Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10731/2004-3
Relator: ANTÓNIO SIMÕES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PRISÃO PREVENTIVA
REVOGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Na concreta situação em que o arguida está indiciado de ter abusado sexualmente da filha menor, antes da separação da mulher e da filha ocorrida em meados de 2003, sendo que a mulher formalizou a queixa em 26/4/2003 e o interrogatório do arguido se processou em 22/10/2004, só tendo visto a filha em Abril de 2004, por se ter deslocado à escola que a mesma frequentava,

II – A invocação de perigo de continuação da actividade criminosa, no quadro acima descrito, obvia-se com a obrigação de o arguido se abster de contactos com a filha, nos termos do artº 200º, nº 1, d) do C.P.P., assim se revogando o despacho que determinara a medida de coacção de prisão preventiva.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa:


1. O arguido (A), melhor identificado a fls. 131, foi submetido ao interrogatório judicial a que se refere o art°. 141° do CPP no Tribunal Judicial de Ponta Delgada, findo o qual a Mma. Juiz ordenou a sua prisão preventiva, o que detenninou no despacho que se deixa transcrito:


"Os autos indiciam fortemente a prática pelo arguido, em concurso real de um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, p. e p. pelo artigo 172° n.° 2, 30° n.° 2, e 177° n. ° 1 ai. a) do Código Penal na pessoa de(V) e, pelo menos, um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artigo 152 ° n.° 2 do Código Penal.

Na verdade as provas carreadas nos autos são consistentes quanto à existência de práticas sexuais continuadas, o que se conclui fundamentalmente das declarações prestadas pela vítima,(V), bem como do resultado do exame médico que à saciedade as evidenciam e atestam.

Por seu turno, as declarações do arguido são contrariadas pelos elementos probatórios já profusamente recolhidos.

A não admissão pelo arguido da prática dos factos fortemente indiciados nos autos apresentando versão que não se mostra crível nem os afasta demonstra que o arguido não tem uma censura crítica do seu comportamento, nem qualquer rebate de consciência pelos actos delituosos em causa.

Invoca a defesa que a vítima se manteve em silencio durante alguns anos a fim de descredibilizar o seu depoimento.

Esse argumento não vinga até porque este tipo de crime se caracteriza pelo secretismo as mais das vezes imposto pelo agente do crime, tendo o arguido mantido, no caso o silêncio da vitima pela ameaça das consequências que teria a sua revelação fazendo-se valer dos laços de proximidade familiar que o unem à vítima.

A repugnância que merece por parte da comunidade em geral este tipo de ilícito faz fundadamente temer pela perturbação da tranquilidade pública, incumbindo, por isso acautelar o perigo de alarme social.

Acresce que a menor veio a dar conta nos autos que após a separação familiar, o arguido e pai da menor se deslocou à escola por ela frequentada, que a atemorizou, deixando a mesma de a frequentar desde essa altura, Abril de 2004, o que foi confirmado pela sua irmã (P) e colega de escola (CT).

É assim de prever que o mesmo não se abstenha de contactar com a vítima, pelo que não se mostra suficiente a proibição de contactos com a mesma para obviar ao perigo de continuação da actividade criminosa.

Deste modo, entendo que nenhuma outra medida de coacção para além da prisão preventiva pode impedir a continuação da actividade delituosa e que em face da patente gravidade dos crimes indiciados, mormente o de abuso sexual de criança, essa medida não se revela excessiva, mas antes proporcional à elevada ilicitude material do crime e adequada à personalidade do arguido espelhada nas circunstâncias que rodearam a sua conduta.
Pelo exposto e verifcando-se preenchidas as condições gerais de aplicação de qualquer medida de coacção e os pressupostos específicos da prisão preventiva - art°s 191°, 193°, 202° n.° 1 al. a) e 204° al. c) do CPP, determino que o arguido (A) aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva."


O arguido interpôs recurso de tal despacho, retirando da motivação do mesmo como conclusões as que seguem:

1. O arguido vem indiciado da prática, em concurso real de um crime de abuso sexual de criança na forma continuada, p. e p. pelo artigo 172. ° n, ° 2, 30. ° n. e 177. ° n. °I al. a) do Código Penal na pessoa de (V) e, pelo menos, um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo artigo 152.° n.° 2 do Código Penal.

