Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
147/13.3TELSB-K.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: NE BIS IN IDEM
COMPETENCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
APREENSÃO DE BENS
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I – A competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal é a definida nos artºs 4º a 6º do Código Penal, (Cons. Maia Gonçalves, anot.7 ao artº 19º do CPP), e obedece aos princípios da nacionalidade, defesa dos interesses nacionais, universalidade, administração supletiva da lei e da aplicação convencional.

II – Não tem, assim, o MºPº competência para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, nesse mesmo País.

III – Tendo os alegados factos, neste caso, sido objecto de processo com acusação deduzida em outro País, igualmente subscritor da Convenção de Auxílio judiciário Mútuo em matéria penal, no âmbito da CPLP, a instauração do referido inquérito viola o princípio do “ne bis in idem”.

IV – Segundo o referido princípio do “ne bis in idem” –artº 29º, nº5 da CRP, - ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, valendo tal garantia para todos os tribunais, e todas as pessoas, não apenas para cidadãos portugueses, e para julgamentos efectuados por Tribunais Portugueses.

V – Qualquer apreensão cautelar de bens efectuada em conexão com os alegados factos ocorridos em Angola, no Brasil ou em França/ Mónaco só pode ser efectuada, neste caso, no âmbito da Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal, entre os Países da CPLP, ou no âmbito da Dec. QUADRO 2003/577/JAI, de 22 de Julho, sob pena de violação do alegado princípio.

VI – Tendo sido aberto inquérito com violação do princípio do “ne bis in idem”, por um lado, e da competência internacional do Estado Português, por outro, impunha-se nos termos do disposto nos artºs 4ºdo CPP e 96º do CPC actualizado, o conhecimento oficioso da excepção da incompetência absoluta do Tribunal, o que foi determinado em recurso anterior,

VII – Quando uma decisão intercalar possa ser, ou tenha sido, objecto de recurso, com subida imediata, há-de poder formar caso julgado formal.

VIII – Por força do caso julgado, estando definitivamente estabelecida a incompetência internacional dos tribunais portugueses, o Meritíssimo Juiz ao proferir o despacho recorrido, está a violar as regras da competência dos tribunais portugueses e a cometer a nulidade insanável do artigo 119º, alínea f), do Código de Processo Penal

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório

Nos autos de inquérito que correm termos nos serviços do Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, com o Nº 147/13.3TELSB, na sequência de requerimento apresentado por B..., no qual suscitava a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para a investigação dos factos em apreciação no referido inquérito, o Meritíssimo Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal indeferiu o mesmo, como melhor à frente se explicará, nos seguintes termos: (transcrição)

“Fls. 5020 e segs. com referência a fls. 5105 e segs. – Nada a ordenar. Notifique, com cópia da promoção e despacho”. (fim de transcrição)

***

Não se conformando com a referida decisão dela veio B... interpor o presente recurso, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões: (transcrição)


I. O presente recurso vem interposto do despacho do TCIC de 32/12/2016, constante da fl. 5013 dos autos – que remete para, e acolhe, o conteúdo da promoção do DCIAP de 1/2/2016.
II. O presente recurso deve subir imediatamente, ao abrigo do disposto no artigo 407.º n.º 1 do CPP, uma vez que a sua apreciação diferida impediria, só por si, que o mesmo tivesse possibilidade de procedência, retirando-lhe toda e qualquer utilidade prática.
III. Além disso, a consequência primacial do presente recurso consiste no encerramento do inquérito com fundamento na invalidade dos respectivos actos, tendo ainda em vista prevenir a manutenção ilegal de medida probatórias decretadas nos autos que restringem o direito do Recorrente dispor do seu património – sendo que ambos esses escopos perderiam em absoluto o seu sentido e utilidade no termo do processo, quando a fase de inquérito já se teria há muito encerrado.
IV. O despacho recorrido encerra uma decisão judicial, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 97.º n.º 1 alínea b) do CPP, e é, como tal, plenamente recorrível, ao abrigo do disposto no artigo 399.º do CPP, conjugado com o artigo 32.º n.º 1 da CRP.
V. Até ao proferimento do despacho recorrido, o Tribunal a quo ainda não se havia pronunciado sobre a questão decidenda – a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses.
VI. O TCIC tem competência para apreciar a questão aqui decidenda, ao abrigo do seu poder de sindicar a própria competência no âmbito do inquérito, ao abrigo do artigo 32.º do CPP.
VII. Em todo, o caso, sempre assiste ao TCIC plena competência de decisão, no exercício dos seus poderes jurisdicionais em sede de inquérito criminal, nos termos previstos no artigo 17.º do CPP, os quais o incumbem de sindicar questões em que estejam em causa direitos dos intervenientes processuais, maxime, direitos fundamentais – conforme é aqui o caso, na medida em que:
     a) Da apreciação da questão sub judice depende directamente a devida observância do princípio presente no artigo 202.º da CRP, que dispõe que “[n]a administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”;
     b) Da apreciação da mesma questão está pendente o cumprimento das garantias fundamentais do juiz natural, prevista no artigo 32.º n.º 9 da CRP e do ne bis in idem, previsto no artigo 29.º n.º 5 da CRP.
VIII. Uma eventual interpretação do artigo 17.º do CPP – e, em geral, dos normativos que preveem a competência do juiz de instrução em fase de inquérito – no sentido de não ser da sua competência a apreciação da questão aqui submetida sempre seria manifestamente inconstitucional, por violação do princípio fundamental previsto no artigo 202.º n.º 2 da CRP, acima referido, bem como, indirectamente, das garantias fundamentais do juiz natural, prevista no artigo 32.º n.º 9 da CRP e do ne bis in idem, previsto no artigo 29.º n.º 5 da CRP – o que desde já se invoca, para todos os efeitos.
IX. Apesar do CPP não prever expressamente o instituto do caso julgado, é entendimento generalizado entre a doutrina e a jurisprudência que o mesmo vigora no âmbito do processo penal, enquanto corolário dos princípios que enformam o Estado de Direito Democrático, ex vi do artigo 4.º do CPP.
X. O trânsito em julgado de certa decisão sobre termos processuais, proferida em sede de procedimento criminal, cobre as questões aí assentes e julgadas com a força de caso julgado formal, passando as mesmas a impor-se a todos os intervenientes processuais e conformar definitivamente a relação jurídica entre eles.
XI. A força de caso julgado que emana de certa decisão cobre tanto o trecho propriamente decisório como as premissas do mesmo que, no silogismo judiciário do Tribunal em causa, figurem como pressupostos necessários da conclusão (decisão) alcançada.
XII. A incompetência internacional dos Tribunais Portugueses ficou estabelecida enquanto premissa determinante na decisão tomada no Acórdão do Tribunal da Relação proferido nos autos em 26/3/2015, pelo que a ausência desse pressuposto processual ficou assente nos autos com força de caso julgado, passando a conformar imperativamente a relação jurídica entre as partes e intervenientes no inquérito.
XIII. A fixação nos autos da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses – maxime, do TCIC – obriga ao imediato proferimento de decisão de arquivamento dos autos, conforme decorre de modo expresso do artigo 33.º n.º 4 do CPP e ficou estabelecido por jurisprudência deste Tribunal da Relação de Lisboa (v., por todos, Acórdão proferido em 2/6/2016, no âmbito do processo n.º 208/13.9TELSB-D.L1).
XIV. O despacho recorrido deve ser revogado por incorrer num manifesto erro judiciário no que concerne à interpretação e aplicação da força de caso julgado da declaração de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, feita no Acórdão do Tribunal da Relação proferido nos autos em 26/3/2015 e por julgar não verificados os pressupostos que determinam a sua incompetência internacional nos autos.
 XV. Em conformidade, requer-se que seja expressamente declarado nos autos que a força de caso julgado do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/3/2015 abrange também o respectivo fundamento principal – a incompetência dos Tribunais Portugueses no âmbito dos presentes autos.
XVI. Em decorrência, impõe-se logicamente a declaração de incompetência internacional do TCIC para os efeitos do disposto no artigo 33.º n.º 4 do CPP – o que se requer expressamente.

