Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1222/09.4TVLSB.L1-1
Relator: RUI VOUGA
Descritores: ASSOCIAÇÃO
ESTATUTOS
NULIDADE
INVALIDADE
ORGÃO SOCIAL
LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I- Nada obsta a que, no âmbito dos estatutos de uma associação de direito provado, com personalidade jurídica e sem fins lucrativos, fique desde logo a constar, no âmbito da respectiva orgânica, a existência de órgãos facultativos, indicando-se ainda e de imediato quais os respectivos titulares dos referidos órgãos sociais .
II- Trata-se, de resto, de prática habitual (e legal ) aquela que, aquando da constituição de pessoas colectivas, se faça desde logo constar dos respectivos estatutos, em regra num capítulo dedicado a disposições transitórias, quais os titulares designados.
III- Do mesmo modo, nada impede que, nos mesmos estatutos, se indique desde logo qual a duração do mandado dos titulares dos órgãos sociais, pois que, de matéria se trata cuja regulamentação é totalmente omissa na lei, estando ela, portanto, inteiramente sujeita à autonomia dos associados.
IV- Estando em causa uma disposição estatutária com conteúdo nulo, v.g. pelo facto de o respectivo objecto ser contrário à lei ou indeterminável ou, ainda, contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, nada obsta a que o tribunal conheça oficiosamente da referida nulidade, ainda que eventualmente não expressamente invocada pelo autor da acção de declaração de nulidade, nos termos do art. 286º do Cód. Civil.
V - Porque contende e viola directamente a norma imperativa do art. 172º-2 do Cód. Civil, é manifesto que padece de nulidade a disposição integrada nos Estatutos de uma Associação que atribua ao órgão Presidente da Associação a competência para “revogar, por mera retirada de confiança, o cargo de quaisquer dos membros do Conselho Consultivo”, pois que, em face da disposição imperativa supra referida do CC, tal competência está, necessariamente, reservada à assembleia geral.
VI- Desde que o art. 158º-A do Cód. Civil manda aplicar à constituição das pessoas colectivas o disposto no art. 280º do mesmo diploma, impondo mesmo ao MºPº o dever de promover a declaração judicial da nulidade da pessoa colectiva incursa na sanção prescrita no referido art. 280º, segue-se que os estatutos duma pessoa colectiva são, eles mesmos, nulos, se forem contrários à lei ou à ordem pública ou ofensivos dos bons costumes.
VII- Consequentemente, o valor negativo duma disposição estatutária desconforme com uma norma imperativa como v.g. a do art. 175º-4, do CC é, necessariamente, o da nulidade, ex vi do cit. art. 280º do Cód. Civil, a isso não obstando a ressalva contida na parte final do art. 294º e o facto de a sanção legalmente prevista para as deliberações da assembleia geral contrárias à lei (seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia) ser a mera anulabilidade (cfr. o art. 177º do Cód. Civil).
VIII- O princípio da liberdade de associação consagrado no art. 46º da Constituição da República não é incompatível com o facto de os Estatutos de uma Associação conferirem aos dois Associados Instituidores um direito especial de voto (25 % e 26 %, respectivamente), no caso de eles deterem, em conjunto, uma percentagem qualificada de 25 % dos títulos de participação.
IX- Do mesmo modo , também o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da C.R.P.,não é incompatível com uma solução de uma norma estatutária que confira aos dois Associados Instituidores um direito especial de voto (25 % e 26 %, respectivamente), no caso de eles deterem, em conjunto, uma percentagem qualificada de 25 % dos títulos de participação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível da Relação de Lisboa:

O MINISTÉRIO PÚBLICO, ao abrigo dos artºs 158º- A do Código Civil e 4º do DL. nº 594/74, de 7 de Novembro, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra a Ré B ( “ASSOCIAÇÃO ….”), com sede em Lisboa, com vista à declaração de nulidade das disposições constantes dos artºs 16º, 14º nºs 3 e 5 e 29º nº 2 dos Estatutos da associação Ré, alterados integralmente por escritura pública lavrada a 30-12-2008 no Cartório Notarial de Carlos …., integrando os respectivos estatutos documento complementar elaborado nos termos nº 2 do art. 64º do Código do Notariado.
O MP pediu a declaração de nulidade de tais normas por entender que as mesmas contendem com preceitos da lei geral de carácter imperativo, o que determina a sua invalidade, nos termos dos artºs 280º, 294º e 295º do Cód. Civil, sendo, porém, que tais nulidades não devem determinar a invalidade dos Estatutos da Ré na sua globalidade, uma vez que é de presumir que a vontade das partes seria a de, face a tal vício, manter as normas estatutárias restantes – art. 292º do mesmo diploma.
A Ré contestou, por excepção e por impugnação.
Defendendo-se por excepção, invocou o abuso de direito na invocação de nulidade dos artºs 16º e 14º, nºs 3 e 5 dos Estatutos.
Defendendo-se por impugnação, concluiu pela improcedência da acção.
O Autor replicou, respondendo à matéria da excepção de caducidade do direito de acção deduzida pela Ré.
Findos os articulados, foi de imediato proferida sentença (datada de 30/1/2011) que, julgando a acção parcialmente procedente, declarou a nulidade das disposições constantes dos artºs 16º, 17º, nº 1, al. c) e 29º, nº 2 dos Estatutos da R., por violação de imperativos legais.
Inconformados com o assim decidido, quer o MINISTÉRIO PÚBLICO, quer a Ré apelaram da referida sentença, o primeiro no segmento em que declarou improcedente o pedido do A. para declaração de nulidade das disposições do art. 14º nºs 3 e 5 dos Estatutos da associação Ré e a segunda na parte em que, julgando parcialmente procedente a acção proposta pelo Ministério Público, declarou nulas as disposições constantes dos artigos 16.º, 17.º, n.º 1, al. c) e 29.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrente, tendo rematado as concernentes alegações com as seguintes conclusões:
A) O MINISTÉRIO PÚBLICO:
«1ª – A “B” é uma associação de direito privado, com personalidade jurídica, sem fins lucrativos (art. 1º dos Estatutos);
2ª – A Assembleia Geral, que representa a universalidade dos associados, postula-se como o órgão máximo das Associações, atentos nomeadamente os seus poderes de fiscalização dos outros órgãos, competindo-lhe, designadamente, destituir os respectivos titulares, aprovar o balanço, as alterações aos estatutos, a autorização para demandar os administradores por factos cometidos no exercício do cargo, e a própria extinção da associação (cfr. art. 172º do CC);
3ª – A observância do método democrático contempla, como direitos fundamentais dos associados, nomeadamente:
- A aprovação dos estatutos em assembleia geral;
- A eleição periódica dos dirigentes e a admissibilidade de destituição;
- O voto directo, secreto e pessoal;
- O pluralismo de opiniões e correntes;
- A participação activa dos associados.
(cfr. Jorge Miranda/Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pag. 958);
4ª – O voto plural (ou múltiplo) é genericamente aceite, mas ele tem de ser visto em confronto com os princípios fundamentais que devem reger a vida das associações, de modo a não estrangular a liberdade de participação activa de todos os associados e a não fazer com que a vida associativa seja ou possa ser controlada por este ou aquele associado ou por um número restrito de associados;
5ª – Embora a CRP consagre o princípio da autonomia associativa e da auto-regulação das associações civis sem fins lucrativos, tal direito não é, todavia, absoluto; isto é, os estatutos devem respeitar o regime legal imperativo aplicável no que respeita à constituição, organização, funcionamento e extinção da associação, sob pena de nulidade;
6ª – Ora, no caso dos autos, os poderes (concentrados nos direitos de voto) que o associado instituidor C reservou para si, nos moldes consignados no art. 14º nºs 3 e 5 dos estatutos da associação, violam claramente princípios e normas legais imperativas, como sejam os artºs 18º nº1 e 46º da CRP, os artºs 172º e 175º nº 2 do CC, e constituem flagrante abuso de direito, afrontando também o art. 334º do CC;
7 - Por via desta disposição estatutária, os associados instituidores C …. e Fundação ….. (pessoa colectiva que, na prática, se reconduz também ao associado C), condicionam qualquer deliberação da assembleia geral, uma vez que detêm 51% dos votos, sempre e em qualquer circunstância, pois, nos termos do nº 5, os direitos de voto dos associados não instituidores (independentemente dos títulos de participação que detenham!), têm de considerar-se automaticamente reduzidos na medida necessária para que a referida percentagem de 51% fique garantida;
8ª – Da conjugação da referida disposição estatutária com as dos artºs 6º, 7º, 8º nºs 1, 5 e 6, 11º nº 1, 2 e 3, 14º nº 1 e 17º nº 1 a) dos mesmos estatutos, resulta que, na prática, a vida associativa é comandada por uma única pessoa: C;
9ª – Os “Associados” têm direito de voto em função dos títulos de participação que adquirirem (art. 11º nº 1 dos Estatutos), sendo que a atribuição de títulos de participação só pode ser decidida em assembleia geral mediante proposta do Presidente da Associação, ou seja, do Comendador C (art. 11º nº 2);
10ª - O que equivale a dizer que só terão direito de voto, para além dos dois associados instituidores, os associados que o associado instituidor e presidente da associação (C) entender;
11ª – A disparidade entre o número total de votos atribuídos aos dois associados instituidores (que se confundem na pessoa de C) e os atribuídos aos restantes “Associados” na prática permite que as deliberações da assembleia geral sejam sempre condicionadas e/ou reduzidas à vontade única do presidente fundador;
12ª – Colocar na mão de um único associado um tal poder, por via da atribuição do número de votos, é o inverso do que resulta do espírito associativo. É atribuir a uma única pessoa um poder que contende com a liberdade e a autonomia interna das associações, princípio este que pressupõe a necessidade do método democrático no seu funcionamento, comportando este a participação activa dos associados e o respeito pelo princípio da igualdade de direitos;
13ª – As disposições dos nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos, traduzem em si mesmas, manifesta e intencionalmente um abuso do direito ( no que ao direito de voto diz respeito), porquanto excedem clamorosamente os limites da boa fé e do fim social a que se destinam, o qual opera na democraticidade da vida interna da associação, com a possibilidade de participação activa de todos os associados, que dessa forma é irremediavelmente comprimida e se esgota praticamente na vontade soberana de um único associado, o Comendador C;
14ª - Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, “ a concepção adoptada do abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.
Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no art. 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido”;
15ª - O associado fundador C, em particular, bem como os demais associados instituidores não podiam desconhecer, ao inscreverem nos estatutos e aprovarem normas com o conteúdo do art. 14º nºs 3 e 5, que estavam a colocar nas mãos de um único associado um poder manifestamente exorbitante face aos limites da boa fé e à finalidade social do próprio direito, pois que desse modo lhe estavam a conferir o poder de, pelo meio do voto, controlar toda a vida associativa, pondo em causa o funcionamento democrático da associação e estrangulando, na prática, as competências próprias do seu órgão máximo – a assembleia geral;
16ª - Em suma, os preceitos dos nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos da associação Ré contendem com os preceitos dos artºs 18º nº 1 e 46º da CRP e com normas legais imperativas (art.ºs 172º, 175º nº 2 e 334º do CC), pelo que, nessa medida e nos termos dos artºs 280º, 294º e 295º do CC, devem ser declarados nulos por esse superior Tribunal, o qual deve revogar nesta parte e em conformidade com o exposto a decisão recorrida.
Assim se fará a costumada JUSTIÇA!»
B) A RÉ:
«1.1.Recorre-se da Sentença a fls. na parte em que declarou nulos os arts. 16.º, 17.º, n.º 1, al. c) e 29.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrente, por entender-se que não padecem de qualquer vício;
2.1. Os factos alegados sob os n.ºs 28.º e 29.º da Contestação do Recorrente, são relevantes para a boa decisão da causa;
2.2. Porque pessoais – a recepção de uma notificação e a omissão de alegação de qualquer vício -, tinha o Recorrido o ónus de os impugnar;
2.3. Não o tendo feito, tais factos deveriam constar da matéria assente;
2.4. Ao não fazê-lo, foi violado o art. 490.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, devendo aduzir-se à matéria de facto o alegado sob os n.ºs 28.º e 29.º da Contestação, conforme melhor alegado em 9.º a 16.º antecedentes que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
3.1. O art. 16.º dos Estatutos da Recorrente não padece de qualquer vício, conforme melhor alegado sob os n.ºs 18 a 99 antecedentes que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
3.2. A Recorrente, na sua organização, além dos órgãos legalmente exigidos, tem o “Presidente da Associação” e o “conselho consultivo” (cf. art. 13.º dos estatutos);
3.3. A designação do Presidente da Associação não tem de resultar de uma deliberação em assembleia geral;
3.4. O disposto no art. 170.º, n.º 1, primeira parte, do CC segundo o qual “é a assembleia geral que elege os titulares dos órgãos de administração” carece de ser interpretado;
3.5. O mencionado preceito é composto de uma segunda parte, que acrescenta que a regra geral de ser a assembleia geral a eleger os titulares dos seus órgãos só tem lugar “sempre que os estatutos não estabeleçam outro processo de escolha”;
3.6. A expressão “sempre que os estatutos não estabeleçam outro processo de escolha” tem ser interpretada no sentido de ser permitido aos associados fixar outros processos de escolha de titulares dos órgãos de administração além da eleição;
3.7. A pedra de toque da previsão é que são os associados, e não a forma como se reúnem, mormente em assembleia geral, que decidem do processo de escolha dos titulares dos órgãos da associação, única interpretação correcta, se tomarmos em consideração o elemento gramatical da interpretação e a regra do n.º 3 do art. 9.º do CC;
3.8. A existir um princípio da democraticidade ao nível das associações, o mesmo é respeitado noutros processos de designação que não por eleição;
3.9. 99,9% das pessoas colectivas existentes em Portugal, entre as quais a Recorrente, são constituídas através de contrato, fruto da manifestação de vontade unânime dos seus associados;
3.10. Assim se explica a prática habitual (e legal!) de, aquando da constituição de pessoas colectivas, fazerem constar-se dos estatutos, em regra num capítulo dedicado a disposições transitórias, os titulares designados;
3.11. Esta prática evita um compasso de espera entre o momento da sua constituição e o momento do funcionamento, permitindo à pessoa colectiva começar logo a operar (prática frequente, por exemplo, nas sociedades por quotas, onde a competência para designar os titulares dos órgãos de administração compete, nos termos legais, à assembleia geral);
3.12.Do princípio da democraticidade resulta a possibilidade de serem tomadas deliberações em sentido contrário ao de certos votantes;
3.13.Num cenário em que os titulares dos órgãos sociais são designados no acto de constituição, nem sequer há dissidentes: estão presentes ou representados todos os associados, que coincidem com o órgão deliberativo, rectius, a assembleia geral;
3.14.Não há, nestas circunstâncias, atendendo à ratio do preceito, motivo para uma deliberação em assembleia geral, pois tudo se passa como se estivéssemos na presença de uma deliberação unânime, em nada se perturbando o alegado princípio da democraticidade;
3.15. Admitindo a designação no próprio acto de constituição da associação, veja-se CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil I, 3.ª edição, Lisboa, 2001, 629;
3.16. Ao sustentar que do n.º 1 do art. 170.º do CC resulta a regra de que os membros dos órgãos sociais só podem ser designados em assembleia geral, foi violada tal norma, assim como o art. 9.º do CC;
3.17. Em sentido contrário, não procede a circunstância de o cargo de Presidente da Associação ser vitalício;
3.18. Do direito geral de participação na associação não se retira a proibição de certos associados reservarem para si a titularidade de certos órgãos;
3.19. Em primeiro lugar, porque estamos na presença de um órgão facultativo, alheio à gestão da associação, pelo que o seu funcionamento cabe, exclusivamente, à vontade das partes;
3.20. Ao sustentar a inadmissibilidade de titulares vitalícios de órgãos facultativos das associações, o Senhor Juiz a quo atentou contra o art. 405.º do CC (neste sentido, Acórdão do STJ de 15 de Abril de 2004 - QUIRINO SOARES, www.dgsi.pt);
3.21. Em segundo lugar, tal designação não foi subtraída ao escrutínio dos associados, pois, conforme documentalmente provado, no acto de constituição da Recorrente estiveram presentes, ou representados, todos os associados desta, e a modificação dos estatutos da Recorrente foi antecedida de deliberação unânime;
3.22. A existência de órgãos vitalícios não contende com o direito geral de participação que o associado goza, desde logo porque não consta entre os direitos do associado o direito de exercer funções em órgãos facultativos da associação;
3.23. O CC limita-se, no seu art. 167.º, n.º 2, a dizer que os direitos e deveres dos associados podem ser especificados nos estatutos, não podendo afirmar-se a existência de um direito de ser eleito para órgãos facultativos, cabendo tal matéria exclusivamente à autonomia privada;
3.24. Em concreto, no que diz respeito à duração dos mandatos dos titulares de órgãos, o legislador não estabelece, ao contrário do que sucede com outras pessoas colectivas – v.g. SA’s – qualquer regra específica. É, pois, matéria relegada para a autonomia privada (art. 9.º do CC);
3.25. Mesmo um mandato vitalício tem duração, ainda que indeterminada;
3.26. Ao sustentar a existência de um direito do associado desprovido de fundamentação, o Senhor Juiz a quo violou os arts. 170.º e 405.º do CC;
3.27. Ainda que por hipótese se admita, sem conceder, que há um direito do associado à designação para todos e quaisquer órgãos da associação, o mesmo é disponível/renunciável;
3.28. Tendo todos os associados, por UNANIMIDADE, estipulado que o titular de certo órgão é vitalício e que, na sua morte, será titular quem o titular falecido tiver indicado, apenas se pode ver nesta postura a renúncia a tal direito;
3.29. A previsão estatutária de um órgão vitalício não contende com o disposto no art. 170.º, n.º 2 do CC, que tem de ser articulada com o seu n.º 3, que determina que o direito de revogação pode ser condicionado pelos estatutos à justa causa;
3.30. As funções do titular de um órgão com mandato vitalício podem ser revogadas, sendo legítimo deduzir-se, com toda a probabilidade, que quem declara que certo cargo é vitalício, apenas admite a revogação de tais funções com fundamento em justa causa, estipulação válida à luz do art. 170.º, n.º 3 do CC;
3.31. A prática revela a existência de associações com titulares vitalícios de órgãos (v.g. Estatutos da associação “Sociedade histórica da independência de ….”, “Associação dos Antigos Alunos da Universidade …. e da Universidade L....” ou da “Associação E.G. , IPSS”);
3.32. Quanto ao facto de ser o Presidente da Associação em funções a designar o próximo titular deste órgão e de, na falta desta designação, ser titular deste órgão o sucessor legítimo mais próximo, conforme n.ºs 2 e 3 do art. 16.º dos Estatutos da Recorrente, também estas regras são válidas, dando-se por reproduzido, para todos os efeitos legais, o melhor alegado em 3.3. e seguintes destas Conclusões;
3.33. A doutrina admite a possibilidade de a competência para a designação dos titulares dos órgãos sociais não ser da assembleia geral (cf. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil I, 3.ª edição, Lisboa, 2001, p. 629);
3.34. Ao declarar nulo o art. 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente, a Sentença recorrida violou o princípio da autonomia privada – art. 405.º do CC - e o princípio da livre associação - art. 46.º da CRP;
3.35. Alega-se a inconstitucionalidade do art. 170.º do CC, por violação do art. 46.º da CRP, quando interpretado no sentido de que não é permitida a criação de uma associação em que os titulares dos órgãos facultativos têm mandato vitalício e a atribuição ao titular em funções do direito de designar o futuro titular, cabendo, na falta desta, tais funções ao sucessor legítimo mais próximo;
4.1. Ainda que se admita, sem conceder, que o art. 16.º dos Estatutos da Recorrente é nulo, sempre o Senhor Juiz a quo não podia ter conhecido de tal pedido por abuso do direito, conforme melhor alegado nos n.ºs 100.º a 136.º antecedentes que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
4.2. Mesmo um pedido de declaração de nulidade pode, em certas circunstâncias, ser abusivo;
4.3. É por tal vício não ser sanável que a figura do abuso de direito pode (e deve) ser equacionada; caso contrário, se o vício fosse sanável e, porventura, aquando da sua invocação, estivesse convalidado, não poderia haver abuso de direito, mas a excepção de caducidade;
4.4. O abuso de direito pressupõe, antes de mais, a titularidade de um direito, isto é, um direito que pode, formalmente, ser exercido mas cujo exercício, em certas circunstâncias, é abusivo;
4.5. Assim sucede, por exemplo, com as inalegabilidades formais, admitidas na nossa doutrina e jurisprudência;
4.6. O Senhor Juiz a quo violou o art. 286.º do CC uma vez que a invocação de uma nulidade pode ser, desde que preencha o art. 334.º do CC, abusiva;
4.7. A concreta invocação da nulidade do art. 16.º dos Estatutos da Recorrente arguida pelo Recorrido foi abusiva:
4.8. Conforme provado, o art. 16.º dos Estatutos da Recorrente não foi objecto de qualquer alteração na escritura de 30-Dez.-2008, à excepção da mudança do número (inicialmente 14.º);