2. O despacho recorrido não demonstra a existência de fortes indícios da prática daqueles crimes, porquanto, o mesmo não tem a devida fundamentação de facto, não se verificando, como tal, preenchido o artigo 202. ° n.° 1 al. a) do CPP.

3. Interpretação diferente que se tente efectivar do disposto no art. 202°, n.° 1, alínea a), do CPP, no sentido de se poder admitir a existência de fortes indícios no processado, completamente subtraídos ao conhecimento do arguido, padece de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade, proporcionalidade, garantia do contraditório e da igualdade de armas consagrado no art. 32°, n.° 1, da nossa Lei Fundamental e não pode, obviamente, fundamentar a aplicação da medida cautelar da prisão preventiva.

4. Não pode deixar de considerar-se que o douto despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação, viola claramente o disposto no art. 202°, n.° 1, alínea a), do CPP, por fazer funcionar tal preceito prescindindo da base de sustentação segura que o seu texto e o seu espírito exigem.

5.Foram ainda manifesta e ostensivamente violados os princípios constitucionais vertidos nos artigos 27.° n.° 4, e 28. °, n.° 1 e 205.° n.° 1, da Lei Fundamental, preceitos que se reportam aos direitos fundamentais do arguido e ainda do seu artigo 32. °, n.° 1, onde se definem as garantias do processo criminal e asseguram todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

6. 0 arguido só podia ter exercido, efectiva e sustentadamente, o seu direito de recurso, e com a eficácia possível nesta fase processual contribuir para o debate e esclarecimento da verdade, se conhecesse os elementos probatórios indiciários, os factos concretos, em que se apoiou a decisão que impôs a medida de coacção;

7. Direito expressa, legal e constitucionalmente consagrado;

8. Também não existem quaisquer elementos que permitam vislumbrar sequer a possibilidade de existência dos perigos consagrados na alínea c) do art. 204°, do CPP.

9. Violou assim o douto despacho recorrido, por errada interpretação e aplicação, o disposto no art. 204°, alínea c) do CPP, preceito que, na concreta interpretação que por ele lhe é dada, se tem sempre que considerar ferido de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade e da proporcionalidade consagrados, designadamente, no art. 32°, n. °s 1 e 2 da CRP e também no art. 27°, n.° 3, alínea b) da mesma Lei Fundamental.

10. Tais perigos têm sempre que referir-se ou fundamentar-se em actuação do arguido, sob pena de discricionariedade e, no caso vertente, o despacho recorrido não tem qualquer base factual que sustente a existência de qualquer perigo.
11. Como o despacho recorrido também reconhece, não invocando aliás qualquer fundamento em contrário, não existe o perigo de continuação da actividade criminosa nem, nem da perturbação da ordem e da tranquilidade pública, encontrando-se pois afastada a verificação do requisito da alínea c) do art. 204° do CPP, por não ser invocado, como é jurisprudência pacífica, qualquer facto concreto susceptível de corporizar os referidos requisitos legais.
12.Assim, e face a tudo quanto se deixa alegado, verifica-se também que o douto despacho recorrido, ao aplicar a medida de prisão preventiva, violou claramente o princípio da adequação e proporcionalidade previstos no art. 193°, n.° 1 do CPP, por as exigências cautelares do caso afastarem completamente a necessidade de tal medida;
13.E, com a aplicação de tal medida cautelar, viola claramente, por errada interpretação, não só aquele princípio de adequação, mas também o principio da subsidiariedade consagrado no art. 193°, n. ° 2 e 202°, n. ° 1, ambos do CPP, pois que sendo a prisão a extrema ratio das medidas de coacção, qualquer outra medida menos gravosa, designadamente as que são previstas nos arts. 196°, 197°, 198°I e 200° do CPP, estariam em condições de defender os mesmos interesses que com aquela se visa proteger, devendo em substituição dela, se determinar a aplicação de outra, menos gravosa, em que as eventuais obrigações a impor ao arguido sejam susceptíveis de defender os mesmos interesses em jogo.
14. Na verdade, dispondo os arts. 193°, n. 2 e 204°, n.° 1, ambos do CPP, que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção - e nada disto sucede - segue-se que, na interpretação que deles é feita no douto despacho recorrida, estão aqueles previstos feridos de vício de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade e subsidiariedade previstos no art. 280, n. ° 2 da CRP.

