-se que o mesmo não contem uma descrição fática que traduza e consubstancie o objeto da instrução, nem o tempo, lugar e motivação da prática de factos, pelo que,
G
Forçoso é que se conclua que não foi dado integral cumprimento ao disposto no art. 283°., n.º 3, do C.P.P., aplicável ex vi do art. 287°., n.° 2, do mesmo Código.
H
També neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.10.1999, onde se pode ler "(…) a falta de descrição de factos caso a instrução fosse recebida, equivaleria à transferência para o juiz do exercício da ação penal, o que violaria os princípios legais e constitucionais vigentes,4[2] (…) sendo certo que o requerimento para a abertura de instrução no caso de arquivamento do processo pelo MP, é que define e limita o objeto do processo a partir da sua formulação, sendo a intervenção do juiz de instrução balizada pelos factos constantes desse mesmo requerimento"
I
Pelo exposto, e apesar do despacho liminar e genérico de abertura de instrução, proferido em 22.06.2020, constatando, neste momento, a inadmissibilidade legal desta instrução, não restava outra alternativa à Mmª. Juiz a quo, que não a de proferir o douto despacho recorrido,
J
Sob pena, de não o fazendo, subverter e violar os mais elementares princípios legais e constitucionais vigentes do processo penal.
L
Conforme supra referido, não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à indicação dos factos - objetivos e subjetivos - a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual que, in casu, não existe.
M
Revertendo ao caso em apreço, forçoso é que se conclua que o requerimento de abertura de instrução não cumpriu os requisitos supra referidos pois que não narra os factos que imputa aos arguidos, explicitando-os, pelo que, bem andou o Tribunal a quo ao proferir o despacho recorrido, no âmbito do qual rejeita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente com fundamento em inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no n.º 3, do art. 287º., do C.P.P.
Termos em que deverá ser confirmada o Douto Despacho recorrido, como única forma de ser feita a habitual JUSTIÇA
6. Não foi proferido despacho de sustentação da decisão recorrida.
7. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 472, no qual acompanha a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido e se pronuncia pela sua improcedência.
8. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
9. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
In casu, de acordo com essas conclusões, a questão trazida à apreciação deste Tribunal é a de saber se o requerimento apresentado pelo assistente para abertura da instrução respeita os requisitos legais, concretamente o preceituado nos arts. 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), ambos do CPP, e, ademais, se tendo o Tribunal já anteriormente proferido despacho a admitir a abertura da instrução e a determinar a realização de diligências, podia proferir o despacho agora recorrido, a rejeitar a abertura da instrução.
*
2. Da decisão recorrida
É do seguinte teor o despacho recorrido:
«Sem prejuízo do despacho por nós proferido em 22.06.2020 somos de entendimento que o RAI apresentado pelo assistente haverá, agora, de ser rejeitado com os fundamentos que passamos a explanar. De notar que, a circunstância de ter sido proferido em 22.06.2020, despacho liminar e genérico de abertura de instrução não impede que agora proferida decisão em que se reconheça a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução em apreço pois que aquele não faz caso julgado formal sobre a questão, não concretamente analisada, da inadmissibilidade legal da instrução.
O Supremo Tribunal de Justiça, em matéria criminal, já se pronunciou em dois Acórdãos para fixação de jurisprudências, embora relativos a questões processualmente diversas (Acórdão n° 2/95 de 16.05.1995, DR 135/95 Série I-A de 12-06-1995 e Acórdão n.° 5/2019 de 04.07.2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26), sobre aquele conceito.
No Acórdão n° 2/95 pode ler-se a tal respeito: “3.2 – Generalidades sobre o caso julgado em processo penal:
O fundamento central do caso julgado, como escreveu Beling, radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dela aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto (in Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Coimbra, 1983, p. 302).
Isto vale um pouco quer para o caso julgado material, como para o caso julgado formal, sendo certo que aqui nos interessa considerar tão-só este último, dado que a nossa análise apenas incidirá sobre o efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, ao passo que o caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto (cf. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. III, Lisboa, 1958, p. 35).
O Código de Processo Penal de 1929, no capítulo das excepções, aludia expressamente ao caso julgado (artigo 138.º, 3.ª) e a partir do artigo 148.º e seguintes regulamentava com algum pormenor a referida excepção, com especial relevo para o caso julgado material e efeitos do caso julgado civil no processo penal.
Não acontece o mesmo no actual Código de Processo Penal e tal ausência de regulamentação constante e sistemática de matéria tão importante só pode significar, a nosso ver, uma de duas coisas: ou que o legislador entendeu como suficiente para resolver o problema da aplicação genérica e indiferenciada ao processo penal dos vários normativos que no processo civil tratam a questão, ao abrigo do regime estabelecido no artigo 4.º do Código de Processo Penal, ou então que não quis, pura e simplesmente, firmar regras rígidas no processo penal em matéria de caso julgado, dada a natureza deste ramo do direito.
Inclinamo-nos decisivamente para esta última posição, que se encontra verdadeiramente em harmonia com a
especial natureza do processo penal.
