Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1747/18.0PBPDL.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
NÃO PRESTAÇÃO DE DECLARAÇÕES EM AUDIÊNCIA DO ARGUIDO
CONVERSAS ENTRE ARGUIDO E TESTEMUNHAS
VALORAÇÃO DO DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I – Se não for possível localizar uma testemunha, nos termos do art.º 129º/1, segunda parte, do CPP, pode o tribunal valorar o depoimento do Agente da PSP sobre o que aquela disse;
II – O silêncio do Arg. em julgamento, não o pode prejudicar, mas desse silêncio resulta a renúncia a apresentar a sua versão dos factos;
III – Se o Arg. não presta declarações em julgamento, ambos os Agentes da PSP viram a vítima, que seguia no assento da frente da viatura, ao lado do condutor/Arg., entregar duas notas de euros, uma delas de €20,00, de seguida viram uma nota de €20,00 e uma nota de €10,00 pousadas no assento da frente da viatura e a vítima disse a um dos Agentes da PSP que o Arg. lhe tinha cobrado €25,00, deve concluir-se, por presunção, que o Arg. cobrou à vítima €25,00, porque não há qualquer outra explicação razoável para aquela troca de notas, nem para o que a vítima disse ao Agente da PSP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Juízo Local Criminal de Lisboa, por sentença de 18/12/2020, constante de fls. 127/137, foi o Arg.[1] AA, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 34[3]), condenado e absolvido pela seguinte forma:
“… Pelo exposto, e decidindo, o Tribunal julga a acusação pública parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, decide:
a) Absolver o arguido AA, da prática de um crime de especulação p. e p. pelo artigo 35º, nº 1, al. a) do DL. 28/84 de 20 de janeiro;
b) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de especulação p. e p. pelo artigo 35º, nº 1, al. a) do DL. 28/84 de 20 de janeiro, na pena compósita de 1 ano de prisão e na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 5,00 €;
c) Suspender, nos termos do artigo 50.º nº1e 5 CP, a pena de prisão aplicada ao arguido AA, pelo mesmo período, sujeita a regime de prova, o qual assentará num plano individual de readaptação social do arguido, orientado para a prevenção da reincidência, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão, nos moldes a definir pela DGRSP, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 53.º e 54.º do Código Penal;
d) Condenar ainda o arguido AA no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC – artigos. 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º do Regulamento das Custas Processuais. …”.
*
Não se conformando, a Exm.ª Magistrada do MP[4] o interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 141/176, concluindo da seguinte forma:
“… 1º- A sentença recorrida padece de CONTRADIÇÃO INSANÁVEL, nos termos do previsto no art.º 410.º/2 al. b) do C.P.P.,
2º- Na fundamentação da matéria de facto, o Tribunal “a quo” considerou que os depoimentos dos agentes da PSP, MM e JR, se revelaram, no essencial, credíveis referindo que “Todas estas testemunhas apresentaram um depoimento, relativamente à intervenção que cada um teve na ocorrência, credível, seguro e circunstanciado, não refletindo os seus testemunhos qualquer interesse em prejudicar os interesses do arguido, tendo, além do mais, tais depoimentos sido congruentes com as regras de experiência comum e do normal acontecer dos factos, pelo que se deram como provados os factos elencados em 1 a 3 e 4 e 5. (…)
3º- Ora, apesar de o tribunal lhes ter reconhecido credibilidade, contraditoriamente, não deu como provados os factos que estas testemunhas relataram e constantes da acusação (vide alíneas a) e b) factos não provados).
4º- No ponto 4 da matéria de facto o Tribunal “a quo” deu como provado: “Por sua vez, no dia 24 de maio de 2019, pelas 17h53, EM apanhou o táxi da marca Mercedes, com matrícula  …………,  cujo  condutor  era  o  arguido,  na praça de táxis do Aeroporto de Lisboa, solicitando que o transportasse para a Rua …………….., Lisboa.”
5º- Sucede que o Tribunal “a quo” deu como “não provado” a alínea a) que refere: “a) Que o arguido iniciou a marcha em tarifa 1 (serviço diurno) e chegado ao destino solicitou €25,00 pelo serviço;” porém consta da motivação a sentença, designadamente, na página 7, primeiro parágrafo, linha 9 que refere: “…e, uma vez ali, constataram (os Agentes da PSP) que o taxímetro marcava a tarifa 1, e o valor da corrida de 10,25 €.”, sendo manifesta a contradição entre os factos não provados e a motivação da sentença recorrida.
6º-Por outro lado, nos pontos 5, 6 e 7 dos “factos provados” diz-se:
“…o taxímetro da viatura em causa marcava a quantia de €10,15, valor legalmente cobrável para o serviço de transporte prestado pelo arguido.” (ponto 5)“O arguido agiu com o propósito conseguido de cobrar um valor superior ao legalmente estabelecido para os serviços de transporte prestados. (ponto 6)“O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei “(ponto 7)
7º- Resulta do ponto 6 que o Tribunal “a quo” deu como provado o plural do serviço de táxi, referindo-se expressamente “os serviços de transporte prestados”, que da conjugação dos pontos 1 a 5 com os pontos 6 e 7, todos dos factos provados, foram dois os serviços de transportes prestados pelo arguido - um em 30/08/2018 e outro em 24/05/2019- onde o arguido agiu com o propósito conseguido de cobrar um valor superior ao legalmente estabelecido, todavia, contrariando os factos provados, acabou por absolver o arguido do crime de especulação, ocorrido em 24/05/2019.
8º- Dos trechos citados resulta que a fundamentação probatória apontava para uma decisão – a de considerar provados aqueles factos -, mas a decisão efectivamente proferida foi a oposta.
9º- O Tribunal “a quo” deu como não provado que “a) Que o arguido iniciou a marcha em tarifa 1 (serviço diurno) e chegado ao destino solicitou €25,00 pelo serviço; b) Que o arguido devolveu a EM a nota de €20 e pediu desculpa pelo sucedido.”, por sua vez na fundamentação da sentença recorrida refere “Por outro lado, no final da corrida, os agentes da PSP não presenciaram qualquer pagamento de 25,00 €” e de seguida concluiu “… mas sim a entrega de duas notas, apenas reconhecendo uma das notas como sendo de 20,00 €.” Ora resulta que na mesma frase o Tribunal “a quo” entra em contradição.
10º- Da motivação resulta que no final da corrida os Agentes da PSP visualizaram a entrega de duas notas, sendo que uma delas era de €20,00, pelo que dar como “não provado” o pagamento contraria as regras da experiência comum e critérios  de  normalidade; Esta contradição sai reforçada quando se conjuga estes factos com o valor constante do mostrador do taxímetro- €10,15 (ponto 5) e mais tarde, os Agentes da PSP viram a devolução de uma nota de €20,00 pelo arguido ao passageiro.
11º- O Tribunal “a quo” refere ainda na página 8, quinto e sexto parágrafos “… como resulta do depoimento dos agentes da PSP, quando chegaram ao destino da corrida, que situam em Arroios, apenas viram a entrega de duas notas ao arguido e, apos a abordagem, duas notas no banco da viatura (uma de €20 e outra de €10), não tendo, contudo, apurado a que se destinavam em concreto ou a quem pertenciam, uma vez que a transação já estaria concluída.
Donde a mera circunstância de terem os senhores agentes visualizado sr. EM a entregar duas notas ao arguido, não permite a conclusão de que se destinavam ao pagamento daquela concreta corrida no valor de 25,00 € cuja solicitação,… não foram tomadas declarações ao sr. EM de forma a poder assim concluir-se que as duas notas entregues ao arguido se destinavam a pagar o custo concreto de 25,00 €, por aquela corrida de táxi.” Por fim, o Tribunal “a quo”, na motivação da sentença diz o seguinte:“(…). Vale isto por dizer que o depoimento do agente que nada presenciou quanto à conversa ocorrida entre lesado e arguido e apenas viu o arguido a pedir desculpa e a devolver uma nota, tudo antes de ser constituído arguido…. (…)” – (vide página 11, segundo parágrafo).
12º- Exista contradição quando o Tribunal “a quo”, deu com não provado a factualidade da alínea b) que o arguido devolveu a EM a nota de €20 e pediu desculpa pelo sucedido e na motivação da sentença refere o contrário, isto é, que um dos agentes da PSP viu o arguido a “pedir desculpas e a devolver uma nota” (vide página 11, terceiro parágrafo).
13º- Assim, por um lado, o Tribunal “a quo” na página 4, segundo parágrafo, página 5, terceiro parágrafo, considerou os depoimentos das testemunhas MM e JR credíveis, seguros e circunstanciado, não refletindo qualquer interesse em prejudicar os interesses do arguido, não se compreende que na fundamentação se desvalorize as suas declarações, por ser meio de prova inválido, sem qualquer fundamento para tal, naquilo que as testemunhas observaram, na primeira pessoa e por observação directa e se dê tal factualidade como não provada.
14º- Resulta claro e cristalino que as contradições apontadas evidenciam como está inquinado o raciocínio que conduziu à decisão absolutória, pois existe oposição insanável entre os factos provados e os não provados, entre a fundamentação da matéria de facto e os factos não provados e entre a fundamentação e a própria decisão, pois o cidadão comum dela se apercebe facilmente e por isso não deve manter-se a decisão sobre matéria de facto.
15º- In casu, o Tribunal “a quo” no exame crítico da prova, tendo em conta que o arguido se reservou ao silêncio, invocou o previsto nos arts.º 356.º/7 e 58.º do C.P.P. como fundamento para não considerar MEIO DE PROVA VÁLIDO OS DEPOIMENTOS DOS AGENTES DA PSP MM E JR, na parte em que se referiram aquilo que ouviram e viram do arguido e do passageiro e os comportamentos assumidos por ambos, pelo que a sentença recorrida, padece de ERRO DE DIREITO por violar o princípio da legalidade das regras de produção e valoração da prova.
