Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2103/15.8P8LSB.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
ACUSAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA A AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Sumário:

I – No âmbito do processo especial sumário, o Ministério Público pode optar pela apresentação verbal da acusação no início da audiência de julgamento ou por substituir essa apresentação pela leitura do auto de notícia e do eventual despacho complementar deste, nos termos do disposto no art. 389.º, n.ºs 1, 2 e 4.

II - Realizada a audiência de julgamento sem que tenha sido cumprida tal formalidade essencial – o que resulta não só da acta da audiência como da audição da repectiva gravação – foi cometida a nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo titular da acção penal, nos termos dos arts. 48.º e 119.º, al. b), ambos do CPP.

III - A verificação desta nulidade, de conhecimento oficioso, determina a invalidade da audiência de julgamento e dos actos dela dependentes, nomeadamente da sentença condenatória, devendo ser realizado novo julgamento, com observância das formalidades do processo especial sumário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No âmbito do Processo Sumário n.º 2103/15.8P8LSB da Comarca de Lisboa Oeste, Oeiras – Instância Local – Secção Criminal – Juiz 3, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos J...,; D...,; e N..., , pela prática, em co-autoria material, de um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do CP.
2. Realizado o julgamento, no decurso do qual foi comunicada uma alteração da qualificação jurídica, foi proferida sentença na qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«a) Condenar o arguido, D..., pela prática, em co-autoria material e na forma tentada, de um crime de “furto simples”; p. e p. pelos art°s 22°, n°s 1 e 2 alíneas a) e b), 23°, n° 2, 73°, n° 1 alíneas a) e b) e 203°, n.° 1, todos do C. Penal, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, perfazendo o montante de 225,00 € (duzentos e vinte e cinco euros);
b) Condenar o arguido, N..., pela prática, em co-autoria material e na forma tentada, de um crime de "furto simples", p. e p. pelos art°s 22°, n°s 1 e 2 alíneas a) e b), 23°, n° 2, 73°, n° 1 alíneas a) e b) e 203°, n.° 1, todos do C. Penal, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, perfazendo o montante de 225,00 € (duzentos e vinte e cinco euros);
c) Condenar o arguido, J..., pela prática, em co-autoria material e na forma tentada, de um crime de "furto simples"; p. e p. pelos art°s 22°, n°s 1 e 2 alíneas a) e b), 23°, n° 2, 73°, n° 1 alíneas a) e b) e 203°, n.° 1, todos do C. Penal, na pena de 13 (treze) meses de prisão;
d) Ao abrigo do disposto no art° 50°, n°s 1 e 5, do C. Penal, suspender a execução, da pena de prisão aplicada ao arguido, por um período de 13 (treze) meses;
e) Que a suspensão da execução da pena de prisão, seja sujeita a regime de prova, cujo plano será elaborado, fiscalizado e acompanhado pela D.G.R.S.;
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f) Devolver o parafuso ao seu legítimo proprietário, bem como a chave de rodas, devendo, neste último caso, desconhecendo-se a quem pertence, publicar editais, nos termos do art° 186°, do C P. Penal; (…)»
3. Inconformado com esta decisão, interpôs o arguido J... o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«Artigo 1°
Ocorre a nulidade, insanável, decorrente de não ter sido concedido ao arguido prazo para preparar a defesa após lhe terem sido identificadas as normas legais que punem os factos que concretamente lhe foram atribuídos no auto de notícia, como impõe a alínea c) do n° 3 do artigo 283° do Cod. Proc. Penal.
Mais: a não concessão de tal prazo fere inadmissivelmente as garantias de defesa pelo que viola o disposto no n° 1 do artigo 32° da Constituição da República.
Artigo 2°
Consequentemente, deve anular-se todo o processado após a junção aos autos do requerimento dos arguidos de 08.05.2015, e decidir-se este requerimento em conformidade com o que foi requerido, seguindo-se depois os regulares termos do processo.
Artigo 3°
Sem prescindir, devem alterar-se os factos 1 a 6, 9 e 10 elencados na douta sentença em recurso sob a epígrafe «II. FUNDAMENTAÇÃO [...] A) Factos Provados», ao menos eliminando-se dos mesmos a sua prática pelos arguidos e, particularmente, pelo aqui recorrente.
Esta alteração justifica-se pela circunstância de não haver prova suficiente, segura, de que foram os arguidos que estiveram envolvidos nos factos dos autos.
É que o depoimento da testemunha F..., confrontado com os depoimentos dos agentes da PSP e complementados pelos depoimentos das testemunhas de defesa, tudo como se encontra fundamentado e identificado acima em 3. a), b) e d), e também complementado com o documento referido em e) do mesmo número, tudo aponta no sentido da justificação da alteração pretendida.
Artigo 4°
De resto, e ainda sem prescindir, a pena concretamente aplicada é excessiva e deve aproximar-se significativamente do seu mínimo legal (1 mês), assim se respeitando os critérios dos artigos 71° a 73° do Código Penal.»
4. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 192 dos autos.
5. Na sua resposta, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnou pela improcedência do recurso, concluindo:
«1. O recorrente invoca nulidade insanável, argumentando que não lhe foi concedido tempo para preparar a sua defesa porque não teve conhecimento, em concreto, do crime de que vinha acusado.