(...)5 – Conclusões
As considerações feitas permitem tirar as seguintes conclusões:
1.ª A falta de regulamentação sistemática e específica do caso julgado no Código de Processo Penal não permite, por si própria, o recurso nos termos do artigo 4.° deste Código aos preceitos sobre tal matéria constantes do Código de Processo Civil;
2.ª Em matéria de caso julgado formal, quanto ao despacho previsto no artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, não existe qualquer lacuna que imponha por indício normativo o recurso à analogia para aplicação do regime constante do artigo 672.° do Código de Processo Civil e do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963, ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal;
3.ª Se se verificasse a existência de lacuna, a sua integração, com base no artigo 4.° do Código de Processo Penal, só se poderia operar desde que se não produzisse uma diminuição dos direitos processuais dos arguidos; 4.ª A aplicação ao processo penal dos normativos processuais civis acima referidos implica uma manifesta diminuição relativa ao estatuto processual dos arguidos;
5.ª Também a aplicação neste caso dos referenciados normativos processuais civis infringe o princípio da igualdade jurídica, essencial entre o caso regulado e o caso a regular, e o princípio da harmonização contido no artigo 4.° do Código de Processo Penal;
6.ª Isto porque não existe a mesma identidade de natureza e finalidade entre o despacho saneador contemplado no artigo 510.°, n.os 1, alíneas a) e b), e 2, do Código de Processo Civil e o despacho de saneamento a que se refere o artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal;
7.ª Igualmente a aplicação da doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 1963 colide e não se harmoniza com os princípios fundamentais do processo penal, tais como o princípio da verdade material, do favor rei e do favor libertatis, sendo nessa parte irrelevante a ressalva contida no mesmo assento que condiciona o efeito de caso julgado formal sobre a legitimidade à superveniência de factos que nela se repercutam;
8.ª O artigo 368.°, n.° 1, do Código de Processo Penal (como, de resto, o artigo 338.°, n.° 1) não tem, quanto à sua preclusão, o valor de estabelecer força de caso julgado formal para o despacho genérico sobre a legitimidade do Ministério Público, proferido anteriormente, mas tem apenas por finalidade estabelecer uma ordem de análise das várias questões, pretendendo evitar a duplicação da sua apreciação;
9.ª Assim, o despacho sobre a legitimidade do Ministério Público, proferido em termos genéricos, ao abrigo do artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, não reveste o valor de caso julgado formal”.
No Acórdão nº 5/2019 pode ler-se: “65 - O caso julgado, enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão.
66 - É o princípio do ne bis in idem, que se encontra consagrado como garantia fundamental pelo artigo 29.° n.° 5, da CRP: ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
67 - Os conceitos de caso julgado formal e material comportam diferentes efeitos.
68 - A lei distingue entre o caso julgado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos, as sentenças ou os acórdãos em causa (artigos 619.°, n.° 1, e 620.°, do CPC).
69 - O trânsito em julgado dos despachos, das sentenças e dos acórdãos decorre da circunstância de já não serem susceptíveis de recurso ordinário ou da reclamação (artigo 628.°, do CPC).
70 - O caso julgado material penal tem por efeito que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento, na medida em que o direito de perseguir criminalmente o facto ilícito está esgotado.
71 - Já a propósito do caso julgado formal, aqui em referência, dispõe-se que os despachos, as sentenças e os acórdãos que recaiam unicamente sobre a relação processual apenas têm força obrigatória dentro do processo (artigo 620.° n.° 1, do CPC).
72 - No que concerne ao alcance do caso julgado, determina-se que a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga (artigo 673.°, do CPC).
73 - O caso julgado formal apenas tem força dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impede que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes, pelo mesmo tribunal ou por outro, entretanto chamado a apreciar a causa.
74 - Assim, estamos perante caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
«E perante caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï)» – acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Janeiro de 2002 (processo 3924/01), e de 3 de Março de 2004 (processo 215/04).
O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito - acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Setembro de 2013 (processo n.° 438/08.5SGLSB.L1-B.S1).
75 - No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Novembro de 2008 (processo 08P268), refere-se, designadamente:
«O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).
«O caso julgado formal respeita ao efeito da decisão no próprio processo em que é proferida».
«O caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto» e «tem um valor impeditivo da renovação da apreciação judicial sobre a mesma matéria» - cf. Cavaleiro de Ferreira, loc. cit., p. 25.
O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material – fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal.
Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial.
Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) - cf. acórdão do Supremo Tribunal de 23 e Janeiro de 2002, proc. 3924/01.
O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, mas supondo a inalterabilidade subsequente dos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta.
O procedimento é dinâmico, sequencial e, como contínuo instrumental, subsiste até ao momento em que o processo atinja a sua finalidade – a obtenção de uma decisão que lhe ponha termo, seja decisão final sobre pressupostos negativos de procedimento ou sobre a verificação de condições extintivas, seja decisão final de determinação, positiva ou negativa, da culpabilidade ou de aplicação da sanção que couber. Mas no contínuo dinâmico e instrumental, submetido a regras próprias, o procedimento pode sempre cessar por motivo que produza esse efeito – v. g., a prescrição.
Mas, assim, na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado – a realização da justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes – deixa de subsistir a razão do caso julgado formal que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental.
(...)
79 - Dispõe o artigo 338.°, do CPP:
«1 - O tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.
2 - A discussão das questões referidas no número anterior deve conter-se nos limites de tempo estritamente necessários, não ultrapassando, em regra, uma hora. A decisão pode ser proferida oralmente, com transcrição na acta.»
80 - Conjugando estes normativos, verifica -se que a decisão (tabelar) proferida pelo tribunal de forma genérica quanto à tempestividade do recurso não impede que, posteriormente, o tribunal se pronuncie expressamente sobre essa questão – a menos que sobre ela se tenha pronunciado expressamente e não se verifique alteração superveniente.
