Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
646/10.9TBCSC-C.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INVENTÁRIO
COMUNHÃO CONJUNGAL
ADJUDICAÇÃO
LICITAÇÃO DE QUOTAS SOCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O n.º 1 do art.º 1364.º do CPC de 1961, que prevê a adjudicação, em inventário, de bens indivisíveis, titulados em compropriedade, não se aplica a quotas sociais pertencentes ao património de comunhão matrimonial objeto de partilha subsequente a divórcio.
II. O n.º 2 do art.º 1364.º do CPC de 1961, que permite a adjudicação de bens fungíveis e de títulos de crédito aos interessados, na proporção da respetiva quota, não se aplica a quotas sociais, pois estas não são bens fungíveis nem títulos de crédito.
III. É razoável a determinação, nos termos do art.º 1371.º, n.º 2, parte final, do CPC, da licitação em conjunto das duas únicas quotas de sociedade comercial por quotas que havia sido constituída pelos dois cônjuges na pendência do casamento, por ser inconveniente a manutenção da sociedade na titularidade dos dois ex-cônjuges.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1. Em 31.3.2011 João requereu, contra Maria do Carmo, por apenso a ação de divórcio que correra os seus termos entre ambos, se procedesse a inventário para partilha de bens comuns.
Pelo requerente, cabeça-de-casal, foi apresentada relação de bens, entre os quais figurava, nomeadamente, como verba n.º 8, uma quota da sociedade comercial “Carmo (…), Lda”, titulada em nome de João, com o valor nominal de € 2 500,00 e, como verba n.º 9, uma quota da sociedade comercial “Carmo (…), Lda”, titulada em nome de Maria do Carmo, com o valor nominal de € 2 500,00.
2. O inventário seguiu os seus termos, tendo as ditas quotas sociais sido avaliadas, por perito para o efeito nomeado, no valor negativo, cada uma, de – 18 875,05 €.
3. No decurso da conferência de interessados, realizada em 23.6.2016, pela interessada Maria do Carmo foi formulado o seguinte requerimento:
A interessada Maria do Carmo, considerando o disposto no artº 1353 nº 4 al. b) do CPC antigo, que estatui que incumbe à conferência de interessados deliberar sobre quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha, bem como o disposto nos artºs 1363º nº 2 e 1364º, nº 2 do mesmo código, e ainda ponderada a tarefa disciplinadora do ilustre tribunal no âmbito dos processo de jurisdição voluntaria, como é, em parte, o caso dos presentes autos, poder disciplinador este que visa a finalidade única do processo, designadamente a partilha equitativa do património conjugal, por forma a evitar prejuízo a qualquer das partes. O ora requerido tem por base o facto de existir quota com idêntico valor de capital da sociedade titulada pelo cabeça-de-casal e ainda, mas não menos relevante para os autos, o facto de tais participações terem sido avaliadas negativamente e de a adjudicação em sede de licitações à parte contrária não permitir a desvinculação da ora requerente da qualidade de fiadora do leasing de que a sociedade em causa é titular, sendo certo que, a tais factos, acresce ainda a existência de uma acção judicial de exclusão de sócio interposta pela sociedade contra o cabeça-de-casal, razão pela qual se entende que a adjudicação à ora requerente da sua participação social seria a única forma de assegurar a repartição equitativa do património conjugal evitando-se prejuízo que com a licitação e adjudicação à parte contrataria se poderiam verificar."
4. O interessado João opôs-se ao pretendido, nos seguintes termos:
Com todo o devido respeito o requerimento que antecede não tem cabimento legal.
Na verdade, contrariamente ao afirmado, o que o requerido visa é impedir a partilha nos termos legais com o direito a licitar bens relacionados que assiste ao requerente do presente inventário.
Também sempre com o devido respeito, a existência de uma acção de exclusão do sócio é completamente irrelevante para efeitos do presente processo posto que neste se pretende pôr termo à comunhão dos bens do extinto casal, aliás, os intuitos do requerido são patentes ou seja, permitir à requerente apropriar-se da propriedade de 100 % do capital da sociedade, cujas quotas estão relacionadas sobre as verbas 8 e 9, evitando a respectiva partilha nos termos legais.
Pela sua parte o requerente contrapõe ao requerimento apresentado pela requerida que as verbas 8 e 9 atrás referidas sejam licitadas conjuntamente com fundamento no disposto no nº 2 do artº 1371º do CPC antigo, uma vez que existe sério inconveniente em que as mesmas sejam licitadas separadamente pois o que está em causa é, como não poderia deixar de ser nestas circunstâncias, a aquisição da totalidade do capital social da Sociedade Carmo (…), Lda."
5. A interessada Maria do Carmo pronunciou-se quanto ao requerimento de licitação conjunta das duas quotas sociais, nos seguintes termos:
A interessada Maria do Carmo opõe-se à licitação em lote das verbas 8 e 9 do activo porquanto o regime imposto legalmente nos termos do artº 1371º nº 2 do CPC determina expressamente o regime oposto, ou seja, o de que cada verba é licitada de "per si".
As excepções a esta situação seriam a concordância de todos os interessados na formação de lotes, o que não se verifica, assim como se não verifica a parte final desse mesmo preceito, pois não existe qualquer inconveniente legal na separação de tais verbas nem qualquer questão de justiça material, sendo as mesmas direitos autónomos e distintos quer nos termos da lei do processo, quer nos termos das leis materiais do código das sociedades, tanto mais que estas mesmas participações sociais não têm subjacentes quaisquer direitos pessoais ou sociais e preferências de voto ou decisão."
