Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
358/17.2T8SNT.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
ACÇÃO COMUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário elaborado pelo relator
I. Não havendo incompatibilidade substancial entre pedidos cumulados, não há ineptidão da petição inicial (art. 186/2-c do CPC).
II. Um pedido que é objecto de processo de jurisdição voluntária relativo a união de facto (atribuição de casa de morada de família em caso de ruptura da união de facto), não pode ser cumulado com pedidos que devem ser apreciados em processo declarativo comum, por tal ofender regras de competência em razão da matéria (arts. 3/-a e 4 da Lei 7/2001, 1793 do CC, 990, 555/1 e 37/1, do CPC, e 122/1-b da LOSJ).        
III. Pedidos que deviam seguir a forma de processo de divisão de coisa comum não podem ser cumulados com pedidos que foram formulados num processo que tem de seguir a forma declarativa comum, porque eles seguem tramitação manifestamente incompatível (arts. 555/1 e 37, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC).
IV. A pretensão de pôr termo à indivisão de coisa em compropriedade de dois unidos de facto não está dependente da ruptura da união de facto, tal como não o está a pretensão de um deles exigir do outro, em direito de regresso, aquilo que pagou no lugar do outro no âmbito dos contratos de empréstimo para compra do prédio em compropriedade feitos a ambos os unidos de facto, comproprietários do imóvel.
V. Não haveria qualquer interesse na cumulação de pedidos relativos à divisão de coisa comum com pedidos relativos a créditos que um dos ex-unidos de facto tenha contra o outro, nem a apreciação conjunta de tais pedidos (e ainda de outros) seria indispensável para a justa composição do litígio; antes pelo contrário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

N intentou a presente acção declarativa com processo comum contra O, pedindo, em síntese (de 13 pedidos formulados em 4 páginas), que (i) seja declarada cessada a união de facto existente entre autora e réu, com efeitos a Julho de 2013 e, em consequência [que não foi formulado em alínea autónoma para além da genérica sob (k)], (ii) o réu seja condenado a pagar à autora metade daquilo que a autora tem pago desde aquela data em cumprimento de dois contratos de empréstimo celebrados para a aquisição de um prédio que serve de casa de morada de família e o que ainda vier a pagar a esse título [correspondente aos pedidos sob (a), (d) e parte de (f) e (k)]; (iii) bem como metade das quantias pagas pela autora a título de despesas fixas com água, energia, gás, condomínio, IMI, taxas de esgoto, entre outras despesas e encargos comuns, bem como aquilo que ainda vier a pagar a esse título; tudo acrescido de juros [correspondente aos pedidos sob (b), (c), (e) e parte de (f) e (k)]; (iv) seja reconhecida a existência, em regime de compropriedade, do imóvel identificado na presente acção, bem como a sua natureza indivisível [correspondente aos pedidos sob (g) e parte de (k)]; e (v) seja atribuída a habitação do aludido imóvel à autora na pendência da acção até à divisão do bem comum [correspondente ao pedidos sob (h) e parte de (k)]; (vi) seja adjudicado o aludido imóvel à autora ou, quando assim não se entenda, seja designada conferência de interessados com vista a alcançar-se acordo sobre a pedida adjudicação, caso em que ficaria a autora como responsável pelo pagamento das restantes prestações bancárias devidas no âmbito dos contratos de mútuo com hipoteca [correspondente aos pedidos sob (i) e parte de (k)]; (vii) seja o crédito que a autora detém sobre o réu, subtraído à quota-parte que pertence ao réu na eventual venda do imóvel em questão (que tem natureza indivisível) ou do montante que lhe competiria receber no caso de o imóvel ser atribuído à autora [correspondente aos pedidos sob (j) e parte de (k)].
O réu foi citado editalmente, após o que foi citado o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 21 do Código de Processo Civil.
A autora deu a esta acção o valor de 8934,03€ pelo que ela foi atribuída ao Juízo Local Cível de Sintra que, por despacho de 30/10/2017, fixou em 67.693,79€ o valor da causa e remeteu os autos à distribuição pelo Juízo Central Cível de Sintra.