81 - Com efeito, resulta da leitura conjugada dos artigos 331.° e 338.°, ambos do CPP, que este último preceito legal permite que mesmo depois de designada a data para o julgamento, dentro dos actos introdutórios da audiência de julgamento, o tribunal possa conhecer de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa – que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc.) ou adjectiva (incompetência do tribunal, desistência de queixa, ilegitimidade, etc.), acerca das quais não tenha havido decisão expressa e de que possa desde logo conhecer.
82 - É que só a decisão que conheça de questões concretas produz o efeito de caso julgado formal e já não aquela que se limita a declarar, genericamente, a verificação dos pressupostos processuais e a regularidade da instância (ou seja, as situações em que o juiz se limita a exarar a fórmula vaga e abstracta «o tribunal é competente em razão da matéria; as partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias; são legítimas; não há nulidades, excepções ou outras questões susceptíveis do obstar ao conhecimento do mérito da causa»).
83 - No caso dos autos, o despacho de admissão do recurso da impugnação judicial é meramente tabelar, limitando-se, na parte em apreço, a declarar a tempestividade do requerimento, pressupondo-a em termos genéricos, razão pela qual não deverá ter a virtualidade de conduzir à formação de caso julgado formal sobre essa questão, podendo esta ser posteriormente suscitada perante o tribunal, que poderá livremente alterar a decisão anteriormente proferida.
87 - Com efeito, a verdadeira ratio do artigo 338.º, do CPP, é de não tomar propriamente posição sobre a natureza das decisões a que se refere, mas apenas estabelecer uma ordem de análise das várias questões, pretendendo evitar a repetição da sua apreciação.
88 - Por isso que o despacho proferido nos autos em que se considerou o recurso tempestivo pode ser alterado por decisão posterior que aprecie, em concreto, a verificação da tempestividade do respectivo requerimento, e decida em sentido contrário.
89 - Neste sentido vide acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Maio de 1995, n.º 2/95, que fixou jurisprudência quanto à questão de saber se o despacho sobre a legitimidade do Ministério Público, proferido em termos genéricos, ao abrigo do artigo 311.º n.º 1, do CPP, constitui caso julgado e, cuja fundamentação vale, mutatis mutandis, para a situação aqui em apreço”.
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Concordamos com a análise dos conceitos de caso julgado material e formal vertida nos dois arrestos supra citados à qual se adere, sem necessidade de ulteriores considerações, bem como às soluções a que ali se chega.
A relação enunciada nos referidos arrestos entre as decisões a proferir ao abrigo do disposto no artº 311.º, n.º 1 do CPPenal e no âmbito dos artºs. 338.º, n.º 1, ou 368.º, n.º 1, do mesmo diploma, e que permite concluir que um despacho inicial genérico e tabelar não preclude a possibilidade de, posteriormente, vir a ser apreciada e decidida em sentido diverso alguma questão respeitante a pressupostos processuais, encontra paralelismo na relação que se pode estabelecer entre o despacho inicial de abertura de instrução, a proferir nos termos do disposto no artº 287.º do CPPenal e o despacho a proferir, a final em sede de instrução, ao abrigo do disposto no artº 308.º do mesmo diploma legal, o qual, de acordo com o seu n.º 3, “começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer”.
No caso em apreço, o despacho proferido em 22.06.2020 declarou aberta a instrução mas não se pronunciou concretamente sobre a (in)admissibilidade legal da instrução.
É certo que poderíamos/deveríamos, ao abrigo do disposto no artº 287.º, n.º 3 do CPPenal, ter proferido despacho inicial de rejeição do requerimento de abertura de instrução com fundamento na inadmissibilidade legal da instrução.
Porém, não o tendo prolatado ali cumpre proferi-lo, neste momento, até porque o CPPenal expressamente repudia a prática de actos inúteis, nada nos impedindo de o proferir neste momento nos termos do disposto no artº 308.º, n.º 1 do CPPenal. Solução diversa, designadamente, o entendimento de que ocorreu caso julgado formal quanto a um juízo de admissibilidade da instrução, levar-nos-ia a uma situação de iniquidade processual – cfr. neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19.04.2017 onde se decidiu: “I - O inquérito é da exclusiva titularidade do Ministério Público e só se permite a intervenção do juiz nos casos expressamente previstos na lei. O juiz de instrução é sobretudo um juiz de garantias e de liberdades, sem qualquer intervenção de tutela hierárquica ou se supervisão dos actos do Ministério Público.
II - Assim sendo, a apreciação da necessidade de actos de inquérito, quando não legalmente impostos, é da competência exclusiva do Ministério Público e o juiz de instrução não pode declarar, durante o inquérito, a invalidade de actos processuais presididos pelo Ministério Público, tendo em atenção o principio da autonomia deste consagrado no artigo 219°, n°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
III - A lei impõe no artigo 308.° n° 3 do C.P.P. que na decisão instrutória o juiz proceda à apreciação da regularidade dos actos de inquérito, conhecendo em primeiro lugar das nulidades e das questões prévias de que possa conhecer, e por maioria de razão este dever se tem de considerar extensível à decisão de rejeição por inadmissibilidade legal a que se refere o artigo 287° n° 3 do CPPenal”.