6. Ao que o interessado João retorquiu, pela seguinte forma:
"Mais uma vez, com todo o devido respeito, existe uma circunstância que tem necessariamente que ser levada em linha de conta e que releva sobremaneira para a fundamentação de uma decisão de licitação conjunta das quotas que constituem as verbas 8 e 9 que seja a de que as quotas são de idêntico valor, a sociedade se obriga por um único gerente e esse gerente é a requerida, o que de facto lhe proporciona o controlo total desta sociedade.
Esta circunstância, só por si, constitui justificação bastante de grave inconveniente ou, no dizer do nº 2 do art 1371º do CPC, que não possam separar-se sem inconveniente, inconveniente esse que, no caso vertente, é patente e manifesto pois na eventualidade de cada uma das quotas serem adjudicadas a cada uma das partes, a requerida ficaria sempre numa situação objectiva de vantagem de controlo da sociedade cujo capital estas quotas titulam."
7. Seguidamente foi proferido o seguinte despacho:
"Dos doutos requerimentos em análise constata-se estarem em causa essencialmente duas questões principais. A primeira prende-se com o pedido de adjudicação de uma das quotas sociais à ex-cônjuge mulher e a outra, na eventualidade de se concluir que é possível proceder desde já a licitações, à separação ou não das verbas 8 e 9 para efeitos dessas licitações.
Vejamos começando com a 1ª questão enunciada:
O artº 1364º do CPC antigo é bem claro ao estabelecer a possibilidade de adjudicação somente em caso de bens indivisíveis e em que o interessado que pede essa adjudicação seja comproprietário.
Ora, salvo o devido respeito, a comunhão conjugal não é equivalente à compropriedade. Na realidade não estamos perante quotas idênticas dos ex-cônjuges em bens específicos e autonomizados. A comunhão conjugal traduz uma universalidade complexa podendo ser composta por bens móveis sujeitos e não sujeitos a registo, bens imóveis, direitos de crédito, quotas sociais e ainda o respectivo passivo.
O que cada cônjuge tem é uma meação e não uma quota do património conjugal embora essa meação esteja idealizada em 50 %, ou seja, metade para cada um dos ex-cônjuges mas não de um bem específico, antes, de todo o património conjugal.
Os presentes autos, em bom rigor, traduzem uma separação de meações, isto é, uma separação de patrimónios e não uma partilha "stricto sensu".
Assim, e em nosso muito modesto entendimento, não se pode autonomizar uma qualquer verba da relação de bens e adjudicá-la isoladamente a qualquer um dos ex-cônjuges porquanto essas verbas pertencem na sua totalidade a ambos os ex-cônjuges.
Para melhor compreensão vamos ficcionar que só existem as quotas societárias em apreço. Não se pode dizer que uma das quotas pertence a um dos ex-cônjuges e a outra pertence ao outro, pois que, ainda que cada quota esteja isoladamente titulada por um dos cônjuges, ou seja, apesar da quota que faz verba 8 estar titulada pelo cabeça-de-casal e a quota que faz verba nº 9 estar titulada pela interessada, na realidade ambas as quotas são comuns pelo que, na verba nº 8, a interessada tem sua meação e na verba nº 9 o cabeça-de-casal também tem a sua meação.
Assim não se nos afigura legalmente admissível deferir o pedido de adjudicação ora formulado pela interessada Maria do Carmo, tanto mais que o que se pretende com o presente inventário é efectivamente pôr fim à comunhão conjugal patrimonial.
De notar que o artº 1364º do CPC antigo está pensado para o património que é deixado por morte de uma pessoa, património esse que tem de ser " distribuído" pelos herdeiros, sendo que o que o nº 1 do citado artigo pretende é garantir o direito de preferência legal que os comproprietários têm por força da sua quota-parte do bem.
Repare-se que o que está em causa em tal preceito é que o bem que é deixado por morte do "de cujos" é um bem que não lhe pertence exclusivamente a si mas em que a sua quota-parte desse bem não é destacável, por o bem ser indivisível.
Ora, nada disto acontece na separação de meações. Não estando em causa bens indivisíveis mas apenas o preenchimento das respectivas meações do ex-cônjuge com os bens que fazem parte do acervo patrimonial conjugal.
Por todo o exposto indefere-se a requerida adjudicação.
Nos termos do artº 1363º nº1 do CPC antigo, não havendo acordo nesta conferência de interessados para a partilha, ou seja para a forma como as meações serão compostas, e não havendo outras questões que possam influir na partilha, não sendo a questão da adjudicação, como se viu, uma dessas questões há que abrir licitação entre os interessados.
Quanto a este ponto existe divergência entre os ex-cônjuges que cumpre neste momento solucionar.
É verdade que nos termos do artº 1371º nº 2 do CPC, cada verba deve ser licitada de "per si", sendo portanto esta a regra. No entanto, esse mesmo nº 2 do artº 1371º prevê como excepção a existência de inconveniência na licitação separada das verbas.
Ora, quanto a este ponto, e adiantando desde já o nosso entendimento, afigura-se nos que as verbas nºs 8 e 9 do activo ou seja as 2 quotas sociais, devem ser licitadas em conjunto, num único lote pelos motivos que se seguem:
O que se pretende com este inventário é separar definitivamente as meações dos ex-cônjuges permitindo que cada um possa seguir a sua vida após divórcio com a sua parte do património conjugal.
A permitir que a verba nº 8 possa vir a ser licitada por um dos ex-cônjuges e a verba nº 9 por outro, não só iríamos cair indirectamente na adjudicação pretendida pela interessada, deixando entrar, assim, pela janela aquilo que o legislador não deixou entrar pela porta, como na prática iria traduzir uma possível paralisação dos direitos societários para um ou ambos os ex-cônjuges.