4.9. Ou seja, a sua redacção permanece inalterada desde 1996, ano da sua constituição, apenas tendo sido pedida a sua nulidade 13 anos depois;
4.10. O decurso de tempo tão extenso criou na Recorrente, como criaria em qualquer outra pessoa colectiva colocada em circunstâncias idênticas, a confiança que os seus estatutos eram legais;
4.11. Porque as regras relativas aos vícios de certos actos jurídicos são generalizadas, isto é, visam uniformizar os casos, dando primazia à segurança, sem atender às circunstâncias do caso concreto, há, por vezes, que corrigir o recurso a tais institutos, designadamente através da boa fé;
4.12. Tomando em consideração que i) o art. 16.º dos Estatutos da Recorrente foi introduzido em 1996, ii) que o Ministério Público foi informado da constituição da Recorrente e dos respectivos Estatutos, iii) e que após tal conhecimento nada fez durante 13 anos, tais circunstâncias criaram na Recorrente a expectativa que não mais fosse de esperar tal exercício;
4.13. Esta confiança é imputada ao Recorrido, entidade com o dever de promover a declaração judicial de nulidade (158.º-A do CC) que não o exerceu durante 13 anos;
4.14. Assim, apenas pode concluir-se pelo abuso do direito do Recorrido, por suppressio, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 334.º do CC;
4.15. Sendo ilegítimo o pedido do Recorrido, a consequência é a paralisação de tal exercício, o que se requer (cf. Rtp 11-Mar.-2003 (LEMOS JORGE), CJ XXVIII (2003) 2, 173-179 e RLx 1-Abr.-2003 (PEREIRA DA SILVA), CJ XXVIII (2003) 2, 103-195);
4.16. Ao não conhecer do abuso do direito do Recorrido, o Senhor Juiz a quo não interpretou correctamente o art. 334.º do CC;
5.1. É nula a Sentença recorrida na parte em que conheceu da nulidade do art. 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente, conforme melhor alegado em 137.º a 143.º antecedentes que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
5.2. Na petição inicial a fls., o Ministério Público, ora Recorrido, pediu a declaração de nulidade dos arts. 16.º, 14.º, n.ºs 3 e 5 e 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente;
5.3. Apesar de apenas poder conhecer de vícios relativos a tais artigos, o Senhor Juiz a quo declarou nulo o art. 17., n.º 2, al. c) dos Estatutos da Recorrente;
5.4. Ao fazê-lo, houve excesso de pronúncia, sendo, por isso, a Sentença recorrida nula - art. 668.º, n.º 1, al. d) in fine do CPC -, o que se requer;
6.1. Sem conceder, ainda que assim não se entenda, sempre se aduz a validade do art. 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente, conforme melhor alegado sob os artigos 144.º a 178.º antecedentes que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
6.2. Da conjugação dos arts. 17.º, n.º 1, al. c) e 20.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrente o Senhor Juiz a quo conclui, de forma errada, que o Presidente da Associação tem, de forma indirecta, o poder para destituir os membros do Conselho de Administração;
6.3. Tomando em consideração esta premissa e a regra do art. 172.º, n.º 2 do CC, norma alegadamente imperativa quanto aos órgão facultativos, foi declarada a nulidade do art. 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente por alegada violação de tal disposição do CC;
6.4. Contudo, sem razão;
6.5. O art. 172.º, n.º 2, do CC que estabelece que “são, necessariamente, da competência da assembleia geral a destituição dos titulares dos órgãos da associação” carece de ser interpretado;
6.6. Os únicos órgãos obrigatórios das associações são a assembleia geral, a administração e o conselho fiscal, porque sem eles uma associação não pode funcionar;
6.7. Por isso também, todos os demais órgãos são facultativos;
6.8. Assim, apenas pode concluir-se que a destituição a que se refere o art. 172.º, n.º 2 do CC é a destituição dos titulares dos órgãos obrigatórios, não estando no seu escopo a destituição de membros dos órgãos facultativos;
6.9. O Presidente da Associação não tem poderes para destituir os membros do Conselho de Administração, entendimento que resulta de uma interpretação errada do art. 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente, em violação do art. 236.º, n.º 1 do CC;
6.10. Aquilo que se prevê nos Estatutos da Recorrente é que os membros do Conselho de Administração são, por inerência, membros do Conselho Consultivo e não o contrário (cf. art. 20.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente);
6.11. Neste contexto, a única interpretação permitida dos Estatutos da Recorrente, porquanto conforme à lei - art. 172.º, n.º 2 do CC -, é a de que a destituição de um membro do Conselho Consultivo (única competência do Presidente da Associação), membro deste órgão por acumulação com as funções de administrador, apenas implica a cessação das funções de membro do Conselho Consultivo, subsistindo as funções de administrador;
6.12. Já a revogação das funções de administração, pela assembleia geral (único órgão com competência para tal), de um administrador que, por tal qualidade, seja membro do Conselho Consultivo, resultará na cessação de todas as funções;
6.13. Assim, o problema em apreço, não é a nulidade do art. 17.º, n.º 1, c) dos Estatutos da Recorrente, mas sim a sua interpretação;
6.14. A interpretação do Senhor Juiz a quo, subjacente à nulidade declarada, representa uma violação dos arts. 238.º do CC, 236.º, n.º 1, do CC e do 172.º, n.º 2, do CC;
7.1. O artigo 29.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrente é válido, conforme melhor alegado sob os n.ºs 179.º a 195.º antecedentes que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
7.2. De acordo com o disposto no art. 175.º, n.º 4 do CC, norma imperativa, as deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados;
7.3. Nos termos do disposto no art. 294.º do CC, os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos “salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”;
7.4. No caso em apreço outra solução resulta da lei que não a nulidade declarada;
7.5. A inobservância do art. 175.º, n.º 4 do CC efectiva-se através da tomada de uma deliberação social aprovada com um número de votos inferior ao legal exigido, determinando o art. 177.º do CC que as deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis;
7.6. É, pois, esta, e apenas esta, a consequência de uma eventual inobservância do disposto no art. 175.º, n.º 4 do CC (cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, no CC Anotado Volume I (arts. 1.º a 761.º), 4.ª edição, Coimbra Editora, 1987, p. 162 e CARVALHO FERNANDES, op. cit., pp. 635-636);
7.7. A Recorrente nunca deliberou a sua dissolução;
7.8. Termos em que, ao declarar a nulidade do art. 29.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrente, foram violados os arts. 175.º, n.º 4 e 294.º do CC.
Nestes termos, e nos demais de Direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:
i) Aditar-se à matéria assente os factos alegados sob os n.ºs 28 e 29 da Contestação;
ii) Revogar-se a declaração de nulidade do art. 16.º dos Estatutos da Recorrente ou, subsidiariamente, assim não se entendendo, não conhecer-se desta questão por abuso do direito;
iii)  Declarar-se nula, por excesso de pronúncia, a Sentença, na parte em que declarou nulo os art. 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente, ou, subsidiariamente, assim não se entendendo, revogar-se a declaração de nulidade do art. 17.º, n.º 1,  al. c) dos Estatutos da Recorrente;
iv) Revogar-se a declaração de nulidade do art. 29.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrente.
Só assim se fazendo JUSTIÇA!»
O Autor contra-alegou, pugnando pelo não provimento da Apelação da Ré.
A Ré contra-alegou, pugnando pela improcedência da Apelação do Autor.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
O  OBJECTO  DO  RECURSO
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º, 1ª parte, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 713º, nº 2, do mesmo diploma) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 660º, nº 2, do C.P.C., ex vi do cit. art. 713º, nº 2).
No caso sub judice, emerge das conclusões das alegações de recurso apresentadas pelo Autor MºPº e pela Ré ora Apelantes que o objecto das respectivas Apelações está circunscrito às seguintes questões:
A) NA APELAÇÃO DO MINISTERIO PÚBLICO:
1) Se os preceitos dos nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos da associação Ré contendem com os preceitos dos artºs 18º nº 1 e 46º da CRP e com normas legais imperativas (art.ºs 172º, 175º nº 2 e 334º do CC), pelo que, nessa medida e nos termos dos artºs 280º, 294º e 295º do CC, devem ser declarados nulos;
B) NA APELAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO RÉ:
1) Se o art. 16.º dos Estatutos da Recorrente não padece de qualquer vício, porquanto a designação do Presidente da Associação (órgão facultativo) não tem de resultar de uma deliberação em assembleia geral, irrelevando a circunstância de o cargo de Presidente da Associação ser vitalício;
2) Se, ainda que o art. 16.º dos Estatutos da Recorrente fosse nulo, sempre o tribunal “a quo” não podia ter conhecido do pedido de declaração da sua nulidade, por abuso do direito (porquanto a redacção do artigo 16.º dos Estatutos da Recorrente permanece inalterada desde 1996, ano da sua constituição, só  tendo o MINISTÉRIO PÚBLICO requerido a declaração de nulidade de tal disposição 13 anos depois da sua outorga, apesar de ter tomado conhecimento dos Estatutos da Recorrente em 1996);
3) Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC (excesso de pronúncia), porquanto o Ministério Público, ora Recorrido, nos termos da legitimidade conferida pelo art. 158.º-A do Código Civil, apenas pediu a declaração da nulidade das disposições constantes dos artigos 16.º, 14.º, n.ºs 3 e 5 e 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente, tendo o tribunal “a quo”, além de se pronunciar sobre tais disposições estatutárias, declarando nulos os artigos 16.º e 29.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrida, declarado ainda nulo o artigo 17º., n.º 2, al. c) dos Estatutos da Recorrente;
4) Se o art. 17º, nº 1, al. c), dos Estatutos da Recorrente, que atribui ao Presidente da Associação competência para “revogar, por mera retirada de confiança, o cargo de quaisquer dos membros do Conselho Consultivo”, se interpretado no sentido de que a destituição de um membro do Conselho Consultivo, que seja membro deste órgão por acumulação com as funções de administrador, apenas implica a cessação das funções de membro do Conselho Consultivo, continuando a ser administrador, não contende minimamente com a disposição imperativa do art. 172º, nº 2, do Código Civil, cuja aplicação apenas concerne aos órgãos obrigatórios (que não também aos órgãos facultativos, como é o caso do Conselho Consultivo);
5) Se, ainda que o disposto no artigo 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente possa ser inválido, por afrontar a disposição imperativa contida no art. 175º, nº 4, do Código Civil, nunca essa invalidade geraria uma nulidade, ex vi do artigo 294.º in fine, do Código Civil, porquanto a inobservância do cit. art. 175º-4 efectiva-se, não através da previsão de uma regra estatutária de sentido diverso, mas sim através da tomada de uma deliberação social aprovada com um número de votos inferior ao legalmente exigido, a qual nunca foi tomada e, mesmo que o fosse, seria apenas anulável, nos termos do art. 177º do Cód. Civil, carecendo o MºPº de legitimidade para arguir tal anulabilidade.