Atente-se também na posição do Senhor Conselheiro Souto Moura in “Inquérito e instrução - Jornadas de Direito processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, AAVV, Livraria Almedina, pág. 130., que corrobora o entendimento exposto “Nesse saneamento preliminar (o do despacho prévio previsto no art. 308.º n.º 3 atrás referido) se abordarão antes de mais os pressupostos processuais, a começar pela competência do tribunal. Conhecer-se-ão as nulidades ou eventuais questões incidentais. Se nada obstar ao conhecimento do mérito da causa, produzirá o JIC a pronúncia ou não pronúncia. Parece-nos portanto que a decisão instrutória incluirá o saneamento e a apreciação do mérito, redundando este na pronúncia ou na não pronúncia. Daí que a falência dum pressuposto processual não dê origem a uma não pronúncia. Rigorosamente originará uma decisão instrutória de "forma" que não aborda o fundo da questão. Implicará em regra a absolvição da instância, sem mais” e, no mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, 2009, anotação 18 ao art. 277. º, pág. 716 e anotação 4 ao artº 286, pág. 751.
Mais refere o Prof. Germano Marques da Silva in “Direito Processual Português Do Procedimento (Marcha do Processo)”, vol. 3, Universidade Católica Portuguesa, 2018, págs. 164 e seguite e 174, explanando sobre a esta matéria nos seguintes termos: “I. Antes de formular o juízo de indiciação, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer, dispõe o art. 308.º, n.º 3.
(...)
II. A decisão sobre as questões prévias corresponde sobretudo à ideia de saneamento do processo. Essas questões respeitam à instância, são independentes da questão de mérito com a qual estão conexas só por via da relação formal que entre ambas se estabelece.
Importa averiguar da regularidade da instância para que o processo viciado não prossiga; há que saneá-lo, sendo possível, para que se possa vir a proferir a decisão de mérito para que tende todo o processo ou para evitar que prossiga inutilmente. O juiz deve procurar remover os obstáculos que se opõem à decisão de mérito ou evitar que o processo prossiga inutilmente se a decisão de mérito não for possível.
As questões prévias são, pois, questões de natureza processual; são os pressupostos da existência ou requisitos de validade ou regularidade do procedimento e dos actos processuais.
No momento da decisão instrutória podem estar em aberto questões incidentais. Quando tal se der, a lei manda decidi-las também, se tal for já possível.
A decisão instrutória abrange a decisão das questões prévias e incidentais porque também estas são necessárias para a decisão sobre se o processo há-de prosseguir ou não para a fase seguinte. A decisão destas questões inere à decisão instrutória.
(...)
I. O juiz pode concluir que o processo não deve prosseguir para a fase de julgamento em razão da ocorrência de um vício processual. Neste caso duas hipóteses se nos deparam:
a) o processo nem sequer deveria ser instaurado por falta de uma condição de procedibilidade ou não pode prosseguir por falta de uma condição de prosseguibilidade;
b) o processo sofre de vícios que implicam a sua remessa para uma fase anterior, como será o caso da nulidade da acusação, por falta de um dos seus requisitos formais.
O juiz não se pronuncia sobre o mérito da causa. A sua decisão tem apenas por fundamento a regularidade do procedimento.
O Código não utiliza a expressão inadmissibilidade legal do procedimento quando trata da decisão instrutória, diversamente do que sucede no art. 277.º a propósito do arquivamento. Bem se compreende que o não faça, pois em qualquer caso a inadmissibilidade legal do procedimento é também uma falta de pressuposto da punibilidade, mas se o procedimento é inadmissível, porque não deveria sequer ser instaurado ou não pode prosseguir por falta de um pressuposto processual, não pode ter lugar a pronúncia”.
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Assinala-se que sobre e o âmbito da instrução dispõe o artigo 286º, nº. 1 do CPPenal “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Acresce que, sobre o requerimento para abertura da instrução, no que para o caso vertente releva, dispõe o artigo 287º do CPPenal “1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) (...)
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente (...) à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos, que através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n°. 3 do artigo 283°. (...).
3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
(...)”.
O artigo 283º, nº. 3, als. b) e c) do CPPenal relativo à acusação pelo Ministério Público, para o qual remete o artigo 287º, nº. 2, aplicável ao requerimento do assistente, dispõe: A acusação contém, sob pena de nulidade:
A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada. - al. b) -;
A indicação das disposições legais aplicáveis. - al. c) -.
Tal como decorre do disposto no artigo 286º do CPPenal, quando requerida pelo assistente, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivamento, isto é, visa discutir essa decisão “apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes» de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (artigo 308°, n°. 1)” – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 750 e Rita Serrano, “A Irrecorribilidade do Despacho de Pronúncia” in Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, pág. 192.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 754: “O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente é constituído pelas seguintes partes: a. a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou uma medida de segurança, sendo aplicável o disposto no artigo 283°, n°. 3, al. b); b. as disposições legais violadas pelo arguido e as razões de direito de discordância relativamente ao arquivamento do MP; c. a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (...); d. e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito”.
Acresce que, os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução, são os previstos no nº. 3 do artigo 287º, a saber:
- A extemporaneidade do requerimento;
- A incompetência do juiz
- A inadmissibilidade legal da instrução.
Se os fundamentos da extemporaneidade e da incompetência do juiz não suscitam dificuldades de maior estando regulados na lei (cfr. artigos 870, n0. 1 e 320) já o conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, como bem salienta o Acórdão da RL de 16.02.2016, in C.J., Ano 2016, T. II, págs. 126 a 127, tem sido objecto de larga elaboração doutrinária e jurisprudencial.