Isto porque está demonstrado em todo este complexo processual que não existe qualquer entendimento entre os ex-cônjuges no que tange à gestão e vida da sociedade da qual ambos são sócios.
O cabeça-de-casal, por inúmeras vezes, veio alegar que não tem acesso à contabilidade da sociedade e que não consegue nela participar activamente porquanto a interessada, sua exmulher, é gerente única, fazendo o que bem entende.
Temos presente que já correram acções no tribunal de comércio que só provam o grau de desentendimento entre estes sócios.
Por outro lado, da consulta da certidão permanente da sociedade, cuja cópia está junta a fls. 33 e seguintes destes autos, se verifica que a sua constituição, ou pelo menos, o registo dessa constituição ocorreu em 26 Março de 1998 com o capital social de 5.000,00 euros e com duas quotas iguais, com o valor nominal de 2.500,00 euros cada e logo tituladas, respectivamente, por cada um dos ex-cônjuges. Significa isto que estas duas quotas nasceram ao mesmo tempo e visaram desde o seu início estarem tituladas por ambos os cônjuges sendo que com o desentendimento patente entre ambos, o próprio objecto social poderá vir a ser colocado em causa.
Aliás, um dos motivos adiantados nesta conferência para a impossibilidade das partes alcançarem acordo, apesar dos aturados e louvados esforços dos mandatários nesse sentido, é que nem um, nem outro dos ex-cônjuges confia nas capacidades de gestão do outro.
A interessada porque invoca uma decisão judicial que deverá em tempos ter destituído da gerência o ex-cônjuge marido, e este porque, desde que a ex-cônjuge mulher é gerente, alega não ter acesso às contas da sociedade.
Assim, torna-se patente que não é possível cada um destes ex-cônjuges, na falta de acordo, manter uma quota societária tendo ambas que ser adjudicadas a um ou a outro.
Por fim, e no que tange ao património das sociedades, nomeadamente um imóvel em regime de leasing, o mesmo não entra em linha de conta neste inventário porquanto não é bem comum sendo antes um bem da sociedade comercial em apreço a qual tem personalidade jurídica autónoma e distinta dos sócios, sendo apenas bem comum as duas quotas.
Nestes termos, ao abrigo do disposto nos artºs 1363º nº 1 e 1371º nº2 "in fine" do CPC antigo, determino se abram de imediato licitações e que as verbas nºs 8 e 9 do activo, ou seja, as duas quotas sociais, sejam licitadas em conjunto formando um único lote."
8. De imediato passou-se a fazer a licitação do único lote a ela sujeito, composto pelas verbas nºs 8 e 9 da relação de bens, o qual foi licitado pela requerida Maria pelo valor de € 490 000,00 (quatrocentos e noventa mil euros).
9. Foi proferido despacho de forma à partilha e elaborado mapa da partilha, no qual, além do mais, ficaram a caber à interessada Maria do Carmo as aludidas quotas sociais, pelo valor de € 420 000,00, ficando a dever ao interessado João tornas no valor de € 230.564,76.
10. Em 12.3.2018 foi proferida sentença de homologação da partilha, adjudicando-se a cada ex-cônjuge, respetivamente, os bens discriminados em tal mapa de partilha e condenando-se a interessada a pagar as tornas devidas ao cabeça-de-casal.
A interessada Maria do Carmo apelou da sentença e do despacho supra referido, proferido na conferência de interessados, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
O presente recurso de apelação, interposto nos termos e para os efeitos do disposto nos nº 1 e 2 do art.º 1396º, do anterior CPC, aplicável ao caso dos autos, por força do art.º 7º da lei 23/2013 de 5 de Março, e nº3 do art.º 644º do actual CPC, tem por objecto:
1. A sentença de partilha dos autos e bem assim as decisões interlocutórias proferidas na conferência de interessados de 23/06/2016, em especial e designadamente:
A. A decisão interlocutória que indeferiu a adjudicação da quota no valor nominal de €2500,00, de que a apelante é titular, no capital social da sociedade Carmo (…) Lda, requerida nessa conferência ao abrigo do disposto no nº 2 do art.º 1364º do CPC antigo,
B. e bem assim a decisão interlocutória proferida na mesma conferência de interessados que determinou, apesar da oposição da ora apelante e sem o seu acordo, a licitação da mesma quota, em conjunto com uma outra quota no capital social da mesma sociedade, de igual valor nominal, mas titulada pelo ex-cônjuge, ora apelado, quotas designadas na relação de bens e na dita conferencia, como verbas nº 8 e nº 9.
2. A ilegalidade das decisões interlocutórias referidas na conclusão anterior, e a consequente sua anulação ou revogação afectam a sentença final da partilha, implicando a sua modificação visto que, homologando o mapa de partilha elaborado com base e supondo a validade dessas decisões anuladas ou revogadas não poderá já manter-se inalterada.
3. A decisão interlocutória que indeferiu a adjudicação da quota requerida pela apelante enferma da nulidade prevista nas alíneas c) e d) do nº 1 do artº 615.º do actual CPC, por contradição insanável ou quando menos ambiguidade e obscuridade entre a decisão e os respectivos fundamentos, tornando tal decisão, ininteligível impedindo o conhecimento pelo seu destinatário, do percurso cognoscitivo percorrido pelo tribunal a quo com base no qual tal decisão foi proferida.
4. A mesma decisão interlocutória, fundamentando-se no pressuposto, expressamente declarado, de que “…o artigo 1364º do CPC antigo é bem claro ao estabelecer a possibilidade da adjudicação somente (sublinhado nosso) no caso de bens indivisíveis e em que o interessado que pede adjudicação seja comproprietário “ incorre em erro de julgamento e aplicação do direito visto que ignora ou desconsidera a norma constante do nº 2 do mesmo preceito, nos termos do qual “Pode igualmente qualquer interessado formular pedido de adjudicação relativamente a quaisquer bens fungíveis ou títulos de crédito, na proporção da sua quota, salvo se a divisão em espécie puder acarretar prejuízo considerável”, de que resulta um manifesto desmentido daquela afirmação, visto nela se preverem e admitirem outros casos de adjudicação não previstos no nº 1.