O Juízo Central Cível de Sintra, por despacho de 22/11/2017 deu a oportunidade à autora de se pronunciar sobre a admissibilidade da cumulação dos pedidos correspondentes a formas de processos diferentes e sobre a competência dos tribunais de família e de menores para o pedido sobre (v) e a autora não disse nada.
No despacho saneador, de 11/01/2018, o tribunal julgou verificada a excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, em consequência do que absolveu o réu da instância.
Fundamentou assim esta decisão, em síntese:
Os diversos pedidos formulados cumulativamente pela autora contra o réu correspondem formas de processo diferentes:
Os pedidos (iv), (vi) e (vii) devem seguir a forma do processo especial legalmente previsto para a acção de divisão de coisa comum, tal como decorre dos arts 925 a 929 do CPC.
E a competência para essa acção de divisão de coisa comum não cabe a este Juízo Central mas sim ao Juízo Local Cível, por força dos arts. 130/1 e 117/1-a da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26/08: compete aos juízos centrais cíveis, além do mais, a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000€).
Já quanto aos pedidos (i) e (v), os mesmos têm enquadramento processual no âmbito processo de jurisdição voluntária relativo às situações de união de facto ou de economia comum, sujeitos a tramitação específica.
Ora, relativamente à questão que deve ser objecto de processo de jurisdição voluntária relativo às situações de união de facto ou de economia comum, o art. 122/1-b da LOSJ atribui a respectiva competência aos juízos de família e menores.
Nos termos previstos no art. 555/1 do CPC, pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação.
Neste domínio, conforme esclarece o art. 37/1 do CPC, a coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
Resta concluir que a cumulação de pedidos não é legalmente admissível, porquanto aos respectivos pedidos correspondem formas de processo diferentes, as quais seguem uma tramitação manifestamente incompatível, sendo certo ainda que a referida cumulação implica a preterição das regras de competência em razão da forma do processo e da matéria.
Acresce que a referida cumulação ilegal de pedidos não é susceptível de sanação face à tramitação legalmente prevista para as formas de processo em referência e à preterição das regras de competência em razão da forma do processo e da matéria, tudo nos termos e para os efeitos previstos nos arts 37/1, 186, n.ºs 1 e 2-c, 555, 576, n.ºs 1 e 2, e 578, todos do CPC.
A suscitada excepção dilatória é de conhecimento oficioso, devendo ser suscitada pelo tribunal em qualquer estado do processo e leva nesta fase à absolvição do réu da instância.
A autora vem recorrer deste despacho saneador, para que seja revogado e substituído por outro que admita a cumulação, adapte o processo e o mande prosseguir para conhecimento dos pedidos, terminando as suas alegações, com 9 páginas contendo 56 conclusões em que, em síntese feita por este acórdão do TRL, argumenta assim (a autora acompanha, quase na integra, a fundamentação do ac. do TRP de 30/11/2015, proferido no processo n.º272/14.3TVPRT.P1 que, realmente, como a autora diz, tem similitude com o caso dos autos excepto no facto de não ter os pedidos iv, vi e vii e por isso não se levantar aí a questão da falta de competência do tribunal em razão da matéria).
I. O facto de os pedidos formulados corresponderem a formas de processo distintas não constituiria obstáculo à cumulação de pedidos.
II. Os pedidos formulados pela autora não são incompatíveis entre si, visando todos eles regular os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução da união de facto, pelo que existe um interesse relevante no conhecimento de todos os pedidos conjuntamente.
III. O pedido relativo à declaração judicial de cessação da união de facto, é imprescindível para o exercício e para o reconhecimento dos direitos: divisão do património comum, a reclamação de direitos de crédito junto do outro membro da união, a imputação do crédito da autora na quota que o réu possui no imóvel adquirido em compropriedade e a responsabilidade do crédito hipotecário, que a autora pretende fazer valer através da presente acção – cfr. o disposto no art. 8/2 da Lei 07/2001, de 11/05, com as alterações introduzidas pela Lei 23/2010 de 30/08 (vide neste sentido os acs do TRL de 23/11/2010 e de 12/09/2013).