Da consulta da jurisprudência dos nossos tribunais superiores que se mostra publicada quanto a tal questão resulta que a rejeição do requerimento de instrução, quando apresentado pelo assistente, se prende, sobretudo, com a delimitação do campo factual que pode ser objeto da instrução, v.g., por se verificar a falta de narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança ou, por no requerimento se narrarem factos que não constituem crime (cfr. casos indicados pelo Prof. Paulo Pinto de Albuquerque in ob. cit., pág. 750, anotação 1 e também pelos Conselheiros António Henriques Gaspar e outros in “Código de Processo Penal”, Almedina, 2ª edição, pág. 962).
Assinala-se que, nos termos do n.° 2 do art° 287° do CPPenal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicáveis as als. b) e c) do n.°3 do art° 283° do CPPenal.
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Ora, in casu, tendo o Ministério Público proferido despacho de arquivamento do inquérito e sendo o ora assistente quem requer a abertura de instrução teria este que indicar, por força do disposto nas als. b) e c) do n.°3 do art° 283.° do CPPenal, aplicável ex vi do n.° 2 in fine do disposto no art° 287.° do CPPenal daquele diploma legal, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação a alguém de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis devendo, se possível, concretizar o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, vol. III, pág. 161 “O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução”.
No mesmo sentido, Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado”, 9.ª edição, pág. 541 “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória ”.
Assim, resulta do exposto que, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, o requerimento de abertura de instrução, quando requerida pelo assistente, porque se segue a um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito ou ilícitos imputados.
No que concerne ao princípio do acusatório e assumindo este especial relevância cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, o qual remete para o princípio do acusatório ao determinar que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª Edição, pág. 205-206 “O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento”.
Assim, tal como refere Germano Marques da Silva na obra supra citada, pág. 144 “O Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.
Assim, tendo o requerimento de abertura de instrução formulado por banda do assistente de configurar uma verdadeira acusação será este que condicionará a actividade de investigação do Juiz e, consequentemente, a decisão instrutória a proferir a final tal como flui do disposto nos artºs 303º, n.º3 e 309º, n.º1, ambos do CPPenal.
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Tecidas estas considerações cumpre, agora, reverter ao RAI apresentado nos presentes autos o qual não respeita as imposições que decorrem quer das disposições legais aplicáveis quer dos princípios de direito uma vez que não imputa factos àqueles que pretende virem a ser acusados da prática de factos que preencham os elementos objectivos dos ilícitos criminais que lhes imputada.
Efectivamente, o RAI não descreve a factualidade mínima necessária para que se considere estarmos perante uma acusação pois que do seu conteúdo apenas se extrai que o assistente discorda do despacho de arquivamento proferido, invocando factos e tecendo considerações sobre a conduta daqueles que pretende venham a assumir a qualidade de arguidos e, a final, proferido despacho de acusação contra os mesmos.
Todavia, não alegou e, por força de tal, haverá de falecer o RAI por si apresentado, os elementos objectivos dos ilícitos criminais que considera terem sido praticados.
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Tal como já supra referido não se mostra possível ao Juiz substituir-se ao assistente elencando, na decisão final a proferir, por sua iniciativa, os factos em falta e que se revelam essenciais na medida em que integram os elementos objectivos dos ilícitos criminais cuja prática aquele pretende imputar ao arguido – cfr. neste sentido Ac. RE de 15.11.2011, Relator: Desembargador Ribeiro Cardoso in www.dgsi.pt onde se pode ler:
1. Perante a notificação do arquivamento do inquérito que concluiu pela inexistência de crime, no qual não foram constituídos arguidos ou recolhidas outras provas para além do relatório da autópsia, a solução correcta passaria por uma reclamação fundamentada para o imediato superior hierárquico do Ministério Público, nos termos do art. 278.º do CPP, visando o prosseguimento das investigações pelos factos e provas aportadas e não pela instauração de processo autónomo ou pela formulação de requerimento de abertura da instrução, como foi feito.
2. Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução em que não se indica cabalmente quem deve ser pronunciado, qual o crime ou crimes, as disposições legais aplicáveis e os elementos fácticos referentes ao dolo ou negligência”.
No caso ora em apreço somos de entendimento que nos encontramos perante uma situação de inadmissibilidade legal atenta a nulidade plasmada no art.º 283º, n.º3 do CPPenal sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso – cfr, neste sentido e a título meramente exemplificativo, o Ac. do STJ de 12.03.2009, Relator: Conselheiro Arménio Sottomayor, os Acs. RP de 06.07.2011 (6790/09.8TDPRT.P1 - 1ª Sec.), Relator: Desembargador Araújo Barros; de 15.09.2010 (167/08.0TAETR-C1.P1 - 1ª Sec.), Relator: Desembargador Vasco Freitas; de 03.02.2010 (7/08.0TAMUR.P1 - 1ª Sec.), Relator: Desembargador Castela Rio; RC de 07.01.2009 (6210/08 - 4ª Sec.), Relator: Desembargador Jorge Jacob; RE 15.11.2011, Relator: Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso todos publicados em www.dgsi.pt.
Assim, perfilhamos do entendimento seguido pela jurisprudência maioritária, ou mesmo unânime, dos Tribunais superiores de que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo assistente – cfr. neste sentido, Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005 publicado no DR I Série-A, de 04.11.05 e, bem assim, os Acs. da RP de 31.05.06 e de 01.03.06, todos eles publicados em texto integral em www.dgsi.pt pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter peremptório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do CPPenal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido – neste sentido, cfr. Acs. do Tribunal Constitucional n.ºs 27/2001, de 31.01.01 publicado no DR 2ª série de 23.03.01 e 358/04, de 19/05, publicado no DR 2ª série de 28.06.04.
