Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
462/19.2GALNH.L1-3
Relator: CRISTINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
IMPUGNAÇÃO AMPLA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Das disposições conjugadas contidas nos arts. 243º; 99º nºs 1 e 4; 169º do CPP, 363º nº 2 e 371º do CC e 255º do CP, resulta que o auto de notícia vale como documento autêntico, quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, na exacta medida em que essa constatação dos factos seja imediata,  feita de forma directa e pessoal e abranja a identificação do seu autor pela autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, porque se assim for, dispensa qualquer investigação prévia.
Nesse condicionalismo, mas só nesse, é que estará dotado de força probatória plena dos factos materiais que documenta, quando descritos pelo próprio agente que os presenciou e enquanto a sua autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).
Não basta transcrever os excertos dos depoimentos das testemunhas e/ou das declarações do arguido ou da assistente de que o recorrente retira o desacerto do Tribunal na valoração da prova e na fixação dos factos a partir dela. A impugnação ampla da matéria de facto só procede, quando dai resultar a arbitrariedade ou a insustentabilidade lógica da decisão, o que não sucede, quando os segmentos assinalados no recurso são exactamente os mesmos que o Tribunal atendeu e a que atribuiu o mesmo significado e alcance que o recorrente, ao invocar o erro de julgamento, tudo redundando numa divergência de convicção que é inoperante para alterar a matéria de facto, porque não pode sobrepor-se à que o tribunal do julgamento formou.
( Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3º Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
Por sentença proferida em 7 de Junho de 2021, no processo comum singular nº 462/19.2GALNH.L1 do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, o arguido RM____ foi absolvido do crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º n° 1, alínea a) e c), n° 2, n° 4 a 6 do Código Penal, por que vinha acusado.
O Mº. Pº. interpôs recurso da sentença, tendo sintetizado as razões da sua discordância, nas seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da sentença proferida nos autos, que absolveu o arguido RM____ da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado, nos termos do disposto no artigo 402.°, n.° 1, do Código de Processo Penal.
2. Discordando da decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, dela vimos recorrer, por nela encontrarmos os seguintes vícios:
a. Erro de julgamento, pelo que se impugna a decisão sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 412.°, n.° 3, do Código de Processo Penal; e
b. Erro de julgamento, pelo que se impugna a decisão em matéria de direito, no que respeita à absolvição do arguido RM____ da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado - violação do artigo 152.°, n.° 1, alíneas a) e c), e n.°s 4 e 6, do Código Penal.
3. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, na medida em que julgou incorrectamente os factos 4.1 a 4.17 da matéria de facto dada como não provada, que deveria ter dado como provados.
4. Consideramos que o douto Tribunal a quo apreciou justamente o acervo probatório carreado, no que respeita aos factos elencados nos pontos 1.1 a 1.6 da matéria de facto dada como provada, que por isso mesmo não são aqui impugnados e, como tal, devem ser tidos como assentes.
5. Os factos constantes dos pontos 1.5 e 1.6 também estão correctamente julgados. Todavia, encontram-se englobados naqueles que foram dados como não provados, os quais são mais detalhados e rigorosos face à prova produzida, tornam-se redundantes face aos mesmos.
6. Assim, nos termos do disposto no artigo 412.°, n.° 3, alínea a), do Código de Processo Penal, o Ministério Público entende que foram incorrectamente julgados os pontos 4.1 a 4.17 da matéria de facto não provada.
7. Nos termos do disposto na alínea b), do n.° 3, do artigo 412.°, do Código de Processo Penal, indicam-se infra os meios de prova que impõem decisão diversa e que consistem em todos aqueles que foram produzidos e examinados em audiência e serviram para alicerçar a convicção do tribunal a quo no que respeita aos pontos 4.1. a 4.17 dos factos dados como não provado, com especial relevância para os que seguidamente se elencam e analisam, os quais, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não valorou devidamente.
8. Em primeiro lugar, o testemunho prestado pela ofendida ES___ , na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, gravado através do sistema “Citius Media Studio” (disponível a 01m46s - 25m40s), o qual se mostra na sua - quase - totalidade acima transcrito, embora se considere ser da máxima relevância a sua audição integral, pois só assim poderá ser devidamente valorado, em si mesmo e face e conjuntamente com a demais prova produzida, bem como se poderá aferir o fluir das respostas, o tom de voz, timbre e maneirismo.
9. Este depoimento deve ser conjugado com o auto de notícia do Posto Territorial da GNR da Lourinhã. a fls. 140-141.
10. O Tribunal recorrido entendeu que existia uma “profunda animosidade” entre o arguido e a ofendida, “cada um querendo prejudicar o outro naquilo que pode e consegue” e, partindo desse pressuposto, desvalorizou o depoimento da ofendida.
11. Para o Tribunal a quo, a ofendida "não foi capaz de transmitir qualquer intimidação, receio pela sua segurança ou dos seus filhos ou qualquer forma de subjugação em relação ao arguido", considerando que “nem da sua postura corporal, nem da sua atitude, nem mesmo da sua forma de falar ou daquilo que relatou" se poderia retirar "que esta mulher fosse uma vítima nas mãos do arguido".
12. Foi seguindo este mesmo raciocínio que o Tribunal a quo avaliou o auto de notícia elaborado pelo Posto da GNR da Lourinhã, a 27-02-2020, junto a fls. 140 e 140, no qual se encontra transcrito relato da ofendida, dando conta de diversos episódios de perseguição perpetrados pelo arguido contra si.
13. Tanto este auto de notícia como os esclarecimentos prestados pela ofendida relacionados com o seu conteúdo foram interpretados pelo tribunal como mais não sendo do que a "versão inflamada" da ofendida "depois de ter sido visada também pela queixa do arguido", "crendo-se como forma de retaliação".
14. Perante o depoimento da ofendida, salvo o devido respeito, não podemos deixar de discordar com a valoração que o douto Tribunal recorrido fez do mesmo e, bem assim, da própria condição de vítima desta cidadã.
15. Atentemos na postura processual adoptada pela ofendida: não constituiu mandatário, não requereu a constituição como assistente, não deduziu pedido de indemnização civil, sempre recusou a possibilidade de arbitramento de qualquer quantia a título de reparação, pretendia a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo nos autos (e sem arbitramento de qualquer quantia à própria).
16. Para além desta postura processual desapegada, não se pode deixar de constatar, face à imagem global dos factos imputados, que a ofendida, se efectivamente pretendia prejudicar o arguido seu ex-marido, actuando com espírito revanchista e faltando à verdade, tinha a possibilidade de imputar factualidade muito gravosa do que aquela que aquela de que o arguido vinha acusado, e que a mesma relatou em sede de julgamento. O que não sucedeu.
17. Acima de tudo, do depoimento desta ofendida resultou, outrossim, uma imagem, contrariamente àquela que é retratada pelo tribunal a quo, de uma pessoa cansada de toda a situação, que, pese embora o discurso espontâneo que apresentou em sede de julgamento, procurou manter uma postura neutra nos limites da suas possibilidades, adoptando um tom de voz comedido e notando-se o esforço, patente nas pausas e hesitações, utilizar um vocabulário pouco expansivo, pouco adjectivado e limitado no uso de advérbios. Postura e discurso que, contrariamente ao entendido pelo tribunal recorrido, criaram a imagem de uma pessoa que não procurava vingança, mas justiça, e, ainda assim, quase a contragosto. Com efeito, tratou-se de um depoimento rico e detalhado, pese embora viesse à tona, paradoxalmente, de forma espontânea e não controlada, a postura de desculpabilização das atitudes do arguido para consigo, que adoptou ao longo do casamento. Ainda assim, o sofrimento psíquico desta vítima ao procurar recordar os eventos passados era claro.
18. Na verdade, contrariamente ao que parece pretender e esperar o tribunal recorrido, pese embora o máximo respeito pelo mesmo, uma vítima de crime, em particular da criminalidade desta natureza, não necessita de evidenciar no momento em que presta testemunho que ainda se encontra em intenso sofrimento psíquico, não apenas porque nem todas as pessoas reagem da mesma forma e a ausência de exteriorização exacerbada não significa que os sentimentos inexistam, como uma vítima de crime pode caminhar no sentido de ultrapassar os traumas vividos e evoluir na sua postura face ao trauma no lapso temporal decorrido desde a ocorrência dos factos até ao julgamento.
19. Aliás, salvo o devido respeito, que é muito, não se entende como o tribunal recorrido percepciona, por um lado, espírito de vingança na ofendida, e desprendimento, por outro.
 20. Salvo melhor entendimento, temos que, diferentemente, a ofendida, pese embora a patente intenção de neutralidade e até de desvalorização da situação, ao longo do seu testemunho deixou transparecer sofrimento e mágoa pelos anos ao longo dos quais foi controlada, menorizada e abusada pelo arguido. Tal como deixou, aliás, transparecer que a própria ainda se culpabiliza por todo o sucedido, característica comum das vítimas de criminalidade, em particular, da desta natureza.
21. A respeito das características comuns ao fenómeno criminal da violência doméstica, há que fazer alguns breves apontamentos, dando-se conta da circunstância, amplamente sopesada pelo tribunal recorrido, de apenas de modo residual haver testemunhas directas da factualidade imputada ao arguido.
22. Ora, mesmo com vários coabitantes na mesma residência, não é de todo contrário às regras da experiência que as condutas do arguido fossem praticadas de forma discreta, oculta, sem fazer alarde das mesmas, na intimidade do casal e sem terceiras pessoas a presenciá-las.