XVII. Ademais, sempre devem os actos processuais praticados pelo TCIC no âmbito do inquérito ser declarados nulos, por aplicação do disposto no artigo 119.º alínea e) do CPP, porquanto incorrem numa “violação das regras de competência do tribunal” – o que igualmente se requer, desde já e expressamente.


  Nestes termos, requer-se a V.ª Exa. que aprecie e declare inteiramente procedente o presente recurso, revogando o despacho recorrido com fundamento em erro judiciário e, consequentemente:
  i) Declare o que o TCIC é internacionalmente incompetente nos autos, nos termos e para os efeitos do artigo 32.º e 33.º n.º 4 do CPP; e, em qualquer dos casos,

ii) Declare nulos todos os actos praticados pelo TCIC nos presentes autos, com fundamento na sua incompetência internacional, nos termos do disposto no artigo 119.º alínea e) do CPP.   (fim de transcrição)

***

A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso concluindo, nos seguintes termos: (transcrição)

I. Investiga-se nos presentes autos, e para além do mais, a, eventual, prática do crime de branqueamento p. e p. pelo artº 368-A do Código Penal (cf., entre outros os despachos de fls. 89 a 91 e 1422 e segs.), por factos ocorridos em território nacional, conforme se encontra documentado naqueles despachos.

II. Ali se diz, para além do mais, que se suspeita que as vantagens de ilícitos criminais foram convertidas, transferidas, dissimuladas em território nacional, quer através da utilização do sistema bancário português, com a concretização de diversos depósitos e transferências em numerário, quer através da aquisição de bens móveis e imóveis.

III. Tendo em atenção o que resulta dos autos e enunciado nos despachos citados, pelo menos parte dos factos relacionados com o branqueamento ocorreram em Portugal e, por isso, se entendeu ter o Estado português jurisdição e os tribunais portugueses e o Ministério Público competência para instaurar o presente inquérito.

IV. Tal resulta, aliás, da própria configuração do crime de branqueamento e da sua autonomia, expressa no nº 4 do artº 368-A do Código Penal e imposta pelo art.º 9º nº 5 da Convenção do Conselho de Europa relativa ao branqueamento, concluída em Varsóvia em 16.05.2005 e vigente em Portugal desde 1.08.2010, no qual se afirma que deverá ser garantida a possibilidade de condenação por branqueamento, independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.

V. Convenção que também impõe, no nº 2 daquele mesmo artº 9º, que para fins de execução ou de aplicação do nº 1 (infracções de branqueamento) o facto de as Partes poderem exercer ou não a sua jurisdição relativamente à infracção subjacente não será tido em consideração.

VI. Sendo que Portugal, como Estado soberano, deve obediência, por imposição constitucional, às normas de Direito Internacional, mormente aqueles estabelecidas em Convenções regularmente ratificadas ou aprovadas, nos termos do artº 8º da Constituição da República Portuguesa.

VII. Foi, pois, e é, entendimento do Ministério Público que os tribunais portugueses são competentes e, consequentemente, o Ministério Público é competente para a investigação daquele indiciado ilícito de branqueamento, nos termos definidos pelas disposições legais já citadas e ainda pelos artºs 262º e segs. do Código de Processo Penal, tendo em vista a investigação da existência de um crime, a determinação dos seus agentes e a responsabilidade deles, a descoberta e a recolha das provas, em ordem à decisão sobre a acusação.

VIII. E esta actividade, dirigida à investigação da existência de um crime, mostra-se legal e constitucionalmente reservada ao Ministério Público (arts. 53º nº 2, 263º, nº 1, 262º nº 1, todos do CPP, 1º, 2º, 3ºº nº 1 al. c) e 75º nº 1 do Estatuto do Ministério Público e artº 219º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa)

IX. Em obediência ao preceituado no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, a estrutura acusatória do processo penal português implica a cisão entre as funções daquele que investiga daquele que julga.

X. Num processo de estrutura acusatória, o poder judicial está, sob pena de perder a sua imparcialidade e de agir ilegitimamente ex officio, vinculado pelo pedido do Ministério Público ou do assistente.

XI. Por seu turno, o art. 219º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, definindo as funções e estatuto do Ministério Público, densifica uma das dimensões da estrutura acusatória do processo penal, ao consagrar esta magistratura como aquela a quem compete, entre o demais, o exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade. Concomitantemente, tal norma constitucional proclama a autonomia do Ministério Público, seja em relação aos demais órgãos de poder do Estado, seja em relação à magistratura judicial.

