Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
915/17.7T9OER.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: EXAME PERICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: – Não é forçoso que exista exame pericial comparativo à letra e assinatura para que o tribunal possa ter como provada a existência de falsificação, sendo certo que em muitos casos os resultados são inconclusivos - e a inconclusividade não agrega em si um juízo pericial, mas um estado de dúvida – e nem por isso é subtraída ao tribunal a incumbência de esclarecer a matéria de facto, no âmbito da sua função de julgar e do princípio da livre apreciação do julgador, de modo a superar, se possível, aquela dúvida, não se podendo estabelecer, sem mais, que o tribunal, a partir da apreciação de toda a prova produzida, de forma conjugada, com recurso a juízos de lógica e experiência comum, nos termos do disposto no artigo 127.° C.P.P., não estivesse habilitado a concluir no sentido de ter sido a arguida a subscrever e assinar o documento em causa.

–Apesar de, numa primeira leitura, o dispositivo e partes da fundamentação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência 4/2016 parecerem apontar para que, na fixação de jurisprudência, se encontrem abrangidos todos os casos em que, revogando decisão absolutória da 1.ª instância, a Relação concluir pela condenação do arguido, uma leitura mais circunstanciada impõe-nos a conclusão de que aquela fixação de jurisprudência não abrange os casos em que o tribunal de 1.ª instância não procedeu ao apuramento e fixação dos factos necessários à determinação da pena - e é justamente o que se verifica nos presentes autos.

–Neste quadro, se a Relação, em recurso, passa de uma absolvição para uma condenação e verifica que a decisão recorrida não decidiu toda a matéria de facto relevante para determinar a pena concreta, só terá um caminho a seguir: decretar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente aos pontos de facto não decididos.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I– Relatório


1.No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 915/17.7T9OER, procedeu-se ao julgamento da arguida MS, melhor identificada nos autos, acusada da prática, como autora material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
«Nos termos expostos decide-se julgar improcedente, por infundada, a acusação e, em consequência, decide-se absolver MS do seu teor.
(…)»

2.O Ministério Público recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1.–O presente recurso é interposto da douta sentença proferida nos autos que decidiu absolver a arguida MS da acusação contra ela formulada pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.°, n.° 1, alínea d), do Código Penal “porque infundada diante a falta de prova.”

2.–O Tribunal a quo deu como NÃO PROVADOS os seguintes factos da acusação e que, no nosso entendimento, foram incorrectamente julgados:
1-“A arguida dirigiu-se ao Banco BPI, SA, balcão de O....., e preencheu e assinou a declaração mencionada supra em B), C) e D).
2-Tendo-se verificado o incumprimento definitivo dos pagamentos acordados por parte da sociedade RPU, Ld.ª, no dia 30-03-2017, foi por isso que FD preencheu o cheque em causa.
3-Ao preencher, assinar e entregar a declaração mencionada em 3. no balcão do Banco BPI, a arguida agiu com o propósito, concretizado, de obstar ao pagamento do identificado cheque e de, através da mesma, comunicar ao banco o furto do cheque, sabendo a arguida que estava a elaborar declarações e escrito não verdadeiros e, dessa forma, levou a que fosse aposto no cheque “CHQ REVOG FURTO” e fê-lo com pleno conhecimento de que tal facto, declarações e escrito não correspondiam à verdade.
4-A arguida agiu com a intenção de obter para si e para a sociedade RPU, Ld.a o benefício pecuniário correspondente à quantia titulada no cheque, a que sabia não ter direito, e também traduzido na apresentação do mesmo e a sua devolução com o motivo nele exarado, tudo à custa do património de FD, o que conseguiu.
5-A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei”.