23. Por seu turno, também não causa estranheza que a ofendida não fizesse confidências àqueles que com o casal residiam, tanto mais porque eram crianças e adolescentes e os pais do próprio arguido.
24. Mesmo os factos concernentes à ida da ofendida a um concerto em Peniche, na companhia de CR____  e namorada, não foram perpetrados em pessoa mas por meio do telemóvel.
25. Acima de tudo, temos que o silêncio da ofendida ao longo dos anos, longe de ser estranho face às regras da experiência comum e do normal acontecer, abona a favor da ofendida, pois que demonstra que a mesma não procurou a solidariedade daqueles que lhe eram próximos, assim como do marido, a expensas de denegrir a imagem do arguido.
26. Por seu turno, a dificuldade da ofendida em balizar temporalmente os diferentes episódios também não se afigura contrária às regras da experiência comum e do normal acontecer, neste género de criminalidade, devendo o depoimento ser analisado conjuntamente com o auto de notícia de fls. 140-141, pelo qual, graças à proximidade das datas, a ofendida logrou indicar os concretos dias e horas a que se refere.
27. Salvo o devido respeito, que é muito e não se coloca em causa, não se compreende e não se aceita, face ao quadro exposto, como pôde o depoimento da ofendida, concatenado com o auto de notícia de fls. 140-141, e a classificação desta como verdadeira vítima das condutas do arguido, ser desatendido e desvalorizado pelo douto tribunal recorrido.
28. Não somos estranhos a situações, configuráveis como violência doméstica, igualmente subsumíveis ao tipo legal previsto no artigo 152.°, do Código Penal, com um grau de gravidade superior ao dos presentes autos. O tipo legal é, efectivamente, suficientemente plástico e abrangente para permitir englobar uma multiplicidade de condutas e factos. Não obstante, pese embora ocorrerem situações de gravidade substancialmente superior à factualidade em causa nos autos no nosso ordenamento jurídico, não pode a amplitude do tipo legal ser entendida como cerceadora da criminalização de determinadas condutas, pelo contrário. Por tal motivo, o legislador precaveu-se com uma moldura penal abstracta ampla, para além de previsões concernentes à qualificação e à agravação pelo resultado das condutas. O que não pode suceder é, diferentemente, entender-se que apenas e só os casos de maior gravidade são merecedores de tutela penal.
29. Com efeito, não obstante a riqueza do testemunho desta ofendida, o enviesamento do julgador, no sentido de desvalorizar o depoimento da vítima, é patente ao longo de toda a decisão recorrida.
30. A título meramente exemplificativo, note-se como na fundamentação da matéria de facto, a frase proferida pela vítima "Ele nunca me chamou directamente de puta, mas para mim, meia palavra basta" é descontextualizada, utlizada de modo a dar a impressão de que a vítima tinha acabado por admitir que o arguido nunca a tinha chamado assim, quando na verdade foi proferida a respeito dos comentários que o ex-marido fazia a respeito da frequência da casa da ofendida após o divórcio, com "um corrupio de homens a entrar e a sair". Diferentemente de quando a ofendida relatou o controlo da sua apresentação que era efectuado pelo arguido, momento em que lembrou como este utilizava apodos como “pareces uma macaca/uma puta/uma alargada".
31. Noutro momento da sentença recorrida, o uso da expressão “dador de esperma” [e não “banco de esperma”, termo utilizado, certamente por lapso, na sentença recorrida] para a ofendida se referir ao ex-marido, contrariamente ao reportado na fundamentação da matéria de facto, não foi simplesmente negado pela ofendida em sede inquérito, em contradição com as declarações prestadas em julgamento.
32. Ora, diferentemente do pretendido pelo tribunal a quo, aquando do interrogatório a que a ES__ foi sujeita na fase de inquérito, na qualidade de arguida, na sequência da queixa apresentada pelo ex-marido, a mesma negou tê-lo chamado de “banco de esperma”, “filho da puta” e cuspido no seu rosto, por ocasião de uma entrega das crianças em que ocorreu uma altercação entre ambos, tendo apenas confirmado que o molhou com água da mangueira porque estava a regar o jardim e o ex-marido avançou contra si “a insultá-la”.
33.  Diferentemente, em sede de julgamento, a ofendida ES___ , enquanto reportava como o ex-marido tinha mudado no relacionamento com os filhos, nomeadamente, não querendo conviver com os mesmos para “não dar férias” à progenitora mãe, ou dificultando a realização de exames médicos destinados a ajudar a filha mais velha I__, em virtude do estado de saúde problemático da mesma, declarou, com naturalidade, que aí sim, a respeito dessa mudança na postura paterna, lhe tinha chamado “dador de esperma”.
34. Ou seja, salvo o devido respeito, de uma cuidada análise do depoimento da testemunha não resulta apenas a utilização de um termo diferente, mas a utilização do mesmo num contexto diverso do pretendido, sendo utilizado pelo tribunal a quo de forma a descredibilizar esta testemunha, imputando-lhe supostas incongruências face ao anteriormente dito pela própria, assim como de molde a dar a aparência de uma pessoa que se teria apresentado em julgamento com espírito amargurado e revanchista, tendo como objectivo nada mais do que prejudicar o arguido e conseguir que o mesmo fosse injustamente condenado.
35. Uma vez mais, pese embora o máximo respeito pelo tribunal recorrido, a redacção da fundamentação da matéria de facto trouxe, uma vez mais, à tona como tal depoimento foi analisado de forma tendenciosa, no sentido do apontado enviesamento, por parte do julgador, para a desvalorização do testemunho da vítima e, sobretudo, da própria condição de vítima.
36. Sendo certo que, como acima se analisou, mesmo isoladamente considerado o depoimento da vítima (caso, em abstracto. inexistisse qualquer outra prova nos autos), sempre o teor do mesmo, como anteriormente aferido e repescando-se aqui todas as considerações supra feitas a respeito da qualidade de tal testemunho, salvo o devido respeito por posição diversa, sempre determinaria a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica de que foi acusado.
37. A respeito da valoração do depoimento da vítima no crime de violência doméstica, recordam-se as palavras tabelares do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-12-2016, relator Vasques Osório, proferido no processo n.° 55/15.3GCMBR.C1, disponível em https://dre.pt/web/guest/pesquisa-avancada/- /asearch/116281343/details/maximized?emissor=Tribunal+da+Rela%C3%A7% C3%A3o+de+Coimbra&perPage=100&types=TURISPRUDENCIA&search=Pesquisar %2Fen%2Fen%2Fen.
38. Como contraponto destas declarações da ofendida, temos aquelas que foram prestadas pelo arguido RM____   , na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021.
39. Estas, contrariamente às primeiras, e salvo o devido respeito por diferente entendimento, impressionaram pela falta de objectividade e verosimilhança. O que se tornou evidente, desde logo, e considerando isoladamente a prestação do arguido, pela respectiva postura corporal, pelo fluir das perguntas e respostas, pelo vocabulário escolhido, pelo timbre e entoação utilizados.
40. Pelo que, uma vez mais, se destaca a essencialidade da audição, desta feita, das declarações do arguido, pois apenas assim é possível compreender as mesmas em toda a sua significância.
41. Por outro lado, há a destacar que tais declarações foram, a par e passo, pontuadas por inverosimilhanças, tanto considerando as palavras do arguido isoladamente, à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, como face à demais prova.
42. Incluindo as declarações do próprio, que se contradisse de modo claro e inequívoco.
43. O arguido, aquando das suas declarações iniciais, quando confrontado com os factos constantes da acusação, declarou, pronta e enfaticamente, que apenas estaria nas imediações da casa da ofendida para levar e trazer as crianças (gravação no citius media player a 10m23s - 10m45s, acima transcrita): "A: As vigias à casa nunca foram para controlar a vida da Senhora ES__ mas sim, e não foi vigias, foram situações que o Rudi treinava futebol, as miúdas na altura andavam no karaté e na patinagem e tinha que me deslocar para os entregar. Pronto [destacados nossos].
 44. Não obstante, em sede de declarações prestadas no fim da audiência, no termo da produção de prova (em que o próprio irmão do arguido mencionou as vigilâncias efectuadas por este à casa da ofendida, nos termos que infra se verão) e em resposta a pergunta directa colocada pelo Tribunal, já foi outra a versão do arguido. Versão da qual se retira, para mais, que as “vigilâncias” à residência não apenas eram efectivamente levadas a cabo pelo arguido, como ocorriam em dias consecutivos, e sem motivo atendível ou justificação plausível (gravação no citius media player a 00m30s - 01m35s, acima transcrita).
45. Ora, foram precisamente estas declarações do arguido, analisadas como se de um todo homogéneo - e coerente - se tratasse, que o douto Tribunal a quo entendeu valorar em detrimento da versão aportada pela ofendida.
46. Sendo certo que, até àquele momento, nunca o arguido tinha sequer aventado a possibilidade de ter estado em vigilância junto da residência da ex-mulher, tendo sempre, ao longo de todo o processo, negado veementemente ter praticado tal conduta (nomeadamente, em sede de interrogatório complementar presidido, a 0309-2020, cujo auto consta de fls. 237-238 dos autos).
47. Dando o douto Tribunal a quo esta versão, mais do que verosímil, como verdadeira, salvo o devido respeito, muito se estranha não ter sequer considerado pertinente procurar confirmar cabalmente as mesmas, determinando nomeadamente se solicitassem informações à CPCJ a respeito da alegada comunicação por parte do arguido, ou ouvindo as próprias crianças. O que não sucedeu.