16º- Quer a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quer a jurisprudência dos diversos Tribunais da Relação, perfilham entendimento contrário ao da sentença recorrida e indicam-se, entre outros, a título de exemplo, os seguintes arestos: Acórdãos do STJ, de 19.09.2012, relatado pelo Conselheira Isabel Pais Martins, de 27.02.2012, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, de 12.12.2013, proc.nº292/11.0JAFAR.EI. S1; Acórdãos do TRE, de 07.04.2015, Relator Desembargador João Gomes Sousa, proc.1161/11.9PBFAR, 04.06.2013 relator Des. João Gomes Sousa, de 17.09.2013, relator Desembargador António Latas, de 26.06.2013, proc.220/11.2GBTND.C1, relator Desembargador Correia Pinto, de 09.05.2012, reator Desembargador Alberto Mira; Acórdãos do TRP de 17.04.2014, relator Desembargador José Carreto, de 17.06.2015, proc.543/12.3PDPRT.P1, relator Desembargador Artur Oliveira, 24.01.2012 e 23.10.2013, proc.1167/11.8TAESP.P1, relator Desembargador Neto Moura; Acórdãos do TRL, de 08.05.2018, proc.74/16.2SRLSB.L1-5, relator Desembargador João Carrola, de 22.08.2017, proc.320/14.7GCMTJ.L1-9, relatora Desembargadora Filipa Costa Lourenço; Acórdãos do TRC, de 08.05.2019, proc.109/15.6GBFND-C2, relatora Desembargadora Maria Pilar, de 13.12.2011 e 15.02.2012, proc.41/07.7FDCBR.C1, Relator Desembargador Paulo Guerra, de 11.09.2013, proc.71/11.4GCALD.C1, Relator Desembargador José Eduardo Martins; Acórdãos do TRG, de 06.02.2017, proc.564/14.1PBCHV, relatora Desembargadora Ausenda Gonçalves, 10.09.2018, proc.1221/16.0JABRG.G1, relatora Desembargadora Clarisse Gonçalves.
17º- Como refere o acórdão do TRG, Proc. 2181/07, de 11/02/2008, Relator Desembargador Cruz Bucho, há que distinguir: “Quando a testemunha relata em tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo porque a testemunha dele teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos.(…)no mesmo acórdão e por referência ao Acórdão do S.T.J. de 12/12/2001, considerou-se “não se estar perante um depoimento indirecto, mas antes perante o relato de um facto concreto e de que a testemunha teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos, quando essa testemunha transmite ao tribunal o que ouviu um dos co-arguidos dizer”.
18º- O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 440/99 ( DR, II série, de 09.11.1999), considerou, com relação à situação da fonte de conhecimento que se recusa legitimamente a depor em audiência que no caso em que essa fonte era o próprio arguido , que a valoração do depoimento indireto da testemunha que ouviu o relato dos factos da boca dessa fonte não está necessariamente vedada, pois que “…não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor.” Daí que nesse acórdão se tenha concluído que “…o artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128.º, n.º 1), do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.”
19º- A qualidade e os deveres de agente policial bem como a necessidade de evitar que, na pendência do inquérito, se pratique actos impeditivos do direito de defesa dos arguidos, levou o legislador a estabelecer uma barreira de proibição de produção e valoração de prova, prevista nos art.º 356.º/7 e 357.º/2 e 3 do C.P.P., que se concretiza na proibição da sua produção e valoração em audiência de julgamento, mas daí decorre a proibição da sua prática em inquérito, o que não é a situação dos autos.
20º- A este propósito invocamos o que é referido no Acórdão do STJ de 15/02/2007, Proc. nº06P4593, relator Conselheiro Maia Costa, de onde resulta “I.(…) por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação (…)IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).(…)VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito. VII - O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do CPP.”
21º- Ou seja, no caso concreto, não ocorre uma qualquer fraude à lei e não se pode reconduzir o caso dos autos à noção de “conversa informal”, com o sentido habitual de “meio fraudulento de prova”, pois o que foi relatado pelos Agentes da PSP resulta de uma acção de fiscalização normal, que detectou a indiciada prática, em flagrante delito, de um crime de especulação.
22º- Quando as testemunhas referem que o arguido assumiu os factos não estão a testemunhar uma “confissão”, pois a assunção feita resulta do confronto, frente a frente, entre o ainda não arguido e passageiro; só com a declaração do passageiro de que o arguido lhe pediu €25,00 e que o mesmo pagou com duas notas- €20 e €10- o arguido, perante a evidência, e depois dos Agentes da PSP terem visualizado que o taxímetro registava o valor de €10,15 e, simultaneamente encontrarem as 2 notas em cima do banco dianteiro junto a uma carteira, o arguido admitiu o que o passageiro referiu, corroborando as suas declarações e devolveu o dinheiro, pedindo desculpas.
23º- Acresce que, o que se acabou de relatar não são declarações de arguido, porquanto, não há conversas informais quando as forças policiais se limitam a cumprir o previsto nos artigos 243.º, 248.º a 250.º do C.P.P., para os fins aí indicados, o arguido decide, por sua iniciativa fazer afirmações que não foram provocadas, nem obtidas por qualquer forma de coacção.
24º- A proibição de prova do art.º 58.º/5 do C.P.P., não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido (antes de o ser) se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição e se aquelas não constituírem confissão de factos, pelo que nada impede que os agentes de investigação, em audiência, deponham sobre o conteúdo dessas diligências, incluindo sobre o conteúdo das conversas havidas com suspeitos que, entretanto, foram constituídos arguidos e mesmo que estes, na audiência, se remetam ao silêncio
25º- Face ao ordenamento português, é indubitável que o simples cidadão apenas suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido, enquanto as mesmas não obrigarem à sua constituição como arguido. Isso mesmo se deduz, sem interpretação a contrario sensu, do art.º 59.º/2 na parte sublinhada.
26º- No caso concreto, no momento e que o arguido e o passageiro falaram, frente a frente, sobre os termos da corrida de táxi, ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (arts.º 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de polícia (art.ºs 248.º, 249.º e 250.º do C.P.P.) e, sem má-fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.
27º- Ora, porque as informações então colhidas, incluindo as que lhes foram verbalmente prestadas pelo passageiro e pelo arguido, sobre a corrida de táxi, o foram no âmbito das aludidas diligências cautelares e quando ainda não havia, sequer, inquérito, não podem as mesmas ser consideradas como declarações por eles recebidas que devessem ser vertidas em auto e sobre as quais, por isso, eles estivessem impedidos de depor, nos termos do art.º 356.º/7, do C.P.P.
28º- Por isso antes da constituição como arguido nem existem “conversas informais”, sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso, que no ordenamento processual penal português é uma testemunha, excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição, o que não é o caso dos autos.
29º- No presente caso, não há atraso na constituição de arguido, nem sequer se indicia deficiente conduta policial, muito menos má-fé na sua actuação, ocorrendo apenas verbalizações voluntárias do arguido, que faz afirmações sobre a prática do crime, tal conduta não se fica a dever a conduta criticável dos agentes, que agiram de forma mais adequada, assegurando com prioridade a reparação do prejuízo causado, dando prevalência à devolução voluntária pelo arguido do valor indevidamente cobrado, pelo que a única solução plausível passa por determinar de forma clara e concreta que os depoimentos prestados pelos agentes policiais são válidos.
30º- O Tribunal “a quo” desconsiderou como meio de prova ainda as declarações agentes policiais, na parte em que reproduz o que ouviu dizer à vítima de um crime (passageiro), isto é, declarações não formalizadas em auto prestadas perante um órgão de polícia criminal, uma vez que nunca o ouviram em inquérito, mas no decurso de acto de fiscalização.
31º- Assim, o Tribunal “a quo” ao não considerar, na totalidade, dos depoimentos das testemunhas MM e JR, julgou mal este caso, pois preteriu a descoberta da verdade e não prosseguiu a realização da justiça material.
32º- A sentença recorrida viola, neste conspecto, o princípio da admissibilidade dos meios de prova, pelo que o desaproveitamento de meios de prova, por si só, faz com que o resultado do processo probatório esteja, necessariamente, viciado, pelo que o referido acto decisório merece censura e reparo, porquanto o julgador deve apreciar os depoimentos das testemunhas de acusação nos termos do previsto no art.º 127.º do C.P.P., o que não fez.
33º- Existem meios de prova que foram erradamente excluídos do processo probatório, pelo que estamos perante um erro de direito, pois o Tribunal “a quo” violou regras sobre o modo de formação da convicção, já que não fez a correcta interpretação e aplicação de normas sobre proibição (de produção e valoração) de provas.
34º- Em face do exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que resulte da apreciação e valoração da globalidade dos meios de prova postos a disposição do Tribunal “a quo”, incluindo a valoração, na sua plenitude, dos depoimentos testemunhais de Mário Monteiro e João Ramos, indevidamente excluídos parcialmente do processo de formação da convicção do Tribunal, e da qual (sentença) seja expurgado o vício decisório que afecta a sentença recorrida.
35º- O Ministério Público discorda da matéria de facto da sentença recorrida pois entende existir manifesto ERRO DE JULGAMENTO na apreciação da prova.
36º- O Ministério Público considera que, uma vez admitida a prova testemunhal pelos fundamentos referidos anteriormente neste articulado e devidamente valorada, concatenando com todos os elementos probatórios documentais existentes, os mesmos são suficientes para sustentar a condenação do arguido.
37º- Da leitura da motivação da sentença recorrida resulta que o Tribunal “a quo” efectua uma apreciação contraditória da prova testemunhal e documental, não sendo perceptível qual o raciocínio e o critério de apreciação crítica, pois, se por um lado, a sentença recorrida diz que considerou toda a prova produzida, por outro lado, constata-se que assim não é, um vez que valorizou-a parcialmente e/ou nem sequer a valorizou, quando devia.