Na verdade, a realização da instrução constituiria um acto inútil na medida em que, finda a mesma, com fundamento em falta de alegação de elementos de um tipo de ilícito penal, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula pois que sempre haveria falta de objecto do processo.
Como doutamente se decidiu no Ac. RP de 06.06.2012 Relator Desembargador Melo Lima, in www.dgsi.pt onde se pode ler:
I - A estrutura acusatória do processo penal obriga a que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura da instrução equivalente a acusação.
II - Para se afirmar o elemento intelectual do dolo, não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha actuado com consciência da ilicitude.
III - A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora, e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, faz parte também do objecto do processo.
IV - Se na acusação ou no RAI não constem os factos atinentes ao elemento subjectivo "consciência da ilicitude", devem ser rejeitados por manifestamente infundados”.
No mesmo sentido vejam-se os Acs. da RC de 01.06.2011, Relatora: Desembargadora Maria Pilar Oliveira in www.dgsi.pt onde se lê “Num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo). O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação”; de 07.03.2012, Relator: Desembargador Luis Ramos, in www.dgsi.pt “Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente que seja totalmente omisso quanto a elementos subjetivos dos crimes imputados e que não contém uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados pelos arguidos que possam integrar os seus elementos objetivos (...). Na decisão instrutória a proferir em instrução requerida pelo assistente (e nos actos a realizar no decurso desta) apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para abertura de instrução (ressalvada a hipótese a que se refere o artigo 303° do Código do Processo Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade: artigo. 309°, n. ° 1, do Código do Processo Penal (traduz este regime legal uma decorrência do principio da estrutura acusatória do processo penal, consagrado no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa)”.
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Aqui chegados e à guisa de conclusão, frisamos que o RAI tem de conter todos os elementos de facto e de direito necessários à aplicação de uma pena ao arguido pois que é este que fixa o thema decidendum e, por força de tal, é dele e apenas dele que o arguido tem de se defender atento o principio constitucional do acusatório e ainda o principio da auto-suficiência dos autos.
O requerimento que não contenha a factualidade que nos permita concluir, ou não, que a conduta do arguido se reconduz à prática de um ou vários ilícitos criminais por dele não constarem os elementos - objectivos e/ou subjectivos típicos - dos ilícitos criminais em apreço tem, pois, de ser rejeitado entendendo-se que se verifica uma situação de inadmissibilidade legal da instrução - nº 3 do artigo 287º do CPPenal – cfr. neste sentido vide Ac. do TRL de 21.03.2001 in CJ, XXVI, tomo 2, pág. 133.
Nas palavras de Souto de Moura in "Jornadas de Direito Processual Penal", pág. 120 "Se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução «não prossegue» uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do M.º P,º a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que se não compagina com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório. Se o assistente requerer instrução relativa a factos pelos quais o M.P. tenha deduzido acusação já, também se não vê bem, porque é que se solicita a intervenção do juiz de instrução. Note-se que no nosso ponto de vista, a expressão «pelos quais o M.º P.º não tiver deduzido acusação», abrange para além dos factos nem sequer referidos na acusação, todos aqueles aí presentes de modo instrumental. Todos os factos a que o M.P. não deu relevância jurídico-penal, e que o assistente pretende".
Ora, da análise do RAI apresentado pelo assistente extrai-se do teor do mesmo que não obedece ao preceituado nos supra citados artºs 287º, n.º 2 e 283°, n,º 3, alínea b), ambos do CPPenal uma vez que se mostra absolutamente omisso quanto à narração circunstanciada de factos e indícios que possam levar a que se possa concluir que a conduta daqueles que pretende sejam constituídos arguidos constitui a prática de um ou vários ilícitos criminais limitando-se aquele a manifestar as suas razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público, não narra os concretos factos alegadamente praticados, ou seja, os elementos objectivos que, a indiciarem-se, permitissem concluir que os agentes actuaram com culpa.
Desta forma, atenta a factualidade vertida no RAI apresentado jamais poderia vir a ser proferido um despacho de pronúncia pelas razões supra aduzidas – cfr., neste sentido Ac. da RC de 28.05.2012, Relatora: Desembargadora Maria Luísa Arantes, in www.dgsi.pt onde se pode ler:
I) Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos necessários elementos objectivos e subjectivos do crime de falsificação de documento que imputa aos arguidos, os factos narrados não integram qualquer ilícito criminal e como tal nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia.
II) O juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objectivos e subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.
III) O facto do dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respectiva alegação”.
Por fim, seguimos o entendimento expresso no recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.° 1/2015 – D.R. n.º 18/2015, Série I de 2015.01.27 onde se lê “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”.