48. Mais, muito se estranha que se considere verosímil que a motivação do arguido se prendesse com a protecção de seus filhos, se ficava de vigia mas não ia directamente à casa, se considerava que a mãe das crianças era capaz as colocar em situação de perigo, se entendia que DO_____ e CR____ poderiam também ser coniventes com a colocação em perigo das crianças.
49. Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos deixar de considerar que o douto Tribunal recorrido incorreu num raciocínio enviesado, pois, não só aceitou as explicações do arguido e da testemunha seu irmão, como quase pareceu acolhê-las (no que se reporta a estar o agregado familiar da ofendida impedido de ter vida social, de receber pessoas em sua casa, de receber encomendas postais, take away, ou qualquer entrega ao domicílio, sob pena de se poder colocar a suspeição de que colocava as próprias filhas na disponibilidade de pedófilos.
50. O testemunho prestado por CA_____ , na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, encontra-se acima parcialmente transcrito, sendo de especial relevo a gravação no citius media player a 06m04s - 06m52.
51. Este depoimento foi desvalorizado, na sua totalidade, pelo tribunal recorrido, mas, na verdade, reveste-se de especial importância no que respeita às vigilâncias do arguido à residência da ofendida, a respeito das quais já acima nos reportámos às declarações prestadas pelo arguido a respeito desta questão.
52. Note-se que esta testemunha corroborou o que a ofendida, assim como as testemunhas filho e nora da mesma, relataram.
53. Por outro lado, no momento em que esta testemunha prestou este depoimento, fê-lo em clara contradição com a versão dos factos aportada por RM____  até ao momento.
54. Perante as declarações do seu irmão e a insistência do tribunal, e apenas então, o arguido alterou a sua versão dos factos, quando no fim da audiência lhe foi dada, pela última vez, a palavra.
55. O douto Tribunal entendeu que o depoimento de BS., antigo colega de trabalho do arguido, era muito relevante, por entender que o mesmo foi o “único depoimento desinteressado prestado em audiência de julgamento”.
56. Desde já, no que concerne a esta última testemunha, temos que o depoimento em causa, salvo o devido respeito por diferente entendimento, e sem discutir a sua isenção e objectividade, pouca informação relevante trouxe aos autos.
57. Com efeito, o mesmo afirmou nunca ter ido a casa do arguido e da ofendida, nunca ter convivido com os mesmos, desconhecendo a dinâmica do casal e qualquer detalhe do relacionamento de ambos, o que resulta expressamente das palavras proferidas pelo próprio a instâncias da defesa (gravação no citius media player a 01m14s - 01m23s, acima transcrita).
58. No mais, temos que esta testemunha apenas se referiu a trabalhar junto do arguido e a terem horários de trabalho pesados. Sendo certo decorrer das regras da expediência comum e do normal acontecer que não estivessem os dois, apesar de colegas de trabalho, sempre juntos, por um lado, e que o arguido telefonasse à mulher e falasse com a mesma sem ser diante de terceiras pessoas. Pelo que a circunstância de esta testemunha afirmar ser difícil fazer telefonemas durante o horário de trabalho e nunca ter ouvido conversas telefónicas entre arguido e ofendida fora do comum, em teor e número, não significa que o relato da ofendida a esse propósito não corresponda à verdade, pelo que, salvo o devido respeito, o não pode colocar em crise.
59. Quanto ao entendimento do douto tribunal recorrido de que todas as testemunhas, com excepção deste antigo colega de trabalho do arguido, prestaram depoimentos impossíveis de valorar, porquanto parciais e reveladores do “clima de guerra” vivido entre arguido e ofendida, e respectivos familiares e amigos, formando dois blocos opostos em permanente guerra fria, não podemos concordar integralmente com esta apreciação.
60. Desde logo, é injusto para com as testemunhas familiares e amigas da ofendida, assim como também para alguns familiares e amigos do arguido, mormente no que respeita ao seu colega de trabalho BS. e ao seu irmão C .
61. Ainda assim, é inegável que as testemunhas familiares do arguido apresentadas pela defesa, em particular a mãe M.  e o pai A. , não fizeram qualquer esforço para esconder a animosidade sentida relativamente à ofendida, pelo contrário, evidenciando a necessidade e, na sua perspectiva, a justeza, de denegrir a imagem da mesma.
62. A.  afirmou mesmo que a ofendida pretendia matar a sua mulher M. e tinha feito “tudo por tudo” para atingir tal sombrio desiderato (gravação no citius media player a 03h18 - 03m37s, acima transcrita).
63. Também M.  não teve pejo em acusar a ex-nora de se querer vingar do ex-marido a todo o custo, com o objectivo de que fosse preso (gravação no citius media player a 06m55s - 07m03s, acima transcrita).
64. Relato este que vai desde logo contra a postura processual da ofendida, que, após um entendimento inicial negativo, acabou por manifestar abertura à suspensão provisória do processo, a qual apenas não foi aplicada nos autos por recusa do arguido, para não falar na demais prova produzida.
65. Não satisfeita com esta descrição da ofendida como pessoa má e vingativa, esta testemunha ainda pretendeu traçar um retrato da mesma como pessoa de fraca moral, má esposa e má mãe, com imputações contrárias, não apenas à demais prova produzida, mas às regras da experiência comum e do normal acontecer.
66. Paradoxalmente, acabando por corroborar a versão dos factos da própria ofendida no que à postura do arguido face à sua pessoa - de suspeição, de controlo, de menorização - respeita, como que a justificar as atitudes do filho para com a mulher (gravação no citius media player entre os 05m44s - 05m56s, acima transcrita).
67. Não deixa de ser curioso e muito significativo que o Tribunal recorrido, depois de, com inteiro acerto, ter reconhecido a parcialidade e a intenção de prejudicar a ofendida por parte destas testemunhas, acabe aderir acriticamente ao retrato revanchista que fizeram da ex-nora.
68. Assim se explica que o douto tribunal a quo deixasse de ver a ofendida como uma vítima, para a passar a ver como uma pessoa maldosa, vingativa e sem escrúpulos.
69. Pelo contrário, as testemunhas da defesa, em particular as familiares e amigas da ofendida, apresentaram-se em julgamento com posturas mais calmas, sendo patente o esforço para não dizer mais do que sabiam, tentando mesmo dizer menos do que sabiam, reduzindo a carga negativa das imputações ao arguido face aos testemunhos prestados em fase de inquérito, sempre com cuidados redobrados em sublinhar o lapso temporal decorrido e a decorrente falta de certezas. Ainda assim, corroborando, em termos gerais, as declarações da ofendida e a demais prova dos autos.
70. Vejamos com um pouco mais de detalhe o teor dos depoimentos de tais testemunhas, sempre sem desvalorizar a essencialidade da audição integral dos mesmos, de modo a permitir uma melhor apreensão de toda a sua significância.
71. A título exemplificativo, a testemunha ACP____ (depoimento prestado na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021), sogra do filho mais velho da ofendida, aquando do relato que fez da perseguição automóvel encetada pelo arguido ao veículo em que ofendida, filhos e testemunha seguiam, fez questão de destacar que, depois de ES___  a deixar em casa, entrou antes de que esta arrancasse, pelo que não sabia se o arguido tinha continuado ou não a seguir a viatura de ES___ .
72. No mais, o relato da mesma, que se coaduna em termos gerais com aquilo que foi reportado pela ofendida, é fornecido de forma meramente descritiva, desapegada e neutra, o que ressalta do fluir das respostas, pelo tom, pelo vocabulário usado, despido de adjectivação, salvo o devido respeito por posição diversa, não levantando dúvidas ao ouvinte, que aquele evento efectivamente ocorreu conforme descrito (gravação disponível no habilus media player a 2m18s - 04m09s, acima transcrita):
73. Por seu turno, a testemunha DO_____ (na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, filho da ofendida, é fruto de um relacionamento anterior ao casamento desta com o arguido, o qual sempre residiu com a mãe e, por inerência, também residiu com o arguido durante a constância do relacionamento de ambos.
74. Não obstante a natural proximidade com sua mãe, DO_____ efectuou um relato neutro e desapegado, sem procurar conferir detalhes ou dramatismo aos factos que reportou, pelo contrário, impressionando a audiência pelo modo contido como falou.
75. Note-se, uma vez mais a título exemplificativo, como esta testemunha conta como se apercebeu de que o ex-padrasto vigiava a residência, fazendo questão de dar conta daquilo de que não tinha conhecimento directo, a fim de haver a mínima possibilidade de poder ser mal interpretado e cair em exagero involuntário (gravação disponível no citius media player a 07m44s - 08m13s, acima transcrito).
76. O mesmo se diga da testemunha CP_____ , na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, namorada da anterior, portanto nora da ofendida.
77. Estas duas testemunhas, namorados, confirmam, em termos gerais, o relato da ofendida no que concerne às vigilâncias do arguido à residência da vítima, de forma seca e sem a emissão de qualquer juízo de valor, sempre com o máximo cuidado para balizar aquilo que tinham visto daquilo de que não tinham conhecimento directo (gravação disponível no citius media player a 03m14s - 03m38, acima transcrita).