IV. Não se vislumbra que as distintas formas de processo em causa sigam uma tramitação manifestamente incompatível: os pedidos não correspondem a processos com finalidades radicalmente diferentes (v.g., processo declarativo e executivo), como também o tipo de tramitação estabelecido na lei não se afasta substancialmente de um modelo comum.
V. Em consonância com o princípio da economia processual, do aproveitamento máximo dos actos processuais (art. 193 CPC) e do princípio da adequação formal (arts 37/2 e 547 do CPC), deveria o tribunal a quo determinar qual a tramitação processual adequada as especificidades da causa, visando a justa composição do litígio (neste sentido, o ac. do TRL de 11/07/2006, proc. 4080/2006-7).
VI. Ou seja, devia ter enxertado na acção, que segue a forma de processo comum, a tramitação própria da acção de divisão de coisa comum, para efeitos de proceder à divisão do imóvel adquirido em compropriedade, sendo perfeitamente compatível.
VII. A cumulação dos pedidos não ofende as regras de competência em razão da matéria, porque a acção não se reduz à questão relativa à casa de morada de família dos unidos de facto, e os outros pedidos não se integram em nenhum dos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no CPC, carecendo por isso os juízos de Família e Menores de competência para preparar e julgar estes procedimentos/pretensões.
Não houve contra-alegações.
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Questões a decidir: se não se verifica a ineptidão da petição inicial e se deve ser admitida a cumulação de pedidos ou se há obstáculos a isso e quais as consequências.
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Os factos que interessam à decisão desta questão, são os que constam do relatório que antecede, acrescentando-se o seguinte:
O prédio de que se pretende a divisão foi comprado por autora e réu, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, em comum e partes iguais e ambos confessaram-se solidariamente devedores da mutuante, que fez os empréstimos aos dois (estes factos estão provados pelas escrituras públicas de fls. 35 a 44 e 47 a 56, docs. 3, 3-A e 4 juntos pela autora).
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Da ineptidão da petição inicial
Entre outras situações, diz-se inepta a petição quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis (art. 186/2-c do CPC).
Todos os pedidos deduzidos pela autora têm o mesmo fim: resolver todas as questões que se colocaram pelo fim da união de facto que tinha com o réu. Nenhum dos pedidos é incompatível com este fim, harmonizando-se entre eles.
De resto, o saneador recorrido não fala nunca em incompatibilidade substancial dos pedidos, só da incompatibilidade processual.
Assim sendo, é lapso evidente a conclusão de que a petição é inepta e nulo todo o processo, bem como a absolvição do réu da instância, o que terá de ser emendado.
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Do 2.º obstáculo à cumulação (art. 37/1, 2.ª parte, do CC)
Segundo o art. 37/1 do CPC: A coligação [no caso a cumulação, por força do art. 555/1 do CPC] não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
O art. 37/2 do CPC prevê que quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que […]
Ou seja, só em relação ao 1.º obstáculo – o das formas de processo diversas – a lei prevê a possibilidade de o juiz, apesar disso, autorizar a cumulação (no mesmo sentido, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 505, 2.º§ da anotação 5).
Pelo que, sendo o obstáculo à cumulação o 2.º, ele não é ultrapassável.
O pedido sintetizado em (v) diz respeito à atribuição da casa de morada de família em caso de ruptura da união de facto. É pois objecto próprio de um processo de jurisdição voluntária, como resulta das seguintes normas:
Art. 3/-a da Lei 7/2001: As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a:
a) Protecção da casa de morada de família, nos termos da presente lei.
Art. 4, da mesma lei, alterado pela lei 23/2010, de 30/08: Protecção da casa de morada da família em caso de ruptura: O disposto nos artigos 1105 e 1793 do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de ruptura da união de facto.
Art. 1793 do CC: 1- Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal. 2- O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem. 3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
Art. 990 do CPC: Atribuição da casa de morada de família: 1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, […] deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito. 2 - O juiz convoca os interessados […] para uma tentativa de conciliação a que se aplica, com as necessárias adaptações, o preceituado nos n.os 1, 5 e 6 do artigo 931.º, sendo, porém, o prazo de oposição o previsto no artigo 293.º. 3 - Haja ou não contestação, o juiz decide depois de proceder às diligências necessárias, cabendo sempre da decisão apelação, com efeito suspensivo.