XII. Tais referentes constitucionais foram densificados legalmente no Estatuto do Ministério Público (cf. art.s 1º, 2º, 3º, n.º 1, al. c), e 75º, n.º 1), assim como no Código de Processo Penal, onde se estabeleceu que compete ao Ministério Público dirigir o inquérito (cf. art.s 53º, n.º 2, al. b), e 263º, n.º 1), enquanto actividade dirigida à investigação da existência de um crime, à determinação dos seus agentes e da responsabilidade destes (cf. art. 262º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

XIII. O Ministério Público surge assim, na estrutura processual penal portuguesa, como o dominus da fase de inquérito, cabendo-lhe a sua direcção e a tomada de decisões com vista à prossecução da sua finalidade: a decisão sobre a acusação ou o seu arquivamento.

XIV. Neste contexto, a intervenção jurisdicional na fase de inquérito é contida, prendendo-se com aqueles actos que, nos termos do art. 269º, do Código de Processo Penal, estejam na disponibilidade decisória do juiz de instrução, ou com aqueles que devam ser pessoalmente praticados por aquele (cf. art. 268º, do mesmo diploma legal).

XV. Qualquer interpretação das normas processuais penais, designadamente dos art.s 17º, 53º, n.º 2, al. b), 262º, n.º 1, 263º, n.º 1, 268º ou 269º, do Código de Processo Penal, que admita uma intervenção judicial conformadora do destino do processo tem subjacente uma matriz essencialmente inquisitória que colide com a malha constitucional positivada.

XVI. É, pois, vedado ao juiz de instrução, porque violadora dos art.s 32º, n.º 5, e 219º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, uma interpretação dos art.s 17º, 53º, n.º 2, al. b), 262º, n.º 1, 263º, n.º 1, 268º ou 269º, do Código de Processo Penal, que admita uma conformação do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.

XVII. Não se inscreve, de igual modo, nas funções do juiz de instrução na fase de inquérito apreciar a competência ou a incompetência do Ministério Público para a direcção do inquérito.

XVIII. Na prossecução da sua actividade judiciária, como já se referenciou, o Ministério Público actua com autonomia, quer em relação aos demais poderes do Estado, quer em relação à magistratura judicial, impedidos de qualquer ingerência na materialidade do exercício da acção penal no caso concreto, seja no que respeita às diligências a realizar visando prosseguir as finalidades do inquérito, seja no que concerne ao acto decisório de encerramento do inquérito, o momento para que se dirige toda a actividade empreendida nesta fase processual.

XIX. É, igualmente, ao Ministério Público que, neste contexto de autonomia e com vinculação a critérios estritos de legalidade, cabe, face a uma notícia de crime, determinar a sua competência para a direcção do inquérito e para o exercício da acção penal.

XX. A plasticidade da fase de inquérito, em que não se mostra estabilizado o objecto do processo e em que se admite uma dinâmica diversa daquela mais estanque característica das subsequentes fases processuais, implica uma idêntica flexibilidade na abordagem da questão da competência do Ministério Público para a direcção do inquérito e para o exercício da acção penal, porquanto a mesma pode vir a ser colocada e respondida em termos muito diversos consoante os diferentes estádios de desenvolvimento da actividade investigatória empreendida.

XXI. Não é admissível, por força das regras processuais penais definidoras da competência do juiz de instrução e do Ministério Público (cf. art.s 17º, 53º, n.º 2, al. b), 263º, n.º 1, 262º, n.º 1, e 267º, do Código de Processo Penal, das normas estatutárias desta magistratura (1º, 2º, 3º, n.º 1, al. c), e 75º, n.º 1, do Estatuto do Ministério Público) e, bem assim, do estatuto constitucional reservado ao Ministério Público (cf. art. 219º, da Constituição da República Portuguesa), que o juiz de instrução possa, em fase de inquérito, determinar a carência, ou não, de competência do Ministério Público para prosseguir com determinado inquérito.

XXII. A pretensão “primacial” do Recorrente, dirigida ao Senhor Juiz de Instrução, que conduziria ao arquivamento do inquérito, é, pois, manifestamente contrária às normas supracitadas, bem como às decisões já proferidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito destes autos.

XXIII. No decurso do inquérito e por se entender que o objecto dos autos se centra na investigação de factos susceptíveis de integrar, em abstracto, e para além do mais, o crime de branqueamento p. e p. pelo artº 368-A do Código Pena, determinou-se a apreensão do saldo de determinadas contas bancárias.

XXIV. Esta decisão que veio a ser revogado por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.03.2015, transitado em 26.10.205, inserta no Apenso 143/13.3TELSB-C.

XXV. Esta última, após enunciar as questões colocadas pelo Recorrente, decidiu determinar o levantamento da apreensão dos saldos das contas bancárias.

XXVI. Não foi apreciado qualquer dos fundamentos enunciados, antes se conheceu, oficiosamente, de uma questão prévia, a incompetência absoluta dos tribunais portugueses.

XXVII. Sendo este o fundamento da decisão, não foi a incompetência absoluta dos tribunais portugueses impeditiva de uma decisão sobre a apreensão das contas bancárias.

XXVIII. Aquela decisão dirimiu a questão processual e levantou a apreensão dos saldos das contas bancárias, formando assim caso julgado formal, tendo como tal sido executada, após trânsito.

XXIX. Fez, aliás o que podia fazer, já que, como se salienta em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5.05.2016 (NUIPC 147/13.3TELSB-I), a decisão de 26.03.2015, daquele mesmo Tribunal, “(..) não podia pôr termo ao Inquérito porque só o Ministério Público tinha competência para decidir sobre o arquivamento do processo de inquérito. Nem podia pronunciar-se sobre a competência do Ministério Público para prosseguir o inquérito porque nessa fase processual a competência do Juiz de Instrução está limitada aos actos previstos na lei, nomeadamente nos artºs 181º, 268º e 269º, do CPP e, só em relação a estes actos pode o Juiz de Instrução decidir sobre questões de competência. (..). Não tinha o Tribunal recorrido competência para se pronunciar sobre a competência do Ministério Público. Eventuais questões de competência Internacional dos Tribunais portugueses que não tenham directamente a ver com actos a praticar durante o inquérito que não sejam da competência de Juiz só poderão ser conhecidos quando o processo entrar no Tribunal para instrução ou julgamento (artºs 308º nº 3 e 311º nº 1, do CPP). (..)”

XXX. Em resposta à pretensão do Recorrente sempre se dirá que, de qualquer modo, “(..) a força do caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta (..)”[1]

XXXI. “Pode assim dar-se por assente que a eficácia do caso julgado (..) apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (..), ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor (ou do réu) concretizada no pedido (ou na reconvenção) e limitada através da respectiva causa de pedir (..)”[2].