MATÉRIA DE FACTO
Factos  Considerados  Provados na 1ª Instância:
Devidamente ordenados, segundo uma sequência lógica e cronológica, os factos que a sentença recorrida elenca como provados são os seguintes:
1- Por escritura pública outorgada em 07.11.1996, André M….., em representação, como procurador, da Fundação …., C e D declararam constituir uma associação civil com personalidade jurídica sem fins lucrativos, que adoptou a denominação de “Associação B”, que se regularia pelos termos e condições constantes do documento complementar junto a fls. 34 a 49, conforme doc. de fls. 31 a 49, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
2- Por escritura pública outorgada em 30.12.2008, André ….., na qualidade de vogal do conselho de administração e em representação da R., declarou que, por unanimidade dos associados com direito a voto, foi deliberado alterar integralmente os estatutos da R., os quais passaram a ter a redacção constante do documento complementar junto a fls. 13 a 29, conforme doc. de fls. 11 a 29, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3- Estabelece o artº 14º nº 3 e 5 dos Estatutos da R.:
TRÊS: Sempre e quando os Associados Instituidores detiverem em conjunto pelo menos vinte e cinco por cento dos títulos de participação e correspondente exercício de direitos de voto, estarão asseguradas aos Associados Instituidores as seguintes percentagens de voto:
a) C: 25% (vinte e cinco por cento);
b) Fundação  …..: 26% (vinte e seis por cento). (…)
CINCO: Para efeitos do disposto no número TRÊS, o direito de voto dos associados não instituidores considerar-se-á automática e proporcionalmente reduzido, na medida em que se torne necessário para estabelecer as percentagens fixadas.”
4- De acordo com o artº 16º dos Estatutos da R.:
UM- O Presidente Vitalício da Associação é o Comendador C.
DOIS- Após a morte do Comendador C.. será Presidente quem aquele indicar por testamento válido ou no instrumento de renúncia ao cargo.
TRÊS- No caso de falta de menção no testamento referido em dois, será Presidente da Associação o seu sucessor legítimo mais próximo, preferindo, em caso de igualdade de grau, o mais velho.
QUATRO- No caso de não existir designação voluntária nem descendente directo do Comendador ….. o Presidente da Associação passará a ser designado pela Assembleia Geral.”
5- Segundo o artº 17º, nº 1, al. c) dos Estatutos da R. “É da competência do Presidente da Associação: revogar, por mera retirada de confiança, o cargo de quaisquer dos membros do Conselho Consultivo”.
6- Consta do artº 29º, nº 2 dos Estatutos da R. que “A Associação extingue-se, ainda, no caso de assim ser deliberado por três quartos dos votos expressos em Assembleia Geral.”
O  MÉRITO  DAS  APELAÇÕES
A) A APELAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO ORA RÉ:
1) Se o art. 16.º dos Estatutos da Recorrente não padece de qualquer vício, porquanto a designação do Presidente da Associação (órgão facultativo) não tem de resultar de uma deliberação em assembleia geral, irrelevando a circunstância de o cargo de Presidente da Associação ser vitalício.
Relativamente ao art. 16º dos Estatutos da Associação ora Ré/Apelante,a sentença recorrida concluiu pela sua invalidade com base no seguinte argumentário:
«Dispõe o artº 162º do C.Civil que: “Os estatutos da pessoa colectiva designarão os respectivos órgãos, entre os quais haverá um órgão colegial de administração e um conselho fiscal, ambos eles constituídos por um número ímpar de titulares, dos quais um será o presidente.”
Verifica-se, assim, que a lei permite uma ampla liberdade de conformação dos estatutos quanto à orgânica das pessoas colectivas de direito privado, apenas impondo que, entre elas, se conte um órgão de administração, que nas suas formas mais comuns é designado conselho de administração, e um órgão de fiscalização.
Contudo, parece-nos claro que os estatutos não podem criar órgãos cujas competências se sobreponham às dos órgãos obrigatórios e, no caso das associações, da assembleia geral.
Na verdade, a lei prevê, para além das funções inerentes à natureza do órgão de administração e do conselho fiscal, que algumas competências fiquem reservadas a estes e à assembleia geral (cfr., no caso das associações, os artºs 170º, 172º e 173º, nº 1 do C.Civil). Os órgãos estatutários não podem, deste modo, ser configurados com competências que derroguem as que a lei expressamente atribui a outros órgãos.
No caso dos autos, prevêem os Estatutos da R., no seu artº 13º, como órgãos sociais, a Assembleia Geral, o Presidente da Associação, o Conselho de Administração, o Conselho Consultivo e o Conselho Fiscal.
Por sua vez, o artº 16º prescreve:
UM- O Presidente Vitalício da Associação é o Comendador C.
DOIS- Após a morte do Comendador C. será Presidente quem aquele indicar por testamento válido ou no instrumento de renúncia ao cargo.
TRÊS- No caso de falta de menção no testamento referido em dois, será Presidente da Associação o seu sucessor legítimo mais próximo, preferindo, em caso de igualdade de grau, o mais velho.
QUATRO- No caso de não existir designação voluntária nem descendente directo do Comendador C o Presidente da Associação passará a ser designado pela Assembleia Geral.
Daqui resulta que o órgão “Presidente da Associação” é um órgão vitalício exercido por C , transmissível, em caso de renúncia ou morte deste, a quem ele designar ou aos seus herdeiros e, só no caso de não existir designação voluntária nem descendente directo, será designado pela Assembleia Geral.
Ora dispõe o artº 170º do C.Civil que:
1- É a assembleia geral que elege os titulares dos órgãos da associação, sempre que os estatutos não estabeleçam outro processo de escolha.
2- As funções dos titulares eleitos ou designados são revogáveis, mas a revogação não prejudica os direitos fundados no acto de constituição.
3- O direito de revogação pode ser condicionado pelos estatutos à existência de justa causa.
A formulação do nº 1 não pode ser entendida no sentido de a escolha dos titulares dos órgãos poder ser subtraída à assembleia geral pelos estatutos. De facto não se compreenderia que a ordem jurídica nacional tivesse uma disposição que, ao arrepio do princípio da democraticidade, abrisse caminho à constituição de “oligarquias” subtraídas ao escrutínio dos associados.
O que deve entender-se é que a lei admite outras formas de designação, para além da eleição; é o que se depreende do nº 2, quando refere os “titulares eleitos ou designados”, mas a escolha será sempre do colectivo dos associados, reunidos em assembleia geral.
A eleição ou designação dos associados para exercerem funções nos órgãos da associação é um dos direitos que enforma o direito geral de participação de que o associado goza.
Não são, deste modo, legítimos quaisquer obstáculos de natureza estatutária à eleição de determinados associados, assim como é proibido que certos associados ou grupos de associados reservem para si a titularidade dos órgãos.
Conforme Ac. do STJ de 15.04.2004, processo nº 04B571, www.dgsi.pt, “O conjunto de normas com que o C.Civil regula o fenómeno das associações integra uma outra, que lhe é estrutural e imanente, segundo a qual a condição de associado envolve o inderrogável e irrenunciável direito de ser eleito ou designado para os órgãos de gestão e, igualmente, o de livremente eleger, sem outros constrangimentos que não sejam os estatutariamente prescritos, de forma geral e abstracta. É, afinal de contas, um reflexo da ideia democrática, mas que vem da essência da própria ideia associativa.”
E, assim, tratando-se de norma de interesse e ordem pública, a disposição estatutária em análise, porque a derroga, é nula.»
O raciocínio em que se estribou o tribunal “a quo”, para concluir pela invalidade do cit. art. 16º dos Estatutos da associação ora Ré pode, portanto, ser sintetizado nos seguintes termos:
- Do artigo 170.º do Código Civil, norma imperativa, resulta que a escolha dos titulares dos órgãos não pode ser subtraída à assembleia geral: caso contrário haveria uma disposição ao arrepio da democraticidade;
- A lei admite outras formas de designação, além da eleição, desde que feita pelos associados, em assembleia geral;
- O direito de participação do associado pressupõe o direito de ser designado para exercer funções nos órgãos da associação, sendo proibida a reserva da titularidade dos órgãos para certos associados.
Quid juris ?
Dispõe o art. 162º do Cód. Civil (normativo aplicável a todas as pessoas colectivas, incluindo as associações) que:
«Os estatutos da pessoa colectiva designarão os respectivos órgãos, entre os quais haverá um órgão colegial de administração e um conselho fiscal, ambos eles constituídos por um número ímpar de titulares, dos quais um será o presidente
Deste preceito retiram-se três regras fundamentais:
i) A designação dos órgãos da pessoa colectiva compete às partes, em concreto àqueles que decidiram constituir a pessoa colectiva;
ii) Entre os órgãos da pessoa colectiva terá de existir, pelo menos, um órgão de gestão e outro de fiscalização;
iii) Além do órgão de gestão e de fiscalização, os estatutos podem designar outros órgãos e, consequentemente, as respectivas regras de funcionamento.
«Em matéria de associações, é obrigatória a existência de três órgãos: um órgão colegial de administração, um conselho fiscal e uma assembleia geral (ars. 162º e 170º e seguintes)» (LUÍS CARVALHO FERNANDES in “Teoria Geral do Direito Civil”. Vol. I – “Introdução. Pressupostos da Relação Jurídica”, 5ª ed., 2009, p. 625)[5].
Todavia, «fora estas limitações, podem os associados prever outros órgãos, muitas vezes ditos facultativos, e atribuir-lhes poderes que não interfiram com a competência necessária dos órgãos obrigatórios» (LUÍS CARVALHO FERNANDES, ibidem). «Isso não contende com a regra da tipicidade, sendo mesmo pressuposto pelo artigo 162º» (ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO in “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo III – Pessoas, 2ª ed., 2007, p. 747).