2. Porém, o recorrente requereu prazo para defesa e o mesmo foi-lhe concedido.
3. Do requerimento do Ministério Público que remeteu os autos a julgamento sob a forma de processo sumário consta a norma legal que foi violada.
4. Se o arguido foi julgado sem ler antecipadamente tal requerimento, tal apenas é imputável à organização da sua defesa.
5. No mais, não obstante o crime que lhe foi imputado pelo Ministério Público na acusação, o Tribunal "a quo" entendeu que a qualificação jurídica dos factos era outra e, consequentemente, procedeu à legal comunicação e alteração da qualificação jurídica.
6. O recorrente poderia ter requerido novo prazo para defesa neste momento processual e para o crime pelo qual veio efetivamente a ser condenado, pelo que não o tendo feito "sibi imputet".
7. Pelo que é manifesto que não ocorreu qualquer nulidade. e designadamente aquela que foi invocada.
8. O recorrente alega também contradições entre os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento e aquilo que consta do auto de notícia, para concluir pela existência de contradições que levariam à sua absolvição por “in dubio pro reo”.
9. Contudo, o princípio da imediação e o da oralidade impedem o julgador de valorar depoimentos que não tenham sido prestados em audiência de julgamento, e em concreto, aqueles que estão descritos no auto de notícia.
10. Deste modo, não é sequer possível afirmar que existiram contradições entre o que as testemunhas afirmaram em audiência e o que "declararam" no auto de notícia.
11. O julgador tem a seu cargo a tarefa de escrutinar o que é dito em sede de julgamento, a forma como são prestadas as declarações e a credibilidade que lhe merecem as testemunhas.
12. E tendo-o feito, neste caso concreto, não teve dúvidas que os factos ocorreram como dados como provados.
13.Tanto mais que os depoimentos crestados não mereceram todos a mesma credibilidade, e em concreto, não o mereceram os das testemunhas de defesa.
14. O documento emitido pela Via Verde não tem a virtualidade de provar facto relevante para os presentes autos.
15. A pena concretamente aplicada ao recorrente não merece reparo, tanto mais que este sofreu já anteriores condenações e pela prática de crimes contra o património, não tendo as mesmas surtido o efeito pretendido, e designadamente de o impedir de praticar novos crimes.
Nestes termos, deverá manter-se integralmente a Douta Sentença proferida, negando-se provimento ao recurso.
V. Exs., contudo, farão conforme for de JUSTIÇA.»
6. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer, conforme consta de fls. 222-228, no qual, para além de sufragar a resposta ao recurso produzida pelo Ministério Público na 1.ª instância e de aduzir doutas considerações, se pronuncia pela sua improcedência.
7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
8. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
De acordo com essas conclusões, as questões que o recorrente coloca são as seguintes:
- Nulidade insanável, por não lhe ter sido concedido prazo para preparar a defesa depois de terem sido identificadas as normas legais que punem os factos imputados, violando o disposto no art. 32.º, n.º 1, da CRP;
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Medida concreta da pena aplicada.
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2. Da decisão recorrida
Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida.
«Discutida a causa, apuraram-se os seguintes:
A) Factos Provados
1. No dia 01 de Maio de 2015, cerca das 6:00 horas, J..., N... e D..., mediante um plano previamente traçado pelos três arguidos e com ilegítima intenção de se apropriarem de jantes e parafusos de veículos automóveis, dirigiram-se no veículo automóvel, matrícula xx-xx-xx, para a Rua António Jervis Pereira, em Porto Salvo, na área da comarca de Oeiras, onde se encontrava estacionado o veículo automóvel da marca "Mercedes" e de matrícula yy-yy-yy;
2. Chegados ao local, D... permaneceu no interior da viatura de matrícula xx-xx-xx, a fim de vigiar o local e alertar aqueles outros dois arguidos, caso terceiros se aproximassem, de forma a garantir a concretização da subtracção das jantes em segurança, para não serem impedidos por esses mesmos terceiros e para evitar serem identificados por estes e, ainda, para que após terem retirado as jantes, entrassem na viatura e abandonassem de imediato o local, na posse dos objectos subtraídos;
3. O J... e N... saíram, então, do veículo de matrícula xx-xx-xx e dirigiram-se para o veículo de matrícula yy-yy-yy e, com o auxílio de uma chave de rodas, começaram a extrair os parafusos de uma das jantes desta mesma viatura, a fim de retirarem esta mesma jante;
4. No preciso momento em que J... retirou um dos parafusos da jante do veículo de matrícula yy-yy-yy, a testemunha, F..., saiu da sua casa e dirigiu-se a esta viatura;
5. Apercebendo-se de tal aproximação, N... e J..., já na posse daquele parafuso, correram para o veículo de matrícula xx-xx-xx, no qual entram, e D... arrancou de imediato com esta viatura, abandonando o local, levando consigo um dos parafusos que os três arguidos fizeram coisa sua;
6. Os três arguidos só não levaram consigo todas as jantes e respectivos parafusos, única e exclusivamente porque F... se aproximou do local, e aqueles recearam ser identificados por este;
