Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
840/14.3T8FNC-C.L1-2
Relator: NELSON BORGES CARNEIRO
Descritores: EXECUÇÃO
PENSÃO DE ALIMENTOS
EFEITOS DA SENTENÇA
CESSAÇÃO DE PAGAMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Os alimentos fixados por decisão judicial são devidos a partir da data da propositura da ação, e não do trânsito em julgado da decisão (data em que é exigível o pagamento dos alimentos).
II – Na cessação do pagamento da obrigação de prestar alimentos, a decisão também deverá ter efeitos retroagidos à data da propositura da ação, e não reportar os seus efeitos à data do trânsito em julgado da decisão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção (cível) do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. RELATÓRIO
ZM…, residente na Estrada …, …, Hotel …, Funchal, intentou execução especial de alimentos contra RJ…, residente na Rua …, n° …-B, Dto, Funchal.
Foi proferido despacho “que determinou que se procedesse à liquidação final da execução, nos termos do disposto no artigo 716º nº 2 e 3º do CPC, por referência à data do trânsito em julgado da decisão que declarou a cessação da obrigação de alimentos, despacho que foi notificado às partes, sem qualquer oposição, consideramos que a liquidação provisória se encontra bem calculada, indeferindo o pedido de retificação da liquidação do processo”.
Inconformado veio o executado apelar deste despacho, tendo extraído das alegações[1] que apresentou as seguintes
CONCLUSÕES[2] (respeitando a respetiva numeração):
1.) O recorrente foi notificado do despacho proferido e da liquidação a que a secretaria procedeu no processo de alimentos a cônjuge.
2.) A liquidação efetuada pela Secretaria incluía a pensão relativa a todos os meses decorridos na pendência da ação para cessação da obrigação de alimentos por si intentada e que, por sentença com trânsito em julgado, obtivera total provimento, ficando, em consequência o recorrente liberto da obrigação
3.) Esta ação correu seus termos por apenso à ação principal e deu entrada em juízo a 28 de março de 2018.
4.) A sentença proferida em 03.04.2019, reconheceu a impossibilidade do requerente de prestar alimentos e determinou a cessação da obrigação da pensão de alimentos. De acordo com o disposto no art. 2006 do CC do Código Civil, a alteração da pensão de alimentos retroage sempre à data da propositura da ação.
3.) Verifica-se do mapa das contas provisórias que foram tidas em consideração as prestações de alimentos até maio de 2019 quando a pensão de alimentos terminou na data de 28 de março de 2018.
4.) O art. 2006 do CC dispõe que "os alimentos são devidos desde a propositura da ação, ou estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constitui em mora, sem prejuízo do disposto no art. 2273°".
5.) A alteração tem de ter efeitos retractivos ao momento da propositura da ação (assim, já os antigos acs.  do TRL de 13/05/1977, publicado no BMJ 269/196, e do TRP de 11/12/1980, BMJ 302/314, citados por David Valente Borges Pinho, da proteção judiciária dos menores e do Estado, Braga & Xavier, Lda., 2.ª ed, 1981, pág. 59; no mesmo sentido, Organização tutelar de menores, de Rui Epifânio e António Farinha, Almedina, 1987, pág. 411, que citam no mesmo sentido o ac. do TRP de 13/12/1979, BMJ 293/434, e o ac. do TRL de 30/03/1982, BMJ 321/424; mais recentes, no mesmo sentido, os acs. do STJ de 24/01/2002, proc. 02B2219, do TRL de 17/06/ 2014, proc. 3306/2004-2, do TRC de 25/03/2010, proc. 1330/07.6TBPBL.C1, que cita vários outros, e do TRP de 07/11/2011, proc. 114-J/1999.P1; no mesmo sentido, ainda, Clara Sottomayor, Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio, 6" ed, Almedina, 2016, pág. 353), embora o montante dos alimentos só passe a ser definitivo com o trânsito em julgado da decisão.
6.) O despacho, ao referir todas as prestações até à data do trânsito em julgado, estaria a cometer uma profunda injustiça ao obrigar aquele que acabara de reconhecer, por sentença, não ter capacidade para pagar a prestação de alimentos, a pagar por mais um ano os montantes que na sentença se reconhece não ter possibilidade de o executar.
7.) Não é só uma questão de cálculo, até porque os cálculos estão bem feitos, mas sim uma questão da inexistência do direito e, portanto, não será uma mera liquidação por parte da secretaria que o poderá criar.
8.) Depois, estamos a questionar uma liquidação provisória do processo, sem que sobre ela se tenha o Mmo Juiz pronunciado, seja em que termos fossem, e apenas sobre a mesma veio dar despacho de que agora se recorre.
9.) O despacho da Mmo Juiz a quo foi notificado às partes a 21.06.2019, despacho que foi acompanhado pela liquidação oficiosa feita pela secretaria.
10.) Logo a 25.06.2019, o recorrente apresentou requerimento onde pugna pela ilegalidade da formulação dos efeitos à data do trânsito em julgado da sentença e requerendo, em consequência, que os efeitos fossem considerados à data da propositura.
11.) Ou seja, pretendeu-se colocar, como se colocou, o despacho proferido em crise, solicitando a reformulação da liquidação o que só poderia ocorrer mediante novo despacho que assim o ordenasse e, em consequência, retificando o anterior.
12.) A retificação solicitada do despacho proferido iria repor a justiça da decisão de cessação de alimento foi feito em tempo.
13.) Os atos da secretaria só por despacho do Juiz podem ser corrigidos e o requerimento é claro quanto ao seu propósito.
14.) O cálculo não pode ser efetuado à data do trânsito, mas sim à data da propositura da ação.
15.) A ser assim seria uma perfeita contradição com a sentença proferida   no apenso, praticada no processo principal, obrigando o recorrente a proceder ao pagamento das prestações que o Tribunal reconheceu não ter condições financeiras para tal.
A exequente não contra-alegou.
Colhidos os vistos[3], cumpre decidir.
OBJETO DO RECURSO[4]
Emerge das conclusões de recurso apresentadas por RJ…, ora apelante, que o seu objeto está circunscrito à seguinte questão:
1.) Saber se os efeitos da decisão que determina a cessação do pagamento da pensão de alimentos se retroagem à data da propositura da respetiva ação, ou, se os seus efeitos se reportam à data do trânsito em julgado da decisão que declara cessada tal obrigação de pagamento.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. FACTOS PROVADOS              
1.) RJ… intentou ação de cessação da pensão de alimentos contra ZM…, pedindo a cessação da obrigação alimentos a favor desta, na qualidade de ex-cônjuge.
2.) Ação essa, intentada em 28 de março de 2018, e que correu termos por apenso ao processo 840/14.3T8FNC (apenso-F).
3.) Por sentença proferida em 12 de abril de.2019, foi declarada cessada a obrigação do pagamento de alimentos pelo Autor, RJ… à Ré, ZM…, na qualidade de ex-cônjuge.
2.2. O DIREITO
Delimitada a matéria de facto, que não vem impugnada[5], importa conhecer o objeto do recurso, circunscrito pelas respetivas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e as que sejam de conhecimento oficioso.  
1.) SABER SE OS EFEITOS DA DECISÃO QUE DETERMINA A CESSAÇÃO DO PAGAMENTO DA PENSÃO DE ALIMENTOS SE RETROAGEM À DATA DA PROPOSITURA DA RESPETIVA AÇÃO, OU, SE OS SEUS EFEITOS SE REPORTAM À DATA DO TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO QUE DECLARA CESSADA TAL OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO.
Quando a execução compreenda juros que continuem a vencer-se, a sua liquidação é feita a final, pelo agente de execução, em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça em conformidade com ele ou, sendo caso disso, em função das taxas legais de juros de mora aplicáveis – art. 716º, nº 1, do CPCivil.
Além do disposto no número anterior, o agente de execução líquida, ainda, mensalmente e no momento da cessação da aplicação da sanção pecuniária compulsória, as importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória, notificando o executado da liquidação – art. 716º, nº 2, do CPCivil.
Pelo executado foi instaurada ação de cessação de obrigação de prestação de alimentos, que correu termos por apenso a esta ação principal, e a qual já se mostra decidida por sentença já transitada em julgado.
Por despacho de 2019-05-22, foi ordenado que se “procedesse à liquidação final da execução, nos termos do artigo 716º n.ºs 2 e 3 do CPC, por referência à data do trânsito em julgado da decisão que declarou a cessação da obrigação de alimentos”.
Questão que se coloca, é a de saber se na liquidação final da execução deve ser contabilizado o valor mensal da prestação de alimentos devidos até à data do trânsito em julgado da sentença que declarou cessada a obrigação de os prestar, ou, só contabilizado o valor mensal da prestação de alimentos devidos até à data da propositura dessa ação.
Os alimentos são devidos desde a proposição da ação ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora, sem prejuízo do disposto no artigo 2273.º – art. 2006º, do CCivil.
Na primeira parte deste preceito, prevê-se a data da produção de efeito das decisões que respeitam à fixação judicial de alimentos ao abrigo de uma obrigação constituída ex novo, consagrando-se a eficácia retroativa das citadas decisões à data da propositura da ação (nos termos do art. 259º do CPC, a ação considera-se proposta no momento em que a petição inicial seja recebida na secretaria)[6].