38º-O Ministério Público entende que todos os pontos de facto dados como “não provados” na sentença recorrida estão incorrectamente julgados (alíneas a) e b))
39º- Na verdade, com relevância para a decisão a proferir sobre estes pontos da matéria de facto - dados como provados não provados- e a impor que os mesmos sejam dados “como provados”, podemos sumariar prova produzida em audiência, que se encontra gravada, conjugada com a prova documental constante dos autos , a saber: a) As declarações de MM, Agente da PSP, testemunha cujo depoimento foi gravado na audiência de discussão e julgamento agendada para 09.12.2020, com início aos 16h18m e encerrado às 16h37m, cujo depoimento se mostra transcrito no ponto B) deste articulado, que se invoca na integra e se reproduz, sem se transcrever, b). As declarações de JR, Agente da PSP, testemunha cujo depoimento foi gravado na audiência de discussão e julgamento agendada para 09.12.2020, com início aos 16h38m e encerrado às 16h53m, cujo depoimento se mostra transcrito no ponto B) deste articulado, que se invoca na integra e reproduz, sem se transcrever. c) O auto de notícia de fls.1 a 2 do apenso 1 (proc.39/19.2XELSB) que descreve de forma pormenorizada todo o comportamento do arguido na data dos factos, corroborando pelas declarações das testemunhas ouvidas em audiência de discussão e julgamento. d) A factura de fls. 9, datada de 24/05/2019, regista o serviço de táxi viatura 55, pertencente à …………., CRL, NIF ……….., com a matrícula ……………, com início às 17h25m e fim às 17h53m, no valor a pagar de 10.25€, com origem no Aeroporto da Portela, Lisboa e o Destino Rua …………… Lisboa. e) o fotograma de fls. 10 do valor marcado no taxímetro da viatura com a matrícula 47-HA-43, correspondente a €10.15.f) o fotograma de fls. 11, onde constam uma carteira e 2 notas do BCE, com o valor facial de €20 e €10, correspondentes à quantia recebida pelo arguido do passageiro, de acordo com o teor do Auto de Notícia de fls.1 a 2- que impunha que se tivesse dado como provada, no essencial toda a matéria de facto descrita na acusação, incluindo os factos dados como não provados, com a consequente condenação do arguido como autor, pela prática em 24/05/2019, de um crime de especulação p. e p. pelo 35.º, nº 1, al. a) do DL. 28/84 de 20 de janeiro, pelas razões que no local próprio se indicarão.
40º-  O Tribunal “a quo”, no exame crítico da prova, ponderou o conjunto da prova produzida em julgamento, quanto à prova documental formou a sua convicção com base, entre outros, no auto de notícia de fls.1 a 2, o auto de apreensão de fls. 6; o talão de fls. 9 e as fotografias de fls. 10 e 11, tudo documentos constantes do Apenso 1, considerando que tais documentos não foram impugnados, tendo valorado aquilo que objetivamente resulta demonstrado pelos mesmos, mas contrariando o seu teor, deu como “não provada” a factualidade constante das alíneas a) e b).
41º- O Ministério Público entende que, o Tribunal “a quo” não valorou correctamente o teor do auto de notícia de fls.1e 2 e o fotograma de fls.11 do Apenso 1, em conjugação com as declarações das testemunhas que foram ouvidos e que confirmaram toda a factualidade do dia 24.05.2019.
42º- O Auto de Notícia é um documento autêntico, nos termos do art.º 363.º/2, do Código Civil, e por isso fará prova dos factos materiais dele constantes nos termos do art.º 169.º do C.P.P. e tem força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que presenciou a infracção e a descreveu no auto, podendo esse auto fundamentar a sentença, como é o caso dos autos.
43º- Assim, não tendo o valor probatório auto de notícia junto aos autos sido posto em crise (não foram arroladas testemunhas de defesa e o arguido remeteu-se ao silêncio), deve, pois, entender-se que o auto de notícia de fls. 1 a 2 do apenso 1, faz prova plena dos factos que se aí se encontram vertidos, praticados pelo suspeito, percepcionados pelo agente autuante, tal resulta da conjugação interpretativa entre os arts.º 243.º, 99. ° e 169. ° do C.P.P. e 363. ° e 371.º/1 do C.C..
44º- Mais resulta da concatenação das declarações de MM, JR e do passageiro, com o auto de notícia fls.1 a 2 e o fotograma de fls.11, que se infere que a quantia retratada foi a recebida pelo arguido do passageiro, para pagamento da corrida de táxi, quer pelo seu valor, quer pelo local onde se encontrava (banco dianteiro junto ao lugar do condutor), quer pela proximidade do momento do pagamento.
45º- Ouvidas as testemunhas MM, JR resulta que, estas declararam que o passageiro esclareceu quanto pagou e como pagou, que coincidiu com o valor que estava em cima do banco e depois devolvido pelo arguido, sendo, pois, legítimo concluir que EM entregou as duas notas fotografadas ao arguido para pagamento daquela concreta corrida no valor de 25,00 € cuja solicitação o arguido fez e depois devolveu a quantia de €15,00 na presença dos Agentes da PSP.
46º- Acresce que, tendo o arguido exercido o direito ao silêncio, apenas existe a versão dos agentes policiais quanto aos factos trazida aos autos e bem assim quanto aos termos em que foi efectuada a fotografia de fls.11, que não foi impugnada, pelo que não há lugar à aplicação do princípio do in dúbio pro reo.
47º- O Tribunal “a quo” (vide motivação, pág.4, segundo parágrafo, página 5, terceiro parágrafo) considerou os depoimentos das testemunhas MM e JR credíveis, seguros e circunstanciado, não refletindo qualquer interesse em prejudicar os interesses do arguido; resulta da sentença recorrida que o tribunal aceita e valoriza a idoneidade e o depoimento dos agentes, mas, inexplicavelmente, faz uma valoração contrária àquilo que dito e visto por estes.
48º- O Tribunal “ a quo”( quer perfilhando o entendimento jurídico da não admissibilidade, na valoração da prova dos Agentes policiais quanto às “conversas informais”, quer por ausência de prova concludente) deu como “não provados” os factos constantes das alíneas
a) e b) referentes ao dia 24.05.2019, sendo que as testemunhas de acusação (MM e JR) presenciaram os referidos factos dados, dos quais tiveram intervenção directa, quer como espectadores, quer como participantes, tendo interagido com o arguido e passageiro, assistiram a conversas e condutas que o arguido teve para com o passageiro/lesado.
49º-Assim, os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação, por não consubstanciarem uma forma de contornar ou iludir a proibição contida no art.º 356.º/7 do C.P.P., pelo que o Tribunal “a quo” devia ter valorado o depoimento prestado na audiência pelos agentes da PSP, em toda a sua extensão.
50º- O Ministério Público consigna que, no caso concreto trata-se de valorar depoimento de agentes policiais que, em cumprimento das determinações legais pertinentes (cfr. art.º 249.º do C.P.P.), trataram de fiscalizar o serviço de táxi e colher informação sobre os termos em que foi efectuada a corrida de táxi e o seu pagamento, o que determinou a notícia do indiciado crime de especulação (e, nas mencionadas circunstâncias, essa informação só poderia ser obtida do passageiro e do arguido, então mera suspeito) e verteram no auto de notícia que elaboraram a informação obtida.
51º- Não existe, pois, valoração de prova proibida, impondo-se que as declarações das testemunhas têm que ser tidas em conta como meios de prova válidos, sendo que os procedimentos adoptados pelos agentes policiais foram correctos, não se indicia qualquer deficiente conduta policial, muito menos má- fé na sua actuação, pelo que não há razão para colocar em dúvida o depoimento dos agentes policiais ajuramentados nos termos legais.
53º- O arguido não prestou declarações e assim, não forneceu a sua versão dos acontecimentos; ora, não faz sentido que o Tribunal “a quo”, por sua iniciativa, apresente “uma outra versão do acontecido”, invocando o desconhecimento pelo arguido da língua inglesa e pondo em dúvida o seu pedido de desculpas, quando resulta das declarações da prova testemunhal que o mesmo pediu desculpas, várias vezes, em inglês, sendo esta prova credível e valorada.
54º- O direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido, porém, a proibição de valoração incide apenas sobre o silêncio que o arguido adoptou como estratégia processual, não podendo repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal, designadamente a que venha a precisar e demonstrar a responsabilidade criminal do arguido, revelando a falência da estratégia de defesa;
55º- Na realidade o Tribunal “ a quo” deu-se como “não provados” factos que foram claramente contra as declarações produzidas pelas testemunhas que não foram afastadas por inidóneas ou contraditórias, sendo audível na prova gravada (MM e JR), bem como contra a prova documental não colocada em causa ( vide auto de notícia e fotograma), concatenadas e valorada segundo os critérios da livre apreciação da prova e da prova vinculada, dos critérios da experiência, inteligência e senso comum, tendo a sentença recorrido violado os referidos princípios por erro na sua apreciação , fazendo a sentença recorrida incorrer em erro de julgamento.
56º-Perante o circunstancialismo descrito, tendo o conjunta de toda a prova que se referiu e se transcreveu, em respeito pelos critérios do art.º 127.º do CPP, impunham que o Tribunal “a quo” desse como “provado”, designadamente, a seguinte factualidade: a) Que o arguido iniciou a marcha em tarifa 1 (serviço diurno) e chegado ao destino solicitou €25,00 pelo serviço; b)Que o arguido devolveu a EM a nota de €20 e pediu desculpa pelo sucedido.
57º- Ao entender de forma diferente, o Tribunal “a quo” violou as normas 127.º, 163.º, 169.º e 355.º do C.P.P.
58º- Nesta conformidade, deverá ser revogada a sentença recorrida e ser dada como provada toda a factualidade acima enunciada e condenar o arguido pela prática em 24/05/2019 de um crime de especulação p. e p. pelo artigo 35.º, nº 1, al. a) do DL. 28/84 de 20 de janeiro.
59º- O Ministério Público entende que o processo contém os necessários elementos de facto para o Tribunal “ad quem” aplicar as respectivas penas, sem necessidade de reenviar o processo à primeiro instância nos termos do previsto nos arts.º 428.º e 431.º do C.P.P., todavia o em face da matéria de facto dada como provada, também discordados DA MEDIDA CONCRETA DA PENA aplicada ao arguido.
60º- A sentença recorrida condenou o arguido pela prática em 30/08/2018, de um crime de especulação p. e p. pelo art.º 35.º, nº 1, al. a) do DL. 28/84 de 20 de janeiro, na pena compósita de 1 ano de prisão e na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 5,00 €; o Tribunal “a quo” suspendeu, nos termos do artigo 50.º nº1 e 5, do CP, a pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 ano, sujeita a regime de prova, a qual assentará num plano individual de readaptação social do arguido, orientado para a prevenção da reincidência, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão, nos moldes a definir pela DGRSP, nos termos das disposições conjugadas dos arts.º 53.º e 54.º do C.P..
61º- O Ministério Público, em face da moldura penal abstracta do crime de especulação (pena de prisão de 6 meses a 3 anos e pena de multa no mínimo de 100 dias), tendo em conta a situação concreta do arguido, considera terem sido violados o art.º 35.º/1, al. a) do DL. 28/84 de 20 de janeiro, os arts.º 40.º e 71.º do C.P. e o art.º127.º do C.P.P., porquanto o Tribunal “a quo” efectuou uma incorrecta ponderação dos critérios da determinação da medida concreta da pena compósita aplicada ao arguido, considerando a pena aplicada padece pelo excesso de benevolência.
62º- O arguido não prestou declarações quanto aos factos, tendo apenas declarado as suas condições socioeconómicas; tem averbado no seu CRC três condenações, sendo duas delas verdadeiros antecedentes criminais, já que a última condenação foi praticada em data posterior aos dois crimes destes autos, devendo ser valorada como comportamento posterior do arguido, nos termos do previsto no art.º 71.º/2 al. e) do C.P.
63º- Do teor do CRC do condenado e dos presentes autos resulta que o mesmo, recorrentemente, praticou este tipo de ilícito entre os anos 2012 e 2020, correspondendo no global a 5 crimes, pelo que apenas se pode concluir que nenhuma destas condenações surtiu o necessário efeito de ressocialização, daí que se infira que o quantum da pena de substituição aplicada não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
64º- Em face do comportamento anterior recidivo do condenado e pelas manifestações anti-sociais da sua conduta, o arguido revela nítida falta de preparação da sua personalidade para se comportar licitamente pelo a pena que lhe foi aplicada, face às circunstâncias dadas como provadas, a ausência de confissão e de arrependimento, só podemos concluir que a pena concreta não pode realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
65º- Depois do arguido ter sido condenado pela prática de 3 crimes de idêntica natureza, factos praticados entre Janeiro de 2012 e Janeiro de 2020, ser condenado numa pena igual a um terço(1/3) da moldura máxima da pena aplicável, encontrando-se mais próxima do limite mínimo do que do seu limite médio, seria permitir-lhe acreditar que existe sempre mais uma oportunidade para continuar a delinquir, afetando o sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada,
66º- Assim, ponderam-se os factos dados como provados, o modo de actuação do arguido (lucro pretendido ser mais do dobro do legalmente expectável) o arguido ter actuado com dolo direto e o grau de ilicitude situar-se a nível mediano, com culpa elevada, consideram-se as prementes exigências de prevenção geral e, no âmbito da prevenção especial ( dois antecedentes criminais e uma condenação posterior aos factos dos autos), a fixação da pena não pode deixar de constituir um castigo para o recorrente, sob pena de deixar de cumprir a finalidade de verdadeira pena, sob pena de poder levar terceiros a pensar que "o crime compensa", transformando a pena numa absolvição encapotada.
67º- Em face do exposto concluímos que, a conduta do arguido revela que, a pena aplicada não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e considerando o elevado grau de culpa, as prementes necessidades de prevenção geral (atentos os sentimentos de insegurança que este tipo de actos gera na comunidade) e de prevenção especial (as condenações anteriores e o comportamento posterior), sendo que a graduação da pena em 1 ano de prisão que o Tribunal “a quo” suspendeu, nos termos do artigo 50.º/1 e 5 CP, a pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 ano, sujeita a regime de prova não se apresenta como adequada, proporcional e não satisfaz as necessidades de reinserção social do agente.
68º- Entende o Ministério Público que deve ser aplicado ao arguido:- Pelo crime praticado em 30.08.2018 uma pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, nos termos do previsto no art.º 50.º, 53.º e 54.º do Código Penal, e uma pena de 230 dias de multa à taxa diária de € 5,00;- Pelo crime praticado em 24.05.2019 uma pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, nos termos do previsto no art.º 50.º, 53.º e 54.º do Código Penal, e uma pena de 260 dias de multa à taxa diária de € 5,00; Após o que se deve operar ao respectivo cúmulo jurídico.
69º- O Ministério Público entende serem estas as penas adequadas, proporcionais e que revelam preocupação com as necessidades de reinserção social do arguido.
70º- Por isso que somos do entendimento que a Mm.ª Juiz do Tribunal “a quo” incorreu em erro de jure, por via de desajustado rigor punitivo, violando o previsto nos arts.40.º/1 e 2, 70.º e 71.º, do Código Penal e art.º35.º/1, al. a) do DL. 28/84 de 20 de janeiro
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Nestes termos, julgamos que o presente recurso merece provimento devendo ser considerado procedente e alterada a decisão recorrida no sentido de:
a) Da Verificação do Vício da Contradição Insanável, previsto no art.º 410.º/2 al. b) do C.P.P.
b) Da Admissibilidade no caso concreto da produção e valoração das declarações dos Agentes policiais, nos termos do previsto no art.º 127.º do CPP, por não ser enquadrável no previsto no art.º 356.º/7 e 58.º/5 do CPP.
c) Da alteração da matéria de facto em face de toda a prova produzida dando-se todos os factos da acusação como provados.
d) da condenação do arguido - Pelo crime praticado em 30.08.2018 em uma pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, nos termos do previsto no art.º 50.º, 53.º e 54.º do Código Penal, e uma pena de 230 dias de multa à taxa diária de € 5,00, E - Pelo crime praticado em 24.05.2019 em uma pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, nos termos do previsto no art.º 50.º, 53.º e 54.º do Código Penal, e uma pena de 260 dias de multa à taxa diária de € 5,00; Após o que se deve operar ao respectivo cúmulo jurídico. …”.
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O Arg. não respondeu ao recurso.
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Neste tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 186, em suma, aderindo à posição assumida pelo MP na 1ª instância.
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A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, da verdade material; da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está ainda sujeita aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação.
O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“… a. Factos Provados
1. No dia 30 de agosto de 2018, entre as 12h00 e as 13h00, LS apanhou o táxi da marca Mercedes, com matrícula ………, cujo condutor era o arguido, na praça de táxis do Aeroporto de Lisboa, solicitando que a transportasse para o Hotel ……………….., Lisboa, percurso que faz há já vários anos pagando habitualmente uma quantia que se situa entre os €12 e os €16.
2. O arguido iniciou a marcha e chegado ao destino solicitou €27,00 pelo serviço, os quais aquela pagou, tendo o arguido passado a fatura n.º 3465, onde colocou a data “29-08- 2018, o valor e a sua rúbrica.
3. Sucede que o valor legalmente cobrável para o serviço de transporte prestado pelo arguido seria aproximadamente de €8,85.
4. Por sua vez, no dia 24 de maio de 2019, pelas 17h53, EM apanhou o táxi da marca Mercedes, com matrícula …………, cujo condutor era o arguido, na praça de táxis do Aeroporto de Lisboa, solicitando que o transportasse para a Rua …………….., Lisboa.
5. Nesse momento foi o arguido abordado pelos agentes da PSP MM e JR, que o seguiram desde o Aeroporto, tendo estes verificado que o taxímetro da viatura em causa marcava a quantia de €10,15, valor legalmente cobrável para o serviço de transporte prestado pelo arguido.
6. O arguido agiu com o propósito conseguido de cobrar um valor superior ao legalmente estabelecido para os serviços de transporte prestados.
7. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
Mais se apurou que:
8. Atualmente, o arguido já não exerce a profissão de taxista;
9. Encontra-se inscrito na Segurança Social;
10. Em novembro de 2020, apresentou rendimentos no valor de 379,13 €.
11. Tem averbadas no registo criminal as seguintes condenações:
a. Por sentença transitada em julgado em 18/10/2013, proferida no processo 21/12.0OELSB, foi o arguido condenado, pela prática em 19/01/2012 de um crime de especulação p. p. pelo artigo 35/1/a DL 24/84 de 20 de janeiro, na pena de 2 meses de prisão substituída por 60 dias de multa e na pena de 100 dias de multa, em cúmulo jurídico de penas na pena de 160 dias de multa à taxa diária de 5,00€, já declarada extinta pelo cumprimento;
b. Por sentença transitada em julgado em 08/09/2016, proferida no processo 92/15.8XELSB, foi o arguido condenado pela prática em 22/10/2015 de um crime de especulação p. p. pelo artigo 35/1/a DL 24/84 de 20 de janeiro, na pena de 10 meses de prisão substituída por 300 dias de multa e numa pena de 160 dias de multa à razão diária de 6,00 €, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 460 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, já declarada extinta pelo cumprimento;
c. Por sentença transitada em julgado em 22/06/2020, proferida no processo 3/20.9XELSB, foi o arguido condenado pela prática em 04/01/2020 de um crime de especulação p. p. pelo artigo 35/1/a DL 24/84 de 20 de janeiro, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução, por 1 ano e na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 5,00 €, e na pena acessória de publicidade de decisão condenatória;
b. Factos Não provados
a) Que o arguido iniciou a marcha em tarifa 1 (serviço diurno) e chegado ao destino solicitou €25,00 pelo serviço;
b) Que o arguido devolveu a EM a nota de €20 e pediu desculpa pelo sucedido.