5. A adjudicação requerida cabe na previsão dos bens fungíveis a que se refere o citado nº 2 do artº 1364º, visto que pode ser objecto de relações jurídicas designadamente de compra e venda ou partilha, é determinada pela qualidade (especificando-se a sociedade cujo capital parcialmente representa), e pela quantidade, (expressa em valor nominal, e correspondendo a 50% do valor nominal do referido capital social ).
6. Por outro lado, no mesmo património comum, objecto do inventário, a distribuir pelos ex-cônjuges e no qual cada um deles tem direito a uma parte proporcional a 50%, existe uma outra quota, titulada pelo cabeça de casal, com o mesmo valor nominal e igualmente representativa de 50 % do capital social da mesma sociedade, pelo que a atribuição de cada uma dessas quotas, identificadas como verba nº 8 e nº 9, a cada um dos ex-cônjuges, corresponde ao meio mais adequado de distribuir equitativamente esses bens entre eles, incluindo pela via da adjudicação.
7. Tratando-se de uma sociedade por quotas em que ambos os interessados, ex-cônjuges, detêm a qualidade de sócios e na qual cada um é titular de uma quota de igual valor nominal, as quais constituem, de longe, os dois principais bens do património comum a dividir entre eles, como resulta da conferência de interessados e auto de licitações, no qual cada um tem direito a uma quota parte correspondente a 50% desses bens, a adjudicação de cada uma dessas quotas a cada um dos interessados é legal e adequado, constituindo aliás a melhor forma de garantir uma partilha equitativa e equilibrada, ao menos quanto a essas duas quotas sociais, dependendo essa adjudicação apenas do requerimento de cada um dos interessados, no exercício do correspondente e direito potestativo.
8. Acresce que não obsta ao exercício de tal direito potestativo por parte da interessada requerente da adjudicação, nem a circunstância de o cabeça de casal se haver oposto a tal pedido, ou não haver requerido também a adjudicação da quota de que é titular, visto que a lei, impondo que sejam ouvidos os restantes interessados sobre o correspondente pedido, não exige o acordo dos mesmos a tal adjudicação nem condiciona o seu deferimento a qualquer outra condição ou restrição não especificada no indicado preceito (nº 2 do art.º 1364º do antigo CPC).
9. E nada obsta á requerida adjudicação, a qual não acarretaria nenhum dos prejuízos que no citado nº 2 do art.º 1364º o legislador visou evitar e que impediriam a requerida adjudicação, visto que a dita quota, ojecto do pedido de adjudicação não está, nem nunca esteve, englobada ou reunida numa única quota ou quota maioritária representativa do capital social da mesma sociedade que lhe conferisse proeminência na gestão dessa sociedade e cuja divisão por efeito da adjudicação em separado pudesse implicar perda dessa maior valia no património comum a partilhar.
10. Acresce também que nem eventuais outros prejuízos decorrentes dessa requerida adjudicação poderiam ser invocados pelo cabeça de casal ora apelado que pudessem impedir ou desaconselhar o seu deferimento, visto que, supondo que a adjudicação requerida era deferida e realizada, essa adjudicação nenhum prejuízo poderia causar ao interessado – cabeça de casal –quer porque nem ele invocou qualquer prejuízo quer por que, mesmo não requerendo ele próprio também a adjudicação da quota de que é titular, como seria seu direito,nem essa adjudicação lhe podendo ser imposta sem o seu acordo, restar-lhe-ia sempre a opção de licitar voluntariamente sobre essa mesma quota nos termos que entendesse, não sendo sequer necessário acordo da interessada ex-cônjuge ou o preenchimento de qualquer outra condição.
11. A adjudicação requerida é por isso legal e justificada sendo antes ilegal e injustificado o indeferimento e denegação dessa adjudicação, indeferimento que alias é causador de prejuízos gravíssimos para a própria recorrente, nomeadamente porque, sendo indeferida a adjudicação ficaria, como ficou, por efeito dessa decisão surpresa e ilegal, colocada na situação dilemática e injusta de ter de escolher entre duas alternativas insustentáveis e ambas de efeitos nefastos e injustos, e com prejuízos incalculáveis:
A. Ou licitar a quota em causa, como forma de tentar evitar a perda de valor dessa parte (a mais importante) do seu património, mas ficando, nesse caso, a dever tornas de valor elevadíssimo relativas á aquisição de um bem sobre o qual já tem direito de meação
B. Ou não licitar sobre a mesma quota, - como única forma de não incorrer no indicado risco de ficar a dever tornas e não poder pagá-las sem alienação dos bens licitados e também não poder proceder desta forma por não dispor desses bens antes desse pagamento, mas, nesse caso, não licitando, sofrendo igual ou ainda maior perda de valor, visto que, não licitando nem teria oportunidade de garantir a correcção do valor nominal atribuído na relação de bens (correcção que é um dos principais objetivos visados pelo legislador com a licitação).