7. O valor do parafuso de que os arguidos se apoderaram ascende a € 10,00 (dez euros) e as jantes do veículo de matrícula yy-yy-yy possuem valor patrimonial superior a €105,00 (cento e cinco euros);
8. O veículo de matrícula yy-yy-yy pertence à sociedade, P…, Lda., sendo que os representantes legais desta não autorizaram nem consentiram que os arguidos retirassem jantes e parafusos desse veículo;
9. Os arguidos quiseram agir como agiram, em conjugação de esforços e de vontades, com o intuito de retirar do veículo de matrícula yy-yy-yy, as jantes e os respectivos parafusos, bem sabendo que o seu valor é superior a € 105,00 (cento e cinco euros), e fazê-los seus, querendo ilegitimamente integrá-los no seu património, tendo conseguido inclusivamente apoderar-se de um desses parafusos, apesar de saber que as jantes e os parafusos não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade do legítimo proprietário;
10. Os arguidos agiram sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser toda a sua descrita conduta proibida e punida pela lei penal;
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11. Do C. R. C. do J... consta:
a. No processo Sumário n° 364/01.9PGOER, 2° Juízo Criminal de Oeiras, pela prática dum crime de condução ilegal, em 22.7.2001, foi julgada e condenada, por decisão de 23.7.2001, na pena de 60 dias de multa;
b. No processo Abreviado n° 434/01.3GACSC, do 4° Juízo Criminal de Cascais, pela prática dum crime de furto simples, em 5.5.2001, foi julgada e condenada, por decisão de 3.10.2002, em pena de multa;
c. No processo Abreviado n° 270/01.2PBOER, do 2° Juízo Criminal de Oeiras, pela prática, a 11.2.2003, dum crime de condução ilegal, o arguido foi julgado e condenado, por decisão de 22.10.2003, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 120 dias de multa;
d. No processo Abreviado n° 270/03.2PBAMD, do 2° Juízo Criminal da Oeiras, pela prática dum crime de condução sem habilitação legal, em 11.2.2003, foi julgado e condenado, por decisão de 22.10.2003, na pena de 120 dias de multa;
e. No processo Abreviado n° 1411/01.0PBPER, do 2° Juízo Criminal da Oeiras, pela prática dum crime de furto simples, em 9.10.2001, foi julgado e condenado, por decisão de 16.10.2002, na pena de 60 dias de multa;
f. No processo Sumário n° 14/05.4PJCSC, do 4° Juízo Criminal da Cascais, pela prática, em concurso efectivo, dum crime de dano e de furto simples na forma tentada, em 19.2.2005, foi julgado e condenado, por decisão de 16.3.2005, na pena única de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução;
g. No processo Comum Singular n° 538/03.8PBOER, do 2° Juízo Criminal da Oeiras, pela prática dum crime de furto simples, em 28.3.2003, foi julgado e condenado, por decisão de 5.5.2005, na pena de 180 horas de trabalho a favor da comunidade;
h. No processo Comum Singular n° 24/04.9GDTVD, do 1° Juízo Criminal de Torres Vedras, pela prática de dois crimes de furto simples, em 11.1.2004, foi julgado e condenado, por decisão de 4.5.2005, na pena única de 250 dias de multa;
i. No processo Comum Colectivo n° 744/00.7PBOER, do 1° Juízo Criminal da Oeiras, pela prática dum crime de roubo, em 14.5.2002, foi julgado e condenado, por decisão de 28.6.2005, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução;
j. No processo Abreviado n° 67/05.5SQLSB, d0 1° Juízo Criminal, 2ª Secção, da Pequena Instância Criminal de Lisboa, pela prática dum crime de condução ilegal, em 20.10.2005, foi julgado e condenado, por decisão de 22.2.2007, na pena de 200 dias de multa;
k. No processo Sumário n° 77/07.8GDMFR, d0 2° Juízo de Mafra, pela prática dum crime de condução ilegal, em 21.2.2007, foi julgado e condenado, por decisão de 14.3.2007, na pena de 60 dias de multa;
l No processo Comum Singular n° 353/04.IGEOER, d0 3° Juízo Criminal de Oeiras, pela prática dum crime de furto simples, em 28.7.2004, foi julgado e condenado, por decisão de 6.5.2008, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por um ano;
m. No processo Comum Singular n° 334/03.2PFCSC, d0 2° Juizo Criminal de Cascais, pela prática dum crime de furto simples, em 4.2003, foi julgado e condenado, por decisão de 9.12.2008, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por um ano;
n. No processo Abreviado n° 537/09.6GCFAR, d0 2° Juízo Criminal de Faro, pela prática dum crime de condução ilegal, em 18.7.2009, foi julgado e condenado, por decisão de 16.12.2009, na pena de 75 dias de multa;
o. No processo Comum Singular n° 586/07.9PCOER, do 3° Juízo Criminal de Oeiras, pela prática dum crime de furto simples, em 1.6.2007, foi julgado e condenado, por decisão de 16.6.2009, na pena de 1 ano de prisão suspensa por um ano;
p. No processo Abreviado n° 229/07.OPTOER, do 2° Juízo Criminal de Oeiras, pela prática dum crime de condução ilegal, em 22.12.2007, foi julgado e condenado, por decisão de 24.6.2009, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por um ano;
q. No processo Comum Singular n° 418/04.OSGLSB, do 3° Juízo, 2ª Secção, do Tribunal Criminal de Lisboa, pela prática dum crime de furto simples, em 22.5.2004, foi julgado e condenado, por decisão de 16.10.2009, na pena de 18 meses de prisão suspensa por 18 meses;
*
Mais se apurou, com base nas declarações do João Cardoso da Silva que:
12. É solteiro;
13. É operário da construção civil;
14. Vive com u ma companheira, que está desempregada;
15. Tem um filho;