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Não se provaram quaisquer outros factos que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição a estes ou por eles prejudicados, sendo os demais considerados conclusivos, repetições ou de direito. ...”.
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Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[5] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado[6].
No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:
“… A convicção do tribunal assentou na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, atendendo-se designadamente à prova documental e pessoal produzida, tudo sob o crivo das mais elementares regras da experiência comum.
Desde logo, valorou o Tribunal todos os elementos probatórios junto aos autos, como sejam, a cópia de fatura de fls. 6; cópia de registo de fls. 23; a informação de fls. 26; o auto de fls. 41; o auto de notícia de fls. 1; o auto de apreensão de fls. 6; o talão de fls. 9 e as fotografias de fls. 10 e 11. Estes documentos não foram, além do mais, e por qualquer meio, colocados em crise, quer quanto à sua existência, quer quanto ao respetivo conteúdo, por qualquer dos sujeitos processuais e, bem assim, não coloca o Tribunal dúvidas quanto àquilo que objetivamente resulta demonstrado pelos mesmos.
No mais, o arguido, no exercício de um direito constitucionalmente protegido não prestou declarações, pelo que valorou o Tribunal o depoimento das testemunhas de acusação, LS, JO, PC, respetivamente proprietário do veículo-táxi com intervenção nos autos e motorista/colaborador que, a par com o arguido, conduzia o referido veículo e, MM e JR, agentes de PSP.
Todas estas testemunhas apresentaram um depoimento, relativamente à intervenção que cada um teve na ocorrência, credível, seguro e circunstanciado, não refletindo os seus testemunhos qualquer interesse em prejudicar os interesses do arguido, tendo, além do mais, tais depoimentos sido congruentes com as regras de experiência comum e do normal acontecer dos factos, pelo que se deram como provados os factos elencados em 1 a 3 e 4 e 5.
Concretamente, e relativamente aos factos ocorridos a 30 de agosto de 2018, LS, confirmou toda a factualidade subjacente à ocorrência de que foi alvo e referiu, com precisão, as concretas circunstâncias em que tal ocorreu. Mais esclareceu esta testemunha que o percurso efetuado lhe era familiar, por o ter percorrido em outros táxis diversas vezes e, bem assim, saber o montante normalmente cobrado e por si pago. Esclarece que pagou ao arguido por tal serviço a quantia de 27,00 €, quando o que costumava pagar se situava entre os 12,00 € e os 16,00 €. Por tal facto exigiu a fatura pelo serviço prestado, sem, contudo, ter reparado nos dizeres que se achavam na mesma, designadamente a data, tendo de imediato procurado um policia, perto do hotel, a quem questionou se poderia apresentar queixa por tal facto nos Açores, para onde viajaria, como sucedeu. Referiu ter a certeza dos factos terem ocorrido no dia 30, uma vez que no dia seguinte viajava novamente.
Por sua vez, a testemunha, JO, esclareceu que, à data, tinha apenas dois motoristas/colaboradores que conduziam o veículo, identificado em 1, à comissão. Esclareceu que trabalhavam por turnos e que rendiam os turnos um do outro; que no momento já não sabe precisar qual dos dois motoristas teria estado ao serviço no dia dos factos, recordando-se que contudo a data da fatura e a fatura não correspondia com motorista que constava dos seus registos, ou seja, identificou como sendo o motorista que havia trabalhado no dia 30 de agosto o motorista …………., sendo, contudo, que a fatura que reporta ao serviço tem data de 29 de agosto, não correspondendo a assinatura do recibo com a do motorista …………, mas sim à do arguido. Nada mais podendo acrescentar por não ter conhecimento.
Em corroboração, PC, confirmou que, à data dos factos, conduzia, à comissão, o veículo identificado em 1.; confirmou que era apenas ele e o arguido os condutores a trabalhar com e para JO e que o faziam por turnos; esclarece que não foi o próprio quem emitiu o recibo constante dos autos, não sendo a sua assinatura, pelo que a mesma não respeita a um serviço por si prestado, uma vez que cada condutor emite apenas a fatura do respetivo serviço.
Dos referidos depoimentos, conjugados entre si, e analisados à luz das regas da experiencia comum, pôde o Tribunal concluir que, nas circunstancias de tempo e lugar a que reporta a acusação, foi efetivamente o arguido quem conduziu a ofendida LS, do aeroporto ao Hotel ………., tendo emitido e assinado um recibo com uma data em que não havia sido o próprio a prestar o serviço.
Por sua vez, quanto aos factos ocorridos a 14 de maio de 2019, prestaram declarações MM e JR, agentes autuantes, os quais esclareceram que intercetaram o arguido no âmbito de uma ação de fiscalização rodoviária direcionada para veículos táxi; que nessa medida seguiram o veículo do arguido desde o aeroporto ao destino onde deixaram o lesado e mais cinco passageiros; que, uma vez ali, ainda dentro da viatura, assistiram à entrega ao arguido, por parte do lesado, de duas notas, reconhecendo apenas uma das notas como sendo de 20,00 €, sendo que só após essa entrega, abordaram o arguido e o passageiro, este de nacionalidade estrangeira, que apenas falava em inglês e, uma vez ali, constataram que o taxímetro marcava a tarifa 1, e o valor da corrida de 10, 25 €.
Por fim referiram que procederam à identificação do arguido por exibição do respetivo documento de identificação, tendo, igualmente, confirmado o teor do auto de noticia de fls. 1-2 e, bem assim, o talão/fatura de fls. 9 e as fotografias de fl. 10 e 11.
Posto isto, e pese embora o arguido tenha exercido o seu direito ao silêncio, da prova produzida, acima enunciada, conjugada entre si e, bem assim, com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, ficou o Tribunal convencido de que os factos ocorreram e que ocorreram no modo e termos que vêm descritos nos factos provados.
Para prova das condições económico-sociais, baseou-se o tribunal no teor das consultas às bases de dados disponíveis (referências 401207088 e 401235352) e, no que concerne aos antecedentes criminais do arguido foi levado em conta o CRC junto aos autos a fls. 119-121. (factos provados 8 a 11)
Por sua vez, quanto à factualidade julgada como não provada resultou da ausência de prova concludente sobre a mesma, o que não permitiu ao Tribunal sustentar um juízo de certeza sobre os factos em causa.
Designadamente, e quanto ao facto não provado a), pese embora os depoimentos dos agentes da PSP a esse respeito, o que é facto é que nenhuma prova foi feita de onde se possa extrair a afirmação de que, na data a que se reportam os autos, o arguido solicitou ao Sr. EM a quantia de 25,00 € pelo serviço de táxi entre o aeroporto e Arroios.
Com efeito, os agentes da PSP não assistiram a qualquer conversa entre o arguido e os passageiros e o sr. EM não foi ouvido no processo.
Por outro lado, no final da corrida, os agentes da PSP não presenciaram qualquer pagamento de 25,00 €, mas sim a entrega de duas notas, apenas reconhecendo uma das notas como sendo de 20,00 €:
Acresce que, e como resulta do depoimento dos agentes da PSP, quando chegaram ao destino da corrida, que situam em Arroios, apenas viram a entrega de duas notas ao arguido e, apos a abordagem, duas notas no banco da viatura, não tendo, contudo, apurado a que se destinavam em concreto ou a quem pertenciam, uma vez que a transação já estaria concluída.
Donde a mera circunstancia de terem os senhores agentes visualizado sr. EM a entregar duas notas ao arguido, não permite a conclusão de que se destinavam ao pagamento daquela concreta corrida no valor de 25,00 € cuja solicitação, pelo arguido, não se logrou também demonstrar, pois podia apenas estar a verificar quanto dinheiro tinha consigo ou ter entregue dinheiro a mais para facilitar troco, etc. – refira-se, mais uma vez, que, nestes autos, não foram tomadas declarações ao sr. EM de forma a poder assim concluir-se que as duas notas entregues ao arguido se destinavam a pagar o custo concreto de 25,00 €, por aquela corrida de táxi.
De igual forma a circunstância de os agentes terem fotografado duas notas no banco da viatura, também não permite a conclusão de que foram as recebidas do sr. EM, para pagar o custo concreto de 25,00 €, por aquela corrida de táxi, pois podia tratar-se de dinheiro que o arguido já ali tivesse de uma outra corrida, ou dinheiro que havia retirado a fim de verificar troco para entregar ao passageiro.
Acresce que segundo os agentes apuraram o sr. EM, sendo cidadão estrangeiro, não falava português, apenas inglês.
Ora, não se apurou igualmente quais os conhecimentos de inglês do arguido, ou sequer se os tem, pelo que se desconhece se houve alguma falha na comunicação entre ofendido e arguido.
Por assim ser, e à míngua de qualquer outra prova que, com o grau de certeza exigível, e de forma credível, permitisse formar, de maneira inequívoca e segura, uma convicção probatória plena quanto a estes concretos factos, impõe–se levar tal matéria aos factos não provados, até por decorrência do princípio in dubio pro reo, segundo o qual quando persista a dúvida se o arguido praticou ou não os factos imputados na acusação, sempre aquela tem que ser resolvida a favor do arguido.
Por fim, quanto à menção, feita pelos agentes autuantes, em sede do seu depoimento e, bem assim, no auto de noticia, a declarações que o arguido prestou, no momento dos factos – facto não provado b), importa dizer o seguinte:
Em audiência de julgamento, o arguido não prestou declarações acerca dos factos imputados.
Por assim ser, cremos nós, que a informação fornecida pelo arguido aos agentes da PSP, que no local o abordou, não é suficiente para se dar como provado aqueles concretos factos.