3.Fundamentou a sua decisão considerando que não se mostra provada que a assinatura constante do documento de fls. 42 que consiste na declaração preenchida e entregue, no dia 31 de maio de 2016, no Banco BPI, SA, balcão de O....., através da qual se deu ordem ao referido banco solicitando “não procedam ao pagamento do cheque abaixo identificado em virtude de se tratar de cheque pré datado em poder do fornecedor que nos informou ter sido assaltado” e indicou o cheque n.° 4......2, da conta sacada 4......6-000-001 é da autoria da arguida porque não consta a sua identificação e não foi sujeita a perícia
4.Não assiste razão ao douto Tribunal a quo e quanto aos factos dados como não provados, temos por inequívoco que a prova produzida em audiência conjugada com a prova documental constante dos autos, impunha que os mesmos se dessem como provados e, consequentemente, fosse proferida decisão diversa da recorrida.
5.A assinatura constante da declaração de fls. 42 surge noutros documentos analisados em audiência de discussão e julgamento como sendo pertencente à arguida MS, nomeadamente: no local destinado à assinatura do cheque e no verso do mesmo junto a fls. 9 consta a seguinte indicação: “BOM PARA AVAL” e a assinatura da arguida: no acordo de cessão de créditos de fls. 11 a 15, no qual surge identificada a fls. 15 como “A terceira Outorgante” e na ficha de assinaturas junta a fls. 60 e 61, consta a indicação de que a arguida MS é a representante/titular dos órgãos de gestão da sociedade “RPU, Lda.” e nos dois espaços destinados a “Assinaturas conforme BI que, de acordo com o Pacto Social, obrigam a Pessoa Colectiva” consta a assinatura da arguida.
6.–Acresce que, no documento de fls. 150 o Banco prestou a seguinte informação: “(...) informamos que à data de assinatura da Oposição ao Pagamento do Cheque n.° 4......2, de 31/05/2016, assinada por MS, NIF 2.......8, foi confirmada a assinatura presencialmente e conferida por semelhança aos registos em Balcão'/negrito e sublinhado nosso)
7.–Por outro lado, a assinatura constante da declaração de oposição ao pagamento do cheque de fls. 42 é a mesma que consta dos autos de constituição como arguida, TIR e interrogatório de MS  de fls. 61 a 65 e 110.
8.–Pelo que, resultando dos autos que o cheque estava assinado e avalizado pela arguida; foi por esta entregue ao ofendido; que o fez como garantia de pagamento de um acordo de cessão de créditos onde a sociedade da qual era sócia-gerente era devedora e que o banco confirmou que a assinatura pertencia à mesma a fls. 150, consideramos, sem margem para dúvida, que era a arguida quem tinha interesse em declarar o facto vertido a fls. 42 por forma a libertar-se da garantia de uma obrigação sua.
9.–Assim, e mesmo perante a inexistência de um relatório pericial, e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum não podemos deixar de considerar que sabendo a arguida que tinha essa obrigação, que não iria cumprir, e que o cheque serviu como garantia do crédito, mas seria meio de pagamento caso o contrato não fosse cumprido era quem tinha o interesse no não acionamento da garantia através do Banco.
10.–Ora, parece-nos inequívoco, em face dos elementos probatórios apontados, terem sido incorrectamente julgados os dois factos acima enunciados, devendo a passar a constar como provados os factos 1 e 3 da matéria dada como não provada.
11.–Acresce que, o incumprimento definitivo dos pagamentos acordados por parte da sociedade “RPU, Lda” resulta da prova documental analisada em audiência de julgamento, nomeadamente, das cartas de interpelação de fls. 17 a 22 e do preenchimento do cheque de fls. 9.
12.–Por outro lado, o facto de o crédito não resultar do processo de insolvência não significa que o mesmo não exista, até porque, resulta da sentença de declaração de insolvência de fls. 85 que foi a própria arguida quem intentou a acção declarativa com processo especial requerendo a declaração da sua insolvência a título pessoal não da empresa da qual era sócia-gerente.
13.–Pelo que, e sendo um crédito do qual não é devedora principal, mas sim avalista, não tinha interesse em indicá-lo no processo de insolvência.
14.–Perante a prova produzida, é manifesto que a arguida agiu com a intenção de obter para si e para a sociedade RPU, Ld.ª o benefício pecuniário correspondente à quantia titulada no cheque, a que sabia não ter direito, e também traduzido na apresentação do mesmo e a sua devolução com o motivo nele exarado, tudo à custa do património de FD .
15.–Deste modo, e mais uma vez, socorrendo-nos das regras da lógica e da experiência comum parece-nos inequívoco, em face dos elementos probatórios apontados, terem sido incorrectamente julgados os dois factos acima enunciados, devendo a passar a constar como provados os factos 2 e 4 da matéria dada como não provada.
16.–E se de facto, os pontos de facto 1, 2, 3 e 4 forem dados como provados - como se pretende - será sua decorrência lógica dar como provado que a arguida, ao actuar da forma acima descrita - que se pretende seja dada como provada - agiu voluntária, livre e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei” (facto n.° 5).
17.–A decisão sobre a matéria de facto constante da douta sentença recorrida deve ser alterada de forma a serem dados como provados os cinco factos acima enunciados, valorando os aludidos elementos documentais, de acordo com as regras da lógica e da experiência, conclui-se, sem margem para dúvidas, que a arguida praticou os factos e actuou como descrito nos pontos 1 a 5 acima enunciados.
18.–Deste modo, consideramos que perante a factualidade que deveria ter sido dada como assente, verificados que estão todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de falsificação de documento previsto no artigo 256.°, n.° 1, alínea d) do Código Penal, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento.
19.–Assim, ao absolver a arguida da acusação contra ela deduzida, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 14.°, 26.° e 256.°, n.° 1, alínea d), do Código Penal.
20.–Pelo exposto, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que, apreciando e valorando a globalidade dos meios de prova postos a disposição do tribunal, nomeadamente, a prova documental não apreciada pelo tribunal, dê como provados também os factos identificados sob os n.°s 1 a 5, que foram dados como não provados, e, em consequência, condene a arguida, como autora de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256.°, n.° 1, alínea d), do Código Penal.