Este artigo é o primeiro do capítulo II do título XV do CPC que trata dos processos de jurisdição voluntária.
Na interpretação destas normas teve-se em conta o trabalho de António José Fialho publicado no blog do IPPC, em 26/02/2015, sob o título: Competências das secções de família e menores nas uniões de facto e na economia comum.
Pelo que, por força do art. 122/1-b da LOSJ, citado pela decisão recorrida, a competência para o seu julgamento cabe aos juízos de família e menores (1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: […] b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum).
Assim, por força desta regra, a competência em razão da matéria (art. 65 do CPC) para o julgamento do pedido (v) cabe aos juízos de família e de menores e não aos juízos centrais cíveis.
Assim sendo, o Juízo Central Cível de Sintra não tem competência para a apreciação deste pedido, pelo que a cumulação deste pedido com pedidos para os quais é competente este Juízo Central ofenderia regras de competência em razão da matéria (art. 37/1, 2.ª parte, do CPC).
O argumento contra isto, da autora, que consta da ‘conclusão’ (vii), não tem sentido. É evidente que para os outros pedidos os juízos de Família e Menores não são competentes. Mas não é isso que interessa: o que interessa é que para o pedido (v) o juízo central não é competente, sendo-o o juízo de família e de menores.
Aquele obstáculo à cumulação não é ultrapassável.
Assim, a cumulação não é admissível, o que tem como consequência que o Juízo Central Cível de Sintra não possa conhecer do pedido para o qual não é competente, com a consequente absolvição da instância, do réu, quanto a ele. Como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, vol. 1.º, 3.ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 88: “A separação das causas tem também lugar quando só quanto a alguns pedidos o tribunal é incompetente ou a forma de processo é inadequada, mantendo-se no tribunal da propositura a apreciação dos restantes […]”.
Nesta parte, pois, o despacho saneador é de confirmar.
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Do 1.º obstáculo à cumulação (art. 37/1, 1.ª parte, do CC)
O pedido relativo ao termo da indivisão de um prédio que está em compropriedade está sujeito a uma forma de processo especial, previsto nos arts. 925 e seguintes do CPC; isto por um lado.
Enquanto, por outro, a maior parte dos pedidos formulados pela autora neste processo seguem a forma de processo comum.
Há assim pedidos que correspondem a formas de processo diferentes, o que é um obstáculo à cumulação (art. 37/1 do CPC).
Esse obstáculo, no entanto, é ultrapassável se as formas de processo, embora diversas, (i) não seguirem uma tramitação manifestamente incompatível e o juiz autorizar a cumulação, (ii-a) por nela haver interesse relevante ou (ii-b) quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio (art. 37/2 do CPC).
Antes de mais diga-se que, falando a lei de autorização, fundamentada, a autora, que queria a cumulação dos pedidos, deveria ter feito um requerimento para o efeito e fundamentado o mesmo. Ora, não só não o fez, como, quando foi chamada a atenção para o problema, nada disse.
Seja como for…
Das tramitações manifestamente incompatíveis
Primeiro, a forma do processo especial de divisão de coisa comum é manifestamente incompatível com a forma do processo comum. A autora, invocando o ac. de 2015 do TRP já referido, diz que não é assim, mas não convence minimamente.
O processo comum é um processo declarativo de tramitação linear, grosso modo com petição e contestação, produção de prova e decisão de facto e de direito.
O processo especial de divisão de coisa comum é um processo misto, parte declarativo (em que se define o direito) e parte executivo (em que se procura dar execução ao direito declarado – utilizam-se as expressões de Alberto dos Reis, no Processos especiais, vol. II, Coimbra Editora, reimpressão de 1982, pág. 23), com tramitação diferente, que pode ser sumária ou comum, consoante a coisa for divisível ou indivisível, questão que pode ser levantada oficiosamente pelo juiz ou pelos peritos no decurso do processo, e consoante haja ou não contestação e a revelia for ou não operante; e depois com perícias e conferência de interessados obrigatórias em que se concretizam os direitos e se dá execução aos mesmos, havendo possibilidade de posteriores adjudicações por acordo ou por sorteio, reclamações de tornas, e possível venda da coisa, seguindo-se as formas estabelecidas para o processo de execução, precedida das citações ordenadas no art. 786 do CPC e com reclamação e verificação de créditos (por força do art. 549/2 do CPC), tudo com possíveis recursos autónomos de apelação no decurso das várias fases da tramitação (conforme o disposto nos arts. 925 a 929 do CPC). 