Por aplicação da presente norma, tem sido entendido pela jurisprudência portuguesa que também a decisão que aumente o montante dos alimentos já fixados, nos termos do art. 2012º, produzirá efeitos a partir da data da propositura da ação em que o pedido de alteração é formulado[7].
Em face do princípio contido no art. 2006º, deve-se entender que o novo montante dos alimentos, no caso de alteração dos anteriormente fixados, é devido desde a data da formulação do pedido de alteração, e não apenas desde a data do trânsito em julgado da decisão que determinou tal alteração[8].
Não é líquida a resposta à questão da aplicabilidade de tal regra à hipótese de a ação de alimentos se destinar à redução dos mesmos.
A propósito do nº 2 do art. 2007º, surge a questão de saber se a regra da insusceptibilidade de restituição se aplica aos alimentos provisórios já recebidos pelo credor ou se também se aplica aos alimentos definitivos já pagos, dado que a citada norma apenas respeita aos primeiros e que inexiste norma que, no ordenamento jurídico português, cure da mesma questão quanto aos alimentos definitivos[9].
Há quem entenda que a norma do art. 2007º, nº 2, é de natureza excecional, aplicando-se apenas aos alimentos provisórios, e noutra perspetiva, que é o corolário de um princípio geral que se aplica a todas as prestações de alimentos já cumpridas no passado, ainda que por uma qualquer razão, o cumprimento se venha a revelar indevido[10].
Vaz Serra, pronunciando-se sobre a possibilidade de restituição de alimentos já prestados, admite a existência de uma obrigação de restituição dos alimentos que já hajam sido prestados, quando essa prestação ocorra depois da formulação do pedido de redução[11].
Assim, se os alimentos fixados por decisão judicial são devidos a partir da data da propositura da ação, e não do trânsito em julgado da decisão (data a partir da qual o pagamento dos alimentos é exigível), também no caso de cessação da obrigação de os prestar, tal também deverá ter efeitos retroagidos à data da propositura da ação, e não do trânsito em julgado da decisão.
Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei – art. 260º, do CPCivil.
A obrigação de prestar alimentos cessa quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles – art. 2013º, nº 1, al. b), do CCivil.
Ora, se é à data da instauração da ação que se averigua se aquele que presta os alimentos não pode continuar a prestá-los, e não à data do trânsito em julgado da decisão que se faz essa avaliação, a decisão que determina a cessação da obrigação de os pagar, terá que ter efeitos retroagidos à data da instauração da ação (data em que ocorreu o pedido de redução/cessação da pensão de alimentos).
Concluindo, se o devedor tem a obrigação de prestar os alimentos desde a data da propositura da ação de alimentos pelo credor, também tem aquele o direito de os deixar de prestar desde a data da propositura da ação de cessação de alimentos.
Destarte, procedendo o recurso de apelação, há que anular a liquidação final da execução, a qual deverá ser feita por referência a 28 de março de 2018, data da instauração da ação da cessação da obrigação de pagamento dos alimentos.
3. DISPOSITIVO
3.1. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível (2ª) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, consequentemente, em anular-se a liquidação final da execução, a qual deverá ser feita por referência a 28 de março de 2018, data da instauração da ação da cessação da obrigação de pagamento dos alimentos.     
3.2. REGIME DE CUSTAS
Custas pela apelada[12], porquanto a elas deu causa por ter ficado vencida[13].

Lisboa, 2020-03-05
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins
Inês Moura
_______________________________________________________
[1] Para além do dever de apresentar a sua alegação, impende sobre o recorrente o ónus de nela concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – ónus de formular conclusões (art. 639º, nº 1) – FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, p. 503.
[2] O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar, as normas jurídicas violadas; o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas, e invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada – art. 639º, nºs 1 e 2, do CPCivil.
[3] Na sessão anterior ao julgamento do recurso, o processo, acompanhado com o projeto de acórdão, vai com vista simultânea, por meios eletrónicos, aos dois juízes-adjuntos, pelo prazo de cinco dias, ou, quando tal não for tecnicamente possível, o relator ordena a extração de cópias do projeto de acórdão e das peças processuais relevantes para a apreciação do objeto da apelação – art. 657º, n.º 2, do CPCivil.
[4] Todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Vem sendo entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.
[5] Quando não tenha sido impugnada, nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria – art. 663º, nº 6, do CPCivil.
[6] ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 925.
[7] ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 925.
[8] Ac. Tribunal Relação do Porto de 01-11-1978, BMJ 283/359.
[9] ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 927.
[10] ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 927.
[11] ANA PRATA, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, p. 928.
[12] A apelada entendia que deveriam ser pagos os alimentos devidos até ao trânsito em julgado da decisão.
[13] A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito – art. 527º, nº 1, do CPCivil.