16. Vive em casa arrendada, pagando a renda mensal de 200,00 €;
17. Tem, como habilitações literárias, o 7° ano de escolaridade;
Do seu relatório social resulta
18. J... tem 32 anos de idade e apresenta um trajecto de vida marcado pelas características do meio sociofamiliar em que cresceu, cujas limitações se reflectiram no seu percurso escolar e na rede de relacionamentos construída ao longo do tempo, cujas lacunas funcionaram como elementos dificultadores da adopção da sua parte de um comportamento normativo;
19. Na verdade, não tendo concluído a escolaridade obrigatória, o seu percurso passou pela entrada para o serviço militar com 17 anos, ao qual permaneceu ligado durante dois anos e cuja carreira não seguiu, segundo refere, por se "ter envolvido num problema com um amigo" (sic);
20. Seguidamente, ao nível das suas experiências laborais, trabalhou na área da construção civil, grande parte do tempo a contrato com empresas como a "JDC", onde realizou trabalhos enquanto pintor e carpinteiro de cofragens;
21. Com a forte quebra no mercado de trabalho da construção civil a que se assiste em Portugal nos últimos anos, a situação laboral de J... tomou-se precária, encontrando-se actualmente desempregado e inscrito no centro de emprego;
22. Como forma de colmatar os problemas de ordem económica que atravessa, o arguido ajuda um primo que é proprietário de vários restaurantes dentro de um mesmo conceito (z), em dois dos quais colabora (em Queluz e no Cacém), de forma alternada;
23. Nos mesmos presta tarefas de colaboração na copa (lavagem de louça), compra de géneros e arrumação de armazém, três vezes por semana, pelas quais recebe cerca de 400,00 euros por mês pela realização das mesmas;
24. Constitui um factor positivo e de protecção para o futuro que o primo e empregador esteja a equacionar a hipótese de com ele celebrar um contrato de trabalho, a fim de lhe proporcionar urna situação estável, encontrando-se a aguardar o desfecho do presente processo judicial;
25. A nível familiar, e dados os constrangimentos económicos que atravessa, J... vive com a companheira e com a filha em casa dos pais, uma habitação camarária de tipologia 3 que reúne condições para a vivência do agregado familiar, embora limitadas;
26. A relação do arguido e da companheira dura há seis anos e assenta em elos de afectividade e companheirismo, tendo o casal uma filha com 3 anos de idade;
27. A companheira de J... é esteticista mas também se encontra desempregada, pelo que tem procurado contribuir para a melhoria das condições económicas familiares através da realização de serviços de limpeza em casa particulares;
28. Sobre os circunstancialismos que levaram à instauração dos presentes autos, em que também são arguidos um irmão e um amigo de J..., revela este uma atitude de denegação, remetendo para um quadro de possibilidades externo a si;
29. Em termos pessoais, J... apresenta traços de imaturidade e alguma impulsividade, um temperamento influenciável, a que se associam lacunas nas áreas do pensamento crítico e consequencial. Tais características têm tido repercussão na forma como o arguido pensa certas situações e vivências, especialmente as que decorrem do convívio com amigos e conhecidos, em que tende a perder a sua autonomia pessoal;
30. Na verdade, na esfera dos relacionamentos tem radicado o núcleo de risco do presente caso, tendo em conta a permeabilidade do arguido à influência dos pares e a forma estereotipada como, ao nível do pensar, acredita poder evitar no futuro o envolvimento em situações-problema, o que faz com fraco discernimento e pouca capacidade crítica;
31. Apesar da atitude de denegação de J... perante a matéria processual a que atrás fizemos referência, o mesmo mostra-se intimidado com as possíveis consequências ao nível de uma eventual condenação - consciente que está do peso dos antecedentes criminais que apresenta - e disponível para cumprir de forma responsável a decisão que vier a ser tomada pelo Tribunal. Apesar de não termos tido acesso ao certificado de registo criminal do arguido, fomos por este informados que já foi condenado há vários anos atrás e por diversas vezes, pela prática de crimes de furto e condução sem habilitação legal, em penas de multa, trabalho a favor da comunidade e suspensão de execução da pena de prisão;
32. Tendo em conta tratarem-se de processas antigos, a natureza e dimensão da matéria processual actual e a postura de aceitação e motivação do arguido, consideramos que se encontram reunidas condições para, em caso de condenação no âmbito dos presentes autos, a aplicação de uma medida de execução na comunidade, concretamente na modalidade de prestação de trabalho a favor da comunidade;
Conclusão
33. J... tem 32 anos de idade e apresenta um trajecto de vida marcado pelas características do meio sociofamiliar em que cresceu;
34. Não tendo prosseguido o processo de escolarização para além do 6° ano de escolaridade, J... conseguiu desenvolver hábitos de trabalho na construção civil, pelo que conseguiu desenvolver mecanismos de autonomia pessoal, profissional e económica;
35. Assim, a vertente protectora da situação é predominante, destacando-se a possibilidade de celebração de contrato de trabalho no ramo da restauração logo que a presente situação judicial esteja resolvida, nos restaurantes onde actualmente presta colaboração informal.