Enxertar num processo comum, em que se discutem direitos de crédito de uma parte contra a outra, um processo especial com aquelas características de tramitação, em que se visa apenas pôr termo à indivisão de um imóvel, é algo quase impossível, o que se diz como outra forma de afirmar a manifesta incompatibilidade, que não se confunde com impossibilidade de adaptação. Esta, bem ou mal, de forma mais ou menos forçada, é quase sempre possível, o que não quer dizer que a tramitação dos processos em causa seja compatível.
Daí que, por exemplo, o ac. do TRP de 2015, que entendeu o contrário do que aqui se defende e do que defendeu o despacho recorrido objecto desse acórdão e mandou o processo prosseguir com pedidos cumulados do mesmo tipo dos destes autos, não disse minimamente como é que se faria tal adaptação processual (o que devia ter feito tendo em conta que essa adaptação deve ser feita no despacho que dá a autorização: art. 37/3 do CPC e que o juiz recorrido tinha entendido que a tramitação era manifestamente incompatível; entendendo-se o contrário, devia ter sido demonstrada essa compatibilidade, especificando a adaptação necessária, para que o juiz recorrido pudesse cumprir tal acórdão).
Neste sentido, por exemplo, para uma situação que seria muito mais simples, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, que a propósito da norma do art. 555/2 do CPC que permite que, num processo especial de divórcio, se cumule um pedido próprio de uma acção comum (de alimentos), dizem: “Ao invés, não é, em princípio, admissível que, no processo comum de condenação, em alimentos, o réu peça, reconvencionalmente, o divórcio. A cumulação é admissível – insista-se – na acção especial (e não na comum) e a tramitação originária do processo de divórcio (designadamente com uma tentativa obrigatória de conciliação logo no princípio do processo) é, em princípio, incompatível, para os efeitos do art. 37/2, com a tramitação da acção comum (vol. 2.º, pág. 506).
Nem se diga que nas acções de divisão de coisa comum se tem admitido que o réu deduza reconvenção com um pedido próprio de um processo comum. É que neste caso não há qualquer dificuldade de, quando se está a discutir o direito numa qualquer fase declarativa da tramitação do processo de divisão, se incluir a discussão da matéria própria do pedido do processo comum. O que é completamente diferente de, no processo declarativo comum, se estar a incluir a tramitação específica do processo especial, com as hipóteses e subhipóteses próprias do mesmo.
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Mas, a benefício da discussão, suponha-se que a correcta é a posição contrária e vejam-se então os outros dois requisitos, alternativos entre si, para a autorização da cumulação.
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Da inexistência de interesse relevante e da não indispensabilidade da apreciação conjuntas das pretensões
Na união de facto não existe um património comum propriamente dito, do qual façam parte bens, como património diferente do de cada um dos companheiros. O que existe são apenas coisas de que eles podem ser comproprietários. Os cônjuges podem ser titulares de um património comum, não sendo comproprietários de cada um dos bens que compõem esse património. Os unidos de facto não. Eles apenas são comproprietários de cada coisa concreta (parafraseando Cristina Araújo Dias, na união de facto, a haver bens comuns, serão em compropriedade, não em comunhão. Ou seja, na união de facto, dizer-se que os bens são de ambos os unidos é sempre dizer-se que os bens são compropriedade de ambos – págs. 76 e 70 do n.º 11 dos Cadernos de Direito Privado, anotação ao ac. do TRG de 29/09/2004, proc. 1289/04; salvo erro é essa também a razão pela qual Francisco Pereira Coelho, na anotação ao ac. do STJ de 20/03/2014, publicada na RLJ 145/3995, pág. 115, fala em “liquidação e ‘partilha’ dos interesses patrimoniais dos companheiros no momento da dissolução da sua união de facto” e não na liquidação e partilha de património comum que, em sentido próprio, não existe).         