78. A testemunha CR____ , na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, enquanto familiar directo do arguido, antigo coabitante da casa de morada de família e pessoa que manteve relacionamento amigável e próximo com a vítima após ter saído de casa e após o divórcio do tio, também se destacou pelo modo como falou com naturalidade, sem qualquer acrimónia em relação ao arguido, contrariamente ao percepcionado pelo julgador, e, uma vez mais, patenteando a necessidade de assumir uma postura neutra, sem emitir qualquer opinião excepto quando directamente perguntado. Na medida dos seus conhecimentos, corroborou o controlo exercido pelo arguido sobre a ofendida no que respeitava à apresentação da mesma, uma vez mais, sem emitir qualquer juízo de valor a respeito do que viu e ouviu e com extremo cuidado para limitar o relato àquilo de que tinha conhecimento directo (gravação disponível no citius media player a 02h47 - 04m14s, acima transcrita).
79. A testemunha LS___ , na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, irmã da ofendida e coabitante, durante um curto período de tempo, com o agregado familiar, fez questão de deixar claro nunca ter pretendido emitir qualquer juízo de valor a respeito do relacionamento entre a irmã e o ex-cunhado (gravação disponível no citius media player a 05m14s - 05m20s, acima transcrita).
80. No que respeita ao paulatino isolamento de sua irmã ao longo da constância do matrimónio, corroborou em termos gerais as declarações da ofendida, de modo espontâneo e desprendido, sem que, todavia, se coibisse de sublinhar as diferenças no comportamento de ES___ . Destacando sempre a reserva da irmã em falar o menos possível a respeito da vida de casada, durante a constância do matrimónio: (gravação disponível no citius media player a 03m46s - 04m15, acima transcrita).
81. Nos termos do disposto na alínea c), do n.° 3, do artigo 412.° e dos seus n.° 4 e 6, do Código de Processo Penal, requer-se que o depoimento prestado pela ofendida, na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, seja analisados conjugadamente, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, com os depoimentos das testemunhas DO_____ , CP_____ , LS___ , CR____ , ACP____ , CA_____ , com as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, e com o auto de interrogatório de fls. 65-66, o auto de notícia de fls. 140-141, auto de interrogatório de arguido (presidido) de fls. 237-238.
82. Pelo exposto, a renovação dos meios de prova acima mencionados impõe que sejam eliminados os pontos 4.1 a 4.17 dos factos não provados e, mantendo- se como provada a factualidade descrita nos 1.1. a 1.6 dos factos provados, sejam ainda dados como provados o seguinte os pontos 4.1 a 4.17 dos factos não provados.
83. No que concerne à impugnação da decisão proferida no que respeita à absolvição do arguido do crime de violência doméstica - violação dos artigos 152.°, n. ° 1, alíneas a) e c), n.° 4 e n.° 6, do Código Penal, o douto Tribunal a quo deu como provados, além do mais, os pontos 1.5 a 1.6 da matéria de factos dada como provada.
84. Salvo melhor opinião, tais factos, mesmo sem que seja operada qualquer alteração à matéria de facto dada como provada, nos termos acima pugnados, sempre impunham que o douto Tribunal a quo tivesse condenado o arguido, pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado.
85. Não obstante, entendeu o douto Tribunal a quo absolver o arguido da prática do crime de que vinha acusado, para tanto considerando, designadamente e no que para aqui releva: "(… tendo apenas, as testemunhas D___ , A__ , LS___  e CR____ visto o arguido parado, dentro do carro, na via pública, à entrada do beco onde reside a ofendida Erica, em alguns dias da semana, no final da tarde, sem no entanto, conseguirem concretizar mais do que isto, sendo certo que a testemunha DO_____ , filho da ofendida ES___ , referiu que o local onde o arguido parava e permanecia por cerca de meia hora, não tinha visibilidade directa para a casa da ofendida ES___  nem desta para o local onde estava estacionado o carro do arguido, apenas se via a entrada e saída do beco, onde se situava a casa, motivo pelo qual se deu como provado o facto descrito em 1.6. Foi igualmente comum a estas testemunhas, dizerem que a ofendida ES___  não se apercebia que o arguido ali se encontrava e apenas depois de chamada a sua atenção pelos filhos e até pelas testemunhas é que demonstrava "transtorno", por desconhecer o motivo do arguido ali estar, tendo inclusive a testemunha DO_____ dito em audiência que nunca ficou preocupado com a segurança da sua mãe ES___ , o que não permite concluir que o arguido pretendia pressionar, intimidar ou controlar a vida da ofendida ES___ , até porque se desconhece e a própria ofendida não o referiu nem mesmo as testemunhas referidas, a existência de qualquer motivo ou causa para tanto. O que vem descrito em 1.5 decorre do depoimento da testemunha ACP____  , mãe da CP_____  que seguia no carro com a ofendida ES___ , num dia que não soube dizer qual, mas depois da entrega das crianças do arguido à progenitora, e que este terá circulado atrás delas, acrescentando que seria para ver para onde levaria a ofendida ES___  os filhos. Das suas palavras e bem assim do depoimento da testemunha JR___   que relatou ter visto num dia de entrega das crianças, o arguido passar várias vezes em frente à Associação onde tal entrega ocorreu, acrescentando que dava a sensação que era para perceber o que estava a ofendida ES___ a fazer. Salvo o devido respeito por opinião contrária, tais situações, não permitem concluir que o arguido perseguia e controlava a ofendida, de forma a poder inseri-las num contexto de violência doméstica.
86.  Salvo melhor entendimento, consideramos que sendo dados como provados os factos constantes dos pontos 1.5 e 1.6, sempre os mesmos permitiriam imputar ao seu agente a prática do crime de violência doméstica, pois que consubstanciam actos persecutórios, demonstrativos do propósito do arguido de controlar os movimentos da ofendida, para a amedrontar, diminuir e fragilizar, cerceadores da liberdade de movimentos da mesma e, por conseguinte, aptos a causar nesta sofrimento psicológico, como efectivamente ocorreu. O que o arguido levou a cabo de forma livre, deliberada e consciente, sabedor de que violava norma penal.
87. Nestes termos, atenta a verificação de tal factualidade, impõe-se concluir que o arguido não obstante saber que ofendia, magoava e assustava a ofendida, sua ex- mulher e mãe de seus filhos, que a sua conduta era proibida por lei penal e que ao agir como agiu retirava liberdade, autodeterminação à esfera pessoal da ofendida, agiu querendo agir, com dolo directo, consubstanciando a conduta praticada pelo arguido a conduta típica proibida pelo artigo 152.°, n.° 1, alíneas a) e c), do Código Penal.
88. Deste modo, não emergindo da factualidade considerada provada qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, mostrando-se preenchido quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo do ilícito criminal previsto na norma supra citada, forçoso é concluir ter o arguido cometido, como autor material, na forma consumada, o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alíneas a) e c), do Código Penal.
89. Pelo exposto, deve o arguido ser condenados pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica.
90. Absolvendo este arguido do crime de violência doméstica, violou o douto Tribunal a quo o disposto no artigo 152.°, n.° 1, alíneas a) e c), e n.°s 4 e 6, do Código Penal.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando a douta decisão recorrida, quanto à matéria de facto impugnada, e condenando arguido RM____ como autor de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.°, n.° 1, alíneas a) e c), e n.°s 2, 4 e 6, do Código Penal, de acordo com a gravidade e exigências cautelares de prevenção geral e especial que se impõem.   
O recurso foi admitido, mas arguido não apresentou resposta.
Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador da República Adjunto emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso e da revogação da sentença e sua substituição por outra que condene o arguido pelo crime de violência doméstica, de acordo com a gravidade e as exigências de prevenção geral e especial.
Cumprido o art. 417º do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência prevista nos art. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, Iª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de  apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a tratar são as seguintes:
Se houve erro de julgamento, porque os factos não provados nos pontos 4.1 a 4.17 deveriam ter sido dados como provados;
Se houve erro de direito, na absolvição do arguido e, consequentemente, deverá o mesmo ser condenado por crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º nº 1, alíneas a) e c), e n°s 4 e 6 do Código Penal.
2.2. Fundamentação de Facto 
A matéria de facto exarada na sentença recorrida e a respectiva motivação são as seguintes:
1. Da produção da prova e da discussão da causa, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão:
1.1 O arguido RM____ e ES___  casaram a 20-12-2004, tendo tal matrimónio sido dissolvido por divórcio, decretado por sentença transitada em julgado a 07-02-2018.
1.2 Este casal teve 3 filhos em comumIS______ , nascida a 17-08-2016, ES______  nascida a 27-08-2009, e RS_____ , nascido a13-09-2010.
1.3  Após um período em que a família residiu em Santa Cruz das Flores, de onde ES___  é natural, passaram a residir, no concelho da Lourinhã, tendo o arguido, em data não concretamente apurada, ido trabalhar para o estrangeiro.
1.4 Com o casal e filhos entretanto nascidos também residiram DO_____ , filho de ES___  de um anterior casamento, bem como CR____ , sobrinho do arguido, entre os anos de 2014/2015 e 2018, e LS___ , irmã de ES___ , entre os anos de 2008 e 2010.
1.5 Em data não concretamente apurada e numa ocasião, depois do divórcio, o arguido seguiu ES___ , quando esta se deslocava de carro, circulando atrás dela.
1.6 Em datas, número de vezes e por tempo não concretamente apurados, depois do divórcio, o arguido permaneceu parado, na via pública, dentro da viatura onde se fazia deslocar, no beco de acesso à residência da arguida, no final da tarde e durante a semana.