3.–Não foi apresentada resposta.

4.Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), subscreveu o entendimento do Ministério Público na 1.ª instância.

5.–Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação

1.–Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento;
- Preenchimento dos elementos tipificadores do crime imputado.
           
2.–Da sentença recorrida

2.1.-O tribunal a quoconsiderou provados os seguintes factos:
A.–Por acordo de cessão de créditos, no dia 02-03-2016, FD adquiriu um crédito no valor de 9.444,00€ (nove mil quatrocentos e quarenta e quatro euros) que a sociedade comercial RPU, Ld.ª tinha para com a sociedade comercial AC, Ld.a,
B.–Na mesma data, a arguida MS, na qualidade de gerente da sociedade RPU, Ld.ª, entregou ao referido FD o cheque com o n.° 5........2, da conta com o n.° 5.........1 do Banco BPI, SA, como garantia do bom pagamento e liquidação do mencionado crédito e acordaram que, em caso de incumprimento definitivo das prestações mensais, FD preencheria o dito cheque com o valor em causa, acrescido dos juros de mora vencidos.
C.–Depois da entrega do cheque nos termos descritos, no dia 31 de Maio de 2016, no Banco BPI, SA, balcão de O....., deu-se o preenchimento e assinatura de uma declaração através da qual se deu ordem ao referido banco solicitando “não procedam ao pagamento do cheque abaixo identificado em virtude de se tratar de cheque pré datado em poder do fornecedor que nos informou ter sido assaltado” e indicou o cheque n.° 4......2, da conta sacada 4......6-000-001.
D.–Mais foi declarado se ter conhecimento de “que os emitentes dos cheques que cancelem injustificadamente o seu pagamento (...) podem incorrer num crime de emissão de cheque sem provisão ou de burla.”
E.–FD preencheu o cheque com o n.° 5........2, do Banco BPI, SA com o valor em dívida, acrescido dos juros de mora vencidos, num total de 10.199,50€ (dez mil cento e noventa e nove euros e cinquenta cêntimos).
F.–Apresentado a pagamento no dia 31 de Março de 2017, o dito cheque foi devolvido no dia 03-04-2017, com a menção, anotada no seu verso, de “Furto”, não tendo sido pago àquele FD .

2.2.Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
1.–A arguida dirigiu-se ao Banco BPI, SA, balcão de O....., e preencheu e assinou a declaração mencionada supra em B), C) e D).
2.–Tendo-se verificado o incumprimento definitivo dos pagamentos acordados por parte da sociedade RPU, Ld.ª, no dia 30-03-2017, foi por isso que FD preencheu o cheque em causa.
3.–Ao preencher, assinar e entregar a declaração mencionada em 3. no balcão do Banco BPI, a arguida agiu com o propósito, concretizado, de obstar ao pagamento do identificado cheque e de, através da mesma, comunicar ao banco o furto do cheque, sabendo a arguida que estava a elaborar declarações e escrito não verdadeiros e, dessa forma, levou a que fosse aposto no cheque “CHQ REVOG FURTO” e fê-lo com pleno conhecimento de que tal facto, declarações e escrito não correspondiam à verdade.
4.–A arguida agiu com a intenção de obter para si e para a sociedade RPU, Ld.ª o benefício pecuniário correspondente à quantia titulada no cheque, a que sabia não ter direito, e também traduzido na apresentação do mesmo e a sua devolução com o motivo nele exarado, tudo à custa do património de FD, o que conseguiu.
5.–A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