Aliás, os problemas da liquidação e partilha dos interesses dos ex-unidos de facto existem precisamente porque não há património comum no seu sentido estrito: se houvesse património comum, como património diferente do de cada um dos companheiros, bastaria partilhá-lo segundo as regras legais respectivas.
Quando os autores ou a jurisprudência falam, neste tipo de questões relativas a ex-unidos de facto, em património comum estão a utilizar o termo como sinónimo de bem comum (em compropriedade) ou conjunto de bens comuns (todos e cada um deles em compropriedade) e é neste sentido que têm de ser entendidos ou então no sentido de bens que são formalmente de um dos unidos mas materialmente deviam ser do dois, pondo-se então a questão daquele que não é proprietário dever ser compensado, seja de que forma for (normalmente por via da invocação do enriquecimento sem causa do outro), por esse facto (para além dos autores citados, veja-se também, o ac. do TRP de 10/07/2013, 2273/11.4TJVNF.P1, citado erradamente pela autora como se este acórdão a favorecesse, quando pelo contrário a desfavorece: o ac. disse que não se aplicava o processo especial de divisão de coisa comum precisamente por não haver coisas em compropriedade; e o ac. do TRP de 16/05/2016, proc. 7818/15.8T8VNG-A.P1: II - Não há património comum na união de facto, nem sequer um regime específico de administração de bens. Quanto muito, poderá haver bens em regime de compropriedade).
Não existindo património comum e havendo coisas em compropriedade, os unidos de facto são comproprietários das coisas do mesmo modo que o são quaisquer outras pessoas. Como os unidos de facto não sofrem quaisquer limitações jurídicas reais por estarem em união de facto, qualquer um deles, como qualquer outro comproprietário, pode decidir deixar de o ser em qualquer momento (como decorre do art. 1412 do CC, salvo convenção em contrário, nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão). E, por isso, pode fazê-lo mesmo que continue unido de facto, ou seja, mesmo que queira manter a união de facto. O facto de viver em união de facto não pode impedir qualquer deles de querer deixar de ser comproprietário de uma coisa e muito menos pode ser obrigado a acabar com a união de facto para poder acabar com a indivisão da coisa. Não há nenhuma norma legal que diga o contrário.
Não está, por isso, o direito de pedir o termo da indivisão da coisa comum, dependente da ruptura da união de facto, ao contrário do que diz o referido ac. do TRP de 2015 (na sequência do também dito pelo ac. do TRL de 23/11/2010, proc. 1638/08.3TVLSB.L1-1; já o ac. do TRL de 12/09/2013, proc. 544/08.6 TBPTS.L1-6, apontado no mesmo sentido pela autora, nada diz sobre esta específica questão).
Não o está esse direito, nem também o direito de o devedor solidário (pelas dívidas decorrentes dos empréstimos para aquisição do imóvel em causa) pedir do seu co-devedor aquilo que pagou a mais ao credor, ou seja, por ter pago aquilo que o seu co-devedor também devia ter pagado e não pagou. Esse direito existe sempre que se paga a mais (art. 524 do CC), ou seja, por cada prestação, não se exigindo que o co-devedor que pagou a mais tenha que esperar pelo fim dos contratos de empréstimo, ou pelo fim da união de facto, continuando até lá a pagar as dívidas sozinho (dívidas que, repete-se, tem como devedor solidário formal do empréstimo e não como unido de facto).
Note-se que se está a falar apenas das dívidas solidárias decorrentes dos dois contratos de empréstimo para compra do imóvel em compropriedade e essas dívidas dos unidos de factos vinculam-nos como contraentes dos empréstimos e não como unidos de facto. Ou seja, são simples devedores solidários e as obrigações decorrentes dos contratos de empréstimo não se alteram pelo facto de estarem a viver juntos (quanto aos valores de que a autora se diz credora por ter feito despesas no decurso da vida em comum, elas levantam muitos outros problemas que não interessa estar aqui a discutir, pois que tal discussão até poderia envolver o pré-julgamento delas, e esse não é o regime da apelação, como se vê, a contrario, do regime da revista – art. 683/1 do CPC, regra que não existe para a apelação -, e de qualquer modo do que antecede já decorre que as pretensões próprias do processo de divisão de coisa comum não estão dependentes da ruptura da união de facto).