*
2. Das condições pessoais e socioeconómicas do arguido:
2.1 O arguido é carpinteiro e aufere entre € 500,00 a € 600,00 mensais.
2.2 Vive só numa casa emprestada.
2.3 Está de momento de baixa médica porque se magoou num joelho.
2.4 Não tem dívidas nem outros rendimentos.
2.5 Tem o 9.° ano de escolaridade.
2.6 Está inscrito na Segurança Social com o n.° 11337017690, registando como última remuneração o mês de Abril de 2021, no valor de € 443,13.
2.7 Apresentou declaração de rendimentos referente ao ano de 2019, como trabalhador dependente.
2.8 Não tem veículos automóveis, nem imóveis registados em seu nome.
*
3. Dos antecedentes criminais do arguido:
Inexistem.
*
4. Matéria de Facto não Provada:
Da discussão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão a proferir, designadamente:
4.1 A constância do matrimónio foi pautada pela postura opressiva do arguido, o qual procurava exercer controlo sobre todos os aspectos da vida da vítima, mantendo-a subjugada aos seus desejos e isolando-a das outras pessoas.
4.2 Durante o tempo em que permaneceram casados, o arguido proibia ES___  de se relacionar com outras pessoas socialmente, fossem do sexo feminino ou masculino, assim como a proibia de ir a eventos, nem mesmo às festas da aldeia a acompanhar os filhos, bem como de criar perfis em redes sociais, isto apesar de a sua mulher se encontrar fisicamente longe da Ilha das Flores, de onde é natural e onde sempre tinha vivido.
4.3 Por outro lado, o arguido também proibiu ES___  de exercer qualquer profissão e de trabalhar fora de casa, mantendo-a na sua total dependência económica.
4.4 Também controlava todos os seus movimentos, telefonando-lhe periodicamente para saber onde e com quem estava, e a fazer o quê.
4.5 Nomeadamente, quando ES___  saía de casa, nem que fosse para fazer compras domésticas, o arguido telefonava-lhe repetidamente para verificar onde e com quem estava.
4.6 O arguido exigia que ES___  estivesse sempre disponível e atendesse logo o telemóvel quando a tentava contactar, pelo que a mesma andava sempre com o aparelho, inclusivamente levando-o para a casa-de-banho, com medo de que o arguido ligasse e ela, por não ouvir, acabasse por o não atender, assim desobedecendo ao marido e provocando a sua ira.
4.7 O arguido também supervisionava a apresentação de ES___ , nomeadamente no que respeitava a usar maquilhagem e às roupas que envergava, apenas a deixando usar vestuário largo e que tapasse peito, costas, braços e pernas.
4.8 Por forma a determinar a posição de poder e estabelecer o controlo sobre ES___ , quando esta não actuava de modo considerado correcto, pelos parâmetros do arguido supra descritos, este reagia intempestivamente, gritando-lhe e insultando-a, tanto em casa como fora dela, e diante dos familiares que se encontrassem presentes, mesmo os filhos menores.
4.9 Nomeadamente, caso o aspecto de ES___  não correspondesse aos desejos do arguido, este dizia-lhe de imediato que “parecia uma puta” e fazia-a ir mudar roupa.
4.10 Deste modo, ao longo do tempo, o arguido foi moldando ES___  aos seus desejos e caprichos, forçando-a paulatinamente a adoptar um estilo de vida submetido à vontade do marido, desde a possibilidade de exercer uma profissão e se tornar economicamente independente, até aos convívios sociais e amizades, passando pela forma de vestir e de se arranjar, fazendo-a usar roupas largas e compridas e não se arranjar como até então fazia, ao que esta foi crescentemente concedendo, sempre com receio das reacções do marido, cada vez mais isolada, dependente económica e emocionalmente, e procurando adaptar-se a tais desmandos por causa da sua crescente dependência e pelo bem dos filhos que iam tendo em comum.
4.11 Mesmo após o divórcio, o arguido manteve a vontade de continuar a controlar ES___ , que passou a residir com os filhos no n.° 7, da Rua da …, em N....
4.12 Para tanto, o arguido passou a seguir ES___  de carro, quando esta se deslocava de carro, circulando atrás dela a fim de verificar onde e com quem esta estava e onde ia.
4.13 Também passou a permanecer de vigilância nas proximidades de ES___ , tanto a locais onde esta se deslocava, como junto da própria casa da mesma, ficando na via pública, em geral dentro do carro, no beco de acesso à residência, por longos períodos que chegavam a ser de horas e inclusivamente durante a noite, em especial durante a semana, apesar de ser ao fim-de- semana que eram feitas as entregas das crianças e apenas nessas ocasiões haver motivo para se deslocar àquele local.
4.14     Tal sucedeu, pelo menos, nas seguintes ocasiões:
4.14.1  A 13-11-2019, o arguido, depois de entregar o filho de ambos em casa de ES___ , regressou e ficou de tocaia, a controlar os seus movimentos e a frequência da residência;
4.14.2  A 28-11-2019, o arguido foi para a Associação de N... para verificar se e quando ES___  aí chegava;
4.14.3  A 09-12-2019, pelas 17h00, o arguido foi para a residência de ES___ , sem que houvesse motivos para tanto, mormente relacionado com os filhos de ambos, para tanto;
4.14.4  A 11-12-2019, pelas 18h15, o arguido foi para o campo de futebol do Lourinhanense para verificar se e quando ES___ aí chegava;
1.14.5  A 26-12-2019, pelas 20h30, o arguido foi para junto da residência de ES___  e permaneceu na via pública, a controlar os movimentos daquela e a frequência da residência;
4.14.6  No dia seguinte, 27-12-2019, o arguido foi uma vez mais para junto da residência de ES___  e permaneceu na via pública, a controlar os movimentos daquela e a frequência da residência;
4.14.7  A 10-01-2020, o arguido foi para a Associação de N... para verificar se e quando ES___  aí chegava;
4.14.8  A 12-01-2020, o arguido foi para a Associação de N... para verificar se e quando ES___  aí chegava;
4.14.9  A 15-01-2020, pelas 18h15, o arguido seguiu ES___ de carro, enquanto esta circulava no seu próprio veículo entre o campo do Lourinhanense e a localidade de N... onde a mesma reside;
4.14.10 A 16-01-2020, o arguido, após deixar as crianças na Associação de N..., foi para junto da residência de ES___ e permaneceu na via pública, a controlar os movimentos daquela e a frequência da residência.
4.15 O arguido também enviava a ES___  mensagens a respeito da frequência da residência da própria, com expressões como “és uma puta, a tua casa é um Big Brother, entram gajos a toda a hora”, assim como a ameaçar que “lhe tirava os filhos”.
4.16 O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, contra ES___ , sua ex-mulher e mãe de três crianças em comum, sabedor de que lhe incumbia o especial dever de manter um são relacionamento, baseado no respeito mútuo, e, não obstante, valendo-se desta proximidade familiar e do ascendente detido sobre a vítima, procurou controlar todas as dimensões da vida daquela, o que logrou, impondo-se sistematicamente através de uma reiterada violência psicológica, designadamente, na casa onde ambos residiam e diante dos familiares, incluindo os próprios filhos menores, causando a esta sofrimento a nível físico e psíquico pela humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto e medo a que a sujeitou, ao tratá-la da forma supra relatada, tendo-lhe causado instabilidade emocional, que se reflectiu na sua vida do dia-a-dia, ficando psicológica e fisicamente afectada.
4.17 Mais sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
*
5. Motivação da decisão de facto:
Na formação da sua convicção, o Tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada os documentos constantes dos autos, cujo teor e veracidade não foram postos em causa pelos intervenientes processuais, as declarações do arguido e da ofendida e os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, tudo de acordo com o preceituado no artigo 127.° do Código de Processo Penal.
Os factos descritos em 1.1 e 1.2 decorrem da análise dos assentos de nascimento constantes de fls. 312 a 316.
O que vem descrito em 1.3 e 1.4 resulta não só das declarações do arguido, como dos depoimentos da ofendida ES___ e das testemunhas DO_____ , CP_____ , LS___  e CR____ .
Do auto de notícia de fls. 140 e 141 apenas se retira a versão inflamada da ofendida ES___ , depois de ter sido visada também pela queixa do arguido (constante de fls. 2 e 3 dos autos) e, depois de a ouvir em audiência, crendo-se como forma de retaliação, na medida em que, da leitura da mesma e para além das datas que não foram corroboradas por nenhum elemento de prova, nem sequer pela própria ofendida ES___ , em audiência de julgamento, mais não se retiram do que afirmações genéricas, factos conclusivos e situações que nem mesmo propositadamente descontextualizadas (pela forma como ali estão descritas), revelam perseguição, pressão, controlo ou intimidação pelo arguido sobre a ofendida ES___ , até porque esta não foi capaz de transmitir qualquer intimidação, receio pela sua segurança ou dos seus filhos ou qualquer forma de subjugação em relação ao arguido.
Nem da sua postura corporal, nem da sua atitude, nem mesmo da sua forma de falar ou daquilo que relatou se retirou que esta mulher fosse uma vítima nas mãos do arguido.
Aquilo que se constatou sim, em audiência, sem qualquer dúvida para este Tribunal foi a profunda animosidade existente entre ambos, cada um querendo prejudicar o outro naquilo que pode e consegue, o que não só é quase palpável, como decorre de forma cristalina dos próprios autos, no que diz respeito à actuação de ambos.