XXXII. “(..) A força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final. (..)”[3].

XXXIII. “(…) A partir do CPC61, o caso julgado não se forma acerca das questões prejudiciais, salvo se houver pedido de declaração incidental. (..) O caso julgado material só se forma sobre o pedido e não sobre toda a causa de pedir - a sua força cobre apenas a resposta dada à pretensão do autor e não ao raciocínio lógico que a sentença percorreu para chegar a essa resposta (..)[4].

XXXIV. Na verdade, transparece do regime legal inserto nos artºs 619º e segs do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artº 4º do Código de Processo Penal, “(..) a opção por um sistema restritivo (não extensão do caso julgado à motivação) ”[5].

XXXV. Pelo que, ao proferir a decisão recorrida, o Exmo. Juiz de Instrução Criminal agiu apenas e tão só no escrupuloso cumprimento do quadro normativo, constitucional e legal, que se lhe impunha, bem como no estrito e rigoroso cumprimento da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6.10.2016.

XXXVI. Entende-se, assim:

a) ser de rejeitar o recurso interposto, nos termos dos artºs 400º nº 1 al. a), 414º nº 2, 420º nº 1 al. b) e 417º nº 6 al. b), todos do Código de Processo Penal, ou,

b) caso assim não seja entendido, ser de negar provimento ao mesmo, mantendo-se, na íntegra, o despacho recorrido.

V. Ex.as farão, contudo, a MELHOR JUSTIÇA” (fim de transcrição)

***

       O Meritíssimo Juiz deu cumprimento ao disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal, a fls.197 destes autos, mantendo o despacho recorrido.

***

A fls. 268 destes autos o recorrente, já neste Tribunal de Relação, em resposta à notificação da resposta apresentada pelo Ministério Público ao recurso, veio solicitar, invocando a correcção de erro material, a rectificação da identificação do despacho recorrido.

Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o Visto de fls. 285.

       Por desnecessidade, não foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2, do Código de Processo Penal.

Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso, pelos motivos constantes do ponto 2.2 deste acórdão.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II -        Fundamentação

1. É pacífica a jurisprudência do STJ[6] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.[7]

Da leitura das conclusões do recorrente o mesmo coloca a este Tribunal de recurso que se declare que o “TCIC é internacionalmente incompetente nos autos” e que se “Declare nulos todos os actos praticados pelo TCIC”.

2. Questões Prévias

Antes de responder a estas duas questões, impõem-se apreciar, como questões prévias, a não admissibilidade do recurso suscitada pelo Ministério Público na sua resposta e o articulado superveniente de rectificação do erro material apresentado pelo recorrente a fls. 268 destes autos.

Vejamos cada uma das questões.

2.1 Rectificação do erro material

O Ministério Público na sua resposta ao recurso, para além de considerar que o recorrente, atentas as conclusões do recurso interposto, pretendia recorrer do despacho de 12/12/2016, constante de fls. 5166 e não daquele que consta de fls. 5013, considera que tal despacho é irrecorrível, nos termos do disposto no artigo 411º, nº 1 alínea a) do Código de Processo Penal, por ser um despacho de mero expediente.

Em defesa da rejeição do recurso o Ministério Público invoca, ainda que de forma indirecta, o anterior acórdão deste mesmo Tribunal de Relação, de 6 de Outubro de 2016, que rejeitou um outro recurso do recorrente (Apenso J), por considerar que o mesmo era de mero expediente limitando-se o despacho em crise nos presentes autos (aquele de fls. 5166), a nada declarar.

O recorrente perante esta resposta vem, a fls. 268 deste recurso, requerer a rectificação do erro material concordando com o Ministério Público que o recurso se reporta ao despacho de fls. 5166, de 12/12/2016 (pontos 17 e 18 do requerimento de rectificação).

O Ministério Público na sua resposta ao recurso, responde ao mesmo em função das alegações do recorrente e assumindo como despacho recorrido o de fls. 5166, contrariando as suas conclusões.

Por sua vez a Digna Procuradora-Geral Adjunta, junto deste tribunal de recurso, na sua vista nos autos, nada disse em relação ao requerimento do recorrente de fls. 268, admitindo o mesmo implicitamente.

Inexiste, pois, qualquer divergência entre recorrente e recorrido sobre qual o despacho a que o presente recurso se reporta.

Assim, nos termos do disposto no artigo 146º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal, defere-se a rectificação do referido erro material, considerando-se como despacho recorrido o de fls. 5166 de 12/12/2016, transcrito no início deste acórdão, nos precisos termos constantes da motivação e conclusões de recurso, tal como foram originalmente apresentadas.

***

2.2 Rejeição do recurso.

O Ministério Público na sua resposta o recurso, entende que o mesmo deve ser rejeitado por o despacho recorrido ser de mero expediente, e, como tal, irrecorrível, nos termos do disposto nos artigos 400º nº 1 al. a), 414º nº 2, 420º nº 1 al. b) e 417º nº 6 al. b), todos do Código de Processo Penal.

Para se poder aferir da natureza do despacho proferido impõe-se, antes de mais, analisar a actividade processual, ao nível dos sujeitos processuais e jurisdicional.

Assim, seguindo de perto a resposta do Ministério Público ao recurso, resulta dos autos que, “ (…) no requerimento de 21.10.2016 o ora Recorrente pedia ao Tribunal de Instrução Criminal que proferisse, de imediato e sem mais delongas, despacho que declarasse que o TCIC é internacionalmente incompetente nos autos, e se declarassem nulos todos os actos praticados pelo TCIC nos presentes autos, com o fundamento na sua incompetência internacional, tal como fixada com força de caso julgado no referido Acórdão de 26.03.2015, nos termos do disposto no artº 119º al. e) do CPP.”, o que foi corroborado no requerimento de 11 de Novembro de 2016.

Posteriormente, ainda segundo a resposta do Ministério Público, por requerimento de 29.11.2016, “(…) solicita B... que o Senhor Juiz de Instrução Criminal declare:

. a nulidade do despacho proferido em 22.11.2016, com fundamento em omissão de pronúncia e na inconstitucionalidade que daí decorre directamente para o acto; ou, ainda que assim se não entenda;

. se declare a irregularidade do despacho de 22.11.2016, com fundamento em omissão de pronúncia nos termos conjugados do disposto nos artºs nº 5, 122º e 123º, do CPP, ou por falta de fundamentação.

Mais requer seja proferida a decisão que se impõe, sobre a questão que lhe foi submetida no requerimento apresentado (via fax) em 21.10.2016 e reiterado no requerimento de 11.11.2016, que é a da incompetência internacional das Autoridades Portuguesas para sindicância dos supostos factos que são imputados ao requerente nos presentes autos, tal como ficou declarada, com força de caso julgado, no Acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.03.2016”.