A posição contrária não invoca qualquer regra jurídica que a suporte, limita-se a fazer a afirmação.
Quanto “à imputação do crédito da autora na quota que o réu possui no imóvel adquirido em compropriedade”, com o que a autora quer dizer que se quer pagar do seu crédito com aquilo que o réu venha a receber da divisão do imóvel, é uma questão que pode ser salvaguardada, actuando a autora com o cuidado necessário, no processo de divisão de coisa comum, com uma tramitação específica para o efeito, não havendo necessidade ou vantagem na cumulação de pedidos para o efeito no processo comum.
Quanto “à determinação da responsabilidade no crédito hipotecário”, com o que a autora quer dizer que quer que fique decidido quem é que fica responsável pela dívida perante o credor, nas relações internas, isto é, entre a autora e o réu – já que, quanto ao credor, este não pode ser atingido por decisões tomadas num processo em que não é parte (art. 595/2 do CC) – essa questão, quanto à parte do crédito que tem a ver com os empréstimos para a compra do imóvel, ficará resolvida no processo de divisão de coisa comum, de novo não havendo necessidade ou vantagem na cumulação de pedidos para o efeito. Antes pelo contrário, já que o valor global do crédito invocado pela autora contra o réu tem fontes diversas, pelo que a mistura de questões só complicará a solução dos problemas conexos, confundindo-os, como aliás já decorre dos pedidos, em que parte dos valores decorrentes da compropriedade do imóvel (IMI, condomínio), estão misturados com valores que decorrem de gastos feitos com a vida em comum.
Como eram estes os argumentos usados pela autora e pelo acórdão do TRP para sustentar a existência do interesse relevante na autorização da cumulação e eles ficam afastados, tanto basta para se dizer que mesmo que as tramitações não fossem manifestamente incompatíveis a cumulação não devia ser admitida.
Antes pelo contrário, pois que a complicação decorrente da cumulação de pedidos versando questões tão distintas é apenas garantia quase certa de erros nas decisões que venham a ser tomadas quanto a todas elas, enquanto a divisão dessas questões em três processos, que se tornarão lineares e de solução fácil e célere, tem todas as vantagens, sendo que aquilo que se gastará em custas judiciais é praticamente o mesmo, já que o valor dos pedidos, se feitos num único processo, se soma para esse efeito.
Aliás, a análise que antecede demonstra que a mistura das questões é prejudicial, pois que se tiveram de abrir várias hipóteses e fazer distinções e mesmo assim apenas para efeitos de discutir a cumulação. Ou, dito de outro modo, demonstra que a apreciação conjunta das pretensões não só não é indispensável para a justa composição do litígio, como até lhe é prejudicial.
Assim sendo, também todos os pedidos que têm a ver com a pretensão de pôr termo à indivisão do prédio em compropriedade, não devem ser objecto deste processo, por força das normas já citadas a propósito das outras pretensões de cumulação inadmissível já referidas acima.
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Pelo que o objecto deste processo fica reduzido aos pedidos que não têm a ver nem com a pretensão de pôr termo à indivisão do prédio, nem com a adjudicação dele à autora pela ruptura da união de facto (ou seja com os formulados sob G, H, I, J e K na parte correspondente). E deve prosseguir apenas para apreciação desses pedidos.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, revogando a decisão que declarou a ineptidão da petição inicial, anulou todo o processado e absolveu o réu da instância, e em sua substituição, julga-se agora inadmissível a cumulação dos pedidos G, H, I, J e K na parte correspondente, absolvendo-se o réu da instância quanto a eles, e determina-se o prosseguimento normal do processo quanto aos outros pedidos.
Não há lugar a condenação em custas (não houve encargos nem despesas no recurso, a autora beneficia de apoio judiciário e por isso não pagou taxa de justiça e o réu não contra-alegou e por isso não teve de pagar taxa de justiça).
Lisboa, 13/09/2018
Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira