Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3187/17.0T8VFX.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO(PEAP)
ACORDO DE PAGAMENTO
NÃO HOMOLOGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– Um acordo de pagamentos não se pode considerar aprovado, quando o único credor que o votou favoravelmente não tinha direito de voto porque o seu crédito não foi modificado (arts. 212/2-a e 225-F/5, ambos do CIRE).

II– A não homologação do acordo prevista no art. 216/1 do CIRE depende de o interessado a solicitar em tempo.

III– O processo especial para acordo de pagamentos não visa permitir aos devedores ficarem com rendimentos para os gastarem onde quiserem ou para os pouparem ou para pagarem com eles as suas dívidas de acordo com a sua vontade.

IV– Não está na lógica do PEAP que os devedores, enquanto estão a correr as negociações ou enquanto dura o processo, deixem de cumprir as suas obrigações.

V– O acordo de pagamentos não deve favorecer um devedor apenas por ele ser um credor garantido e ter uma maioria suficiente para, só por si, aprovar o acordo, pagando-lhe a ele todo o seu crédito e obtendo assim o seu voto favorável, em prejuízo de todos os outros credores, que vêem os seus créditos diminuídos em 20% e com início de pagamento desse montante reduzido protelado para daí a dois anos e a ser pago em 8, para mais quando com isso se visou uma poupança para os devedores e não a satisfação das necessidades básicas para uma vida condigna.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados.



Relatório:


1. P e mulher, S, vieram, a 19/09/2017, nos termos do art. 1/3 e 222-C/1 e 3 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresa (= CIRE), requerer um processo especial para acordo de pagamento de dívidas no valor total de 64.420€, com o acordo de um terceiro a quem dizem dever 204€ (por empréstimo pessoal de Maio de 2017, que qualificaram como crédito subordinado, sem que exista qualquer elemento de prova do mesmo), com isso conseguindo a suspensão de uma execução pendente contra eles (2889/17.5T8ENT, que não identificavam – fl. 48 e 50 -, autuada a 14/07/2017, onde existiam bens penhorados.

2. Não juntaram documentos de identificação. Depois de terem sido notificados para o efeito, vieram fazê-lo, decorrendo do cartão de cidadão e certidão de nascimento do requerente que o mesmo é filho do terceiro signatário daquele acordo.

3. A 01/03/2018, depois de terem prorrogado o prazo de negociações de tal processo com um simples acordo com o administrador judicial provisório (AJP) por eles mesmo indicado, vieram apresentar um acordo de pagamentos de tais dívidas.

Esse acordo consta do seguinte, entre o mais:
Os devedores são proprietários de [não foi junto qualquer certidão do registo predial]:
i.- Prédio sito em [residência dos requerentes], inscrito na matriz urbana respectiva sob o artigo…, com o valor patrimonial matricial de 18.437,46€ (que é o valor estimado dado por eles) [mais à frente dizem que este valor resultou também de opiniões de comerciais de algumas agências imobiliárias - está onerado por uma hipoteca; os devedores diziam que o ano de aquisição é de 2005 e que o valor da aquisição foi de 44.186,47€ (na cópia – que não é uma certidão - da caderneta predial consta 1967 como valor da inscrição na matriz e a área de implantação de 50m2; é um prédio de r/c com 5 divisões e 6 vãos, tipologia T2; o valor patrimonial matricial foi determinado em 2014).
ii.- Armazém e actividades industriais, [com n.º subsequente à residência dos requerentes], inscrito na matriz urbana respectiva sob o artigo…, com o valor de 2832,46€ (que é o valor estimado dado por eles) - os devedores diziam que o valor de aquisição era o mesmo; sobre este prédio não recai hipoteca; aquele valor é o patrimonial matricial determinado em 2016; a área total do terreno é de 147m2, a área de implantação do edifício é de 17,63m2.
iii.- Terra de…, inscrito na matriz urbana respectiva sob o artigo…, com o valor matricial de 27,01€ (que é o valor estimado dado por eles) – na cópia da caderneta predial consta que o valor patrimonial matricial foi determinado em 1989; a área é de 2720m2.
iv.- Veículo automóvel, matrícula…, com valor comercial de aproximadamente 5000€ (tendo em conta o site standvirtual stands; mais à frente acrescenta-se que resulta também de opiniões de comerciais de stands de viaturas) - o veículo tem o ano de matrícula de 2006; consta uma reserva de propriedade a favor do Banco, agora C.
Ou seja, um total de 26.290,99€.
O agregado familiar é composto por 4 pessoas: dois adultos e dois dependentes com 19 e 8 anos.
O rendimento mensal do agregado totaliza 2122,35€ [o rendimento mensal indicado – 2122,35€ - corresponde a 25.468,24€ anuais líquidos; corresponde à declaração de rendimentos que foi junta, de 2016. Sendo o AP de Fev2018, embora dele conste, por lapso, Fev2017, o rendimento liquido devia ter sido reportado a 2017 e não a 2016. Já agora, acrescente-se que lhes foi reembolsado, em 2017, o valor de 1698,87€, e em 2018 deve-lhes ter sido reembolso um valor superior, e não há notícia que tenham aproveitado o reembolso para pagar qualquer parte das dívidas – parenteses colocado por este ac. do TRL], angariados da seguinte forma:
O requerente trabalha na DGRSP e aufere mensalmente um rendimento na ordem dos 1513,60€;
A requerente trabalha na K-Lda, e aufere mensalmente um rendimento na ordem dos 608,75€.
Os dois filhos, dependentes, não têm qualquer fonte de rendimentos [não se diz – nem se dizia no requerimento inicial – o que é que fazem os dois filhos; dada a idade de um deles, 19 anos, não há razão, só por isso, para se dizer que seja estudante].

As dívidas foram agrupadas assim:
Com hipoteca: 33.865,30€;
Com reserva de propriedade: 3.375,14€
Comuns: 25.268,93€
Total = 62.509,37€

A situação líquida patrimonial é de -36.218,38€ (resulta da diferença entre a soma dos seus bens aos seus direitos e o valor de suas obrigações ou dividas, sendo este manifestamente superior ao activo).
Aquilo que os devedores estão a pagar, mensalmente, é o seguinte:
Crédito garantido com hipoteca: 191€
Crédito garantido com reserva: 234€
Comuns: 1145€
Total = 1570€

Quer isto dizer que estão a pagar 1570€/mês e recebem 2122,35€/mês, ou seja está-se perante uma taxa de esforço de 73,9746%; o acordo considera que o ideal seria uma taxa de esforço aproximada de 40% [que não concretiza em valores, mas que corresponde a 848,94€/mês].

O actual rendimento disponível dos devedores – isto é, a parcela do rendimento que fica disponível depois de saldarem os compromissos financeiros, – é de 552,35€ [= 2122,35€ - 1570€].

O acordo considera que deviam dispor do valor de 1566€/mês, para acautelar a sobrevivência do agregado familiar com um mínimo de dignidade, o que não acontece se eles continuarem a terem só 552,35€.

Não diz de que valor (X) parte para chegar àquele resultado que se sabe, no entanto, ser X = 1566€ : 2,9 [= 1 + 0,7 + 0,7 + 0,5], ou seja, 540€ [que é perto do SMN de 2017, que era de 557€/mês].
Isto tendo em conta que, segundo a “escala de Oxford” para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar, o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui o índice 0,5.

O acordo, no entanto, diz que as despesas correntes actuais, do agregado familiar dos devedores, têm o valor de 745,75€ - manutenção da casa 140€, comunicações e média 69€, alimentação e vestuário 317€, viaturas e transportes 68€, seguros 18€, saúde 29€, educação e actividades extras 103€ e impostos 2€ - e que esses montantes gastos, para um agregado de quatro pessoas, não são excessivos, pelo contrário.

Ou seja, verifica-se um saldo negativo de 193,40€ mensais [= 2122,35 – 1570€ - 745,75€].

A proposta é a seguinte:
O empréstimo para a habitação, garantido pela hipoteca - pagamento de 100%, em 211 prestações mensais [de 191€], iguais e sucessivas, com a taxa de juros calculados a taxa nominal de 2,06%, com base na média aritmética das taxas de euribor a 2 meses, actualmente em - 0,340 %, acrescidas do spread de 2,4%, não sendo afectadas as garantias que possuem e com início de pagamentos 30 dias após a sentença.

O empréstimo para a compra da viatura garantido com a reserva de propriedade - propõe-se o pagamento em 80%, com um período de carência de capital de 2 anos e após isso 96 prestações mensais, iguais e sucessivas, com juros calculados de 2 % ao ano, não sendo afectadas as garantias que possuem.
Quanto aos credores comuns - propõe-se o pagamento em 80%, com um período de carência de capital de 2 anos e após isso o pagamento em 96 prestações mensais, iguais e sucessivas, com juros calculados de 2 % ao ano.
Com esta reestruturação, a taxa de esforço passa de um rácio de 73,9746% para 21,2009%. Com esta redução, diz o acordo, os devedores têm maior liquidez mensal, o que permite o cumprimento das responsabilidades financeiras com os credores e a satisfação das suas necessidades.
E o rendimento disponível passa de um valor de 552,35€ para 1672,3919€, ou seja, os devedores passam a pagar apenas, por mês, para os credores, 449,96€, quando antes pagavam 1570€.
Ou seja, com rendimentos totais mensais de 2122,35€, deduzidos dos 449,96€ para pagamento mensal das dívidas e dos 745,75€ mensais para as despesas correntes, os devedores ficam com 926,65€ livres que “podem gastar onde quiserem, poupar ou diminuir as suas dívidas.”
O acordo diz que o registo patrimonial não vai sofrer alterações, face a necessidade de os manter para a sua actividade [mas não o fundamenta minimamente, visto que não há qualquer notícia de os devedores terem qualquer outra actividade para além do seu trabalho por conta de outrem].

O acordo diz que os credores são beneficiados com a aprovação do acordo proposto, em comparação com um cenário de liquidação, pelos seguintes fundamentos:
1 Num cenário de liquidação, os valores para os pagamentos, provêm:
i .- Dos valores que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos mencionados no art. 239/3 do CIRE.
ii.- Liquidação de todo o activo – só depois de ter decorrido todo o processo de insolvência, que, seguramente, demorará entre 1 a 2 anos e com perdas que se estimam na ordem dos 10% a 15%, do valor comercial;
iii.- Pagamento anual de fidúcia - resultante da diferença entre o valor atribuído para a subsistência do insolvente (rendimento indisponível) e dos rendimentos mensais auferidos, num período máximo de 5 anuidades.

2. Os pagamentos dos créditos reconhecidos, dependem da sua graduação e são pagos, depois de liquidadas as dívidas da massa insolvente, sendo os comuns pagos depois dos garantidos.
O cenário mais favorável para os credores, tendo em vista a maximização da recuperação dos seus créditos, passa pela viabilização do acordo, pois receberão, a mais, o valor de 15.054,01€, comparativamente a um cenário de liquidação imediata.
-Devedores: com a diminuição da taxa de esforço e o aumento do rendimento disponível, permite o cumprimento atempado dos compromissos financeiros, que vierem a ser assumidos com a aprovação do acordo e a satisfação das necessidades mais básicas do seu agregado familiar.
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A 16/03/2018, o AJP apresentou o auto de abertura de votos e respectivos anexos, a lista dos credores, os votos recepcionados e manifestou o entendimento de que o AP tinha sido aprovado, pois que tinham votado favoravelmente credores cujos créditos somam 35.530,89€, [ou melhor: votou apenas favoravelmente o credor hipotecário que também era titular de um crédito comum], tinham votado contra credores cujos créditos totalizam 17.579,79€ e tinham-se abstido credores cujos créditos totalizam 10.931,79€.
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    A 20/03/2018 foi proferida sentença convertendo em definitiva a lista de credores apresentada e, considerando (i) que, “concluídas as negociações […] vota[ram] credores representando 82,93% dos créditos constantes da lista definitiva de credores [e] votaram favoravelmente o acordo […] credores representando 55,48% dos votos emitidos […], não existindo créditos subordinados”, e (ii) o disposto no art. 222-F/3 do CIRE, teve o acordo por aprovado. E depois, considerando que não ocorreram violações de normas procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do acordo e que o acordo não previa quaisquer condições suspensivas ou quaisquer actos ou medidas que devem preceder a homologação (art. 215 do CIRE, aplicável ex vi art. 222.º-F, n.º 5, in fine, do mesmo diploma), homologou o acordo.
    ***

    A C, que era a credora com a reserva de propriedade sobre a viatura automóvel e que tinha votado contra o acordo, veio recorrer desta homologação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem na parte útil:
    1.- O acordo foi aprovado com o voto do credor hipotecário, que representava 55,5% dos créditos.
    2.- O acordo de pagamentos não deveria ter sido homologado, porquanto é apenas favorável para o credor hipotecário.
    3.- Nos termos do artigo 212/2-a do CIRE, aplicável por força do disposto no art. 222-F/5 do CIRE, não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do acordo.
    4.- No caso em apreço e no que respeita ao crédito hipotecário, não houve qualquer alteração ao contrato inicial previsto no acordo de pagamento.
    5.- A aprovação do acordo pelo credor hipotecário não comporta para aquela entidade qualquer redução do crédito ou constrangimento à sua cobrança, razão pela qual o voto de tal entidade não pode entrar no cômputo do quorum deliberativo, pela singela razão que nem sequer tinha direito de voto [neste sentido invoca, no corpo das alegações, os acs. do TRL no proc. 54/14.2T8BRR-L1, do TRC de 21/04/2015, proc. 2281/13.0TBCLD.C1, ac. do TRL de 24/09/2013, confirmando a sentença proferida no processo 576/13.2TBSXL, e do TRL de 23/01/2014, proc. 4303/13.6TCLRS-A.L1].
    6.- O que, considerando que o acordo de pagamento foi unicamente aprovado com o voto daquele credor, implicaria que o mesmo tivesse sido recusado.
    7.- O acordo de pagamentos não deveria igualmente ter sido homologado porquanto a C, ao abrigo do acordo de pagamento proposto, fica numa situação, previsivelmente, menos favorável do que aquela que resultaria na ausência de qualquer acordo.
    8.- A C é titular da reserva de propriedade que incide sobre a viatura.
    9.- Essa viatura é referenciada no acordo de pagamentos e avaliado em 5000€.
    10.- No acordo é proposto o pagamento do valor de 3032,13€ em 8 anos, após decorrido um período de carência de 2 anos quando, com a entrega do bem, lograria a C proceder à sua venda por valor superior de 5000€.

    Os devedores contra-alegaram dizendo, em síntese, que:
    1. No acordo apresentado, não só houve alteração às condições contratuais, como tais alterações representam para o credor hipotecário uma redução quanto à taxa anual nominal aquando comparada com TAN inicialmente contratada [isto porque, a taxa anual nominal inicialmente contratada era de 4,75% (2,4% + euribor a 90 dias) e a proposta aprovada é de 2,059% (2,4% + euribor a 60 dias)].
    2. A liquidação em sede de processo de insolvência é manifestamente prejudicial para todos os credores, pois não acautela de forma eficiente os seus direitos e, acima de tudo, o seu ressarcimento.
    3. Em sede de insolvência, o cenário previsível passaria muito previsivelmente pelo facto de o AI entender da nulidade da cláusula de reserva de propriedade, como tem sido decidido pela jurisprudência (ac. do TRP [de 10/10/2016], proc. 2548/14.0TBVNG-D.P1, ac. do TRL [de 13/03/2012], proc. 1925/11.3TVLSB.L1-7, e ac. do TRE [de 28/05/2009], proc. 4410/07.4TVLSB.E1).

    4. Dando prosseguimento ao processo de liquidação do património, e tendo em conta que os créditos da C representam, 28,65% do total de créditos, este credor teria a receber do valor previsível de venda da viatura de 5000€ e de outros activos no valor de 2853,53€, depois de deduzidas as dívidas da massa insolvente, a quantia de 1.800,03€, considerando o seguinte:
    - Valor previsível venda viatura e outros activos 7853,53€
    - Despesas massa insolvente (20%) - 1570,71€
    - Valor distribuir credores = 6282,82€
    - C (28,65%) 1800,03€
    5. Assim, a C receberia bem menos que os 12.290,46€, que está previsto receber através do acordo cuja aprovação e homologação se conseguiu em 1ª instância; ao invés, receberia mais 10.490,43€ do que num possível cenário de liquidação em sede de processo de insolvência.
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    Questões que importa decidir: se o acordo não se deve considerar aprovado ou, caso contrário, se não devia ter sido homologado.
    ***

    Os factos que importam à decisão destas questões são os que constam do relatório que antecede.
    II

    O acordo não foi aprovado.

    Como diz a C, o acordo não se pode considerar aprovado, porque o único credor que o aprovou não o podia votar. E não o podia votar porque o seu crédito não foi modificado (arts. 212/2-a e 225-F/5, ambos do CIRE). Para além dos acórdãos citados pela C, de que estão publicados apenas dois, vão nesse sentido, entre muitos outros, os acs do TRL de 20/09/2016, proc. 23094/15.0T8SNT.L1-7, que cita aqueles e outros, e do TRL de 20/09/2016, proc. 26506/15.9T8SNT-A.L1-7, ambos fundamentando a aplicação daquelas normas ao PER, o que hoje nem sequer tem discussão, mesmo quanto ao PEAP, por via do art. 225-F/5 do CIRE.
    A argumentação contrária dos devedores baseia-se num facto que não consta do processo e os devedores não se preocupam sequer com isso, multiplicando um facto que não está provado por dois, de modo a fazer dele uma alteração de taxa, para além de uma alteração de condição, quando não se prova aquela, nem ela implicaria esta.
    Pura e simplesmente, não há qualquer facto que permita dizer que o crédito hipotecário foi modificado, fosse a que título fosse.
    Aliás, o que diz o acordo até indicia o contrário do que os devedores dizem: com efeito, no requerimento inicial deste processo, os devedores diziam que a prestação que estavam a pagar ao credor hipotecário era de 191€, o que aliás é assumido no acordo. E agora, com a proposta de pagamento, continuariam a pagar exactamente o mesmo, ou seja, 191€.
    II

    Mesmo que o acordo tivesse sido aprovado, ele não devia ser homologado – art. 216 do CIRE
    A questão colocada nas conclusões 7 a 10 do recurso da C não pode ser conhecida.
    O art. 222-F/2 do CIRE diz que no prazo nele previsto pode qualquer interessado solicitar a não homologação do acordo, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 215 e 216 [do CIRE], com as devidas adaptações. O art. 216 do CIRE trata da não homologação a solicitação dos interessados, sendo nele que está prevista a hipótese de o interessado provar que a sua situação, ao abrigo do acordo, é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer acordo.
    Ou seja, trata-se de uma não homologação dependente de um pedido de um interessado, naturalmente formulada perante o juiz do processo, na 1.ª instância.
    Ora, esse pedido não existe: a C não o formulou.
    Não havendo pedido, a não homologação, ao abrigo do art. 216/1-a do CIRE, não pode ter lugar.
    Portanto, este fundamento do recurso improcede.
    ***

    III
    Desvirtuamento dos fins do PEAP e da não homologação oficiosa – art. 215 do CIRE
    O facto de o acordo não ter sido aprovado, por força do que se disse acima, seria suficiente para impedir a homologação do acordo.
    De qualquer modo, e porque seria fácil aos devedores terem alterado, minimamente, o crédito hipotecário de modo a dar-lhe o direito de voto e obterem a aprovação do acordo, importa dizer que a homologação do acordo devia ter sido recusada também com fundamento na total desvirtuação do regime do PEAP no caso dos autos.
    Primeiro, porque o SMN é um ponto de partida para estabelecer os rendimentos que devem ser destinados à salvaguarda da sobrevivência do agregado familiar com um mínimo de dignidade, e não a estabelecer um valor que tenha de ser sempre garantido, à custa de terceiros (os credores), independentemente das circunstâncias concretas.
    Quer isto dizer que tendo os devedores um rendimento mensal de 2122,35€, dívidas mensais de 1570€ e despesas correntes mensais de 745,75€, segundo contas feitas por eles próprios, tal implica um saldo negativo mensal de 193,40€, pelo que lhes bastaria diminuir as dívidas mensais de 1570€ para 1376,60€, para passarem a poder pagar as dívidas e satisfazerem, ao mesmo tempo, as suas necessidades.
    Mas o acordo de pagamento por eles proposto não se destina a conseguir o pagamento das dívidas dos devedores, mas sim a permitir-lhes a reformulação de contratos celebrados, com perdão de dívidas unilateralmente imposta pela força aos credores (art. 222-G/8 do CIRE), de modo a permitir aos devedores ficarem com um rendimento disponível – já depois de pagas as dívidas e as despesas correntes do seu agregado familiar – superior às suas necessidades.
    Daí que se diga, no acordo, que os devedores ficam com um montante [que é de 926,65€] que “podem gastar onde quiserem, poupar ou diminuir as suas dívidas.”
    Ora, não é para isto que existe o PEAP, isto é, não existe para que os devedores possam ficar com rendimentos disponíveis que possam gastar onde quiserem, poupar ou diminuir as suas dívidas.
    É inconcebível que possa ser imposto aos credores – que podem ser, em abstracto, e é em abstracto que os tribunais têm que decidir (salvo quando lhes é permitido decidir com recurso à equidade, o que não é o caso: art. 4 do CC), trabalhadores com créditos salariais, ou fornecedores/ empresas produtoras de bens com créditos por fornecimentos – que fiquem sem uma parte dos seus créditos, que são bens seus e não dos devedores, para que estes devedores possam poupar o valor dos mesmos, ou gastá-lo onde quiserem ou pagarem as dívidas de uns devedores em detrimento de outros, escolhidos a seu bel-prazer.
    Segundo, os devedores são titulares de dois activos que nada justifica que mantenham no seu património ao mesmo tempo que forçam o perdão de parte dos créditos dos credores. Sendo que um deles é um terreno com 2720m2, avaliado em 21,07€, em 1989, o que é um valor inaceitável, correspondendo a sua indicação à omissão, de facto, da indicação do valor estimado real, que lhes era imposta pela lei (art. 195/2-a, aplicável por força do art. 222-F/5, ambos do CIRE). Por outro lado, a venda destes bens, por um valor real, permitiria diminuir o passivo e aumentar o rendimento do agregado para pagar as despesas correntes do mesmo. Ora, em vez disso, eles, repete-se que sem qualquer justificação, propõem-se manter o património, incluindo aqueles dois activos.
    Por outro lado, propõem-se também manter a viatura, cuja venda, poderia pagar o crédito garantido pela reserva da propriedade (que existe enquanto não for julgada inválida – sendo que o acordo de pagamento pressupõe a existência da mesma, não a tendo, por isso, os devedores posto em causa) e ainda parte de outros créditos, diminuindo o valor do passivo e originando menos despesas mensais, sendo que nada do que consta do acordo de pagamentos justifica a necessidade de se manter a viatura. Quem tem dívidas, não se pode dar ao luxo de ter uma viatura [era a eles que incumbia a alegação de factos que permitissem a conclusão contrária: art. 342/1 do CC] ao mesmo tempo que impõe o perdão de dívidas aos seus credores.
    Terceiro, no acordo considera-se como razoável uma taxa de esforço de 40%, em vez da taxa de cerca de 74% que é a que existe; no entanto, no acordo propõe-se, de facto, apenas um esforço de pagamento de de 21,2%, o que torna, evidente, também por aqui, que a finalidade deste AP nada tem a ver com as finalidades reais do PEAP.
    Quarto: Não está na lógica do PEAP (tal como do PER) que os devedores, enquanto estão a correr as negociações ou enquanto dura o processo, deixem de cumprir as suas obrigações. O obstáculo e a suspensão previstos no art. 222-E do CIRE têm a ver com os credores, não com os devedores. Estes não podem aproveitar o facto de terem requerido o PEAP para deixarem de pagar as prestações mensais das suas dívidas, ao menos na medida das suas possibilidades. Ora, o que o AP demonstra é que eles as deixaram de pagar, só se propondo retomar os pagamentos após a homologação do acordo (seria interessante saber se retomaram de facto entretanto esse pagamento, já que o acordo foi entretanto homologado e eles não falavam no trânsito em julgado da homologação). Quer isto dizer que os devedores utilizaram o PEAP para deixarem de cumprir as suas obrigações, o que não deviam fazer, mas antes o contrário, ao menos na medida das suas possibilidades.
    Isto também resulta do facto de o PEAP, que no caso diz respeito a dívidas com um valor total de 64.420€, ter sido requerido, no início de Set2017, já depois de contra os requerentes ter sido requerida uma execução com penhora de bens em Julho de 2017, e de ter sido requerido apenas com o acordo do pai do requerente, por um empréstimo alegadamente feito em Maio de 2017, de apenas 204€.
    Quinto: se os devedores têm dívidas mensais, para pagar, de 1570€, precisam, pelo menos, para viver, de 745,75€ mensais, e só recebem 2122,35€ mensais, o que implica um défice mensal de 193,40€, e não dizem ter qualquer outra fonte de rendimentos, então eles estão numa situação de insolvência (art. 3/1 do CIRE) e o que devem fazer é requerer a mesma, e não protelarem a mesma com recurso ao PEAP.
    Sexto: O AP foi aprovado contra os votos ou abstenção de todos os credores, à excepção do credor hipotecário cujo crédito se mantém intocado. E todos os outros credores vêem o seu crédito diminuído em 20% e suspenso por dois anos, por força de um AP votado apenas pelo credor que não sofre nada com o AP, no âmbito de um PEAP aberto com o acordo entre o requerente e o pai do requerente (credor alegadamente existente apenas uns 2 meses antes de uma execução contra aquele ter sido requerida e com um valor de 204€, igual a 0,3166% das dívidas).
    Conclui-se, tendo tudo isto presente que, no caso dos autos, o PEAP foi requerido para que os requerentes deixassem de pagar as dívidas enquanto o processo durasse, e para que, com o actuação concertada – ao menos objectivamente – com um credor hipotecário que se propõe receber todo o seu crédito exactamente como o estava a receber até então, imporem a todos os outros credores o perdão de parte das suas dívidas, o adiamento do início do pagamento delas por dois anos e o pagamento desse montante reduzido só ao fim de 8 anos, de modo a ficarem com rendimentos para gastarem no que quiserem (que não nas despesas correntes por estas já estarem contabilizadas) e inclusive para poupança, e não para pagarem, na medida das suas possibilidades reais, as dívidas que contraíram.
    Ora, isto nada tem a ver com as finalidades do PEAP: este destina-se a permitir ao devedor estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento (art. 222-A do CIRE), pressupondo-se logicamente que o acordo é para pagamento de tudo o que for possível e não para, sem necessidade, se pagar menos do que o devido (ficando com o resto para poupar ou para gastar no que não é necessário), por se ter tido o apoio de um credor que, a esse, se paga tudo.
    Se isto fosse admissível - o que formalmente poderia acontecer se, por exemplo, tivesse ficado provada uma alteração da taxa de juros do crédito hipotecário, por diminuta ou irrelevante que fosse – estaria encontrado o caminho para situações aberrantes, como a dos autos, em que todos os credores, à excepção do hipotecário que votou o acordo e não é prejudicado, ficam sem parte dos seus créditos, cujo pagamento para além disso é protelado no tempo, enquanto os devedores ficam com os seus bens, incluindo aqueles comprados com tais créditos, e ainda com rendimentos para gastarem no quiserem ou, inclusive, pouparem. Dito de outro modo, estaria encontrado o caminho para se comprarem todos os bens que se quisessem, sem preocupação com as cláusulas dos contratos, porque logo a seguir se poderia ir a tribunal e alterar as condições desses contratos, impondo o pagamento de um menor preço e com início de pagamento à vontade do devedor, desde que se propusesse o pagamento de todo o crédito a um credor que tivesse voto suficiente para aprovar tal acordo, com isso se obtendo esse voto.
    ***

    Posto isto,
    O art. 222-F/5 do CIRE dispõe que o juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação […], aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do acordo de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215. e 216.
    O art. 215 do CIRE dispõe que o juiz recusa oficiosamente a homologação […] no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza […].
    O art. 194/1 do CIRE dispõe que o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. E o art. 194/3 do CIRE acrescenta que é nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.
    Daqui decorre, desde logo, tendo em vista o que antes se deixou dito, que o acordo de pagamentos não deve favorecer um devedor apenas por ele ser um credor garantido e ter uma maioria suficiente para, só por si, aprovar o acordo, pagando-lhe a ele todo o seu crédito e obtendo assim o seu voto favorável, em prejuízo de todos os outros credores, que vêem os seus créditos diminuídos em 20% e com início de pagamento desse montante reduzido protelado para daí a dois anos e com pagamento a 8 anos, para mais quando com isso se visou uma poupança para os devedores e não a satisfação das necessidades básicas para uma vida condigna.
    Pelo que, por força da violação do princípio da igualdade, sempre a homologação devia ter sido recusada (arts. 194, 215 e 222-F/5, todos do CIRE), se necessário fosse com recurso ao instituto do abuso de direito (art. 334 do CC).
    Isto se, em vez disso, não devesse ser antes declarada a nulidade do acordo (acordo de pagamento e voto que o aprovou), por força do art. 281 do CC.
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    Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando a sentença de homologação do acordo de pagamento, e em sua substituição recusa-se agora a homologação por se considerar que o mesmo nem sequer foi aprovado.
    Depois desta decisão transitar em julgado, o tribunal recorrido deverá notificar o AJP para dar cumprimento ao disposto no art. 222-G/4, aplicável por força do art. 222-F/6, ambos do CIRE.
    Custas do recurso e do PEAP pelos devedores.



    Lisboa, 07/06/2018



    Pedro Martins
    Arlindo Crua
    António Moreira