12. A decisão interlocutória a que se referem as conclusões anteriores, indeferindo a adjudicação requerida tempestivamente e na sede própria, ao abrigo do regime legal previsto no nº 2 do art.º 1364º, fundamentando-se para tal indeferimento não numa diferente interpretação desse preceito mas trazendo á colação um outro preceito (o nº 1 do mesmo art.º 1364º) não invocado nem aplicável, para concluir que, segundo esse outro preceito, a requerida adjudicação é inadmissível, deixando completamente fora da apreciação o invocado nº 2 desse art.º 1364º, consubstancia erro e incoerência e inconsistência manifestos, sofrendo das nulidades previstas nas alíneas c) e d) do nº 1 do art º 615 do CPC em vigor, quer por omissão de pronuncia sobre matéria submetida á sua apreciação quer por contradição insanável entre os fundamentos e a própria decisão ou pelo menos por ambiguidade e obscuridade dos respectivos fundamentos, que tornam a decisão ininteligível, impedindo o conhecimento, pelo destinatário, do percurso cognoscitivo percorrido pelo autor dessa decisão com base e em consequência do qual tal decisão foi tomada, nomeadamente criando a convicção de que, o autor dessa decisão não a teria seguramente proferido se se tivesse apercebido de tais erros e inconsistências,
13. A convicção referida na conclusão anterior não é gratuita nem arbitrária antes decorre do manifesto erro de apreciação materializado na afirmação /conclusão manifestamente errónea constante dos fundamentos e justificações dessa decisão de que “o artº 1364º do CPC antigo é bem claro ao estabelecer a possibilidade de adjudicação somente (sublinhado nosso) em caso de bens indivisíveis e em que o interessado que pede essa adjudicação seja comproprietário ”-quando se tem presente, como deve o disposto no nº 2 do mesmo preceito, invocado pela requerente da adjudicação como seu fundamento legal, que prevê inequivocamente outros diferentes casos em que a adjudicação é admissível, estabelecendo que:
“Pode igualmente qualquer interessado formular pedido de adjudicação relativamente a quaisquer bens fungíveis ou títulos de crédito, na proporção da sua quota, salvo se a divisão em espécie puder acarretar prejuízo considerável” (nº 2 do art.º 1364 do CPC antigo)
14. A decisão interlocutória a que se referem as conclusões anteriores é, em qualquer caso, ilegal por desrespeitar o disposto no nº 2 do art.º 1364º e nº 2 do artº 1363º ambos invocados pela recorrente, ofendendo também o princípio da partilha equitativa do património ou “equilíbrio na distribuição”, emergente de numerosos preceitos, nomeadamente dos citados preceitos e ainda dos artº 1364º, 1374º e 1375º todos do CPC, na redacção anterior, aqui aplicável.
15. Fundamentos por que deve tal decisão ser declarada nula ou quando menos anulada ou revogada e substituída por outra que admita e defira a requerida adjudicação nos termos requeridos
16. A 2ª decisão interlocutória proferida na conferência de interessados de 23/06/2016, objecto da presente apelação, identificada na Alínea B da conclusão 1, tem o seguinte teor:
Nestes termos, ao abrigo do disposto nos artºs 1363º nº 1 e 1371º nº2 "in fine" do CPC antigo, determino se abram de imediato licitações e que as verbas nºs 8 e 9 do activo, ou seja, as duas quotas sociais, sejam licitadas em conjunto formando um único lote."
17. O preceito citado como fundamento dessa decisão a 2º parte do nº 2 (“in fine”) do art.º 1371º, do CPC anterior, estabelece que “…2. Cada verba é licitada de per si, salvo se todos concordarem na formação de lotes para este efeito, ou se houver algumas que não possam separar-se sem inconveniente…” pressupondo, portanto que a licitação de cada uma das quotas aí referidas implica o inconveniente ai previsto.
18. No entanto esse preceito e respectiva excepção não comporta a interpretação que lhe foi dada na decisão sob recurso, sendo mesmo comumente assente o entendimento de que o inconveniente que ai se pretende evitar não é qualquer inconveniente real ou ficcionado, mas tão somente o inconveniente de separar, pela licitação individual, bens que eram detidos e geridos em conjunto no património a partilhar, quando dai pudesse decorrer perda de valor desse bens, como alias defende Lopes Cardoso (Partilhas Partilhas, Volume II -,Almedina -5ª Edição, nota II à anotação nº319, pag. 365/366).
19. No entanto a dita decisão interlocutória, fundamentando-se formalmente na citada excepção da parte final do nº 2 do artº 1364º, tem como verdadeira motivação não o prejuízo, previsto no preceito citado – o único atendível, mas sim motivações estanhas ao objecto do inventário ou seja obstar a que os ex-cônjuges se mantivessem ambos como sócios na sociedade C..., Lda., cujo capital social é representado a 100% pelas referidas quotas, cada uma delas tituladas por cada um dos ex-cônjuges, representando cada uma 50% desse capital, e identificadas no inventario dos autos como verbas nº 8 e nº 9, aderindo, sem qualquer suporte ou prova, ás alegações do cabeça de casal que, segundo ele, justificariam a licitação conjunta dessas quotas.
20. E se alguma dúvida pudesse suscitar-se quanto ao fundamento da conclusão anterior, basta atentar - nas evidentes incongruências e inconsistências dos fundamentos legais invocados em ambas as decisões (indeferimento da adjudicação e imposição da licitação em conjunto, num só lote, de ambas as quotas sociais e sobretudo na explicação ou justificação expressa que é dada nesta decisão, que conclui nos seguintes termos, de teor e alcance inequívocos:
A permitir que a verba nº 8 possa vir a ser licitada por um dos ex-cônjuges e a verba nº 9 por outro, não só iríamos cair indirectamente na adjudicação pretendida pela interessada, deixando entrar, assim, pela janela aquilo que o legislador não deixou entrar pela porta, como na prática iria traduzir uma possível paralisação dos direitos societários para um ou ambos os ex-cônjuges”
21. Com tal decisão, pretendeu-se portanto e manifestamente, não evitar a inconveniência de diminuição do valor ou utilidade económica que tinham as quotas em causa antes da dissolução do vinculo conjugal ou seja, a inconveniência que constitui o pressuposto legal que justifica a restrição que consta do nº 2 do artº 1364 mas, antes, declaradamente, para resolver um litígio societário entre os interessados no âmbito da sociedade comercial, acima citada, de que ambos são sócios em partes iguais, em apreciação noutras instâncias judiciais (como se constata da referência expressa feita pela recorrente à pendência de acção judicial de exclusão do cabeça de casal do respectivo quadro societário, submetido a apreciação do Tribunal do Comércio de Lisboa.)