«A criação de órgãos facultativos pode ser feita no próprio título constitutivo da associação ou estar apenas nele prevista e depender de deliberação tomada, posteriormente, por outro órgão da associação – administração ou assembleia geral -, conforme o acto constitutivo ou norma estatutária» (LUÍS CARVALHO FERNANDES, ibidem).
Nada obstava, portanto, a que os Estatutos da associação ora Ré/Apelante previssem, na sua orgânica, além dos órgãos legalmente exigidos (um órgão colegial de administração, um conselho fiscal e uma assembleia geral), dois outros órgãos facultativos, a saber: o “Presidente da Associação” e o “conselho consultivo” (cfr. o artigo 13.º dos Estatutos da Ré/Apelante).
Tudo está em saber se – como entendeu a sentença recorrida – o órgão facultativo “Presidente da Associação” tinha, necessariamente, de ser escolhido pelo colectivo dos associados, reunidos em assembleia geral, ex vi do art. 170.º do Código Civil, não podendo, consequentemente, admitir-se um presidente vitalício, cujo sucessor seria, em 1º lugar, o por ele indicado em testamento válido ou no instrumento de renúncia ao cargo ou, no caso de falta de menção no testamento, o seu sucessor legítimo mais próximo (preferindo, em caso de igualdade de grau, o mais velho), só se devolvendo à assembleia geral a escolha do sucessor do presidente no caso de não existir designação voluntária nem descendente directo do presidente vitalício designado nos estatutos – conforme prevê o cit. art. 16º dos Estatutos da Ré/Apelante.
«Embora seja normal uma solução que reserve o preenchimento dos cargos sociais aos associados» (LUÍS CARVALHO FERNANDES in ob. e vol. citt., p. 623), sendo que «o Código Civil, acolhendo esta realidade das coisas, atribui mesmo a competência para eleger os titulares dos órgãos sociais à assembleia geral (nº 1 do art. 170º)» (LUÍS CARVALHO FERNANDES in ob. e vol. citt., p. 626), «a lei não exige expressamente, como se vê dos arts. 162º e 170º do C.Civ.» (LUÍS CARVALHO FERNANDES in ob. e vol. citt., p. 623, in fine).
De facto, o próprio art. 170º admite que o estatuto estabeleça outro processo de escolha. Trata-se, portanto, duma norma supletiva, cuja solução pode ser afastada pelos estatutos. «Isso envolve, não só a possibilidade de se estatuir outro modelo de designação – o nº 2 fala em titulares designados -, mas também a de ela ser da competência de outro órgão, que não a assembleia geral» (LUÍS CARVALHO FERNANDES in ob. e vol. citt., p. 626).
«Não é também de excluir a hipótese de a designação dos titulares dos órgãos ser feita no próprio acto de constituição da associação»  (LUÍS CARVALHO FERNANDES, ibidem).
Como bem salienta Ré/Apelante (nas suas alegações de recurso), constitui, aliás, prática habitual (e legal!), aquando da constituição de pessoas colectivas, fazerem constar-se dos estatutos, em regra num capítulo dedicado a disposições transitórias, os titulares designados.
«Esta prática destina-se a evitar um compasso de espera entre o momento da constituição da pessoa colectiva, em regra coincidente com a aquisição da sua personalidade jurídica, e o momento em que começa, de facto, a funcionar».
«Esta prática é frequente, por exemplo, nas sociedades por quotas, sendo certo que nestas, a competência para designar os titulares dos órgãos de administração compete, nos termos legais, à assembleia geral».
«A razão da validade de tais designações, sem necessidade de considerações adicionais, parece óbvia: a presença, ou devida representação, no acto de constituição da pessoa colectiva, de todos os associados, que coincidem com o órgão deliberativo, rectius, a assembleia geral».
Nada obsta, portanto, a que os titulares dos órgãos sociais (nomeadamente, do órgão facultativo “Presidente da Associação”) sejam designados na própria escritura pública em que é constituída a associação – como, in casu, sucedeu, nos termos do cit. art. 16º dos Estatutos da Ré/Apelante.
Quid juris quanto à duração do mandato dos titulares dos órgãos sociais ?
«A duração do mandato dos titulares dos órgãos é matéria totalmente omissa na lei, deixada, portanto, inteiramente à autonomia dos associados» (LUÍS CARVALHO FERNANDES in ob. e vol. citad., p. 626).
Ademais, sendo o órgão “Presidente da Associação” um órgão facultativo, que não obrigatório, completamente alheio à gestão da associação, menos se compreenderia que os estatutos não pudessem prever que o mandato da pessoa logo designada para tal cargo pudesse ser vitalício.
A esta luz, tem de se concluir que a sentença recorrida errou, quer ao entender que o órgão facultativo “Presidente da Associação” tinha, necessariamente, de ser escolhido pelo colectivo dos associados, reunidos em assembleia geral, ex vi do art. 170.º do Código Civil, quer naqueloutro segmento em que entendeu que o mandato do “Presidente da Associação” estatutariamente designado não podia ser vitalício.
Consequentemente, a apelação da Ré procede, necessariamente, quanto a esta 1ª questão, não enfermando o cit. art. 16º dos estatutos da associação ora Ré/Apelante de nenhuma invalidade.
A procedência do recurso da Ré, quanto a esta 1ª questão prejudica, tornando-a discipienda (nos termos do art. 660º, nº 1, do CPC) a apreciação da 2ª questão suscitada pela Apelante nas conclusões da sua alegação de recurso – ade saber se, ainda que o art. 16.º dos Estatutos da Recorrente fosse nulo, sempre o tribunal “a quo” não podia ter conhecido do pedido de declaração da sua nulidade, por abuso do direito (visto a redacção do artigo 16.º dos Estatutos da Recorrente permanecer inalterada desde 1996, ano da sua constituição, só  tendo o MINISTÉRIO PÚBLICO requerido a declaração de nulidade de tal disposição 13 anos depois da sua outorga, apesar de ter tomado conhecimento dos Estatutos da Recorrente em 1996).
2) Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC (excesso de pronúncia), porquanto o Ministério Público, ora Recorrido, nos termos da legitimidade conferida pelo art. 158.º-A do Código Civil, apenas pediu a declaração da nulidade das disposições constantes dos artigos 16.º, 14.º, n.ºs 3 e 5 e 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente, tendo o tribunal “a quo”, além de se pronunciar sobre tais disposições estatutárias, declarando nulos os artigos 16.º e 29.º, n.º 2 dos Estatutos da Recorrida, declarado ainda nulo o artigo 17º., n.º 2, al. c) dos Estatutos da Recorrente.
Sustenta a Ré/Apelante que o facto de a sentença recorrida ter declarado, oficiosamente, a nulidade do artigo 17º, nº 2, al. c), dos Estatutos da Recorrente, apesar de o Ministério Público (aqui Autor/Apelado) apenas ter pedido a  declaração da nulidade das disposições constantes dos artigos 16.º, 14.º, n.ºs 3 e 5 e 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente, seria causa da nulidade de sentença prevista na al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC (excesso de pronúncia).
Quid juris ?
O cit. art. 668.°, n.° 1, al. d), do C.P.C. comina a nulidade da sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
«Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes (art. 660º-2),  é nula a sentença que o faça»[6].
Segundo o art. 158º-A do Código Civil, é aplicável à constituição das pessoas colectivas o disposto no artigo 280º, devendo o Ministério Público promover a declaração judicial da nulidade.
«Significa este preceito que é nula a constituição de uma associação cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável ou, ainda, contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes» (ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO in ob. e vol. citt., p. 713). «O Ministério Público tem o dever de promover a declaração judicial de nulidade; todavia, qualquer outro interessado o poderá fazer, nos termos gerais» (ibidem).
E o próprio tribunal pode e deve conhecer oficiosamente da eventual nulidade de qualquer disposição estatutária, mesmo que não expressamente invocada pelo autor da acção de declaração de nulidade, nos termos do art. 286º do Cód. Civil.
De resto, no caso dos autos - como bem observa o MINISTÉRIO PÚBLICO (nas suas contra-alegações de recurso) -, a nulidade do artigo 17º, nº 2, al. c), dos Estatutos da Recorrente resultava já implicitamente do alegado nos artºs 3º a 12º da petição inicial, admitindo-se que, só por mero lapso, se não tenha indicado entre as normas estatutárias a declarar nulas, também a do art. 17º nº 1 al. c) dos Estatutos.
A esta luz, é patente que a apelação da Ré improcede, quanto a esta questão.
3) Se o art. 17º, nº 1, al. c), dos Estatutos da Recorrente, que atribui ao Presidente da Associação competência para “revogar, por mera retirada de confiança, o cargo de quaisquer dos membros do Conselho Consultivo”, se interpretado no sentido de que a destituição de um membro do Conselho Consultivo, que seja membro deste órgão por acumulação com as funções de administrador, apenas implica a cessação das funções de membro do Conselho Consultivo, continuando a ser administrador, não contende minimamente com a disposição imperativa do art. 172º, nº 2, do Código Civil, cuja aplicação apenas concerne aos órgãos obrigatórios (que não também aos órgãos facultativos, como é o caso do Conselho Consultivo).
Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente, relativo à competência do Presidente da Associação, é da competência deste “revogar, por mera retirada de confiança, o cargo de quaisquer dos membros do Conselho Consultivo”.
Por sua vez, o artigo 20.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente estabelece que “são, por inerência, membros do Conselho Consultivo o Presidente da Associação e todos os membros do Conselho de Administração.”
Da conjugação destes artigos, retirou o tribunal “a quo” a conclusão de que o Presidente da Associação tem, de forma indirecta, o poder para destituir os membros do Conselho de Administração.
Com base nesta premissa e na regra prevista no art. 172.º, n.º 2 do Código Civil - disposição alegadamente imperativa também relativamente aos órgãos facultativos -, concluiu a sentença recorrida pela nulidade do artigo 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente por, alegadamente, violar tal disposição.
Sustenta, ex adverso, a Ré ora Apelante que, desde que os únicos órgãos obrigatórios das associações são - como se viu - a assembleia geral, a administração e o conselho fiscal, sendo todos os demais órgãos meramente facultativos, daí resultaria que a destituição a que se refere o artigo 172.º, n.º 2, do Código Civil é a destituição dos titulares dos órgãos obrigatórios. «Caso contrário, em vez de “titulares dos órgãos da associação” constaria do n.º 2 do artigo 172.º do Código Civil a expressão “titulares de todos os órgãos”, locução que permitiria abranger, quer os órgãos obrigatórios, quer os órgãos facultativos das associações».