Acresce que aquilo que os agentes no momento percecionaram, e nesta sede relataram, não permite extrair a conclusão que os mesmos tiraram, como seja, que quando o arguido devolveu a EM a nota de €20 e pediu desculpa pelo sucedido estava a assumir uma qualquer culpa ou a confessar os factos.
Com efeito, como se escreveu no Ac. do STJ de 5/01/2005, in P. 3276/04, “o privilégio contra a autoincriminação, ou direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória.”
Acresce que, “o princípio da legalidade do processo e o estatuto do arguido (cf., v.g., os arts. 2º, 56º e ss., 262º e ss., 275º, 355º a 357º, com especial destaque para o nº 7 do art. 356º e nº 2 do art. 357º), impedem que sejam consideradas como prova depoimentos de órgãos de polícia criminal, encarregados de atos de investigação, referindo declarações do arguido (ou de alguém que devesse ser constituído como tal - cf. arts. 58º e 59º do C.P.P.), mesmo que sob a forma de conversas informais, a esses órgãos de polícia criminal encarregados de atos de investigação, quando essas declarações não forem reduzidas a auto. Entendimento contrário implicaria que pudessem ser tomadas em conta, para efeitos de prova, declarações do arguido que não o poderiam ser se constantes de auto cuja leitura não fosse permitida em audiência nos termos dos art. 357º, conjugado com os arts. 355º e 356º, nº 7. Constituiria manifesta ofensa do fim prosseguido pela lei com estas disposições, revelado pelo seu espírito, designadamente a salvaguarda dos princípios da oralidade, da imediação, da publicidade, do contraditório, da concentração.” - Ac. do STJ de 9/07/2003, P. 615/03.
No mesmo sentido pode ler-se nos Ac. do TRL de 11/10/2006, P. 5998/06-3 e de 29/04/2010, P. 1670/09.0YRLSB-9: “I - As denominadas “conversas informais” dos órgãos de polícia criminal com o arguido, antes ou depois de assumir essa qualidade, sobre factos em investigação, são desprovidas de valor probatório. II - Tendo-se o arguido remetido ao silêncio na audiência de julgamento, não pode ser valorada a sua (eventual) confissão do crime, feita perante um órgão de polícia criminal, com base na qual foi levantado o auto de notícia que o deu como agente daquele crime.”
Vale isto por dizer que o depoimento do agente que nada presenciou quanto à conversa ocorrida entre lesado e arguido e apenas viu o arguido a pedir desculpa e a devolver uma nota, tudo antes de ser constituído arguido, não vale como "confissão" do facto, nem constitui meio de prova admissível. E se a prova é proibida, o juiz deve ignorá-la.
Ora, inexistindo, nos autos, qualquer outro meio de prova (válido) que permita concluir pela verificação dos factos relatados na alínea b) da matéria de facto não provada – isto é que com o pedido de desculpa e a devolução de uma nota, o arguido assumiu qualquer responsabilidade, terá tal factualidade que ser declarada não provada. ...”.
*
É pacífica a jurisprudência do STJ[7] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[8], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:
I – Impugnação da matéria de facto;
II – Vício de contradição insanável;
III – Medida da pena.
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Cumpre decidir.
I – Entende o MP que o tribunal recorrente errou no julgamento da matéria de facto.
Uma vez que o Recorrente entende que foi mal julgada a matéria de facto, o que invoca é a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[9],[10],[11].
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[12].
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»)[13].
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.
Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal[14]; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram[15]; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado ou não provado um facto com base em presunção judicial erradamente aplicada.
O tribunal recorrido deu como não provado que, no dia 24/05/2019, o Arg. tenha solicitado à vítima €25,00, porque esta não foi ouvida e porque das declarações dos Agentes da PSP se não pode retirar essa conclusão.
Ouvidas as gravações dos depoimentos dos Agentes da PSP, passemos à reapreciação da matéria de facto controvertida, isto é, aos factos dados como não provados.
Por um lado, relativamente à vítima, testemunha EM, conforme resulta dos autos, não foi possível contactá-la. Assim sendo, nos termos do art.º 129º/1, segunda parte, do CPP, devia o tribunal recorrido ter valorado o depoimento do Agente da PSP a quem ela disse que o Arg. lhe tinha solicitado 25,00.
Por outro lado, ambos os Agentes da PSP viram a vítima, que seguia no assento da frente da viatura, ao lado do condutor/Arg., entregar duas notas de euros, uma delas de €20,00, de seguida viram uma nota de €20,00 e uma nota de €10,00 pousadas no assento da frente da viatura.
Presenciaram ainda o Arg., depois de confrontado, a devolver €20,00 à vítima e a pedir-lhe desculpa, bem como esta a devolver ao Arg. uma nota de €5,00.
O Arg. não prestou declarações sobre os factos.
Se é certo que o silêncio do Arg. o não pode prejudicar, também é certo que desse silêncio resulta a renúncia a apresentar a sua versão dos factos, nomeadamente, uma versão que permitisse dar outra explicação para a movimentação de notas de euro verificada[16].
Perante estes elementos de prova e o silêncio do Arg., era forçoso concluir, por presunção[17], que este cobrou à vítima €25,00, porque não há qualquer outra explicação razoável para aquela troca de notas, nem para o que a vítima disse ao Agente da PSP.
Alteraremos, pois, neste sentido, a matéria de facto provada, assim procedendo, nesta parte o recurso.
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II – Imputa o MP à decisão recorrida o vício de contradição insanável, mas essa contradição fica sanada com a alteração que faremos da matéria de facto.
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Não vislumbramos na decisão recorrida quaisquer outros dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, que são de conhecimento oficioso[18] e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[19].
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III – Entende o MP que a medida da pena aplicada deve ser aumentada.
A determinação da medida concreta da pena, nos termos do art.º 71º do CP[20], deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente[21].
O tribunal recorrido fundamentou a determinação que fez da medida da pena, pela prática de um crime de especulação, para além do mais,  da seguinte forma: “… Aplicando estes critérios ao caso dos autos, sopesando por um lado o grau de ilicitude médio baixo, tendo em conta o modo de execução do crime, não resultando circunstancias especiais que agravem a ilicitude, apesar do especial dever de cuidado e boa fé que devia impender sobre o arguido nas relações com os seus clientes/consumidores; a culpa é, por sua vez, elevada, atenta a intenção deliberada de enganar os consumidores, tendo o arguido atuado com a forma mais grave de dolo - dolo direto; também as exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a natureza do crime em causa e a posição desfavorecida e frágil em que os consumidores se encontram. Há também, e ainda, a ponderar as prementes necessidades de prevenção especial, atenta a existência de duas condenações anteriores, por crime da mesma natureza, por factos praticados antes dos factos aqui em apreciação, e uma condenação, por crime da mesma natureza por factos praticados após a prática dos factos aqui em apreciação, sendo ainda de ponderar, a este título, que a última condenação do arguido foi já em pena de prisão, pese embora suspensa na sua execução.
Por sua vez, a favor do arguido milita o reduzido valor do lucro e a ausência de danos significativos e o facto do arguido se encontrar inserido familiar e socialmente.
Assim, tudo visto e ponderado, considerando a medida da culpa do arguido e os referidos princípios de prevenção geral e especial, julga-se justo e adequado, fixar ao arguido uma pena de 1 ano de prisão.
Quanto à pena de multa, tem-se por ajustada uma pena que se fixa concretamente em 200 dias multa. ...”.
O tribunal recorrido fixou a pena de prisão em medida correspondente a 1/5 do intervalo entre o limites mínimo e máximo respectivos.
A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada[22],[23], ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares[24].
Verificamos que o tribunal recorrido, ainda que tenha sido generoso, aplicou correctamente os princípios gerais de determinação das penas, não ultrapassou os limites das molduras da culpa, e teve em conta os fins das penas no quadro da prevenção. Por outro lado, em face da matéria de facto apurada, entendemos que não estamos perante qualquer desproporção da quantificação efectuada da pena, nem face a violação de regras da experiência comum, pelo que não se justifica intervenção correctiva deste Tribunal.
Já antes vínhamos entendendo que, com excepção das situações em que a factualidade provada não permita, com o rigor exigível, a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos art.ºs 70º e 71º do CP, o que a ocorrer, justificaria, então que se determinasse a reabertura da audiência, nos termos dos art.ºs 369º, 370º e 371º do CPP, o tribunal ad quem pode e deve, na consideração da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, condenar o Arg., que vinha absolvido[25].
Este entendimento veio a ser sufragado pelo STJ que, no acórdão nº 4/2016, de 21/01/2016, relatado por Isabel Pais Martins, publicado no DR-36 SÉRIE I de 22/02/2016 e disponível in www.dgsi.pt (proc. 93/02.6TAPTB.G1-A.S1), fixou a seguinte jurisprudência: “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.”.
Assim, impondo-se a a condenação do Arg. pela prática de outro crime de especulação por, em face da alteração que faremos da matéria de facto, se mostrarem preenchidos todos os elementos desse tipo, importa determinar as penas a aplicar ao Arg. pela prática do crime de especulação, p. e p. pelo art.º 35º/1-a) do DL 28/84, de 20/01.
Este crime é punível com penas de 6 meses a 3 anos de prisão e de 100 a 360 dias de multa.
São relevantes para a determinação destas penas:
- a ilicitude[26], que foi muito elevada, atentas as condenações anteriores pelo mesmo tipo de crime, uma vez que cada uma dessas condenações anteriores constituiu um reforço da proibição legal relativamente ao Arg. (ilicitude objectiva). Para além disso, a ilicitude na vertente subjectiva vai sendo maior, por cada condenação pelo mesmo tipo de crime, uma vez que revela uma intensidade da vontade criminal que é imune, não só à proibição legal, como ao reforço que constitui cada uma dessas condenações;
- a intensidade do dolo, que foi directo;
- os motivos que determinaram a prática do crime, que no caso foram a obtenção de ganhos económicos ilícitos;
- a condição sócio-económica do Arg.;
- os seus antecedentes criminais;
- a falta de manifestação de qualquer atitude de arrependimento.