Não olvidemos que ambos os crimes a que alude o assistente no RAI apenas admitem a sua prática com dolo exigindo, pois, para o seu preenchimento a existência daquele, em qualquer das suas modalidades, direto ou eventual – cfr. neste sentido, A. Medina de Seiça in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 482 a 484. Se os factos integradores dos elementos objectivos e subjetivo dos tipos de ilícito em apreciação não constarem do RAI apresentado pelo assistente, como ora sucede, e não podendo haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento, conforme jurisprudência fixada no AFJ n°. 7/2005 a que aludimos supra, não poderão aqueles factos vir a ser aditados pelo JIC por via da alteração dos factos descritos no R.A.I., nos termos previstos nos art°s 303°, n°. 1 e 358°, n°. 1, ambos do CPPenal, antes determinado, agora, a rejeição daquele com fundamento em inadmissibilidade legal da instrução. – cfr., neste sentido, entre outros, Ac. da RP de 13.01.2016, proc. 682/10.5TAVFR.P1; Acs. da RC de 13.09.2017, proc. 36/15.7MAFIG.C1 e de 28.01.2015, proc. 511/13.8TACVL.C1 e Ac. da RG de 06.02.2017, proc. 263/15.7GAVVD.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Mais se refira que o recurso ao mecanismo previsto no art° 303° do CPPenal – que se reporta à alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução, só pode ocorrer, no decurso da instrução – se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar a alteração não substancial ou substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução o que pressupõe que haja lugar à abertura dessa fase processual e, por conseguinte, que não ocorra qualquer causa de rejeição do RAI o que, frisa-se, não sucede no caso em apreço.
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Face ao exposto e sem necessidade de ulteriores considerações, rejeito o RAI apresentado pelo assistente com fundamento em inadmissibilidade legal – art.° 287°, n.°3 do CPPenal e, por força de tal, determino o oportuno arquivamento dos presentes autos.
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Custas pelo assistente fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs, nos termos do art.° 8.°, n.° 2 do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
O recorrente, assistente nos autos, não se conforma com o acima transcrito despacho recorrido que não admitiu a instrução por si requerida, invocando, em síntese, que o seu requerimento para abertura da instrução respeita os requisitos legais, concretamente o preceituado nos arts. 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), ambos do CPP, e que, ademais, o tribunal havia já anteriormente proferido despacho a admitir a abertura da instrução e a determinar a realização de diligências, pelo que «se formou um caso julgado, que vale juridicamente, pelo menos, no presente processo, não podendo agora o despacho de arquivamento, de 22-04-2021, colocar em causa, sob pena de quebra da estabilidade jurídica do processo em relação à finalidade a que está adstrito».
Vejamos, antes de mais, o que resulta dos autos.
- Na sequência de participação efectuada por AA contra BB, EE, FF, GG, CC, HH, II, DD, JJ, KK, LL e MM, por factos susceptíveis de, na sua perspectiva, integrarem a prática de crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º do CP, o Ministério Público proferiu o despacho de arquivamento de fls. 65-66 dos autos, por entender inexistirem indícios da verificação do aludido ilícito;
- O denunciante requereu a sua constituição como assistente nos autos bem como a abertura da instrução, nos termos do requerimento de fls. 69-73 dos autos;
- Por despacho de 22-06-2020, a Senhora Juiz de Instrução Criminal de Almada decidiu admitir o denunciante como assistente nos autos, declarar aberta a instrução, nos termos do art. 287.º do CPP, deferir a tomada de declarações ao assistente, indeferir a reconstituição do facto por este requerida, e determinar a sua notificação para vir indicar a razão de ciência das testemunhas arroladas (cf. fls. 145 e v.º);
- Por despacho de 06-07-2020, designou para tomada de declarações ao assistente e inquirição das testemunhas arroladas, seguida de realização de debate instrutório, o dia 07-10-2020 (cf. fls. 187);
- Por despacho de 13-07-2020, deu sem efeito a inquirição das testemunhas arroladas (por serem, afinal, os arguidos já como tal constituídos), mantendo a data agendada para tomada de declarações ao assistente e realização de debate instrutório (cf. fls. 189);
- Por despacho de 07-10-2020, por se encontrar impedida na realização de primeiro interrogatório de arguido detido, deu sem efeito a diligência para esse dia agendada e designou em sua substituição o dia 12-11-2020 (cf. fls. 248);
- Na data agendada, proferiu despacho a dar sem efeito a diligência, por impedimento na realização de primeiro interrogatório de arguido detido, e designou para o efeito o dia 03-03-2021 (cf. acta de debate instrutório de fls. 268-269);
- Por despacho de 23-02-2021, foi dada sem efeito a data agendada para as diligências, nos termos do art. 6.º-B, n.º 1, da Lei n.º 4-B/2021, de 01-02, e determinado que fosse aberta conclusão aquando da cessação da suspensão dos prazos legalmente determinada (cf. fls. 282);
- Em 18-04-2021, foi proferido o despacho recorrido, já acima transcrito (cf. fls. 332-339v.º).
Sendo esta a tramitação processual relevante, é manifesto que, por despacho de 22-06-2020, foi declarada aberta a instrução, nos termos do art. 287.º do CPP, e deferida a realização de determinadas diligências requeridas pelo assistente, tendo sido posteriormente agendada data para tomada de declarações e debate instrutório, cuja efectivação veio a ser sucessivamente adiada por diversas vicissitudes processuais.
E que, sem que qualquer das diligências, ou sequer o debate instrutório, tivesse tido lugar, foi proferido o despacho agora recorrido, em 18-04-2021, rejeitando o RAI apresentado, com fundamento em inadmissibilidade legal, não sem antes se afirmar que o despacho anteriormente proferido, de abertura da instrução, é meramente genérico e que nele não foi concretamente analisada a questão da admissibilidade legal da instrução.
Salvo o devido respeito, não se compreende tal afirmação.
É que, como é sabido, a instrução, que é uma fase do processo de carácter facultativo, visa a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito, ou seja, da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, do CPP).