36. Os factores de risco apesar de terem menor expressão ainda existem, fundamentalmente relacionados com os traços de imaturidade e impulsividade que ainda o caracterizam, com implicações ao nível do pensamento crítico e consequencial, bem como o seu temperamento influenciável. A esfera dos relacionamentos assume no presente caso o núcleo de risco, pelo que deverá ser aí que o arguido deverá centrar no futuro o seu esforço e trabalho de mudança
*
37. Do C.R.C. do D... nada consta;
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Mais se apurou que o D...
38. É divorciado;
39. É montador de estruturas metálicas, auferindo cerca de 670,00 € por mês;
40. Vive sozinho em casa própria pela qual paga uma prestação mensal, pelo crédito à habitação, de 160,00 €;
41. Tem 2 filhos a quem entrega, a título de alimentos, o montante de 100,00 €;
42. Tem a 4ª classe;
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43. Do C. R. C. do N... consta que:
a. No Processo Comum Singular n° 87/07.5GDARL, da Secção Única do Tribunal Judicial de Arraiolos, pela prática, em 4.11.2007, dum crime de caça e pesca ilegal, o arguido foi julgado e condenado, por decisão de 14.6.2010, na pena de 40 dias de multa;
b. No Processo Comum Colectivo n° 430/13.8PEOER, do 2° Juízo Criminal de Oeiras, pela prática, em 4.7.2013, dum crime violência doméstica, o arguido foi julgado e condenado, por decisão de 25.2.2014, na pena de 2 anos de prisão, suspensa, na sua execução pelo período de 2 anos;
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Mais se apurou que o arguido, N...
44. É solteiro;
45. Vive sozinho;
46. É assistente operacional, vulgo cantoneiro de limpeza, auferindo 635,00 € por mês;
47. Vive em casa arrendada, pagando 80,00 € por mês;
48. Tem o 11° ano de escolaridade.
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C) Factos Não Provados
Não há.
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C) Conviccão do Tribunal
A convicção do tribunal, no que respeita aos factos dados como provados, assentou na análise crítica das provas produzidas em audiência e, nomeadamente, no depoimento da testemunha que viu dois indivíduos a tentarem tirara as jantes da viatura que se refere nos factos dados como provados, conjugando-as, com as dos agentes da autoridade que os interceptaram, bem como os documentos - fotografias - juntos aos autos.
Arguidos
Na primeira sessão de julgamento faltou o arguido, J…, faltou, tendo estado presentes os arguidos, N... e D…, este irmão do faltoso.
Ambos negaram os factos e referiram que àquela hora era impossível estarem no local onde estariam a ocorrer os factos que se deram como provados.
Afirmaram que vinham de Cascais e estavam a passar na via verde de Carcavelos. Mais tarde juntaram uma declaração da concessionária sobre cujo conteúdo nos pronunciaremos.
O arguido, João Cardoso da Silva, também, prestou declarações na segunda sessão de julgamento, já depois de saber, naturalmente, o que se passara na audiência e veio com uma narrativa mais completa.
Assim, os arguidos estiveram, segundo as suas versões, num bar de "alterne" no Cacem, tendo ido posteriormente a Cascais levar um amigo e regressado, tendo o J… ido a casa, a Paço de Arcos, mudar de roupa, uma vez que ia a uma festa no "DOC(?)", em Lisboa. Após a ida a casa, decidiram então deslocarem-se para o tal local em lisboa e, para esse efeito, saíram de Paço de Arcos e dirigiram-se ao Cacém, onde tomariam o IC 19, na direcção ao tal bar que é na zona de Alcântara, em Lisboa.
Nessa deslocação é quando são interceptados, na estrada de paço de Arcos para o Cacem, já perto desta localidade.
Já analisaremos, mais à frente esta versão, bem como as passagens da via verde.
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A testemunha, F..., motorista de profissão, estava a sair de casa, àquela hora e dirigia-se à viatura quando ouviu um som metálico que lhe chamou a atenção, correspondente ao barulho do que julgou ser uma cruzeta de desaparafusar porcas de rodas de viaturas, tendo visto dois indivíduos que se afastaram e entraram numa viatura, tipo furgão que arrancou imediatamente, o que lhe fez crer que já se encontrava, no seu interior e ao volante, um terceiro. Viu a matrícula, apercebendo-se, ao chegar ao carro que estava ser abordado que faltava um dos parafusos da roda.
Comunicou, imediatamente, à polícia que organizou uma operação de localização da viatura, com as características e matrícula que foram indicadas pela testemunha. De notar que estamos a falar da madrugada dum dia feriado, portanto, com trânsito residual àquela hora da manhã. A testemunha somente tinha anotado a matrícula da viatura, não tendo identificado os indivíduos que vira afastarem-se da viatura e entrarem no furgão.
Esta testemunha nada mais soube referir.
Ouviram-se os agentes que intervieram na procura da viatura com as características indicadas.
O André Silva referiu ao tribunal que recebeu uma chamada da central a informar as características da viatura, tendo calculado que a viatura não poderia estar longe e, assim, sucedeu, uma vez que a vieram a interceptar, na estrada de Paço de Arcos. Foi desencadeada uma operação por diversos elementos.
Após a intercepção verificaram que viajavam na viatura, 3 indivíduos, sendo que a esta tem lugar para condutor e mais dois.
Aos pés dos indivíduos, mais propriamente do que seguia no centro, foi encontrada a chave de rodas- vulgo cruzeta e um parafuso que se apurou pertencer à viatura cujas jantes pretendiam apoderar-se.
A outra testemunha e agente que acompanhou a testemunha anterior confirmou o essencial da testemunha anterior, uma vez que a acompanhou em todos os actos de perseguição e detenção, bem como de intercepção dos arguidos.
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A defesa apresentou duas testemunhas: o titular do aluguer da viatura que os arguidos usaram na tentativa de se apoderarem das jantes e a mulher do arguido João Vítor, esta com o fim de confirmar a versão que o companheiro trouxe para a audiência.
A testemunha P… disse ser comerciante de automóveis, especialmente, Mercedes que manda vir da Alemanha e comercializa em Portugal. Alugou a viatura que foi utilizada pelos arguidos e, naquela noite/madrugada trocou-a com o João Vítor, quando saíram do bar no Cacém, uma vez que precisava de mais lugares e não cabiam no furgão com que os arguidos foram encontrados. Referiu ter trocado de viatura com vista a transportar pessoas que tinha trazido do bar.
Referiu, ainda, que alugou a viatura com a intenção de transportar peças na mesma e que tinha no seu interior ferramentas que utilizava para reparações nos automóveis que vendia.
Lá falou na festa que tinham combinado no "DOC" e que os arguidos que seguiam na furgoneta iam ter com ele.
A mulher do arguido confirmou ao tribunal que o namorado tinha ido a casa, por volta das seis horas da manhã para trocar de roupa, pois ia para a tal festa.
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O tribunal ainda ouviu o responsável pelo Mercedes a que tentaram tirar as rodas, sendo que nos deu o valor das jantes.
Os arguidos juntaram, ainda, uma declaração da "BRISA", onde consta que aquela viatura passou naquele dia 1 de Maio de 2015, três vezes, não se vislumbrando o sentido, mas que as horas foram 5,24 horas, 5,38 horas e 6,00 horas, tudo horas compatíveis com o momento dos factos, pois estamos a falar de distâncias muito curtas e a horas que o trânsito é diminuto. A curiosidade é que o documento vem em nome do arguido João Vítor, não sendo ele o condutor, nem o titular do aluguer, nem o proprietário da mesma, tendo a particularidade de terem passado nas portagens por três vezes sem pagarem a mesma e sem serem titular de descodificados que lhes permitisse passar na via verde.
No que respeita ao parafuso e demais ferramenta apreendia e que se encontrava na viatura, apreendidos nos autos de apreensão.
Tivemos, ainda, em conta o relatório social que se efectuou ao João Cardoso da Silva, uma vez que este já foi condenado, pelo menos, dezassete vezes.
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Em conclusão, o tribunal não tem qualquer dúvida que os factos ocorreram como dados como provados, pelo que nada mais resta do que apreciar o enquadramento jurídico-penal dos mesmos.
A tese trazida pelos arguidos não colhe, sendo que não souberam explicar porque tinham um parafuso da roda aos pés e tinham a chave de rodas na cabine, também, aos pés dum deles, sendo certo que a restante ferramenta se encontrava na caixa do furgão.
As regras de experiência comum mostram-nos, bem como o depoimento dos agentes que os factos ocorreram como descritos. A testemunha que viu o furgão não teve qualquer dúvida em identificar a viatura, tendo declarado que não conseguiu identificar nenhum dos arguidos.
A tese da ida a casa não colhe, ma vez que os arguidos foram interceptados logo a seguir à tentativa de se apoderarem das jantes, não o tendo conseguido pelo aparecimento da Testemunha Santana, que, invulgarmente, num dia feriado ia trabalhar bem cedo.
O arguido, João Vítor, até nas suas condições pessoais mentiu ao tribunal. Na verdade, disse ao tribunal que trabalhava na construção civil e ao técnico da D.G.R.S disse que um primo lhe ia arranjar trabalho no ramo da restauração, ele que até dá uma mãozinha informal ao primo que lhe vai pagando alguns serviços.
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No que respeita à sua situação social e económica, nas declarações, com a ressalva atrás feita.
Quanto aos seus antecedentes criminais, no C. R. C. de fls. 81 a 82, 83 e 80 a 101.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois, dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
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3.1. Nulidade insanável
O recorrente alega, em primeiro lugar, que ocorreu nos autos uma nulidade insanável, por não lhe ter sido concedido prazo para preparar a defesa depois de terem sido identificadas as normas legais que punem os factos imputados, como impõe o art. 283.º, n.º 3, al. c), do CPP, violando os seus direitos de defesa consagrados no art. 32.º, n.º 1, da CRP.

Vejamos, antes de mais, o que resulta dos autos.
O ora recorrente foi detido, juntamente com os demais arguidos, pelas 06h40 de 01-05-2015, nas circunstâncias descritas no auto de notícia por detenção de fls. 13-15, e na sequência da apresentação da denúncia de fls. 9-10, na qual lhes eram imputados factos susceptíveis de configurarem a prática de um crime de furto.