Nestes termos, consideramos ajustadas as penas de 2 anos de prisão e de 200 dias de multa.
Importa, agora, efectuar o cúmulo jurídico das penas que vão aplicadas e determinar as penas únicas.
Na determinação da medida da pena do cúmulo serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art.º 77º/1 do CP)[27],[28].
Os limites mínimo e máximo das penas únicas aplicáveis são, respectivamente, de 2 anos e de 3 anos de prisão e de 200 e 400 dias de multa.
Assim, tendo em conta os factos provados, onde sobressai que a conduta do Arg. se vem repetindo, os concretos factos que integram os crimes e a personalidade do Arg., revelada naqueles factos, consideramos ajustadas as penas únicas de 2 anos e 6 meses de prisão e de 300 dias de multa.
Atenta a condição económica do Arg., fixaremos o montante diário de multa em 5,00.
Entendemos ser de manter a suspensão da execução da pena de prisão, já determinada pelo tribunal recorrido, que, aliás, não veio posta em causa no recurso, mas pelo período de 4 anos, porque um prazo inferior dificilmente poderia ser produtivo e alcançar os resultados pretendidos com o regime de prova.
*****
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos parcialmente provido o recurso do MP e, consequentemente, decidimos:
a) Alterar a matéria de facto fixada na decisão recorrida, dando como provados, relativamente à data de 24/05/2019, os seguintes factos: O arguido iniciou a marcha em tarifa 1 (serviço diurno) e chegado ao destino solicitou €25,00 pelo serviço; O arguido devolveu a EM a nota de €20 e pediu desculpa pelo sucedido.;
b) Condenar o Arg. pela prática de um (1) crime de especulação, p. e p. pelo art.º 35º/1-a) do DL 28/84, de 20/01, praticado em 24/05/2019, nas penas de um (2) anos de prisão e de duzentos (200) dias de multa, à razão diária de cinco euros (€5,00);
c) Efectuando o cúmulo jurídico das penas aplicadas pelos dois crimes de especulação, condenar o Arg. nas penas únicas de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão e de trezentos (300) dias de multa, à razão diária de cinco euros (€5,00);
d) Suspender a execução da pena única de prisão pelo período de quatro (4) anos, com regime de prova, o qual assentará num plano individual de readaptação social, orientado para a prevenção da reincidência, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão, nos moldes a definir pela DGRSP;
e) No mais, confirmar a decisão recorrida.
*
Notifique.
D.N..
*****
Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

Lisboa, 01-07-2021,
João Abrunhosa
Cristina Pego Branco
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[1] Arguido/a/s.
[2] Termo/s de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 08/03/2019.
[4] Ministério Público.
[5] Código de Processo Penal.
[6] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.
Ver, por último, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.
[7] Supremo Tribunal de Justiça.
[8] Nesse sentido, ver Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pág. 1292.
Ver também a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que com a devida vénia, reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[9] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[10] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[11] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[12] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[13] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”.
[14] Neste sentido, ver o acórdão da RP de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. 23/14.2PCOER.L1-9, in www.dgsi.pt.
[15] Veja-se, a este propósito, o acórdão da RC de 25/10/2017, relatado por Inácio Monteiro, no proc. 444/14.0JACBR.C1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I - A reapreciação da prova, por erro de julgamento, é ouvir as pessoas nas passagens concretas do seu depoimento, em que no entender do recorrente está inquinado, para saber se disseram ou não o que se mostra vertido na decisão da matéria de facto e não se destina a apurar uma interpretação diferente do tribunal a quo....”.
[16] Nesse sentido, veja-se a seguinte jurisprudência:
- acórdão do STJ de 20/10/2005, Processo 05P2939, in www.dgsi.pt, relatado por Simas Santos, do qual citamos: “Nesta sede refira-se que um arguido que mantém o silêncio em audiência, não pode ser prejudicado, pois não é obrigado a colaborar e goza da presunção de inocência, mas prescinde assim de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal. Daí que quando tal suceda não possa pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio.”.;
- acórdão da RC de 04/05/2005, relatado por Oliveira Mendes, proc. 1314/05, in www.gde.mj.pt, do qual citamos: “… De todas estas normas respiga aquilo que se convencionou chamar “o direito ao silêncio” por parte do arguido, não como consagração de que este tem direito a mentir mas tão só e apenas o de que este não pode ser prejudicado se optar pelo silêncio.
No entanto, como refere F. Dias, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, edição da Coimbra Editora, 1981, a pág. 449: “Se o arguido não pode ser juridicamente desfavorecido por exercer o seu direito ao silêncio, já, naturalmente, o pode ser de um mero ponto de vista fáctico, quando do silêncio derive o definitivo desconhecimento ou desconsideração de circunstâncias que serviriam para justificar ou desculpar, total ou parcialmente, a infracção. Então, mas só então, representará o exercício de tal direito um privilegium odiosum para o arguido.”.
No mesmo sentido Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, Reimpressão da Univ. Católica, Lisboa, 1981, a pág. 153, quando este refere “... É claro, porém, que o comportamento do arguido que se recuse a esclarecer os factos pode redundar em seu prejuízo; não por virtude de qualquer sanção do seu comportamento, mas pela falta dos esclarecimentos que só ele poderia prestar ...”;
- acórdão John Murray do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, citado por Ireneu Cabral Barreto, in “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, Coimbra Editora, 3ª ed., 2005, p. 139, que decidiu que “O tribunal nacional não pode concluir pela culpabilidade do arguido simplesmente porque este decidiu guardar silêncio. Apenas quando as provas da acusação requerem uma explicação que o arguido está em condições de fornecer, dessa omissão se poderá concluir, por um simples raciocínio de bom senso, que não existe nenhuma explicação possível e que o arguido é culpado.”;
- acórdão da RE de 26/06/2018, relatado por Gomes de Sousa, no proc. 1.075/16.6PAOLH.E1, in www.dgsi.p, com o seguinte sumário: “1 - O arguido pode recusar-se a prestar declarações sem, com isso, ser prejudicado. O seu direito à não auto-incriminação é “sagrado”. O que não pode esperar é que, com isso, seja beneficiado com o “atirar para cima do tribunal” com o seu ónus defensivo. 2 - O pressuposto essencial de um regime acusatório é a autonomia e liberdade do cidadão, mesmo arguido. Aliás, vel maxime o cidadão arguido. 3 - O princípio da investigação não pode ser transformado em princípio do inquisitório, mesmo que encapotado. 4 - E se o recorrente, podendo agir em seu benefício, prefere não o fazer, não pode após vir arguir como nulidade, ou violação de um dever do tribunal, uma sua omissão. E se essa omissão se destina a semear fundamento de arguição de nulidade ou fundamento de recurso, esse é um venire contra factum proprio que não abona a sua posição. 5 - Esta omissão de defesa do arguido não tem reflexo processual nem implica a adopção de medidas positivas, nos termos e para os efeitos do disposto na al. c) do n. 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pois que o arguido teve assistência de advogado constituído no momento determinante para apurar da “efetiva” defesa.”.
Cf., também Manuel Costa Andrade, in “Sobre as Proibições de prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, pág. 129, donde citamos: “…«Se - explicita Kúhl - o arguido exerce o seu direito ao silêncio, ele renuncia (faculdade que lhe é reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a matéria em discussão, nessa medida vinculando o tribunal à valoração exclusiva dos demais meios de prova disponíveis no processo. Para efeitos de valoração de prova, o silêncio figura, assim, como um nullum jurídico (rechtliches Nullum)» ().”
[17] Presunções judiciais são as que, assentando no simples raciocínio de quem julga, decorrem das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos próprios dados da intuição humana – art.º 349º e 351º do CC[17] (Cf. P. Lima e A. Varela, in "CC Anot.", I Vol., 4ª Ed., p. 312), e o recurso a estas presunções é perfeitamente constitucional e legítima em processo penal.
Ver, neste sentido, Ac. do STJ de 11/11/2004, relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, processo 04P3182, do qual citamos: “… O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.
Por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência. Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º).
Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.). O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas. No caso, o próprio recorrente aceita que a decisão recorrida não ficou em estado de dúvida, mas entende que deveria ter ficado, o que como vimos é agora insindicável pelo Tribunal de Revista.”.
Ver também o acórdão da RC de 28/10/2009, Processo 31/01, relatado por Jorge Jacob, no processo 31/01, in JusNet 6710/2009, donde citamos: “…Esta afirmação não colide, no entanto, com a validade da prova obtida através de presunção judicial. Não oferece dúvida que são admissíveis em processo penal as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º), aí incluídas as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil), sem que daí resulte prejuízo para o princípio da livre apreciação da prova. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa. A intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por "livre convicção", é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado. Desde que as máximas da experiência (a chamada "experiência comum", assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas:
- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis "saltos" lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria - desconhecida - de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede). …”.
Quanto às condições em que operam as presunções, ver a seguinte jurisprudência:
- do STJ de 07/01/2004, relatado por Henriques Gaspar, in www.gde.mj.pt, processo 03P3213, in www.dgsi.pt, donde citamos: “…Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência». (cfr., v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, n° 112 pág., 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, n°2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea b). …”;
- da RP de 14/01/2015, relatado por Eduarda Lobo, no proc. 502/12.6PJPRT.P1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário (sublinhado nosso): “I- Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
II -Na avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios:
a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal;
b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito;
c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
III- Se não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.”;
- da RP de 28/09/2016, relatado por Neto de Moura, no proc. 392/12.9T3OVR.P1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…IV – Quer a prova direta quer a prova indireta (prova indiciária) são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da verdade do factum probandum. V – Para superar a presunção de inocência, a prova indiciária deve respeitar requisitos formais ou processuais e requisitos materiais. VI - Quanto aos primeiros: na fundamentação da sentença, os factos indiciantes devem, como tal, estar expressos e individualizados; e da fundamentação da sentença deve constar a motivação do juízo de inferência, é dizer, deve explicitar o raciocínio através do qual, partindo dos factos-base, se chegou à convicção da verificação do facto punível e que o acusado o praticou ou nele participou – explicitação que é fundamental para avaliar a racionalidade da inferência. VII - O que tem de particular este tipo de prova é uma maior exigência de (uma mais cuidada) fundamentação. VII – Quanto aos requisitos materiais: desde logo a exigência de que os factos-base estejam plenamente provados (de preferência, mediante prova direta).”.