Pede a sua restituição à liberdade.

1 . 1 . Admitido que foi o recurso, o D°.Magistrado do M°.P°. junto do Tribunal recorrido respondeu aos tennos do mesmo no sentido da improcedência por entender que a decisão não padece de qualquer vício ou ilegalidade, não merecendo crítica por se traduzir em correcta aplicação do direito.
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta formulou douto Parecer em que conclui que o despacho recorrido observou as condições gerais e especiais da prisão preventiva e está devidamente fundamentado, deve ser confirmado.
2 . Conforme resulta da lei (art°. 412°, 1 e 2 do CPP) e do entendimento correntemente perfilhado pela Jurisprudência, as conclusões delimitam o objecto do recurso.

E é sobre as que formulou o recorrente que se irá desenvolver o percurso da decisão que aqui inicia o seu momento final.
Assim:
A – Nas suas sete primeiras conclusões o recorrente, em assaz confusa argumentação, alega que no despacho recorrido não se demonstra a existência de fortes indícios da prática dos crimes de abuso sexual de criança e de maus tratos a cônjuge e, para além disto, sustenta que não conhece, por terem sido subtraídos ao seu conhecimento, os indícios que constituem fundamento dessa indiciação.


Pretende assim que o despacho impugnado violou o disposto no art°. 202°, 1 a) do CPP e boa parte do normativo da Lei Fundamental que se dedica ao processo penal (art°s.27°, 4, 28°, 1, 32°, 1 e ainda 205°, 1 da CRP).


Crê-se que ressalta a conveniência de recordar que o despacho em causa foi proferido na sequência do interrogatório a que se refere o art°. 141° do CPP e que, ao que parece, as duas vertentes impugnatórias se reportam à falta de fundamentação e ao incumprimento do disposto na 2a parte do n°.4 do preceito legal aludido.


No que respeita à fundamentação tocante a indícios, o despacho recorrido nada diz no que respeita à indiciação do crime de maus tratos a cônjuge, o que já não sucede de todo quanto ao crime de abuso sexual de criança, como demonstra a simples consideração do respectivo teor, que em grande parte se dedica à menção a tais indícios.


Sendo embora certo que o despacho em causa se encontra sujeito à exigência legalmente imposta de fundamentação fáctica e de direito (art°.97°, 1 b) e 4 do CPP), a verdade é que, atenta a natureza da decisão, a omissão de fundamentação constitui-se como irregularidade, sujeita ao regime de arguição estabelecido no art°. 123° do CPP. Inverificada a arguição tempestiva, o conhecimento desta agora invocada omissão, encontra-se subtraída à sindicância deste tribunal de recurso.

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Quanto ao alegado desconhecimento dos factos que lhe são imputados ou dos indícios que fundamentam essa imputação, terá de consignar-se que o teor das declarações que se encontra vertido no auto de interrogatório certificado a fls. 131 e ss., não permite que se admita sequer que ao interrogado, aqui recorrente, não foi exposto o que lhe devia ser transmitido, em cumprimento do que dispõe o art°. 141°, 4 do CPP.


Como se isto não bastasse, torna-se ainda patente que a ilustre mandatária do recorrente, à data do interrogatório, quando lhe foi dada a palavra para se pronunciar a respeito da medida de coacção aplicanda, fê-lo em termos que denotam o conhecimento dos indícios aportados aos autos e que necessariamente foram transmitidos ao interrogado, que então patrocinava.
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Conclui-se, deste modo, que não foi cometida qualquer nulidade no despacho recorrido ou irregularidade de que possa conhecer-se agora, sendo ainda certo que não se mostra verdadeiramente questionada pelo recorrente, pelo menos, a forte indiciação da prática do crime de abuso sexual de criança.

B – Nas demais conclusões das alegações de recurso é questionada a correcção do despacho impugnado com o fundamento de que nele são concretizados elementos de facto que consubstanciem a ocorrência de perigo de fuga, de perturbação da ordem e da tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa.


Ponderado o teor do despacho que determinou a prisão preventiva do recorrente, constata-se que não é ali feita qualquer referência ao perigo de fuga, aludindo-se a que o crime de abuso sexual de criança suscita a repugnância da comunidade em geral, incumbindo, por isso, acautelar o perigo de alarme social.