Assim sendo, «não está no escopo de aplicação do artigo 172.º, n.º 2, do Código Civil a destituição de membros do “conselho de consultivo” ou o “Presidente da Associação”, porquanto são órgãos facultativos, sendo, portanto, desprovida de fundamentação legal a alegação de estar a violar-se esse normativo legal».
Quid juris ?
É inegável que o “Conselho Consultivo” instituído no art. 13º dos Estatutos da Ré/Apelante não figura no elenco taxativo dos órgãos obrigatórios das associações, do qual apenas fazem parte – como já sabemos - um órgão colegial de administração, um conselho fiscal e uma assembleia geral (ars. 162º e 170º e seguintes do Cód. Civil), pelo que constitui um órgão facultativo.
Daí não decorre, porém, que tal Conselho escape ao âmbito de aplicação da norma imperativa contida no cit. art. 172º-2, no segmento em que estatui que a destituição dos titulares dos órgãos da associação é, necessariamente, da competência da assembleia geral.
Para tanto, não se faz mister que o preceito em causa inclua, na sua letra, antes da locução “titulares dos órgãos da associação”, o pronome determinativo “todos”.
Desde o momento que o normativo não distingue, expressamente, entre órgãos obrigatórios e órgãos facultativos, não tem cabimento introduzir, na interpretação do preceito, uma distinção que a sua letra não acolhe. Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não pode o intérprete introduzir distinções).
É certo que o argumento – esgrimido na sentença recorrida – segundo o qual, por força do cit. art. 17º, nº 1, al. c), dos Estatutos da Apelante, o Presidente da Associação teria, afinal, poderes para destituir os membros do Conselho de Administração, alegadamente de forma indirecta, não tem o menor cabimento.
De facto - como bem salienta a Ré/Apelante (nas suas contra-alegações) -, tal apenas seria verdade, porventura, se os membros do Conselho Consultivo fossem, por inerência, membros do Conselho de Administração. Só nesta hipótese é que se poderia equaciona se a destituição de um membro do Conselho Consultivo, por iniciativa do Presidente da Associação, poderia acarretar, de forma indirecta, a destituição de um membro do Conselho de Administração.
«No entanto, aquilo que se prevê nos Estatutos da Recorrente é que os membros do Conselho de Administração são, por inerência, membros do Conselho Consultivo (cf. artigo 20.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente)». «Ou seja, não são os vogais do Conselho Consultivo que são também administradores, mas o inverso».
É certo que, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, al. c), dos Estatutos da Recorrente, o Presidente da Associação pode revogar o cargo dos membros do Conselho Consultivo.
«No entanto, neste contexto, a única interpretação permitida, porquanto conforme à lei, concretamente com o artigo 172.º, n.º 2 do Código Civil, é a de que a destituição de um membro do Conselho Consultivo, [que seja] membro deste órgão por acumulação com as funções de administrador, apenas implica a cessação das funções de membro do Conselho Consultivo, continuando a ser administrador».
Ainda assim, mesmo improcedendo esse erróneo argumento tirado pela sentença recorrida da conjugação das disposições estatutárias contidas nos arts. 17º, nº 1, al. c) e 20º, nº 2, dos Estatutos da Ré, aquele art. 17º, nº 1, al. c) contende directamente com a norma imperativa do cit. art. 172º-2 do Cód. Civil.
Efectivamente, é irrecusável que o cit. artigo 17.º, n.º 1, al. c) dos Estatutos da Recorrente, ao atribuir ao órgão Presidente da Associação competência para “revogar, por mera retirada de confiança, o cargo de quaisquer dos membros do Conselho Consultivo”, viola frontalmente a disposição imperativa contida no cit. art. 172º, nº 2, do Cód. Civil, nos termos da qual essa competência está, necessariamente, reservada à assembleia geral.
Assim sendo, é manifesto que a Apelação da Ré improcede, quanto a esta questão, nenhuma censura merecendo este segmento da sentença recorrida.
4) Se, ainda que o disposto no artigo 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente possa ser inválido, por afrontar a disposição imperativa contida no art. 175º, nº 4, do Código Civil, nunca essa invalidade geraria uma nulidade, ex vi do artigo 294.º in fine, do Código Civil, porquanto a inobservância do cit. art. 175º-4 efectiva-se, não através da previsão de uma regra estatutária de sentido diverso, mas sim através da tomada de uma deliberação social aprovada com um número de votos inferior ao legalmente exigido, a qual nunca foi tomada e, mesmo que o fosse, seria apenas anulável, nos termos do art. 177º do Cód. Civil, carecendo o MºPº de legitimidade para arguir tal anulabilidade.
A sentença recorrida declarou a nulidade do artigo 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente, com fundamento na violação do disposto no artigo 175.º, n.º 4, do Código Civil, norma imperativa quanto ao mínimo necessário para deliberar a dissolução das associações.
Prevê-se, no artigo 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente a sua extinção “no caso de assim ser deliberado por três quartos dos votos expressos em assembleia geral”.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 175.º, n.º 4 do Código Civil, as deliberações sobre a dissolução ou prorrogação da pessoa colectiva requerem o voto favorável de três quartos do número de todos os associados.
Por sua vez, o nº 5 deste mesmo art. 175º admite que os estatutos possam exigir um número de votos superior ao fixado nas regras anteriores.
A Ré/Apelante reconhece (nas suas alegações de recurso) que o cit. artigo 175.º, n.º 4, do Código Civil é, de facto, uma norma imperativa e admite – ao menos implicitamente – que a disposição estatutária contida no cit. artigo 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente afronta directamente aquela norma imperativa, ao prever uma maioria menos qualificada (três quartos dos votos expressos em assembleia geral) do que a maioria por ela exigida (três quartos do número de todos os associados) para as deliberações sobre a dissolução da Associação ora Ré/Apelante.
Ainda assim, sustenta, ex adverso, que não é caso de declaração de nulidade da disposição estatutária em apreço, mas tão só de anulabilidade duma eventual deliberação de dissolução da associação em causa, tomada por uma maioria conforme com a exigida pelo cit. art. 29º-2 dos Estatutos, mas inferior à que é imposta pelo cit. art. 175º-4 do Cód. Civil.
A tese da Apelante é que a inobservância desta última regra efectiva-se não através da previsão de uma regra estatutária de sentido diverso, mas sim através da tomada de uma deliberação social aprovada com um número de votos inferior ao legalmente exigido.
Ora, segundo dispõe o artigo 177.º do Código Civil, as deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são meramente anuláveis.
Donde que – conclui a Apelante - «é, pois, esta, e apenas esta, a consequência de uma eventual inobservância do disposto no artigo 175.º, n.º 4 do Código Civil».
Consequentemente, a sentença recorrida, ao declarar a nulidade do cit. art. 29º-2 dos Estatutos da Ré, por violação da disposição imperativa contida no cit. art. 175º-4 do Cód. Civil, afrontaria o disposto no art. 294º do mesmo diploma, nos termos do qual os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos “salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.”
Quid juris ?
Desde que o art. 158º-A do Cód. Civil manda aplicar à constituição das pessoas colectivas o disposto no art. 280º do mesmo diploma, impondo mesmo ao MºPº o dever de promover a declaração judicial da nulidade da pessoa colectiva incursa na sanção prescrita no referido art. 280º, segue-se que os estatutos duma pessoa colectiva são, eles mesmos, nulos, se forem contrários à lei ou à ordem pública ou ofensivos dos bons costumes.
Consequentemente, o valor negativo duma disposição estatutária desconforme com uma norma imperativa como a do cit. art. 175º-4 é, necessariamente, o da nulidade, ex vi do cit. art. 280º do Cód. Civil [7], a isso não obstando a ressalva contida na parte final do cit. art. 294º e o facto de a sanção legalmente prevista para as deliberações da assembleia geral contrárias à lei (seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia) ser a mera anulabilidade (cfr. o art. 177º do Cód. Civil).
Assim sendo, a apelação da Ré improcede, necessariamente, quanto a esta questão, nenhuma censura merecendo a sentença recorrida, na parte em que declarou a nulidade do artigo 29.º, n.º 2, dos Estatutos da Recorrente, com fundamento na violação do disposto no artigo 175.º, n.º 4, do Código Civil.
B) A APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO:
1) Se os preceitos dos nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos da associação Ré contendem com os preceitos dos artºs 18º nº 1 e 46º da CRP e com normas legais imperativas (art.ºs 172º, 175º nº 2 e 334º do CC), pelo que, nessa medida e nos termos dos artºs 280º, 294º e 295º do CC, devem ser declarados nulos.
Segundo o Apelante MINISTÉRIO PÚBLICO, os poderes (concentrados nos direitos de voto) que o associado instituidor C reservou para si, nos moldes consignados no art. 14º nºs 3 e 5 dos Estatutos da associação ora Ré, violam claramente princípios e normas legais imperativas, como sejam os artºs 18º nº1 e 46º da CRP, os artºs 172º e 175º nº 2 do CC, e constituem flagrante abuso de direito, afrontando também o art. 334º do CC.
Na verdade, «por via desta disposição estatutária, os associados instituidores C  e Fundação …. (pessoa colectiva que, na prática, se reconduz também ao associado C ), condicionam qualquer deliberação da assembleia geral, uma vez que detêm 51% dos votos, sempre e em qualquer circunstância, pois, nos termos do nº 5, os direitos de voto dos associados não instituidores (independentemente dos títulos de participação que detenham!), têm de considerar-se automaticamente reduzidos na medida necessária para que a referida percentagem de 51% fique garantida».
De facto, «da conjugação da referida disposição estatutária com as dos artºs 6º, 7º, 8º nºs 1, 5 e 6, 11º nº 1, 2 e 3, 14º nº 1 e 17º nº 1 a) dos mesmos estatutos, resulta que, na prática, a vida associativa é comandada por uma única pessoa: C».
Isto porque:
- «Os “Associados” têm direito de voto em função dos títulos de participação que adquirirem (art. 11º nº 1 dos Estatutos), sendo que a atribuição de títulos de participação só pode ser decidida em assembleia geral mediante proposta do Presidente da Associação, ou seja, do Comendador C  (art. 11º nº 2) – «o que equivale a dizer que só terão direito de voto, para além dos dois associados instituidores, os associados que o associado instituidor e presidente da associação (C ) entender»;
– «A disparidade entre o número total de votos atribuídos aos dois associados instituidores (que se confundem na pessoa de C ) e os atribuídos aos restantes “Associados” na prática permite que as deliberações da assembleia geral sejam sempre condicionadas e/ou reduzidas à vontade única do presidente fundador».