Nessa ocasião o recorrente foi constituído arguido, sujeito a TIR, restituído à liberdade e notificado para comparecer na audiência de discussão e julgamento, a realizar em processo sumário no dia 02-05-2015 (cf. fls. 16-18 e 37-38).
Nesta data, por entretanto os três arguidos terem requerido prazo para exercício do direito de defesa, foi reagendada a audiência para 11-05-2015, do que foram o ora recorrente e a sua Ilustre mandatária notificados (cf. fls. 55, 57, 59, 61, 63 e 66).
Em 06-05-2015, pelo Ministério Público foi formulado o despacho de acusação de fls. 70-72, no qual imputava aos arguidos a prática dos factos nele descritos e o cometimento de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do CP, e os autos foram remetidos à distribuição para julgamento (cf. fls. 78).
Em 08-05-2015, o ora recorrente e o arguido N... deram entrada ao requerimento que constitui fls. 85-86 dos autos, no qual alegavam que, «não lhes tendo sido indicada a norma legal que pune os comportamentos que lhes são atribuídos, não podem organizar as suas defesas pois que nem sabem que crime em concreto lhes vem imputado», pelo que existiria uma nulidade que deveria ser suprida «identificando-se a norma concreta que declare punível os comportamentos atribuídos aos arguidos, concedendo-lhes depois prazo para organizarem a sua defesa, por tempo não inferior a 10 dias».
A apreciação desse requerimento teve lugar na audiência de julgamento – cf. acta de fls. 102-109 –, no início da qual foi dada a palavra à Digna Magistrada do MP, que sobre ele se pronunciou nos seguintes termos:
«Compulsados os auto existe o auto de notícia por detenção (fls. 13) no qual constam os factos no nível acusatório, factos esses que imputariam uma denúncia por se tratar de crime dependente de queixa. Perante tal situação o ofendido apresentou a queixa constante de fls. 9/10, contudo, no âmbito do auto de notícia por detenção, os suspeitos foram detidos e identificados cumprindo-se as formalidades constantes dos termos dos artºs 58º e 61º do CPP, bem como submetidos a TIR nos termos do art.º 196º do CPP (fls. 16/24). Nesses mesmos actos, os arguidos foram notificados para comparecerem no DIAP de Cascais, para serem submetidos a audiência de processo Sumário ou 1º Interrogatório Judicial (vide fls. 33 a 38).
Os arguidos juntaram procuração e requereram prazo para prepararem a defesa (fls. 55 a 68). Atento o requerido prazo para preparação de defesa, o Ministério Público designou o dia de hoje, nos termos do art.º 382º, n.ºs 3 e 5 do CPP, notificando os arguidos para julgamento, os mandatários e respectivas testemunhas (vide despacho de fls. 61 e 62).
Os arguidos encontram-se notificados da presente data de audiência e julgamento de fls. 63 a 67.
O Ministério Público deduziu acusação de fls. 70 a 72, não estando, em processo Sumário, o Ministério Público obrigado a notificar os arguidos do despacho de acusação, quando os mesmos sabiam o crime ao qual estavam imputados por força do auto de notícia.
O Ministério Público não estava obrigado a deduzir todos estes factos no libelo acusatório, mas, tão só, fazer remissão para o auto de notícia e tipificar o crime e apresentar os autos para os arguidos serem julgados em processo sumário nos termos dos artº 382º, 387º e 389º, todos do CPP.
Face ao exposto promovo que se indefira o requerimento para o adiamento da audiência de julgamento por falta de fundamento legal.»

Dada a palavra à Ilustre mandatária dos arguidos, por ela foi dito nada ter a opor ou a requerer.
E seguidamente foi proferido o seguinte despacho:
«Uma vez que já foi concedido prazo a que alude o art.º 387, n.º 2 alíneas b) e c), do CP, não há qualquer fundamento para o pedido de notificação da acusação, pelo que nos termos do art.º 389º, n.º 1 do citado CPP, indefere-se o requerido adiamento, dando-se início à presente audiência de julgamento.»

A audiência prosseguiu os seus termos, com um requerimento do Ministério Público no sentido de a ausência do arguido J... ser sancionada com multa e de, caso se considerasse a sua presença em audiência indispensável, ser ordenada a sua detenção pelo tempo estritamente necessário a assegurar a sua condução ao Tribunal, requerimento que o Senhor Juiz deferiu, tendo depois determinado o início da audiência, com a inquirição das pessoas presentes.
Consta de seguida da aludida acta:
«Concedida a palavra à Ilustre defensora dos arguidos, pela mesma foi dito não pretender apresentar contestação e prescindir das exposições introdutórias»
Após, o Senhor Juiz procedeu à advertência dos arguidos a que alude o art. 342.º do CPP, seguindo-se as declarações destes e a inquirição das testemunhas, a prolação de um despacho judicial comunicando uma alteração da qualificação jurídica e a designação de data para continuação da audiência.

Recordemos agora as normas legais que ao caso importam:
No âmbito do processo especial sumário regem os arts. 381.º e ss. do CPP, sendo que, de acordo com o disposto no art. 383.º, n.º 2, deste diploma, o arguido é informado – no acto da detenção – de que tem direito a prazo não superior a 15 dias para apresentar a sua defesa, o que deve comunicar ao MP junto do tribunal competente para o julgamento.