Apresentam queixas um contra o outro, digladiam-se por qualquer questão, mínima que seja, tudo serve para se ofenderem e continuarem presentes na vida um do outro, tentando cada um, criar e manter as suas hostes, misturando as respectivas famílias nas suas frustrações e problemas, batendo no peito pelo interesse superior dos filhos de ambos dos quais se esquecem fácil e repentinamente, à mínima provocação.
Assim, deparou-se este tribunal com os defensores da ofendida ES___ , grupo composto pelas testemunhas que a própria indicou ao Ministério Público, a saber DO_____ , filho da ofendida ES___ , CP_____ , namorada do D___ , LS___ , irmã da ES___ , CR____ , sobrinho desavindo do arguido, JR___  , colega de trabalho da ES___  e ACP____  , mãe da testemunha A__ , namorada do DO_____ que por sua vez é filho da ofendida ES___  e os defensores do arguido, composto pelas testemunhas arroladas por este, a saber a sua mãe M. , o seu pai A. , o seu irmão C. , a sobrinha L.  e um ex-colega de trabalho BS., sendo porém certo que os primeiros procuraram, comprometer-se menos do que os segundos e os seus depoimentos, não se revelaram tão tendenciosos.
Salienta-se que nenhuma das testemunhas da acusação disse ter alguma vez assistido a agressões físicas, injúrias ou discussões de relevo entre o arguido e a ofendida ES___ , sendo certo que, com excepção das testemunhas JR___   e ACP____  , todas conviveram (no caso de CP_____ , por ser namorada do D___ , filho da ofendida ES___ ) e viveram (DO_____ , CR____  e LS___ ) na casa do arguido e da ofendida ES___ , enquanto estes eram casados.
Referiram que as discussões que observaram, apenas depois do divórcio eram discussões normais, sem nada que lhes chamasse a atenção.
Dos seus depoimentos, retirou o tribunal que a pouco ou nada assistiram de relevante para a boa decisão da causa e que permitisse a este Tribunal dar como provados os factos descritos na douta acusação pública, nenhum mal estar, nenhum ambiente pesado ou constrangedor para quem quer que fosse. Apenas referiram aquilo que, maioritariamente lhes foi narrado pela ofendida ES___ , apenas após a separação porque na constância do casamento de nada se aperceberam, tendo apenas, as testemunhas D___ , A__ , LS___  e CR____ visto o arguido parado, dentro do carro, na via pública, à entrada do beco onde reside a ofendida Erica, em alguns dias da semana, no final da tarde, sem no entanto, conseguirem concretizar mais do que isto, sendo certo que a testemunha DO_____ , filho da ofendida ES___ , referiu que o local onde o arguido parava e permanecia por cerca de meia hora, não tinha visibilidade directa para a casa da ofendida ES___  nem desta para o local onde estava estacionado o carro do arguido, apenas se via a entrada e saída do beco, onde se situava a casa, motivo pelo qual se deu como provado o facto descrito em 1.6.
Foi igualmente comum a estas testemunhas, dizerem que a ofendida ES___  não se apercebia que o arguido ali se encontrava e apenas depois de chamada a sua atenção pelos filhos e até pelas testemunhas é que demonstrava “transtorno”, por desconhecer o motivo do arguido ali estar, tendo inclusive a testemunha DO_____ dito em audiência que nunca ficou preocupado com a segurança da sua mãe ES___ , o que não permite concluir que o arguido pretendia pressionar, intimidar ou controlar a vida da ofendida ES___ , até porque se desconhece e a própria ofendida não o referiu nem mesmo as testemunhas referidas, a existência de qualquer motivo ou causa para tanto.
O que vem descrito em 1.5 decorre do depoimento da testemunha ACP____  , mãe da CP_____  que seguia no carro com a ofendida ES___ , num dia que não soube dizer qual, mas depois da entrega das crianças do arguido à progenitora, e que este terá circulado atrás delas, acrescentando que seria para ver para onde levaria a ofendida ES___  os filhos. Das suas palavras e bem assim do depoimento da testemunha JR___   que relatou ter visto num dia de entrega das crianças, o arguido passar várias vezes em frente à Associação onde tal entrega ocorreu, acrescentando que dava a sensação que era para perceber o que estava a ofendida ES___ a fazer. Salvo o devido respeito por opinião contrária, tais situações, não permitem concluir que o arguido perseguia e controlava a ofendida, de forma a poder inseri-las num contexto de violência doméstica.
Da mesma forma, não conseguiu o tribunal perceber, de que forma poderá o arguido controlar, perseguir e intimidar a ofendida ES___ , na constância do casamento, impondo-lhe a roupa que esta deveria vestir, controlando as suas saídas e os seus relacionamentos e impedindo-a de trabalhar.
Isto porque, de toda a prova produzida em audiência de julgamento, resulta que o arguido trabalhou durante anos no estrangeiro, mais concretamente naquilo a que vulgarmente chamam “nos fornos” como também se retira das pesquisas efectuadas nas bases de dados da segurança Social e da A.T., constantes de fls. 374 e 375.
Ora, no único depoimento desinteressado prestado em audiência de julgamento, a testemunha BS., seu colega de trabalho nessa altura referiu, de forma credível, o que aliás resulta também das regras de experiência comum, que a carga horária e de trabalho é tão grande e intensa que os trabalhadores não têm tempo para andar a fazer telefonemas de instante a instante e que ligavam para casa todos os dias, sim, mas normalmente duas vezes por dia, uma depois do jantar e outra ao deitar, ao contrário do que pretendeu fazer crer a ofendida ES___  que referiu até levar o telemóvel para a casa de banho com medo que o arguido ligasse e não pudesse atender, desencadeando assim a sua ira!
Pergunta-se que ira, se o arguido se encontrava a milhares da Km de distância e nunca a agrediu fisicamente ou a injuriou? Se só vinha a casa de vez em quando, como poderia este homem controlar o que a ofendida vestia que, na boca das testemunhas era vestuário normal e apenas numa ocasião e frisando que tinha sido uma única vez sem se ter repetido, a testemunha CR____  disse ter ouvido o arguido dizer à ofendida que a roupa que a mesma envergava era “roupa à puta”.
Ora, tal afirmação, proferida num contexto isento de agressividade ou de conflito, não pode ser encarada como chamar “puta” à ofendida ES___ , mas sim de que a roupa que a mesma trajava se assemelhava àquela que normalmente as putas usam.
Mais referiu a ofendida que, depois do divórcio foi a um concerto a Peniche com o sobrinho CR____  e a namorada deste e o arguido lhe ligou 30 a 40 vezes, de tal forma a incomodando que teve de se vir embora. Ora, perguntada sobre esta circunstância, a testemunha CR____  disse que correu tudo bem nessa noite, que foram a regressaram juntos, sem qualquer incidente, não se tendo apercebido de nada. Seria normal, estando juntos que a testemunha se apercebesse das chamadas e, mesmo que não ouvisse o telemóvel tocar o que, com o barulho do concerto também impediria a ofendida ES___ , mas sentindo a vibração, faria o gesto de o atender ou então desligar, atitude que a testemunha não viu.
Aqui chegados e em relação a esta situação e comentário do arguido, deve referir-se que foi impressivo para o tribunal, como supra se referiu, a postura, atitude, forma de falar e o próprio conteúdo das afirmações da ofendida ES___ , especialmente quando disse, referindo-se ao arguido:
“Ele nunca me chamou directamente de puta, mas para mim, meia palavra basta!”
Por outro lado, também resultou das palavras da própria ofendida que a filha mais velha do casal tinha alguns problemas de saúde, de seguida tiveram mais dois filhos, a casa estava sempre cheia de gente, até porque o primeiro filho de ES___ , DO_____  viva com o casal, a certa altura viveu o sobrinho CR____ , a irmã LS___  e até os sogros da ofendida também viveram em casa do casal.
Ora, num quadro destes como se pode dizer que o arguido não a deixava ir trabalhar ou socializar com os amigos? Se o arguido não estava presente para ajudar a ofendida ES___  com as crianças, todas menores, sendo uma menos saudável, que tempo tinha esta mulher para trabalhar fora ou para socializar com os amigos? Que vontade teria esta mulher de o fazer, de se arranjar para sair?
E, se tinha tal vontade, não poderia ser o arguido a impedi-la, já que o mesmo não estava em Portugal para o fazer, sendo que, repete-se, ES___  nunca demonstrou qualquer medo ou receio do arguido, admitindo igualmente que, logo após o divórcio, em 2018 arranjou um namorado.
Tal atitude não permite concluir pela violência psicológica que a mesma reclama e, muito menos pela baixa autoestima que diz ter sentido. Como também não é compatível com tal situação, o facto de apelidar o arguido “banco de esperma” como admitiu ter feito em audiência, ao contrário do disse quando prestou declarações, negando tê-lo dito (cfr. fls. 65v).
O arguido prestou declarações, admitiu a factualidade tal como descrita em 1.1 a 1.6 da matéria de facto provada e negou a prática dos demais factos que lhe são imputados, apresentando uma versão e contexto contrários à dos acontecimentos concretamente narrados na acusação, alegando que os desentendimentos tidos com a assistente tinham por base situações relacionadas com o bem estar dos filhos do casal e não com a ofendida ES___ , tendo sido ele próprio quem pediu o divórcio, facto que a própria ofendida admitiu.