22. Ora a dita decisão é manifestamente ilegal, por violação do princípio da partilha equitativa do património conjugal desrespeitando o disposto no citado preceito, nº 2 do art.º 1371º e ainda o nº 2 do art.º 1363º (que exclui da licitação as verbas que hajam sido objecto de pedido de adjudicação) visto que ao contrário da respectiva fundamentação, as circunstâncias invocadas, não se enquadram na inconveniência nele prevista, devendo por isso ser anulada ou revogada, com as legais consequências.
23. A verdade é quer a decisão que ilegalmente indeferiu a adjudicação requerida quer a ainda mais grave decisão que impôs a licitação em conjunto, num só lote, das duas únicas quotas sociais-principal bem do património a dividir, é causador de prejuízos gravíssimos para a própria recorrente, sem meios próprios que lhe permitam fazer face a obrigação de pagamento de tornas de valor elevadíssimo, que o legislador pretende evitar, como ensina a jurisprudência (cf por todos o Ac. do TRC de 15-03-2013-de que foi Relator Teles Pereira), nomeadamente por que sendo indeferida a adjudicação ficaria, como ficou, por efeito dessa decisão surpresa e ilegal, colocada na situação dilemática e injusta de ter de escolher entre duas alternativas insustentáveis e de efeitos nefastos e injustos, e com prejuízos incalculáveis:
Ou licitar a quota em causa, como forma de tentar evitar a perda de valor dessa parte (a mais importante) do seu património, mas ficando, nesse caso, a dever tornas de valor elevado relativas á aquisição de um bem sobre o qual já tem direito de meação !
24. Como consequência das ilegalidades e necessária da anulação ou revogação das decisões interlocutórias objecto da presente apelação – de ambas ou mesmo de uma delas – a sentença final homologatória da partilha dos autos não pode nem deve manter-se, fundamento por que deve ser revogada com as legais consequências.
O interessado João contra-alegou, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª A decisão interlocutória que indeferiu a adjudicação à recorrente da quota social titulada em seu nome (verba 9) encontra-se devidamente fundamentada, sendo que os respectivos fundamentos não estão em oposição com a decisão, nem ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne tal decisão ininteligível.
2.ª Assim, a decisão interlocutória em crise não padece da nulidade invocada pela recorrente, nem tão pouco de qualquer erro na interpretação e aplicação do Direito, fazendo correcta interpretação e aplicação do art.º 1364.º/1/2 do CPC.
3.ª E, por outro lado, a decisão que determinou a licitação conjunta das duas quotas (verbas 8 e 9) também se mostra devidamente fundamentada e não padece de qualquer erro na interpretação e aplicação do Direito, fazendo correcta interpretação e aplicação do art.º 1371.º/2 do CPC.
O apelado terminou pedindo que a apelação fosse julgada improcedente, mantendo-se as duas decisões interlocutórias e a sentença em crise.
O tribunal a quo pronunciou-se pela inexistência das nulidades invocadas pela apelante.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam nesta apelação são as seguintes: nulidades da primeira decisão interlocutória recorrida; adjudicação da quota social titulada pela apelante; licitação conjunta das duas quotas sociais.
Primeira questão (nulidades da primeira decisão interlocutória impugnada)
O factualismo a levar em consideração é o referido nos n.ºs 3 a 7 do Relatório supra.
O Direito
A apelante entende que a decisão de indeferimento de adjudicação à interessada da quota social relacionada como verba n.º 9 é nula, por falta de pronúncia, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Vejamos.
No decurso da conferência de interessados a ora apelante requereu que lhe fosse adjudicada a quota por si titulada na sociedade comercial por quotas da qual ela e o ex-marido eram e são os únicos sócios. Para tal alegou que assim se asseguraria equitativa partilha do património conjugal e evitar-se-ia o prejuízo que causaria a eventual licitação e adjudicação das duas quotas ao cabeça-de-casal, pois, nesse caso, a requerente continuaria vinculada, na qualidade de fiadora do leasing de que a sociedade em causa é titular e, além disso, deverá considerar-se a existência de uma acção judicial de exclusão de sócio interposta pela sociedade contra o cabeça-de-casal.
Ora, conforme decorre da transcrição constante supra no n.º 7 do Relatório, o tribunal pronunciou-se sobre o aludido requerimento de adjudicação, concluindo pela sua inadmissibilidade, pelas razões aí expostas. Para esse efeito o tribunal analisou o art.º 1364.º do CPC de 1961, invocado pela interessada Maria. Se é certo que o fez na perspetiva do disposto no n.º 1 do art.º 1364.º, seguramente o foi por considerar que seria a única parte do artigo aplicável ou adequada ao caso. Sendo certo que embora a apelante tenha invocado, no seu requerimento, o n.º 2 do mesmo artigo, fê-lo sem qualquer detalhe ou desenvolvimento que confirmasse que era essa a previsão legal tida em vista e, além disso, explicitasse a razão da sua aplicabilidade ao caso concreto. Ora, como bem refere a apelante, jura novit curia (art.º 5.º n.º 3 do CPC), pelo que o tribunal a quo, procedendo conforme o fez, cumpriu o seu dever de pronúncia sobre a questão que lhe fora apresentada, não incorrendo, pois, na omissão que lhe é imputada. E fê-lo de forma coerente e clara, não se vislumbrando a falência formal prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC (oposição entre os fundamentos e a decisão, ou ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível): após ajuizar que a adjudicação pretendida pela interessada Maria do Carmo não era possível, por não se estar perante um bem titulado por esta em regime de compropriedade, mas de um bem que integrava o comum património conjugal, concluiu-se, sem qualquer hiato lógico, ambiguidade ou obscuridade, pelo consequente indeferimento da adjudicação requerida.