Perante este último requerimento, apresentado a 29 de Novembro de 2016, e sob promoção do Ministério Público, do seguinte teor: Remeta aos autos ao TCIC, sendo certo que a decisão proferida no âmbito do recurso inserto no Apenso 147/13.3TELSB-J.L1, cuja cópia faz fls. 4949, não impõe (antes pelo contrário), em nosso entender, qualquer decisão ao Exmo. JIC.”, o Meritíssimo Juiz  de Instrução proferiu o despacho transcrito no início deste acórdão, através do qual decidiu: “Nada a ordenar”.

Vejamos, então, se o despacho em causa é de mero expediente.

O legislador processual penal não nos fornece uma definição de despacho de mero expediente, devendo, por isso, a lacuna ser suprida com recurso à analogia na legislação processual civil, nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal.

O Código de Processo Civil no seu artigo 152º, nº 4, estatui que os “despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.”

A jurisprudência, na interpretação da definição legal, considera, que os “(…) despachos de mero expediente são os que o juiz profere para assegurar o andamento regular do processo, caracterizando-se por dois traços: por meio deles, o juiz provê ao andamento regular do processo; não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros. Os despachos de mero expediente destinam-se exclusivamente a regular os termos do processo, a disciplinar a tramitação processual, sem interferir na questão de mérito, sem possibilidade de ofenderem direitos processuais das partes ou de terceiros (…)”.[8]

No mesmo sentido vai a doutrina, a qual, tal como ensina o Prof. Alberto dos Reis, considera, “(…) os despachos mencionados no artigo 679º não admitem recurso, porque pela sua própria natureza, não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros. Ou se trata de despachos banais, que não põem em causa interesses das partes, dignos de protecção, ou se trata de despachos que exprimem o exercício de livre poder jurisdicional.”[9][10]

Na sua alegação sobre a rejeição do recurso, tal como transparece da sua promoção, o Ministério Público considera que pelo facto de este mesmo Tribunal de Relação, por acórdão de 6.10.2016 (Apenso 147/13.3TELSB-J), já ter considerado como de mero expediente, um despacho semelhante ao recorrido, e, nessa medida, não ter admitido o referido recurso, nada haver a decidir no que respeita aos requerimentos apresentados pelo recorrente.

Sendo verdadeira esta afirmação e a transcrição que é feita do segmento do acórdão na respectiva resposta, não é menos verdade que este mesmo Tribunal de Relação, por acórdão de 26.03.2015, transitado em 26.10.2015, no âmbito destes autos (Apenso 147/13.3TELSB-C), tinha declarado a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para procederem criminalmente contra o arguido pelos factos que constituem o objecto do presente processo.

Ora, tendo havido uma decisão transitada em julgado de um tribunal superior, a declarar a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para procederem criminalmente contra o recorrente, o despacho recorrido é susceptível de “ofender direitos processuais das partes”, já que impede o recorrente de ver apreciado por um tribunal superior o alcance e eficácia da referida decisão. Neste contexto, o despacho recorrido não está a regular o normal funcionamento do processo, mas, antes, a ofender o direito do arguido recorrente já constante de uma decisão transitada.

 Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/09/2003, “(…) toda a modelação processual do regime dos recursos em processo penal tem de ser compreendida na perspectiva da injunção constitucional, com uma dupla ordem de pressupostos e consequências. A modelação (pressupostos; prazos; conformação estritamente processual ou procedimental) supõe regras, e mesmo porventura regras estritas e objectivas, para o exercício do direito; mas também, por outro lado, as dúvidas de interpretação sobre os pressupostos devem ser sempre consideradas em favor do direito (e da garantia de defesa) e não contra o titular do direito. No domínio dos direitos e garantias é a regra do favor reo e o princípio favorabilia amplianda, odiosa restringenda (…) Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.

O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público, seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.”[11]

Seguindo de perto esta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e os princípios que regem o sistema de recursos, não pode, pelas razões aduzidas, o despacho recorrido ser considerado um despacho de mero expediente.

Diremos ainda que mesmo inexistindo a decisão deste Tribunal de Relação a declarar a incompetência internacional dos tribunais portugueses, sempre o recorrente poderia suscitar ao Tribunal de Instrução Criminal a questão da competência, obrigado este a pronunciar-se sobre tal matéria. O que o recorrente questiona não é qualquer acto sobre o regular andamento do processo, mas, antes, um pressuposto da própria jurisdição como é a competência.

Ora, os pressupostos da jurisdição não são questões menores sobre o regular andamento do processo, mas, antes, direitos dos sujeitos processuais, como tal consideradas pelo legislador, ao cominar com a nulidade insanável a violação da competência do Tribunal (artigo 119º, alínea e), do Código de Processo Penal.

Assim, não sendo o despacho recorrido de mero expediente, o mesmo está sujeito ao princípio da recorribilidade geral, consagrado no artigo 399º do Código de Processo Penal.

Nada justifica, pois, a rejeição do recurso como pretende o Ministério Público, passando-se, por isso, a apreciar as questões colocadas.

3. Decidindo

Como se referiu nas questões a decidir, o recorrente pretende que se declare que o “TCIC é internacionalmente incompetente nos autos” e que se “Declare nulos todos os actos praticados pelo TCIC”.

A pretensão do recorrente no que respeita à incompetência internacional dos tribunais portugueses, já foi declarada por decisão deste Tribunal da Relação, a qual transitou em julgado, nada havendo a decidir sobre esta matéria.

O que verdadeiramente está em causa nos autos, por força dos princípios da certeza e segurança jurídica que regem as decisões judiciais, materializados no instituto do caso julgado, não é uma nova declaração de incompetência, mas, antes, saber qual o alcance e efeitos do acórdão deste Tribunal de Relação, de 26/03/2015, transitado em julgado, (Apenso C), no qual foi declarada a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para procederem criminalmente contra o arguido.

Esta mesma questão já foi anteriormente colocada a este Tribunal de Relação, a qual foi decidida por acórdão de 03/03/2016, no Apenso 147/13.3TELSB-H, em que foi relator o Exmo. Juiz Desembargador Dr. João Abrunhosa e Adjunta a Exma. Juíza Desembargadora Dra. Maria do Carmo.