2.3.–O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise crítica e conjugada, segundo as regras de experiência comum, da prova documental (Denúncia de fls. 3-8; Cheque de fls. 9; Doc. de fls. 10; Acordo de cessão de créditos de fls. 11-16; docs. de fls. 17-22; Certidão permanente de fls. 26-27; informações bancárias de fls. 39-42 e 150; oposição ao pagamento de cheque de fls. 42; processado em autos de insolvência da arguida), testemunhal (depoimento de FD (ofendido).
A arguida esteve ausente do julgamento, pelo que se desconhece a sua versão sobre a acusação, muito embora seja presumível inocente e seja ónus da acusação provar a autoria do crime que lhe imputa.
Os factos supra elencados sob as alíneas A), B), C), D), E) e F) julgam-se provados com fundamento no teor de: cheque de fls. 9; Doc. de fls. 10; acordo de cessão de créditos de fls. 11-16; docs. de fls. 17-22; certidão permanente de fls. 26-27; informações bancárias de fls. 39-42 e 150; oposição ao pagamento de cheque de fls. 42. De resto, o ofendido FD confirmou a emissão e entrega do cheque como meio de garantia, nos termos descritos na acusação, bem como os demais factos supra assentes.
A cópia da declaração de revogação do cheque não compreende a identificação do seu autor, não se mostrando junto o original desse documento, cuja assinatura não foi submetida a perícia com vista a aferir-se que a arguida foi quem a emitiu. Além de a declaração não compreende qualquer elemento que permita concluir que só podia ter sido emitida pela arguida, em razão de lhe ter sido pedida, conferida e asseverada a sua cabal identificação, a mesma foi redigida na primeira pessoa do plural - i.e. nós - como resulta do que aí se manuscreveu - i.e. que nos informou...”.
Inexiste prova documental do incumprimento do crédito garantido pelo cheque, nem o processado respeitante à insolvência da arguida reconhece a sua existência.
O ofendido tomou conhecimento da declaração de revogação do cheque somente pela recusa do seu pagamento, pelo que desconhece a sua autoria.
Sobra, portanto, a declaração do ofendido de como não informou outrem sobre ter informado outrem quanto a ter sido esbulhado, por assalto, do mencionado cheque, pelo que o teor de fls. 42 seria inverídico nesse aspecto. E sobeja a sua declaração de como o crédito garantido não foi pago.
O teor de fls. 42 é inequivocamente verídico na parte em que se declara que o cheque em causa não era meio de pagamento, mas antes serviu de garantia de crédito, pois tal natureza resulta do contrato de cessão de crédito em apreço.
Se o remanescente teor da fundamentação da revogação do cheque era, ou não, verídico é facto cuja prova, salvo melhor entendimento, não se basta com a mera declaração de quem, sem qualquer suporte de outros meios de prova - documental, testemunhal e/ou pericial - se apresenta como credor, cuja versão é, em todo e qualquer caso, desmentida, pela versão escrita do documento junto a fls. 42.
Daí que ainda que se admitisse por hipótese - que não se concede - que a declaração junta a fls. 42 tivesse sido da autoria da arguida, entre a afirmação que compreende e o desmentido que mereceu da parte do ofendido não existe qualquer prova que permita credibilizar o depoimento incriminatório do último. De resto, se a arguida teria interesse em declarar o facto vertido a folhas 42, por forma a libertar-se de uma garantia de uma obrigação sua, também o ofendido teria interesse em declarar o contrário, por forma conservar e efetivar uma garantia que não poderia exercer.
Em suma, não há prova suficiente e corroborante de que os factos supra enumerados de 1 a 5 ocorreram e, em todo e em qualquer caso, a seu respeito sempre subsistiram duas versões contraditórias -a escrita presuntivamente pela arguida a fls. 42 e a declarada em julgamento pelo ofendido - sem que houvesse qualquer meio de prova que permitisse credibilizar uma em detrimento da outra de molde a dissipar uma dúvida séria, razoável e insanável que sempre se suscitaria a seu respeito e que importa resolver em benefício da arguida presumível inocente.
Portanto, com fundamento na falta de prova suficiente e corroborante da sua veracidade, julgam-se não provados os factos supra enumerados de 1 a 5.
                       
3.–Apreciando

3.1.–O recorrente discorda da decisão sobre a matéria de facto, considerando que a prova produzida foi inadequadamente valorada.
Quanto à modificabilidade da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, preceitua o artigo 431.º do C.P.P. que tal decisão pode ser modificada, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º3 do artigo 412.º; ou c) se tiver havido renovação da prova.
A situação prevista na alínea a), do artigo 431.º está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta não só em prova documental, pericial ou outra que consta dos autos, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al. c) do artigo 431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P.
No que concerne à impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma, a reapreciação da prova faz-se dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de tríplice especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
Realmente, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

No segundo caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada, pelo que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.

No caso em apreço, o tribunal recorrido entendeu dar como não provado que a arguida tenha sido quem se dirigiu ao Banco BPI, SA, balcão de O....., e preencheu e assinou a declaração mencionada supra em B), C) e D) da matéria provada.

Assentou a sua convicção, essencialmente, na falta de perícia à assinatura, e bem assim na circunstância de, mesmo a provar-se que a arguida foi quem preencheu e assinou a declaração em causa, não se provar que o teor da fundamentação da revogação do cheque não correspondesse à verdade. Segundo o tribunal, “ainda que se admitisse por hipótese - que não se concede - que a declaração junta a fls. 42 tivesse sido da autoria da arguida, entre a afirmação que compreende e o desmentido que mereceu da parte do ofendido não existe qualquer prova que permita credibilizar o depoimento incriminatório do último.”

Vejamos.

O tribunal recorrido considerou não se mostrar provado que a assinatura constante do documento de fls. 42 - que consiste na declaração preenchida e entregue, no dia 31 de Maio de 2016, no Banco BPI, SA, balcão de O....., através da qual se deu ordem ao referido banco solicitando “não procedam ao pagamento do cheque abaixo identificado em virtude de se tratar de cheque pré datado em poder do fornecedor que nos informou ter sido assaltado” - é da autoria da arguida porque não consta a sua identificação e o documento não foi sujeito a perícia.

O artigo 125.º do C.P.P. estabelece serem admissíveis os meios de prova que não forem proibidos por lei.

Diversamente do que se extrai da motivação, não é forçoso que exista exame pericial comparativo à letra e assinatura para que o tribunal possa ter como provada a existência de falsificação, sendo certo que em muitos casos os resultados são inconclusivos - e a inconclusividade não agrega em si um juízo pericial, mas um estado de dúvida – e nem por isso é subtraída ao tribunal a incumbência de esclarecer a matéria de facto, no âmbito da sua função de julgar e do princípio da livre apreciação do julgador, de modo a superar, se possível, aquela dúvida.

Noutros casos, o relatório pericial, ainda que não atingindo o patamar de afirmação da certeza absoluta – “Ser” –, logra alcançar um resultado pericial (sobre a prática do facto/autoria da escrita em causa) de “Muito Provável”, isto é, de acordo com a tabela de resultados comummente utilizada, o grau de probabilidade máximo, depois da certeza.

Sabendo-se que o grau de “certeza absoluta” nunca é atingido neste tipo de exames periciais (e nos que têm tradução percentual, os resultados nunca atingem os 100%), afigura-se-nos que o tribunal deverá acolher na decisão o juízo de “Muito Provável”, nos termos do disposto no artigo 163.º, n.º1, por traduzir a certeza possível, a não ser que fundamentação especialmente desenvolvida sustente a divergência.

Porém, em muitos casos o juízo é apenas de “Provável” ou “Pode ter sido”, situações em que o relatório pericial não estabelece o grau de vinculação previsto no referido artigo 163.º, devendo ser corroborado ou apoiado por outros elementos de prova, precisamente porque consente uma margem maior de dúvida, sendo certo que, em matéria penal, o tribunal, para considerar os factos provados, deve adoptar o padrão, de origem anglo-saxónica, da «prova para além de qualquer dúvida razoável».

Temos ainda casos em que o exame pericial comparativo é tecnicamente inviável e nem por isso o tribunal fica impedido de ajuizar sobre a existência de falsificação a partir de uma ponderação racionalmente fundamentada de toda a prova produzida.

In casu, a assinatura constante da declaração de fls. 42 – documento a que se reportam a als. C e D dos factos provados - surge noutros documentos juntos aos autos como sendo pertencente à arguida MS, nomeadamente:
- no local destinado à assinatura do cheque e no verso do mesmo junto a fls. 9 consta a seguinte indicação: “BOM PARA AVAL” e a assinatura da arguida;
- no acordo de cessão de créditos de fls. 11 a 15, no qual surge identificada a fls. 15 como “A terceira Outorgante”;
- na ficha de assinaturas junta a fls. 40 e 41, consta a indicação de que a arguida MS  é a representante/titular dos órgãos de gestão da sociedade “RPU, Lda.” e nos dois espaços destinados a “Assinaturas conforme BI que, de acordo com o Pacto Social, obrigam a Pessoa Colectiva” consta a assinatura da arguida;
- a assinatura constante da declaração de oposição ao pagamento do cheque de fls. 42 é a mesma que consta dos autos de constituição como arguida, TIR e interrogatório de MS  de fls. 61 a 65 e 110.