Inexistem, assim, as nulidades imputadas à decisão recorrida, pelo que nesta parte a apelação improcede.
Segunda questão (adjudicação da verba n.º 9 à interessada Maria do Carmo)
Resulta dos autos, além do que já consta no Relatório supra, a seguinte
Matéria de facto
1. Os ora interessados contraíram matrimónio entre si em 30 de junho de 1990, sem convenção antenupcial.
2. Em 1998 os ora interessados constituíram entre si a sociedade por quotas denominada “Carmo (…) Lda”, com o capital social de € 5 000,00, dividido em duas quotas com o valor nominal, cada uma, de € 2 500,00, tituladas, cada uma, por cada um dos interessados, e cabendo a gerência da sociedade à sócia Maria do Carmo.
3. Os interessados divorciaram-se por sentença proferida em 20 de abril de 2010, pelo 1.º Juízo de Família e Menores de Cascais, que transitou de imediato em julgado.
O Direito
O presente processo de inventário, instaurado em 31.3.2011, rege-se pelo Código de Processo Civil de 1961 (art.º 7.º da Lei n.º 23/2013, de 05.3, art.º 5.º n.º 2 da Lei n.º 41/2013, de 26.6), com a redação introduzida, em matéria de inventário, pelo Dec.-Lei n.º 227/94, de 8.9.
Pela interessada Maria do Carmo foi, no decurso da conferência de interessados, requerida a adjudicação da quota social que constituía a verba n.º 9 da relação de bens comuns do casal.
Para tal, invocou o disposto no n.º 2 do art.º 1364.º do CPC de 1961.
Tal artigo tem a seguinte redação:
Pedidos de adjudicação de bens
1. Se estiverem relacionados bens indivisíveis de que algum dos interessados seja comproprietário, excedendo a sua quota metade do respectivo valor e fundando-se o seu direito em título que a exclua do inventário ou, não havendo herdeiros legitimários, em doação ou legado do autor da herança, pode requerer que a parte relacionada lhe seja adjudicada.
2. Pode igualmente qualquer interessado formular pedido de adjudicação relativamente a quaisquer bens fungíveis ou títulos de crédito, na proporção da sua quota, salvo se a divisão em espécie puder acarretar prejuízo considerável.
3. Os pedidos de adjudicação a que se referem os números anteriores são deduzidos na conferência de interessados; os restantes interessados presentes são ouvidos sobre as questões da indivisibilidade ou do eventual prejuízo causado pela divisão, podendo qualquer dos interessados requerer que se proceda à avaliação.
O n.º 1 do referido artigo constitui, como realça Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, vol. II, 5.ª edição, Almedina, p. 354), manifestação do desfavor com que é encarada, nomeadamente pelo legislador, a situação de compropriedade, pelas querelas e consequente desaproveitamento das utilidades da coisa titulada em comum. Assim, se da herança fizer parte coisa indivisível que pertencia ao de cujus em compropriedade com terceiro, o interessado comproprietário poderá requerer que a parte relacionada lhe seja adjudicada, posto que a sua quota parte exceda a que integra a herança.
A adjudicação emerge, pois, de uma especial ligação entre o adjudicatário e o bem em causa, face aos restantes interessados.
Ora, como bem se referiu na decisão recorrida, as duas quotas sociais representativas da sociedade constituída pelos dois ex-cônjuges, se bem que nominalmente tituladas em separado por cada um dos interessados, integram, por força do disposto nos artigos 1717.º e 1724.º al. b) do Código Civil, o acervo de bens comuns do casal, isto é, integram o património da comunhão conjugal, que constitui uma contitularidade de mão comum, cujos titulares o são de um único direito, tendo cada um dos cônjuges uma quota na comunhão, que é designada por meação nos bens comuns (cfr., v.g., art.º 1730.º n.º 2 do CC; Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª edição, Almedina, pp. 428 e 429).
Ou seja, não existe entre a interessada Maria do Carmo e a quota social que constitui a verba n.º 9 da relação de bens uma especial ligação, face ao outro interessado, que fundamente a sua adjudicação à ora apelante – além de que a eventual contitularidade da quota não excederia a proporção de metade.
Assim, e como de resto a própria apelante reconhece, ao caso não é aplicável a previsão do n.º 1 do art.º 1364.º do CPC antigo.
Só que, contrariamente ao pretendido pela apelante, ao caso sub judice também não é aplicável a previsão do n.º 2 do mesmo artigo.
Esta, em vez de favorecer a atribuição de um bem em particular a um determinado interessado, admite expressamente que, em lugar de se proceder à licitação de determinados bens, estes sejam adjudicados aos diversos interessados, por meio de distribuição efetuada na proporção da respetiva quota no conjunto de bens a partilhar. Tratar-se-á, como é bom de ver, de bens que, pelas suas características de indiferenciação, proporcionem essa distribuição, na qual seja irrelevante para os interessados o quinhão de bens em concreto que lhes caberá. Isto é, como resulta do n.º 2 do art.º 1364.º, tratar-se-á de bens fungíveis ou de títulos de crédito.