Apesar destas duas decisões deste Tribunal de Relação, o Ministério Público na sua resposta ao recurso, (páginas 10 a 14) continua a sustentar que o Juiz de Instrução e por arrastamento este Tribunal de Relação, não tem competência para, em sede de inquérito, apreciar a questão da competência/incompetência dos tribunais, invocando para tanto que a fase de inquérito é da competência do Ministério Público e que tal concepção viola a sua autonomia e a estrutura acusatória do processo penal.

Com o devido respeito não nos parece que a questão possa ser colocada nesses termos.

A autonomia do Ministério Público não está, nem nunca esteve em causa, como não está a estrutura acusatória do processo e menos ainda a competência do Ministério Público para conduzir o inquérito, pelas razões já aduzidas, pelos mesmos subscritores deste acórdão, em outro processo.[12]

O que está em causa, no caso vertente, é apreciação e controlo jurisdicional dos pressupostos processuais, na perspectiva da competência dos tribunais e nunca na perspectiva da competência do Ministério Público.

O legislador não prevê a nulidade decorrente da violação das regras da competência, por referência ao Ministério Público. Tal nulidade só está prevista na lei por referência ao Tribunal (artigos 32º e 119º, alínea e), ambos do Código de Processo Penal). Logo só o Tribunal a pode apreciar e declarar, sendo certo que a mesma é de conhecimento oficioso.

O Ministério Público na sua resposta (página 11), sustenta ainda que a declaração, em sede de inquérito, da nulidade decorrente da violação das regras da competência internacional dos tribunais portugueses, seria estar a sonegar competências ao mesmo enquanto titular (dominus) da fase de inquérito.

Esta tese confunde as competências do Ministério Público para exercer a acção penal e para dirigir o inquérito, com os pressupostos da existência do próprio processo, o primeiro dos quais é a competência internacional dos tribunais portugueses. Parece que pode existir processo criminal na fase de inquérito, sem competência internacional dos tribunais.

A sufragar a tese do Ministério Público, parece que pode haver inquérito fora dos tribunais e sem ser por referência a um tribunal. Tal tese, levada ao extremo, parece apontar também para uma concepção em que o Ministério Público é um órgão fora da estrutura do Estado e para além do próprio Estado. Tal tese não tem consagração constitucional, nem legal.

O legislador, ao consagrar a violação das regras de competência como uma nulidade insanável, não limita a sua apreciação à fase exclusivamente jurisdicional do processo criminal. Significa isto que ela pode ser declarada em sede de inquérito, como facilmente se alcança do artigo 119º do Código de Processo Penal, quando o legislador estatui que as nulidades insanáveis “(…) devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento” (negrito e sublinhado nosso).

Podendo a nulidade insanável, por violação das regras de competência, ser apreciada em inquérito, a mesma apenas pode apreciada e declarada pelo Juiz de Instrução ou, em caso de recurso, por qualquer tribunal superior (análise conjugada dos artigos 32º e 119º do Código de Processo Penal). O Ministério Público, em qualquer fase do procedimento, só tem competência para deduzir a incompetência, mas não para a decidir (artigo 32º, nº 1), já que tal decisão é um acto jurisdicional e estes são exclusivos dos juízes e dos tribunais. Defender o contrário, sobre a natureza do acto, seria permitir que o Ministério Público apreciasse em sede de inquérito, a competência/incompetência dos tribunais, em detrimento dos próprios tribunais. Em tal caso teríamos o processo criminal totalmente subvertido.

Como se pode ver destes preceitos legais, não se trata de sonegar competências ao Ministério Público em sede de inquérito, mas sim fazer cumprir a lei processual em matéria de competência dos tribunais e permitir que os juízes e os tribunais exerçam os seus poderes constitucionais e legais. Defender o contrário, seria transformar o inquérito num “castelo” ou “reduto” quase todo ele fora do alcance da função jurisdicional, com claro prejuízo dos direitos fundamentais e de um processo justo e equitativo, o que os artigos 18º, 32º e 202º da Constituição da República Portuguesa não permitem.

Neste sentido, não se podem reduzir os poderes do juiz de instrução, em sede de inquérito, às situações em que tal competência lhe é expressa e legalmente deferida, com particular enfoque nos artigos 268º e 269, do Código Processo Penal. Para além dessas situações tipificadas na lei, são também da competência do juiz de instrução, todas aquelas em que estejam em causa direitos, liberdades e garantias e ainda aquelas que exijam uma decisão jurisdicional (como no caso das nulidades), tal como refere o artigo 17º do Código de Processo Penal.

Feita este enquadramento sobre a perspectiva em que encaramos o problema sub judice e as competências do juiz de instrução e, por arrastamento, deste tribunal de recurso, vejamos então qual o alcance e efeitos dessa declaração de incompetência internacional dos tribunais portugueses.

Como já referimos, esta questão já foi apreciada neste mesmo Tribunal de Relação (Apenso H), num acórdão em que foi relator o aqui Desembargador Adjunto Dr. João Abrunhosa.

Assim, por uma questão de economia processual e porque concordamos em absoluto com o decidido e os argumentos aduzidos no mesmo, de modo a evitar decisões contraditórias, seguimos de perto, transcrevendo, o decidido no referido acórdão.

Decidiu-se nesse acórdão (transcrição):

“II – No apenso “C” destes autos, por acórdão de 26/03/2015, transitado em julgado, foi declarada a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para procederem criminalmente contra o Arg. pelos factos que constituem o seu objecto.

Tendo havido recurso e neste decisão sobre sobre determinada questão processual, nunca podia deixar tal decisão de produzir o efeito de caso julgado formal, porque, das duas uma, ou o recurso e a respectiva decisão eram completamente inúteis e então não podiam ser admissíveis, ou a lei admitia que num mesmo processo e sobre uma mesma questão houvesse mais do que uma decisão, contraditórias entre si.

Ora, é precisamente a este último efeito que pretende obviar o instituto do caso julgado[13].

Como se afirma no Ac. do STJ de 24/05/2006, relatado por Henriques Gaspar, in CJSTJ[14], II: “…O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).

O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material - fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal.

Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.

O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial.

O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo (cfr. Castro Mendes, "Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil", pág. 16).

No caso julgado formal (art. 672° do Cód. Proc. Civil), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidindo com o fenómeno de simples preclusão (cfr. Alberto dos Reis, "Código de Processo Civil, Anotado", vol. V, pág. 156).

Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï) - cfr. Acs. do Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, Proc. 3924/01, e de 3 de Março de 2004, Proc. 215/04.

O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.

Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão.

No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.[15].