O arguido mais referiu que, logo após o divórcio, alguns vizinhos lhe chamaram a atenção para a circunstância da casa onde a ofendida morava com os filhos ser muito frequentada e por pessoas diferentes, circunstância que o colocou de sobreaviso e o motivou a permanecer parado junto do acesso à casa para poder assegurar-se de que os filhos estariam bem, mais acrescentando que nunca pretendeu, nem pretende controlar a ofendida na sua vida, sendo certo que nunca a seguiu intencionalmente com esse objectivo, admitindo ter acontecido deslocar-se de carro atrás da mesma e ser natural querer assistir aos treinos de futebol do filho, local onde a encontrava, mas não se aproximava dela nem lhe dirigia a palavra, aliás, o que foi confirmado pela testemunha L.  que, estando no treino, relatou ter visto a ofendida ES___  procurar o arguido e quando viu que a testemunha ali se encontrava voltou para trás.
Referiu ainda jamais ter interferido com a roupa, os amigos ou com a família dela ou a situação de trabalho da ofendida que não trabalhava porque assim o entendia e inclusive a tinha incentivado a terminar o curso de Direito quando regressaram para viver no continente, o que a própria ofendida ES___  também admitiu em audiência, mas justificou a sua recusa por não terem, na altura, condições, optando por não continuar o curso.
Ora, salvo o devido respeito, todas as incongruências e contradições nas declarações e postura da ofendida ES___ , a plausibilidade da justificação do arguido para a sua conduta, que assumiu (treinos e entrega dos filhos), nos termos que se deram por provados (1.5 e 1.6) que não se prolongou no tempo, não ofendeu, nem fez mal a ninguém, muito menos à ofendida ES___ , apenas demonstram a este Tribunal que a descrição dos factos foi empolada, descontextualizada e agravada pela ofendida ES___  com o intuito de prejudicar o arguido.
Os factos descritos em 2.1 a 2.8 decorrem das declarações do arguido prestadas em audiência de julgamento, as quais se consideraram credíveis, conjugadas com o teor do resultado das pesquisas às bases de dados disponíveis neste tribunal e constantes de fls. 374 a 377.
A inexistência de antecedentes criminais (3.) decorre da leitura do CRC do arguido constante de fls. 378.
Por estes motivos se deram como não provados os factos de 4.1 a 4.17, sendo certo que não constam dos autos quaisquer mensagens com o teor descrito em 4.15 e necessário é que, nesses casos, o depoimento da vítima seja prestado de molde a criar no Tribunal a convicção da veracidade dos factos por si relatados.
Ora, por tudo quanto ficou acima descrito quanto aos elementos de valoração das declarações da ofendida ES___ , constata-se que estas, por si só, não assumem consistência suficiente para que o Tribunal, sem margem de dúvida razoável, possa concluir pela prática dos factos tal como por esta descritos.
É certo que se poderia considerar que a ofendida ES___  se encontrava perturbada e que tal situação se deve ao comportamento que a mesma imputa ao arguido e à sua presença em audiência. Sucede, porém, que para além de ter falado sem qualquer constrangimento, não existe qualquer indício probatório que permita que o Tribunal conclua nesse sentido, muito pelo contrário, atenta a sua postura, linguagem, forma de falar e segurança em audiência. E ainda que assim não fosse, a verdade é que sempre subsistiriam as incongruências e inverosimilhanças acima referidas, só por si suficientes para instalar a dúvida sobre se os factos aconteceram da forma por si relatada ou não.
Em consequência, entende-se que da prova produzida não deriva um alto grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido nos termos imputados ao arguido, ou seja, realizado o julgamento, não se ficou com o convencimento da verdade dos factos narrados na aludida acusação para além de qualquer dúvida razoável, o que, necessariamente, conduz a que os factos abrangidos por essa dúvida (razoável) tivessem que ser dados como não provados.
As testemunhas arroladas pelo arguido (mãe), (pai) e (irmão), com excepção das já referidas   , em nada contribuíram para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, pela forma tendenciosa e criativa com que prestaram os seus depoimentos.
2.3. Apreciação do Mérito do Recurso  
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso.
 Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Assim:
Para cumprir o ónus previsto no nº 3, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado.
Neste conspecto, cumpre assinalar que, na medida em que o recurso está concebido como um remédio jurídico e não como um novo julgamento, ele não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, de harmonia com os princípios da imediação e da oralidade da audiência de discussão e julgamento, da livre apreciação da prova e da segurança jurídica e partindo da constatação de que o contacto que o Tribunal de recurso tem com as provas é, por regra e quase exclusivamente, feito através da gravação, sem a força da imediação e do exercício sistemático do contraditório que são característicos da prova produzida no julgamento, princípios e constatação estes, que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005. Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
O ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada uma das declarações e depoimentos gravados: se a acta contiver essa referência, a indicação dos excertos em que se funda a impugnação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º e do nº 4 do artigo 412º do CPP); se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição, nas motivações de recurso, das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série,  nº 77 de 18 de abril de 2012; Acs. da Relação de Évora, de 28.05.2013, proc. 94/08.0GGODM.E1 e da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Do mesmo modo que, se os meios de prova invocados forem de outra natureza, a indicação da totalidade de um documento ou de uma perícia, ou de uma escuta telefónica, por reporte a um determinado período, na sua globalidade, não cumpre o ónus previsto no art. 412º nº 4 do CPP, nem viabiliza a possibilidade de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso. É necessário que o recorrente explicite qual o trecho do documento, do relatório pericial ou da transcrição das comunicações telefónicas que contém a informação apta a infirmar a afirmação do facto como provado ou como não provado feita pelo Tribunal recorrido.
Por fim, é preciso que dessa indicação resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é que a correcta.
Trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da prova proibida, da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos.
Se dessa comparação resultar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado. 
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso. Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual.
Assim, a convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efetivamente produzida no processo, deveria necessariamente ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção (…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012; Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005 Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e ainda, os Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1 in http://www.dgsi.pt).
No caso vertente, o recorrente efectuou a indicação precisa dos factos que considerou terem sido erradamente fixados, concretamente, os enumerados em 4.1. a 4.17, que, segundo a sua visão da prova, deveriam ter sido considerados provados.
Ora, independentemente de nestes factos se conter a totalidade do objecto do processo, o que vale por dizer todos os factos integradores do crime de violência doméstica, segundo a descrição vertida na acusação, no que se refere aos meios de prova, o que o recorrente fez, foi indicar todos os meios de prova por declarações e por testemunhas que foram produzidos em audiência e ainda documentos que não têm qualquer aptidão para serem usados como meios de prova como é o caso do auto de notícia que o recorrente invoca e que, por não conter qualquer relato de factos directamente presenciados pelo OPC que o redige e assina, mas antes uma descrição de factos da autoria da própria ofendida.
 Das disposições conjugadas contidas nos arts. 243º; 99º nºs 1 e 4; 169º do CPP, 363º nº 2 e 371º do CC e 255º do CP, resulta que o auto de notícia vale como documento autêntico, quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, na exacta medida em que essa constatação dos factos seja imediata,  feita de forma directa e pessoal e abranja a identificação do seu autor pela autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, porque se assim for, dispensa qualquer investigação prévia.
Nesse condicionalismo, mas só nesse, é que estará dotado de força probatória plena dos factos materiais que documenta, quando descritos pelo próprio agente que os presenciou e enquanto a sua autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).
Todavia, não tem qualquer força probatória se e quando elaborado por um órgão de polícia criminal, que não tenha presenciado a infracção, mas apenas tenha procedido a inquérito prévio sobre a matéria nele relatada, nem o auto elaborado por um agente de autoridade que mencione as declarações de uma testemunha (cfr., nesse sentido, Ac. da Relação do Porto de 05.01.2011, proc. 280/09.6TAVCD.P1; Ac. da Relação de Évora de 20.12.2012, proc. 721/07.7PBEVR.E1, Ac. da Relação de Guimarães de 25.05.2013, proc. 2319/11.6TBFAF.G1, Ac. da Relação de Lisboa de 31.10.2017, proc. 638/14.9SGLSB.L1-5; Ac. da Relação de Coimbra de 21.02.2018, proc. 63/16.7GBCLD.C1; Ac. da Relação de lisboa de 07.02.2019, proc. 98/18.5PLSNT.L1-9, todos in http://www.dgsi.pt e Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª ed., em anotação ao art. 243º, pág. 642).
Ora, este é precisamente o caso do «auto de notícia elaborado pelo Posto da GNR da Lourinhã, a 27-02-2020, junto a fls. 140 e 140, no qual se encontra transcrito relato da ofendida, dando conta de diversos episódios de perseguição perpetrados pelo arguido contra si», pelo que jamais poderia integrar o elenco dos meios de prova a valorar pelo Tribunal do julgamento, dele não se podendo retirar qualquer ilacção sobre o acerto ou desacerto da decisão da matéria de facto.
Quanto aos demais meios de prova que o Mº. Pº. indicou, no recurso.
Em parte alguma do recurso, o recorrente demonstrou que alguma testemunha tenha dito algo que o Tribunal não tenha valorado com o preciso sentido das afirmações proferidas, ou que o Tribunal tenha equivocadamente atribuído às testemunhas um relato, alguma descrição factual que alguma delas não tenha dito.
Muito menos, especificou de que excertos das declarações do arguido, nem de que segmentos do depoimento da ofendida é que, necessariamente, teriam de resultar provados os factos que o Tribunal deu como não provados.
