Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO VALENTE | ||
Descritores: | ABUSO DE DIREITO PRINCÍPIO DISPOSITIVO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/04/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | O conhecimento oficioso do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) não implica que o Tribunal indague oficiosamente os factos que eventualmente poderiam, no caso, integrar essa figura jurídica. (SC) | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa Veio nos presentes autos ˚I.[…] SA pedir a condenação de […] Sport a pagar-lhe a quantia de € 5.389,66, com acréscimo de juros. Alega para tal e em síntese ter celebrado com a Ré um contrato de seguro para o ramo acidentes pessoais de grupo. O seguro foi celebrado em 1/8/98 pelo prazo de um ano. O prémio correspondente era um prémio único, que a Ré nunca pagou, o que levou à resolução do contrato pela Aª em 19/5/99. A Ré contestou alegando que, de acordo com os seus Estatutos, a mesma só se obriga mediante as assinaturas conjuntas do seu Presidente, Tesoureiro e Secretário em exercício de funções. O contrato junto pela Aª apenas contém uma assinatura, de alguém sem poderes para o efeito. O negócio celebrado por alguém sem poderes de representação em nome de outrem, é ineficaz em relação a este se não for por ele ratificado. A Ré nunca ratificou o contrato. Foi proferida decisão que julgou acção improcedente. * Inconformada, recorre a Seguradora concluindo que: – A apelada confessou a celebração do contrato de seguro. – Fê-lo, para invocar a ilegitimidade da Aª. – Só para o caso de a excepção não proceder é que alegou a apelada a falta de poderes de quem subscreveu o contrato. – O que configura, por parte da Ré, uma actuação abusiva e reprovável. – Contudo, o Mº juiz a quo não entendeu existir uma situação de abuso de direito. – Não era necessário que a ora recorrente tivesse invocado expressamente o abuso de direito, desde que este decorresse da factualidade dos autos. – Poderia igualmente o tribunal ter convidado a Aª a concretizar os factos em que assentou a alegação desta, de que o contrato em causa apenas aproveitou à apelada e que só ela tirou proveito dos seus efeitos. * Foi dado como provado que: A) A fls. 6 consta a cópia de um documento, datado de 1/8/98, emitido pela Companhia de Seguros […], que indica o nº de apólice […], constando como tomador do seguro a Ré, destinando-se tal contrato a segurar acidentes pessoais de grupo pelo período de um ano. B) No espaço intitulado “assinatura do tomador” encontra-se aposto um carimbo ilegível e uma única assinatura, também ilegível. C) Em 15/2/99 a Aª emitiu e apresentou a pagamento o recibo relativo ao prémio único, no montante de € 5.165,20, que a Ré não pagou. D) Em 12/4/99 a Aª emitiu e apresentou a pagamento o recibo relativo ao acerto de prémio por alterações no capital seguro ocorridas entre 1/8/98 e 31/7/99, no montante de € 224,46. E) Em 19/5/99 a Aª comunicou à Ré que rescindia o contrato de seguro e que aquela era devedora da quantia de € 5.389,66. F) Nos termos dos Estatutos da Ré, no seu art.º 27º, “nas operações financeiras são obrigatórias as assinaturas conjuntas d Presidente e do Tesoureiro (...) Nos actos de mero expediente bastará a assinatura de qualquer membro da Direcção (...) O […] Sport obriga-se com as assinaturas conjuntas do seu Presidente, tesoureiro e secretário em exercício de funções”. * 2 Cumpre apreciar. A questão colocada no presente recurso, atentas as respectivas conclusões, é a de saber se existiu abuso de direito por parte da Ré. Na decisão recorrida e face ao teor do art.º 163º do CC que dispõe que a representação da pessoa colectiva de direito privado cabe a quem os estatutos determinarem, concluiu-se que. exigindo os estatutos da Ré que esta seja representada pelas assinaturas do Presidente, Secretário e Tesoureiro em exercício, e constando do contrato apenas uma assinatura, a Ré não se vinculou ao contrato de seguro. Sendo pois inexigível o cumprimento de quaisquer obrigações decorrentes de tal seguro. A recorrente não põe em causa tal raciocínio mas entende que a Ré deveria ter sido condenada no pedido no âmbito do abuso de direito. Curiosamente, na sua resposta à contestação, a Aª nunca invoca o abuso de direito. Foi o Mº juiz a quo que, na sentença, suscitou a questão, apenas para chamar a atenção que a Aª poderia ter lançado mão de tal instituto jurídico, invocando factualidade adequada, mas não o fez. Só agora, em sede de apelação, vem a Seguradora invocar o abuso de direito, aproveitando as considerações feitas a este respeito na sentença. Para começar, diremos que a Ré, nem no art.º 1º da contestação nem em nenhum outro confessou ter celebrado o contrato de seguro. O art.º 1º desse articulado tem o seguinte teor: “O contrato junto como documento 1 à petição inicial, foi realizado entre a Companhia de Seguros Bonança, Sociedade Anónima, e não com a A. devidamente identificada nos autos, pelo que não se pode aferir a legitimidade da A. para intervir na presente acção”. Como é fácil de ver, a Ré apenas menciona, no âmbito da celebração do contrato, a Aª e a entidade celebrante Companhia de Seguros Bonança. Nunca se refere a si própria. Logo, não é verdade que a Ré tenha aceite ter sido parte celebrante nesse contrato de seguro. 