A esta concepção do caso julgado formal não se tem oposto o Tribunal Constitucional[16].

Temos, pois, que concluir que, quando uma decisão intercalar possa ser, ou tenha sido, objecto de recurso, com subida imediata, há-de poder formar caso julgado formal.

Nos presentes autos existe caso julgado formal, quanto às questões apreciadas no referido acórdão da Relação de Lisboa, pelo que, uma vez que foi declarada a incompetência absoluta dos tribunais portugueses, se verifica a nulidade insanável prevista no art.º 119º/e) do CPP.

Assim, são nulos os despachos aqui em crise, nulidade que há que declarar.

Tal declaração, atento o objecto do presente recurso, só abrangerá os referidos despachos (art.º 122º do CPP).” (fim de transcrição)

Como se pode ver desta longa transcrição, este Tribunal de Relação já decidiu, no âmbito dos presentes autos, que a decisão proferida no referido Apenso C, faz caso julgado no respeita à incompetência internacional dos tribunais portugueses,[17] tendo como consequência a nulidade dos despachos proferidos.

Assim, na esteira do referido acórdão e estando a questão da competência internacional abrangida pelo caso julgado resultante da decisão proferida no Apenso C, não pode o Meritíssimo Juiz proferir despacho, ainda que implicitamente, em sentido oposto ao decidido e ao caso julgado formal entretanto estabelecido, porque a isso se opõem os artigos 620º e 628º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal e o princípio da  intangibilidade do caso julgado, resultante dos artigos 205º, nº 2 e 282º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.

Neste contexto e por força do caso julgado, estando definitivamente estabelecida a incompetência internacional dos tribunais portugueses, o Meritíssimo Juiz ao proferir o despacho recorrido, está a violar as regras da competência dos tribunais portugueses e a cometer a nulidade insanável do artigo 119º, alínea f), do Código de Processo Penal, que ora se declara.

A declaração de nulidade tem como efeitos os estabelecidos no artigo 122º do Código de Processo Penal, isto é, afecta o acto nulo “(…) bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar”.[18] Neste contexto, tendo sido declarada definitivamente a incompetência internacional dos tribunais portugueses e sendo a competência internacional um pressuposto estruturante do processo criminal, são afectados todos os actos jurisdicionais praticados após o trânsito em julgado da decisão que declarou a incompetência e mesmo, no limite, os anteriores a tal declaração.

Apesar deste entendimento, atento o objecto do recurso e a ausência de elementos neste recurso para aferir com razoabilidade e justiça os efeitos plenos de tal nulidade, entendemos, por prudência, declarar apenas a nulidade do referido despacho (artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal).

Procede, pois, o presente recurso ainda que por fundamento diverso do invocado.

III- Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso nos moldes referidos e, nos termos do disposto nos artigos 119º, alínea e) e 122º do Código de Processo Penal, declarar verificada a nulidade insanável por violação das regras de competência dos tribunais portugueses e, consequentemente, declarar a nulidade do despacho recorrido.

Sem custas atento o vencimento (artigo 513, º nº 1, do Código de Processo Penal).

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por vinte e três páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 02 de Novembro de 2017.

Antero Luís

João Abrunhosa

_______________________________________________________
[1] Manual de Direito Processual Civil, Coimbra Editora, Limitada, 2ª edição Revista e Actualizada, 1985, pág. 712.
[2] Ibidem pág. 714.
[3] Ibidem.
[4] Maria José Capelo, in “A Sentença entre a Autoridade e a Prova”, Teses, Almedina 2015, pag. 59.
[5] Ibidem, pag. 60.
[6]   Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 proferido no Proc. Nº O6P2267.
[7]   Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/12/2009, Proc. Nº Proc nº 09P0612, in www.dgsi.pt
[9] Código de Processo Civil Anotado, volume V, Reimpressão, 1984, pág. 249.
[10] No mesmo sentido Lebre de Freitas/João Redinha/ Rui Pinto, CPC Anotado, 1999, Anotação ao artigo 156º, n.º 3
[11] Proc. 03P243, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt

[12] Proc. 208/13.9TELSB-B.L1-9, in www.dgsi.pt

[13]O efeito negativo do caso julgado consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão.” – Ac. do STJ de 02/03/2006, relatado por Costa Mortágua, in CJSTJ, I.
[14] Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.
[15] Como se afirma no Ac. da RP de 29/05/2002, relatado por Clemente Lima, in www.gde.mj.pt, processo 0210428: “…Importa (…) relembrar as linhas gerais do instituto do caso julgado em processo penal [No que se avoca a impressiva síntese do acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-12-1997, na Colectânea de Jurisprudência do STJ, ano V, tomo III, pp. 259 e segs. (261) e se remete para os ensinamentos de Cavaleiro de Ferreira, no «Curso de Processo Penal», UC, III, 57 e em O Direito, anos 65.º, pp. 194 e segs. e 67.º, pp. 200 e segs.; Castanheira Neves, nos »Sumários de Processo Penal», pp. 113 e segs.; Luis Osório, no «Comentário ao Código de Processo Penal Português», II, pp. 482 e segs.; Figueiredo Dias, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, pp. 126 e segs.; Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 63.º, pp. 9 e segs.; Eduardo Correia, na Revista de Direito e Estudos Sociais, XIV, ½, em «Caso julgado em processo penal», na Revista dos Tribunais, ano 58.º, pp. 178 e segs. e no «Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz»; Germano Marques da Silva, no «Curso de Processo Penal», III, 2000, pp. 36 e segs.].
O fundamento central desta figura, escrevia Beling, radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do Direito.
Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através deste instituto aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias.
Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto [Eduardo Correia, «A Teoria do Concurso em Direito Criminal», Coimbra, 1983, 302].
Isto vale quer para o caso julgado material, como para o caso julgado formal, sendo certo que aqui nos interessa considerar apenas este último, dado que a nossa análise apenas incidirá sobre o efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, ao passo que o caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto [Cfr. Cavaleiro de Ferreira, «Curso de Processo Penal», vol. 3.º, Lisboa, 1958, pág. 35].
O CPP/29, no capítulo das excepções, aludia expressamente ao caso julgado (art. 138.º, 3.º) e, a partir do art. 148.º e segs., regulamentava com algum pormenor a referida excepção, com especial relevo para o caso julgado material e efeitos do caso julgado cível no processo penal.
No actual CPP, não acontece o mesmo e tal ausência de regulamentação constante e sistemática de matéria tão importante só pode significar, a nosso ver, ou que o legislador entendeu como suficiente para resolver o problema, a aplicação genérica e indiferenciada ao processo penal dos vários normativos que no processo civil tratam a questão, ao abrigo do regime estabelecido no art. 4.º do CPP, ou então que não quis, pura e simplesmente, firmar regras rígidas no processo penal em matéria de caso julgado, dada a natureza deste ramo do Direito.
Inclinamo-nos decisivamente para esta última posição que se encontra verdadeiramente em harmonia com a especial natureza do processo penal.
Cremos que é por isso mesmo que não temos assistido, ao contrário do que se passava na vigência do Código anterior, à elaboração dogmática de uma teoria sobre o caso julgado em processo penal, preferindo os autores resolver casuisticamente os problemas relacionados com este instituto.
Na verdade, a pura e simples aplicação dos princípios e normas que regem o caso julgado no processo civil ao processo penal não se nos afigura legítima, designadamente porque se iria, no fundo, coarctar, limitar e condicionar o princípio da verdade material que constitui o escopo fundamental a atingir no processo penal. Refira-se, em abono disto, o ensinamento de Cavaleiro de Ferreira: «Porque o caso julgado, cortando cerce a possibilidade de busca da verdade material, restringe o ideal de justiça em função da necessidade de segurança, faz-se sentir a sua imodificabilidade com mais rigor no processo civil do que em processo penal, por sua natureza vertido para a justiça real e dificilmente acomodatício às ficções de segurança, obtidas à custa do sacrifício de valores essenciais» [«Curso de Processo Penal», III, 1958, 88].
No entanto, não pode, de uma forma absoluta, coarctar-se o recurso ao processo civil nesta matéria, mas o que será indispensável é encontrar um critério que, entrando em linha de conta com as especialidades do processo penal, imponha alguns limites à aplicação em processo penal das normas do processo civil neste domínio e tal critério só poderá encontrar-se no art. 4.º do CPP, o qual aponta, fundamentalmente, para dois pressupostos de tal aplicação, a saber: - a existência de lacunas que não podem ser integradas por aplicação analógica de outras normas do processo penal; e – a harmonização das normas do processo civil a aplicar, com o processo penal.”.
[16] A orientação do TC quanto à matéria do caso julgado penal vem exposta no acórdão 86/2004, de 04/02/2004, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, nos seguintes termos: “…Também o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre o alcance da protecção constitucional do caso julgado, mantendo a orientação desenhada pelo acórdão n.º 87 da Comissão Constitucional.
Assim, e em primeiro lugar, o Tribunal observou por diversas vezes que decorre da Constituição a exigência de que as decisões judiciais sejam, em princípio, aptas a constituir caso julgado.
Com efeito, no Acórdão n.º 352/86 (Diário da República, II série, de 4 de Julho de 1987), considerou “inerente às decisões judiciais insusceptíveis de recurso ordinário” a força de caso julgado, força essa que “se dev[e] arvorar em princípio constitucional implícito, como decorre, ainda, do art. 282º, n.º 3, da CRP". No mesmo sentido, disse-se no Acórdão n.º 250/96 (in Diário da República, II Série, de 8 de Maio de 1996), que, “para que um Tribunal, qualquer que seja, possa dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que lhe são submetidos no exercício da função jurisdicional, é indispensável que as suas decisões, reunidos que estejam certos requisitos, sejam dotadas da estabilidade e da força características do caso julgado”; (cfr., ainda, o Acórdão n.º 506/96, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Julho de 1996).

Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional continuou a afirmar que o caso julgado é um valor constitucionalmente tutelado, nomeadamente no seu Acórdão n.º 677/98 (Diário da República, II série, de 4 de Março de 1999): “É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t.II, 3º ed., reimp., Coimbra, 1996, p.494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Garantia da Constituição, Coimbra, 1998, p. 257), se trata, sem dúvida, de um valor constitucionalmente protegido”.
Em terceiro lugar, reafirmou a ausência da consagração na Constituição de um princípio de intangibilidade absoluta do caso julgado:

«2.1.2. Entende este Tribunal que o caso julgado deve ser perspectivado como algo que tem consagração implícita na Constituição, constituindo, desta sorte, um valor protegido pela mesma, esteado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos postulados pelo Estado de direito democrático - consagrado, quer no preâmbulo do Diploma Básico, quer no seu artigo 2º - e, também, num princípio de separação de poderes - consagrado igualmente naquele artigo e no nº 1 do artigo 111º - e no nº 2 do artigo 205º (a que aquelas outras normas não são alheias), um e outro do actual texto constitucional.

E entende, identicamente, que o aludido valor, constitucionalmente consagrado, do caso julgado, não se posta como um valor que a Lei Fundamental considere inultrapassável.

Prova disso, na óptica deste Tribunal, constitui a estatuição constante do nº 3 do artigo 282º da Constituição.

Na verdade, o legislador constituinte derivado, na revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, veio a prescrever que da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ficavam "ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo mais favorável ao arguido".
Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º, 111º, nº 1, e 205º, nº 2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado. Porém, é ela própria, naquele nº 3 do artigo 282º, que vem estabelecer situações de excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-se concluir que um tal valor se não perfila como algo de imutável ou inultrapassável» (Acórdão n.º 644/98, Diário da República, II Série, de 21 de Julho de 1999).
Por último, e em quarto lugar, o Tribunal Constitucional tem reconhecido que, apesar de não ter valor absoluto a tutela constitucional do caso julgado, uma lei retroactiva não pode “atingir o caso julgado nos casos em que, segundo a Constituição, é proibida qualquer retroactividade, por intermédio de uma lei individual”  (Luís Nunes de Almeida, Portugal, in Constitution et Sécurité Juridique, Annuaire International de Justice Constitutionnelle, XV, 1999, p. 249 e segs.). É o que sucede, como se sabe, com as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (n.º3 do artigo 18º da Constituição), as leis penais incriminadoras (artigo 29º, n.º 1) ou (após a revisão constitucional de 1997) as leis que criam impostos (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 304/01, Diário da República, II série, de 9 de Novembro de 2009).”.
[17] Veja-se uma situação semelhante em relação a uma decisão sobre especial complexidade do processo, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 29/04/2015,  Proc. n.° 213/12.2TELSB-F.L1.S1-5, in http://www.pgdlisboa.pt, em anotação ao artigo 620º do Código de Processo Civil.
[18] Princípio da dependência funcional. Veja-se neste sentido Prof. Germano Marques da Silva, in Processo Penal, Edição Verbo, Vol II, pág. 132.