Mais se consigna que a menor indiciariamente ofendida veio dar conta aos autos de que, após a separação familiar, o recorrente, seu pai, se deslocou à escola por ela frequentada, em Abril de 2004, o que a atemorizou, deixando de ir à escola.
Daqui conclui a Mma. Juiz ser de prever que o recorrente não se abstenha de contactar a vítima, acrescentando que a proibição de contactos com a menor não é suficiente para obviar ao perigo de continuação da actividade criminosa.
Crê-se que se justifica extrair do conjunto de documentos que instruem os presentes autos de recurso em separado a cronologia dos acontecimentos que se desenrolaram no seio da família do recorrente, dos quais flui que, em meados do ano de 2003, este foi viver sozinho, passando a sua mulher e filhos do casal a residir em local diferente, assim se mantendo a situação até à data da prisão do recorrente.


Faz-se aliás notar que, em declarações prestadas pela mulher do recorrente em 6.6.2003 (fls. 29), esta refere que, com a separação, terminaram os atritos familiares e que o marido apenas a contacta telefonicamente para saber do decurso do processo de divórcio.


E, dos diversos autos de declarações certificados nestes autos não decorre que o recorrente tenha contactado ou importunado qualquer membro da família, isto até que, em Abril de 2004, terá ido à escola ou junto da escola frequentada pela sua filha (V), acontecimento que terá referido a uma colega e que esta narrou conforme consta de fls. 196/197.


Registada esta cronologia sumária, alude-se ainda a que este processo se iniciou com a queixa formulada pela mulher do recorrente em 26.4.2003 (fls.23) e que o despacho determinante da prisão preventiva foi proferido em 22.10.2004.

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Retomando a apreciação suscitada pelo recurso pensa-se que - na convicção de que é inquestionável a imposição legal (e literal) de concretização das exigências cautelares a que se dirige a decretação de medidas de coacção - a invocação do temor de perturbação da tranquilidade pública pela manutenção do recorrente em liberdade é uma simples abstracção e, por isso, carente de fundamento normativo.

Com efeito, passados cerca de dezoito meses sobre o início do processo, nada se divisa na documentação instrutória deste recurso e, a bem dizer, no despacho recorrido de que possa ter nascido o perigo de intranquilidade social de que este inciso judicial faz eco.

Passando à outra exigência cautelar fundamentante da decidida prisão preventiva, verifica-se que, neste caso, foi concretizada.
Tratou-se da presença do recorrente na escola ou junto da escola frequentada pela sua filha (V);


Apenas isto, o que a Mma.Juiz considerou suficiente para concluir pela necessidade de prisão preventiva como modo de obviar ao perigo de continuação de actividade criminosa.


Salvo o respeito devido, crê-se que, mesmo a aceitar-se como razoável que a menor indiciariamente ofendida se tenha atemorizado com a presença do recorrente, a subsidiariedade da prisão preventiva imposta ao nível da lei ordinária pelos art°s 193°, 2 e 202°, 1 (corpo) do CPP, apenas justificaria se ordenasse a proibição de contactos com a menor (V).
É certo que a Mma. Juiz entendeu no despacho de que se recorre que considerava ineficaz a proibição desses contactos. Não se alcança dos autos a motivação de tal convicção e o despacho não esclarece das razões desse entendimento.


Trata-se de entendimento que não se perfilha, não se entendendo também a razão pela qual, num momento em que nada de significativo se verificou que justificasse o reforço de medidas cautelares foi ordenada a prisão preventiva, determinação que aqui se terá de revogar, dando satisfação ao recurso interposto.

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Termos em que se julga procedente o presente recurso e se revoga o despacho que determinou a prisão preventiva do recorrente, o qual, em obediência aos mandados que expedirá será imediatamente restituído à liberdade.
Ficará o recorrente sujeito às obrigações decorrentes do TIR que prestará, se o não fez anteriormente, e à obrigação complementar de se abster de contactos com sua filha (V), obrigação esta determinada ao abrigo do disposto no artº 200º, 1, d) do CPP.

Sem tributação.

Lisboa, 5 de Janeiro 2005

António Simões
Moraes da Rocha
Carlos Almeida