3 E ao alegar a prescrição, a Ré não admite ter celebrado o contrato por quem devidamente a represente. Limita-se a afirmar não ser comerciante, sendo uma associação desportiva de direito privado, acrescentando que “nem destinou o produto adquirido à Companhia de Seguros Bonança para o seu comércio tendo em conta a característica do produto vendido, ou seja, um seguro de acidentes pessoais”. Este tipo de alegação não nos parece configurar qualquer espécie de confissão. Limita-se a alegar um facto sem o qual não seria viável a invocação da suposta prescrição presuntiva. Recordemos que, nos termos do art.º 490º nº 2 do CPC, se consideram admitidos por acordo os factos não impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto. O que é exactamente o caso em apreço. Além disso, repete-se, a Ré, mesmo nessa parte do articulado, não admite ter sido devidamente representada na celebração do contrato. Ora, a questão da representação é a base da oposição da Ré ao pedido da Aª, por entender que a única assinatura constante da apólice não a pode obrigar. Processualmente, entendemos que a Contestação da Ré não integra a conduta “abusiva e reprovável” a que a recorrente alude nas suas conclusões. O abuso de direito, tal como definido pelo art.º 334º do CC, determina a ilegitimidade do exercício de um direito sempre que o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito. Ao invocar a falta de representação adequada aquando da celebração do contrato, a Ré não incorre no chamado venire contra factum proprium na medida em que não existe qualquer indício nos autos de um comportamento da Ré que, razoavelmente, conduzisse à convicção da Aª de que tal invocação nunca seria formulada. Do mesmo modo e face à factualidade atendível não se pode concluir que a Ré use o direito para fins diversos dos que presidiram à sua constituição ou que o mesmo seja ofensivo dos bons costumes. A Ré limita-se a invocar os seus estatutos, que determinam o modo como poderá ser representada, sendo que o contrato dos autos contém um carimbo ilegível e uma assinatura igualmente ilegível no espaço reservado ao tomador do seguro. 4 É patente, como se refere na decisão recorrida, que a seguradora deveria ter um pouco mais de cuidado ao celebrar os seus contratos, nomeadamente tratando-se de pessoas colectivas de direito privado. Um carimbo e uma assinatura inteiramente ilegíveis (ver fls. 8) não deveriam ser aceites pela Aª, sem mais, sob pena de se sujeitar posteriormente a problemas como o dos autos. Sendo verdade que o abuso de direito é de conhecimento oficioso, isso não significa que o juiz deva convidar a parte (que nem sequer o invocou) para indicar factos que possam suportar esse mesmo abuso de direito. O conhecimento oficioso significa apenas que o juiz, perante os factos que constam dos autos, retira a conclusão que uma das partes – ou até ambas – estão a incorrer na previsão do art.º 334º, embora nenhuma delas o tenha invocado. Não significa que o juiz convide a parte a alegar factos que até então não constam do processo para depois aferir se existiu ou não abuso de direito. Se, por hipótese, constasse dos autos que a Ré, num caso de acidente, havia lançado mão da apólice para obter a compensação contratual, é manifesto que a sua presente invocação de falta de representação na celebração do contrato revelaria profunda má fé. Mas o nível de intervenção oficiosa do tribunal situar-se-ia justamente no plano de tal conclusão jurídica, mesmo não invocada pela seguradora: seria porque os factos atendíveis revelavam a existência de uma das modalidades de abuso de direito que o julgador, por sua iniciativa, julgaria a atitude da Ré abrangida pelo art.º 334º e a condenaria no pedido nessa base. Mas pretender, como o faz a recorrente, que o juiz, na ausência de invocação de abuso de direito pela parte, na ausência de factos que o indiciem, a fosse convidar a alegar factualidade que pudesse integrar o abuso de direito, constitui uma tese inaceitável a todos os títulos. Em suma: uma coisa é não invocar o abuso de direito, que é de conhecimento oficioso, outra, inteiramente diversa, o não alegar factos – nem estes constarem dos autos, por qualquer outro modo – que a ele possam conduzir. A Aª incorreu em ambas as situações, pelo que só de si se pode queixar, nunca do tribunal que não omitiu qualquer dever a que estivesse legalmente vinculado. 5 Citem-se em conclusão, as avisadas palavras de Meneses Cordeiro: “O abuso do direito é um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes. (...) Há que usá-lo sempre que necessário. Mas nunca pode ser banalizado: havendo solução adequada de Direito estrito, o intérprete-aplicador terá de procurá-la, só subsidiariamente se reconfortando no abuso de direito. E só conjunturas muito ponderosas e estudadas poderão justificar uma solução contrária à lei estrita”. (“Tratado de Direito Civil Português” I, p. 248). Assim e pelo exposto acorda-se julgar improcedente a apelação. Custas pela apelante. LISBOA, 4 de Outubro de 2007 (António Valente) (Ilídio Sacarrão Martins) (Teresa Pais) |