Ora – conclui o Apelante -, «colocar na mão de um único associado um tal poder, por via da atribuição do número de votos, é o inverso do que resulta do espírito associativo. É atribuir a uma única pessoa um poder que contende com a liberdade e a autonomia interna das associações, princípio este que pressupõe a necessidade do método democrático no seu funcionamento, comportando este a participação activa dos associados e o respeito pelo princípio da igualdade de direitos».
Deste modo, «as disposições dos nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos, traduzem em si mesmas, manifesta e intencionalmente um abuso do direito (no que ao direito de voto diz respeito), porquanto excedem clamorosamente os limites da boa fé e do fim social a que se destinam, o qual opera na democraticidade da vida interna da associação, com a possibilidade de participação activa de todos os associados, que dessa forma é irremediavelmente comprimida e se esgota praticamente na vontade soberana de um único associado, o Comendador C ».
A sentença recorrida não deixou de reconhecer que:
«Dos artºs 6º a 11º e 14º, nº 1 dos Estatutos resulta que só têm direito de voto na Assembleia Geral os “Associados Instituidores” e os “Associados”.
Os “Associados Instituidores” são “os promotores da Associação, que outorgaram o acto da sua constituição como Associados Fundadores” (artº 8º nº 1), ou seja, considerando a renúncia constante do artº 8º, nº 6, C  e a Fundação …
Por sua vez, os “Associados” têm direito de voto em função dos títulos de participação que adquirirem, à razão de um voto por cada título de participação (artº 11º nº 1). É da competência da Assembleia Geral, mediante proposta do Presidente da Associação, a atribuição de títulos de participação, com parecer favorável do Conselho Fiscal (artº 11º, nº 2).
Por sua vez, estabelece o artº 14º nºs 3 e 5 dos Estatutos da R. que:
“TRÊS: Sempre e quando os Associados Instituidores detiverem em conjunto pelo menos vinte e cinco por cento dos títulos de participação e correspondente exercício de direitos de voto, estarão asseguradas aos Associados Instituidores as seguintes percentagens de voto:
a) C : 25% (vinte e cinco por cento);
b) Fundação…: 26% (vinte e seis por cento). (…)
CINCO: Para efeitos do disposto no número TRÊS, o direito de voto dos associados não instituidores considerar-se-á automática e proporcionalmente reduzido, na medida em que se torne necessário para estabelecer as percentagens fixadas.”
Daqui resulta, no tocante à valoração do voto, um direito especial atribuído a C e à Fundação … , com excepção das matérias previstas no nº 4 do aludido artº 14º, sempre e quando eles detiverem em conjunto, pelo menos, vinte e cinco por cento dos títulos de participação e correspondente exercício de direitos de voto, o que irá implicar a redução automática e proporcional do direito de voto dos associados, na medida necessária para estabelecer as percentagens fixadas.
Resulta do artº 167º, nº 2 do C.Civil que os estatutos podem regular as condições de admissão dos associados, devendo, contudo, ser observados os princípios, constitucionalmente consagrados, da igualdade e da não discriminação- cfr. artºs 13º e 18º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
E, embora a lei não defina expressamente quais os direitos dos associados, das disposições da lei ordinária e da Constituição resulta que os associados perante a associação gozam de direitos que podem ser classificados em dois grupos: direito de participação e direitos de fruição. Os primeiros compreendem, entre outros, os direitos, inerentes à qualidade de associado, de votar e intervir na assembleia geral».
Dito isto, a sentença recorrida ponderou, apesar de tudo, que:
«No tocante ao direito de voto é comum, no acto de constituição e nos estatutos da associação, estabelecerem-se determinados direitos especiais para certos associados ou certas categorias de associados.
Um desses direitos especiais é o voto plural, através do qual determinado ou determinados associados passam a ter direito a um voto múltiplo relativamente à generalidade dos associados. Tal voto plural pode ter variados fundamentos, como sejam o facto de os associados terem participado no acto de constituição da associação (associados fundadores), a contribuição económica dos associados para o património da associação, a antiguidade dos associados, etc.
E, não fixando a lei qualquer princípio de valoração do voto- nesse sentido, Ac. do STJ de 27.05.2008, processo nº 07B2660, www.dgsi.pt, tal prática de voto plural é genericamente aceite. Diferente seria se se previsse a existência de associados ou categorias de associados sem direito a voto; neste caso, poderia estar violado o princípio democrático de cada sócio poder exprimir a sua vontade através do voto.
Assim, só caso a caso e perante concretas deliberações da assembleia geral se pode averiguar se as mesmas são abusivas (artº 334º do C.Civil) e concluir nesse sentido sempre que tais deliberações, sem violarem específicas disposições da lei ou dos estatutos, sejam susceptíveis de contrariar a realização dos interesses comuns ou colectivos, que é a função do instituto da personalidade colectiva».
Daí a improcedência, nesta parte, do pedido do MºPº.
Quid juris ?
Tudo está em saber se o facto de os Estatutos da Ré conferirem aos dois Associados Instituidores (C  e Fundação ….) um direito especial de voto (25 % e 26 %, respectivamente), no caso de eles deterem, em conjunto, uma percentagem qualificada de 25 % dos títulos de participação, salvo quanto às matérias elencadas no nº 4 do art. 14º dos Estatutos da Ré (extinção da associação, amortização de títulos de participação, prática de actos de disposição ou oneração do património da Associação e contracção de empréstimos e concessão de garantias em montante igual ou superior a € 500.000,00) e também no caso de ter sido constituído penhor sobre a maioria dos títulos de participação detidos pelos Associados Instituidores, com atribuição da titularidade de direitos de voto ao credor pignoratício, contende com o princípio da liberdade de associação consagrado no art. 46º da Constituição da República, ou com o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição da República ou viola os artigos 172º e 175º, nº 2, do Código Civil.
a) quanto à putativa violação do princípio da liberdade de associação:
«O direito de associação é um direito complexo, que se analisa em vários direitos ou liberdades específicos» (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, 4º ed., 2007, p. 644). «O nº 1 [do cit. art. 46º da C.R.P.] reconhece o chamado direito positivo de associação, ou seja, o direito individual dos cidadãos de constituírem livremente associações sem impedimentos e sem imposições do Estado, bem como o direito de se filiarem em associação já constituída; o nº 2 reconhece a liberdade da associação, enquanto direito da própria associação a organizar-se e a prosseguir livremente a sua actividade; finalmente, o nº 3 garante a liberdade negativa de associação; isto é, o direito do cidadão de não entrar numa associação, bem como o direito de sair dela» (ibidem).
«O direito de associação é fundamentalmente um direito negativo, um direito de defesa, sobretudo perante o estado, proibindo-a intromissão deste, seja na constituição de associações (não podendo ele constituí-las, nem impedir a sua criação), seja na organização e vida interna (liberdade estatutária, liberdade de selecção de dirigentes, etc.)» (ibidem).
«Os únicos limites constitucionais à liberdade de associação consistem em não poderem constituir-se associações para promover a violência ou para qualquer outro fim contrário à lei penal (nº 1, in fine)» (ibidem). «Além dos limites gerais do nº 1, existe um limite específico da liberdade de associação: a proibição constitucional das associações armadas ou de tipo militar, paramilitares ou militarizadas, e das organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista (nº 4)» (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in ob. e vol. citt., p. 647).
«As associações «prosseguem livremente os seus fins» (nº 2, 1ª parte [do mesmo art. 46º da C.R.P.], tendo pois direito a gerir livremente a sua vida (autodeterminação)» (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in ob. e vol. citt., p. 646).
«O nº 2 [do cit. art. 46º da C.R.P.] abrange ainda explícita ou implicitamente outras dimensões essenciais da liberdade de associação, designadamente a liberdade de auto-organização, o auto governo e a autogestão, consubstanciadas na autonomia estatutária (não podendo os estatutos das associações estar dependentes de qualquer aprovação ou sanção administrativa e, muito menos, ser impostos pelas autoridades); na liberdade de escolha dos seus órgãos (não podendo a designação dos órgãos directivos da associação estar dependente de qualquer aprovação ou controlo administrativo e, muito menos, de imposição administrativa) e a liberdade de gestão (não podendo os seus actos ficar dependentes de aprovação ou referenda administrativa)» (ibidem).
Todavia – segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in ob. e vol. citt., pp. 646-647) -, «a liberdade de auto-organização e de autogestão não prejudica, naturalmente, a fixação normativa de regras gerais de organização e gestão que não afectem substancialmente a liberdade de associação, nomeadamente os requisitos mínimos de uma organização democrática interna (aprovação dos estatutos pelos associados ou por assembleia representativa, eleição periódica dos órgãos dirigentes pelos associados, o direito de participação na vida da associação, responsabilidade dos dirigentes perante os associados, etc.)».
Também para JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2005, pp. 469-470), «a liberdade ou autonomia interna das associações acarreta a existência de uma vontade geral ou colectiva, o confronto de opiniões para a sua formação, a distinção entre maiorias e minorias» «Daí a necessidade de observância dos princípios decorrentes do estado de Direito Democrático (artigo 2º) e a vinculação das associações aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, nº 1)» (ibidem).
Dito isto, a liberdade de associação que a Constituição reconhece e protege não se confunde com a liberdade absoluta de aceder a associações constituídas.
Assim, é perfeitamente válido o condicionamento da aquisição da qualidade de associado ao cumprimento de determinada obrigação contributiva – quota, jóias, montante contributivo, (cfr. o 167.º, n.º 1, do Código Civil), à apresentação de proposta de admissão por outro membro da associação – como sucede no caso da Ré quanto aos Associados -, ou da deliberação favorável de certo órgão social – como sucede no caso da Ré quanto aos Associado Amigos do Museu -, da titularidade de determinado grau académico, ou ainda de perfilhar uma qualquer convicção religiosa, ideológica ou outra.
Por outro lado, nada impõe que os associados, uma vez adquirida tal qualidade, tenham, uns perante os outros, o mesmo status, isto é, o mesmo conjunto de direitos e obrigações.
Na verdade, o Código Civil não explicita os direitos e os deveres dos associados, limitando-se, a dizer (no seu artigo 167.º, n.º 2) que eles – direitos e deveres - podem ser especificados nos estatutos.