No sentido de que o recurso à presunção judicial em processo penal não põe em causa o princípio da presunção da inocência consagrado no art.º 32º da CRP, cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “CRP Anotada”, tomo I, Coimbra Editora, 2005, a págs. 356 e 357.
Sobre a constitucionalidade do recurso a presunções judiciais em processo penal, ver o acórdão do TC n.º 391/2015, de 12/08/2015, relatado por João Cura Mariano, do qual citamos: “…Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.
Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar.
Mas, no entender do Recorrente, a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, seria ainda inconstitucional, por violação “dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respetivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, o qual determina que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".
Como já acima se disse, no ponto 2.2., constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se às partes e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.
Ora, tendo em consideração as características acima apontadas à utilização de presunções judiciais, verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitadora do processo lógico que lhe é inerente.
Se no caso concreto o rigor exigível foi ou não observado já é uma questão que excede as competências do Tribunal Constitucional.
Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional. …”.
[18] Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no citado art.º 410.º/2 CPP.
[19] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[20] Código Penal.
[21] A este respeito, porque sintetiza e expõe de forma exemplar a doutrina e a jurisprudência dominantes quanto à determinação das medidas das penas, citamos o Ac. do STJ de 09/12/1998, relatado por Leonardo Dias, in BMJ 482/77: “Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre e tanto quanto for possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa – a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.
A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda, realiza, eficazmente, aquela protecção.
Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem, todavia, sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.
[Poderia objectar-se que esta concepção abre, perigosamente, caminho ao terror penal. Uma tal objecção, porém, ignoraria, para além do papel decisivo reservado à culpa, que, do que se trata, é do direito penal de um estado de direito social e democrático, onde quer a limitação do jus puniendi estatal, por efeito da missão de exclusiva protecção de bens jurídicos, àquele atribuída (a determinação do conceito material de bem jurídico capaz de se opor à vocação totalitária do Estado continua sendo uma das preocupações prioritárias da doutrina; entre nós Figueiredo Dias – que, como outros prestigiados autores, entende que na delimitação dos bens jurídicos carecidos de tutela penal haverá que tomar-se, como referência, a própria Lei Fundamental – propõe a seguinte definição: «unidade de aspectos ônticos e axiológicos, através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso», cfr. «Os novos rumos da política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43º, 1983, pág. 15) e os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer, da pena, uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal, acabe dirigida contra a sociedade. Depois, prevenção geral, no Estado de que falamos, não é a prevenção estritamente negativa ou de pura intimidação. Um direito penal democrático que, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, tem de, pela mesma razão, colocar a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Assim, subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, já se vê que a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, sim, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.]
Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura geral – a moldura penal aplicável ao caso concreto («moldura de prevenção») há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.”.
Quanto à determinação da medida da pena, cf. também o Ac. do STJ de 09/03/2006, relatado por Arménio Sottomayor, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss..
Ver ainda o Ac. do STJ de 29/05/2008, processo 08P1145, in www.dgsi.pt, relatado por Souto de Moura, do qual citamos: “ … É hoje entendimento uniforme deste S.T.J., bem como da doutrina, que a escolha e medida da pena constituem tarefas cuja sindicabilidade se tem que assegurar, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reacções penais legalmente previstas, numa aplicação do direito autêntica, e não num exercício do que possa ser apelidado, simplesmente, de “arte de julgar”. Tal não impede que, em sede de recurso de revista para este S.T.J., a controlabilidade da determinação da pena deva sofrer limites. Assim, podem ser apreciadas “a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais” (…) “E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada” (do Ac. deste S.T.J. e 5ª Secção, de 13/12/07, Pº 3292/07, relatado pelo Cons. Simas Santos. Cfr. também Figueiredo Dias in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197). Importa então recordar os critérios a que deve obedecer a determinação da pena concreta. Assinale-se que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no art.º 40º do C. P., nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, quando tiver lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Quando pois o art.º 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art.º 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, págs. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229). Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir. O nº 2 do art.º 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. …”.
[22] Entendemos que, nesta matéria, tem plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência exposta, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Ac. do mesmo Tribunal de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, que passamos a citar: “… A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 15-07-2008, processo n.º 818/08 - 5.ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª … .”.
No mesmo sentido se pronunciou, antes, o acórdão do STJ de 29/01/2004, relatado por Pereira Madeira, no processo 03P1874, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Estas considerações levam a que o Supremo Tribunal entenda não interferir na medida concreta encontrada, justamente porque não encontra qualquer assomo de ilegalidade no procedimento seguido para apuramento das penas concretas aplicadas - parcelares e única - sendo certo que, como se sabe, os recursos são meio de corrigir ilegalidades mas não de refinar decisões judiciais.
Neste sentido se vem aqui reiteradamente entendendo (Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram) que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.) …”.
No mesmo sentido, cf. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 197, e Simas Santos e Marcelo Ribeiro, in “Medida Concreta da Pena”, Vislis: “A doutrina (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255) mostra-se de acordo com a ideia de que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, e a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. A questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.”.
[23] Neste sentido, ver ainda o acórdão de RP de 02/10/2013, relatado por Joaquim Gomes, no proc. 180/11.0GAVLP.P1, in www.dgsi.pt, cujo sumário citamos: “O recurso dirigido à medida da pena visa o controlo da (des)proporcionalidade da sua fixação ou a correção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, e não a concretização do quantum exato da pena aplicada.”.
[24] Relevantes nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.
[25] Cf. acórdão da RL de 21/01/2010, por nós relatado, no proc. 98/05.5JELSB.L1, in www.dgsi.pt.
[26] Como afirma Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Português II”, Verbo, 2005, “... A ilicitude é um conceito de relação e designa simplesmente a contrariedade do facto à ordem jurídica: facto ilícito é o facto contrário à lei e se contrário à lei penal será um facto ilícito penal. ...” (pág. 81), distinguindo-se “... entre a ilicitude objectiva e a ilicitude subjectiva: naquela comtempla-se o comportamento na sua manifestação exterior, enquanto lesivo de bens jurídicos; nesta, na relação desse comportamento exterior com o agente, enquanto o facto lhe é imputado como seu, como fruto da sua vontade. ...” (pág. 47).
[27] A este propósito escreve Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, págs. 290 a 292: “…§ 420 estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á finalmente da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. com efeito, a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.°-1, um critério especial: «na determinação concreta da pena [do concurso] serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 78.°-1, 2.a parte).
a existência deste critério especial obriga logo (circunstância de que a nossa jurisprudência não parece dar-se conta) a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indis­pensável conexão entre o disposto nos arts. 78.°-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo — da «arte» do juiz uma vez mais — ou puramente mecânico e portanto arbitrário. sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72.° (tanto mais quanto os factores por este enumerados podem servir de «guia» para a medida da pena do concurso, sem violação da proibição de dupla valoração: cf. infra § 422), nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável.
§ 421 tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. na avaliação da personalidade — unitária — do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (…).

§ 422 A doutrina alemã discute muito a questão de saber se factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição de dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta (…).Em princípio impõe-se uma resposta negativa; mas deve notar-se que aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração (…). …”.
[28] E, como se disse no sumário do acórdão do STJ de 27/02/2013, relatado por Henriques Gaspar, no proc. 455/08.5GDPTM, in www.gde.mj.pt,: “…I - Nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CP, o agente do concurso de crimes («quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles») é condenado numa única pena, em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
II - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está, pois, ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. Na consideração da personalidade deve ser ponderado o modo como a personalidade se projecta nos factos ou é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.
III -A aplicação e a interacção das regras do art. 77.º, n.º 1, do CP (avaliação em conjunto dos factos e da personalidade), convocam critérios de proporcionalidade material na fixação da pena única dentro da moldura do cúmulo, por vezes de grande amplitude; proporcionalidade e proibição de excesso em relação aos fins na equação entre a gravidade do ilícito global e a amplitude dos limites da moldura da pena conjunta.
IV -Concretizando estes critérios, a homogeneidade e a (relativa) proximidade temporal dos crimes contra o património praticados pelo arguido, e a menor ressonância externa e comunitária da prevenção geral no que respeita à indocumentação na condução automóvel, a importância do conjunto dos factos, designadamente pela reiteração, aconselharia na perspectiva das exigências de prevenção geral a fixação de uma pena no limite próximo da metade inferior da escala da moldura da pena do cúmulo.
V - Porém, o percurso de vida do recorrente e a personalidade que por aí também vem revelada, com contacto frequente com o sistema penal e sem aproveitamento do juízo de prognose favorável de que beneficiou, aconselham – e impõem – a intervenção exigente das finalidades de prevenção especial; como revelam os factos provados, as sanções penais de natureza e medida que então foram consideradas adequadas em função de juízos favoráveis sobre o comportamento futuro do recorrente, não constituíram meio idóneo de ressocialização e de reencaminhamento para os valores. As finalidades de prevenção especial são, assim, muito acentuadas, condicionando a justa medida da pena única: a sanção indispensável, tanto na natureza como na medida.
VI - Há, pois, que fixar a pena respeitando a proporcionalidade entre os crimes e a reacção penal. Nestes termos, dentro da moldura do cúmulo, que vai de 4 anos e 8 meses de prisão até 20 anos e 4 meses de prisão, mostra-se adequada a pena única de 12 anos de prisão [em substituição da pena única de 18 anos de prisão fixada pelo tribunal recorrido]. …”.