O julgamento tem, nesta forma de processo, as especialidades do título I do Capítulo l do CPP (art. 386.º deste diploma), relevando para o caso dos autos que, na audiência, o MP pode optar por apresentar a acusação ou por substituir essa apresentação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção (art. 389.º, n.º 1, do CPP).
Se julgar insuficiente a factualidade constante do auto de notícia pode proferir despacho a completá-la, antes da apresentação a julgamento, sendo tal despacho igualmente lido em audiência (cf. art. 389.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Neste último caso, a audiência pode ser adiada, a requerimento do arguido, com vista ao exercício do contraditório, pelo prazo máximo de 10 dias, sem prejuízo de se proceder à tomada de declarações ao arguido e à inquirição do assistente, da parte civil, dos peritos e das testemunhas presentes (art. 387.º, n.º 6, do CPP).
A acusação, a contestação, o pedido de indemnização e a sua contestação, quando verbalmente apresentados, são documentados na acta, nos termos dos artigos 363.º e 364.º (art. 389.º, n.º 4 do CPP).

Analisada à luz destas disposições legais a detalhada enunciação dos termos do processo a que acima procedemos, afigura-se-nos evidente que não assistia razão ao arguido no requerimento apresentado em 08-05-2015, que veio a ser indeferido por despacho proferido no início da audiência.
Na verdade, prevendo a lei a possibilidade de o MP poder, na audiência em processo sumário, apresentar verbalmente a acusação (ou substituir essa apresentação pela leitura do auto de notícia e do despacho que o tenha aditado), nada impunha que, antes dessa ocasião, fosse dado conhecimento ao arguido da disposição legal que previa a incriminação dos factos imputados.
Por outro lado, não poderá entender-se que a falta desse elemento impossibilita a organização da defesa, pois que a própria lei prevê o arguido requeira prazo para esse efeito logo que apresentado ao MP junto do tribunal competente para o julgamento, quando nos autos apenas existe o auto de notícia, no qual não figura a disposição legal incriminatória, ou seja, o exercício daquele direito não pressupõe prévia indicação dessa norma, bastando-se com o conhecimento dos factos que lhe são imputados.
Por isso, não existia, à data da apresentação do requerimento de fls. 85-86, qualquer nulidade que importasse sanar.

Mas a análise da acta da audiência de julgamento revela que dela não consta que tenha sido efectuada a apresentação da acusação que o MP entendeu lavrar nos autos (nem sequer que tenha sido lido o auto de notícia).
Admitindo a possibilidade de tal procedimento ter ocorrido mas, por lapso, não ter sido mencionado na acta, procedemos à audição da gravação da audiência contida no CD junto aos autos, mas a gravação inicia-se com a comunicação, pelo Senhor Juiz aos arguidos, da advertência contida no art. 342.º do CPP, pelo que tudo leva a concluir que o procedimento em causa não teve efectivamente lugar.
Em suma, existe nos autos uma acusação (não notificada aos arguidos) que não foi apresentada no início da audiência de julgamento em processo sumário, nem substituída pela leitura do auto de notícia (e do despacho complementar deste).
Não foi, assim, dado cumprimento ao preceituado no art. 389.º, n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.
Naturalmente que, em consequência dessa omissão, não tiveram os arguidos a oportunidade de exercer o contraditório sobre a acusação, nos termos previstos no n.º 6 do art. 387.º do mesmo diploma.

Competindo ao Ministério Público, num processo penal de estrutura acusatória, promover o processo, nos termos do art. 48.º do CPP, e sendo a apresentação da acusação ou a sua substituição pela leitura do auto de notícia (e de eventual despacho complementar deste), no caso particular do processo sumário, a única forma de introdução dos autos em juízo, a inobservância dessa formalidade essencial equivale à não promoção do processo pelo titular da acção penal, sem a qual o julgamento não pode ter lugar.
Dispõe o art. 118.º, n.º 1, do CPP que a violação ou inobservância das disposições da lei processual penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que o art. 119.º do mesmo diploma estabelece que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, «b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, (…).»

Ao ter-se realizado a audiência de julgamento em processo sumário sem a necessária promoção do processo pelo MP, foi cometida a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. b), do CPP, que é de conhecimento oficioso e cuja verificação tem como consequência, nos termos do art. 122.º do CPP, a invalidade da audiência de julgamento e dos actos que dela dependem, nomeadamente da sentença condenatória.
Deverá, pois, ser realizado novo julgamento, sem prejuízo da manutenção dos autos sob a forma sumária, uma vez que não ocorre qualquer das situações previstas no art. 390.º do CPP.

Perante a existência desta nulidade insanável, que obsta ao conhecimento do mérito da decisão condenatória, mostra-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelo recorrente.
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III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em, julgando verificada a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. b), do CPP, declarar nula a audiência de discussão e julgamento, bem como os termos subsequentes, e determinar a sua repetição, com a observância das formalidades do processo especial sumário.
Sem tributação.
Notifique.
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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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Lisboa, 20.10.2016

Cristina Branco
Ana Filipa Lourenço