Assim sendo, nada impede que os estatutos delimitem os direitos dos associados, os regulamentem directamente ou remetam a respectiva regulamentação para a administração da associação.
Segundo ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (in “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo III – Pessoas, 2ª ed., 2007, p. 718), «os estatutos podem delimitar estes direitos [os direitos participativos, nomeadamente, o direito de participar na assembleia geral, opinando e exercendo o direito de voto e o direito de ser eleito para os órgãos sociais], sujeitá-los a regulamentos ou à administração ou, até e em certos casos em que não esteja em causa a função de associações de interesse público ou de associações a que a lei atribua prerrogativas especiais, suprimi-los».
A invocada necessidade de observância dos princípios decorrentes do estado de Direito Democrático não contende, portanto, com uma organização estatutária que confira direitos especiais, nomeadamente, de voto, a certos associados.
Em suma: o princípio da liberdade de associação consagrado no art. 46º da Constituição da República não é incompatível com o facto de os Estatutos da Ré conferirem aos dois Associados Instituidores (C  e Fundação ….) um direito especial de voto (25 % e 26 %, respectivamente), no caso de eles deterem, em conjunto, uma percentagem qualificada de 25 % dos títulos de participação, salvo quanto às matérias elencadas no nº 4 do art. 14º dos Estatutos.
b) quanto à alegada violação do princípio da igualdade:
Segundo a mais abalizada doutrina (cfr., por todos, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO in “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo III – Pessoas, 2ª ed., 2007, p. 720), «o princípio da igualdade exerce-se contra o Estado». «Não contra particulares: estes têm o direito de assumir preferências e predilecções, que mal ficaria ao Direito vir cercear» (ibidem). O princípio do igual tratamento só tem de ser observado naquelas associações que desempenham funções do estado ou, mais simplesmente, funções de utilidade pública, sob pena de elas perderem essas suas prerrogativas (A., ob., vol. e tomo citt., pp. 720-721).
«Fora destes circunstancialismos e nos limites do art. 280º [do Cód. Civil], os particulares podem prever os figurinos que entenderem, nos seus estatutos» (ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO in ob., vol. e tomo citt., p. 721). «a eventuais cláusulas diferenciadoras, não é possível opor o princípio da igualdade, oponível ao estado, nem o da liberdade de associação» (ibidem). «Este último pode [ao invés] ser invocado pelos partidários da “diferenciação”:  ninguém os obriga a ficarem associados com quem não queiram» (ibidem).
«Uma solução diferenciadora comum consistem prever diversas categorias de associados, com direitos e deveres próprios» (ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO in ob., vol. e tomo citt., p. 722). «Tal pode ocorrer com base nos mais variados critérios e,designadamente,:
- na qualidade de fundador ou associado subsequente;
- tratar-se de associado singular ou colectivo;
- na antiguidade de associado;
- no tipo de serviços que preste ou de necessidades que aparente;
- nas habilitações que exiba» (ibidem).
Mas «outras soluções são possíveis: em rigor todas as que a lei não proíba, uma vez que estamos do domínio da autonomia privada» (ibidem).
Acresce que o invocado princípio da igualdade consagrado no art. 13º da C.R.P. postula precisamente o tratamento desigual de situações desiguais. «Nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual» GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in ob. e vol. citt., p. 339). «Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais de um tratamento diverso de situações de facto diferentes» (ibidem).
No âmbito do direito privado, o princípio da igualdade apenas proíbe que, no interior de quaisquer pessoas colectivas de direito privado ou de quaisquer associações não personalizadas, existam diferenciações arbitrárias entre os seus membros.
Ora, os citt. nºs 3 e 5 do art. 14º dos  Estatutos da Ré atribuem um direito especial de voto às pessoas que instituíram a própria associação em questão, e não a quaisquer pessoas que se tenham tornado associados da Ré. Essas pessoas foram precisamente aquelas que dotaram a Ré do acervo patrimonial que permitiu a sua constituição e o prosseguimento do seu fim social, através duma significativa aportação de bens, concretamente em obras de arte (cfr. o art. 8º, nº 1, dos Estatutos da Ré). Tais pessoas não estão, portanto, em igualdade substancial com qualquer associado que tenha entrado com € 500,00 (que é a contribuição mínima para se dispor dum título de participação).
A diferenciação instituída pelos citt. nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos da Ré, entre os instituidores detentores duma participação qualificada de, pelo menos, 25% dos títulos de participação da Ré e os demais associados, não é, portanto, arbitrária e/ou injustificada.
O que tudo nos conduz à inevitável conclusão de que o decantado princípio da igualdade consagrado no art. 13º da C.R.P. não é incompatível com uma solução estatutária que (como acontece com o art. 14º, nºs 3 e 5 dos Estatutos da Ré) confira aos dois Associados Instituidores (C e Fundação ...) um direito especial de voto (25 % e 26 %, respectivamente), no caso de eles deterem, em conjunto, uma percentagem qualificada de 25 % dos títulos de participação, salvo quanto às matérias elencadas no nº 4 do art. 14º dos Estatutos.
c) quanto à putativa violação do artigo 172º do Cód. Civil:
O art. 172º do Cód. Civil cura, exclusivamente, da competência da assembleia geral das associações. Consequentemente, os citt. nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos da Ré não podem, logicamente, atentar contra o art. 172º do Cód. Civil, pela elementar razão de que nada dispõem em matéria de competência da assembleia geral, assunto de que se ocupa o art. 13º dos estatutos da Ré, cuja validade não foi minimamente posta em crise pelo MºP.
Como bem salienta a Ré/Apelada (nas suas contra-alegações), «o facto de certos associados da Recorrida poderem dispor, em certas matérias, de mais direitos de voto que os demais, em nada afasta a regra da reserva de matérias da competência da assembleia geral, na medida em que as matérias da competência deste órgão continuam a ter de ser deliberadas por este».
Improcede, portanto, o argumento da pretensa ofensa ao disposto no art. 172º, nºs 1 e 2, do Cód. Civil.
d) quanto à invocada violação do disposto no art. 175º, nº 2, do Código Civil:
O nº 2 do art. 175º do CC institui a regra segundo a qual, salvo o disposto nos números seguintes, as deliberações [da assembleia geral das associações] são tomadas por maioria absoluta de votos dos associados presentes.
A disposição em apreço ocupa-se ora do quórum constitutivo, isto é, do número mínimo de associados que devem estar presentes na assembleia geral para que esta possa, validamente, deliberar sobre certo assunto (caso do nº 1), ora do quórum deliberativo, isto é, do número de votos necessários para que determinadas deliberações possam ser validamente aprovadas (caso dos nºs 2, 3 e 4).
Ora, os citt. nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos da Ré não podem, logicamente, atentar contra nenhum dos números do cit. art. 175º do Cód. Civil, pela elementar razão de que nada dispõem em matéria de quórum constitutivo ou deliberativo da assembleia geral.
Tais disposições estatutárias mais não fazem do que consagrar os direitos de voto dos associados instituidores, em determinadas circunstâncias.
As regras legais relativas tanto ao quórum constitutivo como ao quórum deliberativo continuam a poder ser observadas, independentemente do número de votos atribuídos pelos estatutos aos associados fundadores.
Improcede, portanto, o argumento da putativa violação do cit. art. 175º do Cód. Civil.
Sustenta, finalmente, o MINISTÉRIO PÚBLICO Apelante que, de todo o modo, sempre existiria abuso de direito, porquanto as disposições dos nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos, traduzem em si mesmas, manifesta e intencionalmente um abuso do direito (no que ao direito de voto diz respeito), porquanto excedem clamorosamente os limites da boa fé e do fim social a que se destinam, o qual opera na democraticidade da vida interna da associação, com a possibilidade de participação activa de todos os associados, que dessa forma é irremediavelmente comprimida e se esgota praticamente na vontade soberana de um único associado, o Comendador C .
Quid juris ?
Como é óbvio, o abuso do direito de voto só pode ocorrer aquando do exercício do mesmo direito de voto, numa assembleia geral, sendo que a consequência do exercício abusivo do direito de voto é, tão só, a invalidade da deliberação tomada em assembleia geral com os votos favoráveis de quem exerceu abusivamente o seu direito de voto.
Acresce que tão pouco existiu abuso, por parte da Ré/Apelada, no exercício do seu direito de auto-regulamentação traduzido na aprovação dos estatutos em causa, no que concerne à consagração dos direitos de voto conferidos aos associados instituidores pelos citt. nºs 3 e 5 do art. 14º dos estatutos.
Na verdade, aqueles direitos especiais de voto foram introduzidos nos estatutos por decisão unânime de todos os associados e o reconhecimento dos direitos de participação dos associados, na vertente do direito de votar nas assembleia gerais, não pressupõe – como se demonstrou supra – que todos os associados tenham exactamente os mesmos direitos.
Improcede, portanto, também o argumento do pretenso abuso de direito.
Consequentemente, a apelação do MINISTÉRIO PÚBLICO improcede, quanto à única questão suscitada nas conclusões da respectiva alegação.
                                                        *

DECISÃO
Acordam os juízes desta Relação em negar provimento à Apelação do Autor MINISTÉRIO PÚBLICO e em conceder parcial provimento à Apelação da Ré “ASSOCIAÇÃO ……..”, no que tange á declaração de nulidade do artigo 16º dos estatutos da Ré/Apelante, razão pela qual alteram a sentença recorrida, no segmento em que declarou a nulidade da disposição estatutária constante do artigo 16º dos Estatutos da R., por violação de imperativos legais.
No mais, confirmam a sentença recorrida.
A Ré/Apelante suportará 2/3 das custas da sua Apelação.
O MINISTÉRIO PÚBLICO suportará a totalidade das custas da respectiva Apelação.

Lisboa, 22 de Novembro de 2011

Rui Torres Vouga
Maria do Rosário Barbosa
Maria do Rosário Gonçalves
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
[5] Cfr., igualmente no sentido de que «a orgânica das associações integra, pelo menos, três órgãos: a assembleia geral, a direcção e o conselho fiscal», PEDRO PAIS DE VASCONCELOS in “Teoria Geral do Direito Civil”, 5ª ed., 2008, p. 189.
[6] LEBRE DE FREITAS-MONTALVÃO MACHADO-RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, p. 670.
[7] Cfr., expressamente neste sentido, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO in “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo III – Pessoas, 2ª ed., 2007, p. 713, in fine.