Do mesmo modo que o que transparece das conclusões 14 a 20, 38 a 40, 51, 52, 70, 81 e 82, é que o recorrente pretende a reavaliação da globalidade da prova produzida, no que se refere aos depoimentos das restantes testemunhas inquiridas sendo expressiva, nesse sentido, a conclusão 81, ao referir «nos termos do disposto na alínea c), do n.° 3, do artigo 412° e dos seus n°s 4 e 6, do Código de Processo Penal, requer-se que o depoimento prestado pela ofendida, na sessão da audiência de discussão e julgamento de 31-05-2021, seja analisados conjugadamente, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, com os depoimentos das testemunhas DO_____ , CP_____ , LS___ , CR____ , ACP____   , CA_____ , com as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, e com o auto de interrogatório de fls. 65-66, o auto de notícia de fls. 140-141, auto de interrogatório de arguido (presidido) de fls. 237-238». 
E sendo assim, tal bastaria para negar provimento ao recurso, por omissão do cumprimento do ónus de impugnação especificada, no que concerne à indicação dos concretos meios de prova que impõem solução diversa da recorrida. 
É verdade que o Mº. Pº. procedeu à transcrição de certos segmentos dos depoimentos das testemunhas CA_____  (em 2.2. d) das motivações e conclusões 50 a 54 do recurso), BS____ (em 2.2. d) das motivações e conclusões 55 a 58 do recurso), A e MH___  (em 2.2. d) das motivações e conclusões 61 a 68 do recurso), ACP____  (em 2.2. e) e nas conclusões 71 e 72 do recurso), DO_____ (em 2.2. f) e conclusões 73 a 75 do recurso), CP_____  (em 2.2. g) e conclusões 76 e 77 do recurso), CR____  (em 2.2. h) e conclusão 78 do recurso) e LS___  (em 2.2. i) e conclusão 79 do recurso).
 Mas nem por isso se segue que possa considerar-se cumprido o ónus de impugnação especificada previsto no art. 412º nº 3 al. b) e nº 4 do CPP.
Primeiro porque estes segmentos das declarações e depoimentos invocados no recurso do Mº. Pº. têm exactamente o conteúdo que lhes é assinalado na motivação da decisão de facto.
Depois, porque em resultado do princípio da livre apreciação da prova, a prova resultante de declarações sejam elas prestadas pelo arguido ou pelo assistente, assim como dos depoimentos das testemunhas está sujeita à livre convicção do julgador.
Ora, o princípio da livre apreciação da prova genericamente consagrado no artigo 127º do CPP, assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no art. 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art. 32º nº 8 da Constituição.
Este sistema de livre apreciação da prova tem várias implicações, entre elas, a de que o juiz não se encontra sujeito a regras, prévia e legalmente fixadas sobre o modo como deve valorar a prova, não prevendo o CPP qualquer regra de corroboração necessária da convicção e, ainda, a de que, por força da ausência de eficácia jurídica do eficácia jurídica do aforismo “testis unus testis nullus”, um único depoimento, mesmo sendo o da própria vítima, pode ilidir a presunção de inocência e fundamentar uma condenação, do mesmo modo que as declarações do arguido por si só, isoladamente consideradas, podem fundamentar a sua absolvição (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187; Ac. da Relação de Guimarães de 07.12.2018, processo 40/17.0PBCHV.G1. No mesmo sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 11.09.2019, processo 1365/12.7PBFUN.L3-3, in http://www.dgsi.pt).
A livre convicção é um mecanismo de descoberta da verdade, não é a afirmação infundada da verdade. A apreciação da prova é livre tem de alicerçar-se num processo lógico-racional, de que resultem objectivados, à luz das máximas de experiência, do senso comum, de razoabilidade e dos conhecimentos técnicos e científicos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro qualquer.
Por conseguinte, da circunstância de o Tribunal não ter credibilizado a versão da ofendida, não pode retirar-se qualquer conclusão sobre se houve uma incorrecta apreciação da prova quando, como sucedeu, no caso vertente, o Tribunal do julgamento explicou quais as razões pelas quais fundamentou a sua convicção e no recurso, o Mº. Pº. se limita a dizer que o relato da ofendida foi claro, isento e credível, invocando exactamente os mesmos segmentos das declarações da mesma, em que o Mmo. Juiz se baseou para lhe retirar a credibilidade.
O mesmo se aplica às considerações tecidas sobre o modo como as testemunhas depuseram e as razões pelas quais, designadamente, os depoimentos dos pais do arguido, , ou da irmã da ofendida LS___ , entre outras.  
Afinal com o que o Mº. Pº. não concordou foi com a descredibilização da versão dos factos apresentada pela ofendida, no confronto com as declarações do arguido, assim como com a falta de valor probatório que o Tribunal dispensou aos depoimentos familiares, umas da ofendida, outras do arguido.  
Mas o Tribunal analisou exaustivamente a prova, sublinhando-se por particularmente expressivo, o seguinte trecho da motivação da decisão de facto:
«Salienta-se que nenhuma das testemunhas da acusação disse ter alguma vez assistido a agressões físicas, injúrias ou discussões de relevo entre o arguido e a ofendida ES___ , sendo certo que, com excepção das testemunhas JR___   e ACP____  , todas conviveram (no caso de CP_____ , por ser namorada do D___ , filho da ofendida ES___ ) e viveram (DO_____ , CR____  e LS___ ) na casa do arguido e da ofendida ES___ , enquanto estes eram casados.
«Referiram que as discussões que observaram, apenas depois do divórcio eram discussões normais, sem nada que lhes chamasse a atenção.
«Dos seus depoimentos, retirou o tribunal que a pouco ou nada assistiram de relevante para a boa decisão da causa e que permitisse a este Tribunal dar como provados os factos descritos na douta acusação pública, nenhum mal estar, nenhum ambiente pesado ou constrangedor para quem quer que fosse.»
Provavelmente, por reconhecer isso mesmo, é que o recorrente centrou o que considerou ter sido uma errada apreciação da prova, nas circunstâncias envolvendo as assim designadas vigias imputadas ao arguido, à casa da ofendida.
Todavia, mesmo quanto a essa factualidade, o Tribunal explicou, de forma lógica e consentânea com as regras de experiência comum, porque é que não considerou provada essa factualidade, mais uma vez, ainda e sempre, porque no contraponto entre os depoimentos das testemunhas que a esse propósito esclareceram o que viram e as versões inconciliáveis apresentadas pelo arguido e pela ofendida acerca das razões das idas e permanências do arguido em tal local, o Tribunal só ficou esclarecido e convencido da verificação passada do facto descrito em 1.6., mostrando-se igualmente impressiva a invocação, para ilustrar o alegado erro de julgamento, de um auto de notícia que nem sequer como meio de prova pode ser considerado.
E isto, só por si, ao mesmo tempo que dispensa o Tribunal de recurso de ouvir a prova, já é o suficiente para negar provimento ao presente recurso.
O Mº. Pº. parece pretender substituir-se ao Tribunal, no julgamento dos factos, porque acreditou na versão da ofendida, ao contrário do Tribunal do julgamento que atribuiu verosimilhança à versão dos factos apresentada pelo arguido e a retirou à que ofendida relatou.
Mas, sendo assim, o presente recurso não ultrapassa o limite da mera discordância e a mera discordância não basta para operar seja que alteração na matéria de facto, pois, relembra-se, o recurso não é um novo julgamento, mas um simples remédio jurídico de âmbito restrito – limita-se à correcção dos erros na avaliação e exame crítico da prova e na fixação dos factos, a partir dessa valoração – e se essa divergência não se impuser como uma versão factual correcta porque fidedigna ao sentido global da prova àquela que o Tribunal
Fora deste contexto, é a convicção do Tribunal que terá de prevalecer, porque respaldada nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório, característicos da audiência de discussão e julgamento, bem como no princípio da livre convicção do julgador que inspira em grande medida todo o processo de exame crítico da prova e de formação da convicção. E foi o que sucedeu, no presente processo.
Por isso, improcede a impugnação ampla da matéria de facto.
Também não se descortina no texto da decisão, qualquer dos vícios decisórios previstos no art. 410º nº 2 als. a) a c) do CPP, porquanto não é possível surpreender nela qualquer insuficiência da matéria de facto provada, qualquer falta de fundamentação, contradição de fundamentação ou entre esta e a decisão ou, ainda, qualquer asserção contrária às regras da experiência comum ou qualquer juízo ilógico, arbitrário ou contraditório.
Quanto ao erro de direito.
O tipo incriminador contido no art. 152º do CP pune a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, ao cônjuge ou ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
O crime de violência doméstica consuma-se com a conduta causalmente adequada a provocar maus-tratos físicos ou maus-tratos psíquicos.
Para que tal suceda é imperativo que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da tal relação de proximidade e vinculação existencial entre o agente e a vítima, pela sua natureza e pelos efeitos que possam ter na possibilidade da vida em comum, ou de manutenção das relações de diferente natureza de entre as enumeradas no art. 152º do CP, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento lesivo da sua saúde física e mental, incompatível com a sua dignidade e liberdade, nesse contexto de intimidade.
A matéria de facto provada, na apreciação da sua imagem global, não revela minimamente a relação de opressão/subjugação, o tratamento degradante ou humilhante dispensado à vítima, num contexto de relação de abuso de poder, como é próprio da violência doméstica em que o arguido tenha sido, exclusiva ou primacialmente, o agressor e a ofendida a vítima, pelo que não merece qualquer reparo a absolvição do mesmo, decidida na primeira instância.
E por todas estas razões, o presente recurso não merece provimento.
III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Sem Custas – art. 522º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelo Mmo. Juíz Adjunto.

Tribunal da Relação de Lisboa, 6 de Outubro de 2021
Cristina Almeida e Sousa
Alfredo Costa