O conceito de bens fungíveis, ou melhor, de coisas fungíveis, está traçado no art.º 207.º do Código Civil: “são fungíveis as coisas que se determinam pelo seu género, qualidade ou quantidade, quando constituam objecto de relações jurídicas”.
Esta categoria de bens respeita a coisas materiais, corpóreas (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, anotação 1. ao art.º 207.º; Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 452). É fungível a coisa suscetível de substituição, na medida em que no âmbito da obrigação a que se reporta é indiferente a identificação em concreto da coisa a prestar: seja trinta euros de gasolina, uma dúzia de cadernos, um quilo de trigo ou dez pães (Comentário ao Código Civil, citado, p. 467). Se a obrigação tiver por objeto coisa fungível, será uma obrigação genérica (art.º 539.º e seguintes), cabendo, em regra, ao devedor escolher as coisas que serão concretamente entregues (Comentário ao Código Civil, citado, pp. 467 e 468).
Do exposto resulta que as duas quotas sociais que integram a comunhão conjugal não são coisas fungíveis: para além de não serem coisas, mas conjuntos ideais e unitários de direitos e obrigações, próprios da posição de sócio (cfr., v.g., Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, volume II, 5.ª edição, Almedina, pp. 195, 206), o objeto das quotas está prévia e concretamente determinado, por reporte ao concreto feixe de direitos e obrigações adstritos a uma individualizada sociedade que a participação social confere.
Por outro lado, como se viu, também é possível a adjudicação repartidora relativa a títulos de crédito. Enquanto documentos representativos de valores pecuniários, caraterizados pela literalidade e abstração e fácil transmissibilidade, poderá ser razoável e exequível proceder-se à sua divisão por todos os interessados. No que concerne a participações sociais, tal será possível em relação às ações, que constituem expressões fracionadas do capital social das sociedades anónimas e dão origem à emissão de títulos (cfr. artigos 271.º, 274.º, 304.º, todos do CSC), constituindo uma modalidade de títulos de crédito ou de valores mobiliários (cfr. art.º 1.º al. a) e 46.º n.º 1 do CVM; Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, citado, pp. 207-209).
Já não assim quanto às quotas sociais, que não são representáveis por títulos (art.º 219.º n.º 7 da CSC: “Não podem ser emitidos títulos representativos de quotas”; cfr. Coutinho de Abreu, Curso…, cit., p. 208, nota 467).
Por conseguinte, a situação em apreço também não se enquadra na previsão do n.º 2 do art.º 1364.º do CPC1961.
Pelo que bem esteve o tribunal a quo quando indeferiu a pretendida adjudicação.
Terceira questão (licitação conjunta das duas quotas sociais)
Não havendo lugar à atribuição preferencial de bens, nem a adjudicação, e não chegando os interessados a acordo quanto à forma de composição da respetiva meação, haverá que proceder à licitação entre os interessados (art.º 1363.º do CPC1961).
Nos termos do n.º 2 do art.º 1371.º, cada verba é licitada de per si, “salvo se todos concordarem na formação de lotes para este efeito, ou se houver algumas que não possam separar-se sem inconveniente.”
A inconveniência aqui referida da licitação separada de verbas afere-se de forma objetiva, à luz da sua valia e utilidade económica, tendo em consideração as circunstância do caso em concreto.
No caso dos autos, o tribunal a quo considerou que a licitação das quotas em separado, abrindo o caminho para que cada interessado ficasse com uma quota, obstaria a uma efetiva e definitiva partilha dos bens comuns do casal, impedindo que cada membro do ex-casal seguisse de vez o seu caminho individual, além de que, atendendo ao clima de desentendimento patente entre os sócios, se corria o risco de impossibilitação da prossecução do objeto social.
Afigura-se-nos que a decisão do tribunal a quo é razoável e justificada.
Na pendência do seu casamento os dois cônjuges constituíram uma empresa, formalizada por sociedade por quotas, que constituía bem comum do casal. Ora, como é bem de ver, uma situação de participação conjunta numa atividade empresarial, da iniciativa de um casal, pressupõe condições de entendimento, próprias do normal relacionamento dos cônjuges. Porém, dissolvido o casal, em regra perde-se o espírito de entreajuda e cooperação que pressupôs a constituição da sociedade e pressupõe a manutenção dos seus membros na titularidade do respetivo capital. Acresce que, devendo proceder-se à licitação do capital da sociedade não faria sentido que verbas idênticas quanto à sua natureza e valor nominal fossem licitadas em separado, potenciando-se uma disparidade de valores emergente do mecanismo de licitação. Há, pois, conveniência na licitação conjunta das duas verbas referidas, ou seja, de todo o capital social. Se a apelante se vê na iminência de suportar tornas elevadas, tal emerge, não da iniciativa do tribunal (caso a que se refere o acórdão da Relação de Coimbra, de 15.01.2013, citado pela apelante, em que coube ao tribunal a quo, por falta de licitação dos interessados em relação a diversas verbas, compor os respetivos quinhões, gerando entre alguns interessados o dever de pagamento de elevadas tornas), mas da interessada, que se dispôs a atribuir às quotas, licitando, valor que seguramente reputou adequado.
Termos em que, também quanto a esta decisão, falece a apelação.
Em relação à sentença de homologação da partilha a apelante não apontou falha autónoma ou independente, tudo se resumindo aos vícios apontados às duas decisões que a antecederam, que se repercutiriam na solução de partilha final.
Ora, como as duas decisões interlocutórias devem, no nosso entendimento, subsistir, também assim se manterá a sentença de partilha.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantêm-se as decisões recorridas.
As custas da apelação são a cargo da apelante, porque nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 08.11.2018

Jorge Leal

Pedro Martins

Laurinda Gemas