De acordo com o disposto no art. 287.º do CPP, o requerimento para abertura de instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º» (n.º 2).
E o n.º 3 do art. 283.º do CPP estabelece que a acusação contém, sob pena de nulidade:
«b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;»
Ou seja, porque, no caso de o requerente ser o assistente, o requerimento para abertura de instrução consubstancia uma acusação alternativa que irá ser sujeita a comprovação judicial, impõe-se que no mesmo se defina o seu objecto de uma forma clara e suficientemente rigorosa que permita a organização da defesa.
Esta exigência deriva da estrutura acusatória do processo penal, segundo a qual a actividade do tribunal se encontra delimitada pelo objecto fixado na acusação (princípio da vinculação temática), com vista a salvaguardar as garantias de defesa do arguido (designadamente o princípio do contraditório) que, por essa forma, fica resguardado contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e pode preparar a sua defesa em conformidade com o mesmo.
Encontrando-se o juiz de instrução limitado, na pronúncia, aos factos que tenham sido descritos na acusação deduzida ou no requerimento do assistente para abertura de instrução, pois que o art. 309.º, n.º 1, do CPP comina com a sanção de nulidade a decisão instrutória na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial daqueles, necessário se torna que, in casu, o assistente alegue todos os factos concretos susceptíveis de integrar os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime que entende ter o arguido preenchido com o seu comportamento, pois que se dele não constarem, a sua posterior adição sempre constituirá uma alteração substancial dos factos, que a lei não permite (cf. art. 1.º, al. f), do CPP).
Assim, se da análise do requerimento para abertura da instrução se verificar que o assistente não cumpriu o ónus que sobre ele recai, de descrever com clareza a factualidade da qual resulta que o arguido cometeu determinado ilícito criminal, assim delimitando o objecto do processo, permitindo o exercício do direito de defesa por parte daquele e fornecendo ao tribunal os elementos sobre os quais terá de proferir um juízo de suficiência ou insuficiência de indícios de verificação dos pressupostos da punição, estaremos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, que dará lugar à sua rejeição, nos termos do n.º 3 do art. 287.º do CPP[3].
Por tudo isto, a admissão da abertura da fase processual, facultativa, da instrução exige uma apreciação expressa e concreta do conteúdo do RAI, a fim de avaliar se o mesmo cumpre os requisitos legalmente impostos, possibilitando delimitar o objecto da instrução, não podendo dizer-se que resulta de uma qualquer afirmação genérica ou tabelar de verificação de pressupostos processuais.
Ora, nos termos do disposto no art. 611.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP, «Proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa», acrescentando o n.º 3 do preceito que «O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.»
Por outro lado, estabelece o art. 380.º do CPP que
«1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º»
Assim, tendo o Tribunal proferido despacho, em 22-06-2020, que admitiu a abertura da instrução e agendou data para a realização de determinadas diligências, criou-se a legítima expectativa de que iria praticar todos os actos atinentes a essa fase processual, não podendo, por despacho de 18-04-2021, reponderar a sua decisão sem que qualquer alteração de circunstâncias tivesse sobrevindo, e decidir não admitir o que já se mostrava admitido, pois que sobre tal matéria se encontrava esgotado o seu poder jurisdicional.
A consequência da prolação de decisão em violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional tem sido maioritariamente considerada como sendo a da sua inexistência jurídica[4], entendendo outros que será a da invalidade stricto sensu ou ineficácia processual[5].
Independentemente de qual seja a mais curial designação do vício de que padece, certo é que a decisão proferida em violação de tal princípio não pode subsistir, devendo os autos prosseguir, nos termos que haviam sido determinados antes do despacho recorrido, até ao termo da instrução cuja abertura foi oportunamente admitida, com a obrigatória realização de debate instrutório e subsequente prolação de decisão instrutória.
Por todo o exposto, procede o recurso do assistente, na parte em que invoca a ilegalidade do despacho recorrido e pretende a «abertura da instrução», ficando, em face do decidido, naturalmente prejudicada a apreciação do mérito do seu requerimento para abertura da instrução.
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III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente, AA, e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento da fase de instrução, com a realização das diligências anteriormente deferidas, a realização de debate instrutório, e a subsequente prolação de decisão instrutória.
Sem tributação (art. 515.º do CPP, a contrario sensu).
Notifique.
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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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Lisboa, 02 de Junho de 2022
Cristina Pego Branco
Filipa Costa Lourenço
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[1] 3 Sublinhado nosso.
[2] 4 Sublinhado nosso.
[3] Cf., a este propósito, os Acs. do STJ de 07-05-2008, Proc. n.º 4551/07 - 3.ª, de 12-03-2009, Proc. n.º 3168/08 - 5.ª, de 13-01-2011, Proc. n.º 3/09.0YGLSB.S1 - 5.ª, e de 11-12-2012, Proc. n.º 36/11.6YFLSB.S1 - 5.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos.
[4] Cf. neste sentido, entre outros (embora a propósito de questões diversas), o acórdão do STJ de 06-05-2010, Proc. n.º 4670/2000.S1 - 2.ª; do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-05-2014, Proc. n.º 7231/08.3YIPRT-B.G1; do Tribunal da Relação do Porto de 22-05-2019, Proc. n.º 109/14.3T9LRA.P1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-03-2021, Proc. n.º 23822/17.9T8LSB-H.L1-7, todos in www.dgsi.pt.
[5] Cf. neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-04-2018, Proc. n.º 3639/09.5TJCBR-A.C1, ibidem.