A similitude das assinaturas é patente.

Finalmente, no documento de fls. 150, o BPI prestou a seguinte informação: “(...) informamos que à data de assinatura da Oposição ao Pagamento do Cheque n.° 4......2, de 31/05/2016, assinada por MS, NIF 2.......8, foi confirmada a assinatura presencialmente e conferida por semelhança aos registos em Balcão.”

Quer isto dizer que a instituição bancária atesta que a assinatura foi confirmada “presencialmente”, consignando o NIF da arguida e o recurso à comparação com os registos de assinatura existentes.

Perante este quadro, ainda que não tenha sido realizada perícia, que razões pode ter o tribunal para duvidar que foi a arguida quem preencheu e assinou a declaração de fls. 42?

Não vislumbramos…

Como já se assinalou, mesmo que tivesse sido realizado exame pericial à letra da arguida e este se revelasse, por exemplo, inconclusivo quanto à identificação desta como autora da assinatura suspeita, não se retira que o tribunal a partir da apreciação de toda a prova produzida, de forma conjugada, com recurso a juízos de lógica e experiência comum, nos termos do disposto no artigo 127.° C.P.P., não estivesse habilitado a concluir no sentido de ter sido a arguida a subscrever e assinar o documento em causa.

Ocorre perguntar: a quem aproveitou a apresentação no BPI da declaração de fls. 42?
Resultando dos autos que o cheque estava assinado e avalizado pela arguida; foi por esta entregue ao ofendido; que o fez como garantia de pagamento de um acordo de cessão de créditos onde a sociedade da qual era sócia gerente era devedora; que a instituição bancária confirmou a fls. 150 que a assinatura pertencia à arguida e que havia sido confirmada presencialmente, afigura-se-nos incontornável concluir, como se faz no recurso, que era a arguida quem tinha interesse em declarar o facto vertido a fls. 42 por forma a libertar-se da satisfação da garantia prestada pelo aval.

Por outras palavras: de harmonia com as regras de lógica e da experiência comum, sabendo a arguida que tinha aquela obrigação que não iria cumprir, e que o cheque serviu como garantia do crédito, mas que seria utilizado como meio de pagamento caso o contrato não fosse cumprido, era a arguida quem tinha interesse na declaração ao banco de que o cheque se tinha extraviado, em razão de furto, como forma de obstar ao seu pagamento.

Diz, porém, a sentença recorrida, que mesmo que se admitisse que a declaração junta a fls. 42 foi da autoria da arguida, “entre a afirmação que compreende e o desmentido que mereceu da parte do ofendido não existe qualquer prova que permita credibilizar o depoimento incriminatório do último.”

A afirmação “que compreende” é a de “se tratar de cheque pré-datado em poder do fornecedor que nos informou ter sido assaltado”.

A testemunha FD disse não ser verdade que haja informado sobre qualquer assalto em lhe tivesse sido subtraído o mencionado cheque.

Ora, a sentença recorrida, referindo que o teor de fls. 42 é inequivocamente verídico na parte em que se declara que o cheque em causa não era meio de pagamento, mas antes serviu de garantia de crédito, acrescenta que se o remanescente teor da fundamentação da revogação do cheque era, ou não, verídico é facto cuja prova, salvo melhor entendimento, não se basta com a mera declaração de quem, sem qualquer suporte de outros meios de prova - documental, testemunhal e/ou pericial - se apresenta como credor, cuja versão é, em todo e qualquer caso, desmentida, pela versão escrita do documento junto a fls. 42”.

Com o devido respeito, não se compreende a linha de raciocínio da sentença recorrida.

Menciona-se na sentença que a testemunha FD disse que o cheque não lhe foi subtraído, não sendo verdade que tenha informado nesse sentido.

E seguro é que a mesma testemunha veio a apresentar o dito cheque, já preenchido, a pagamento, o que evidencia que o dito “assalto” não existiu e que o cheque se manteve em seu poder.

Que razões objectivas e racionalmente fundadas existem para admitir que a testemunha FD possa, contra os seus interesses, ter dito à arguida que o cheque lhe havia sido subtraído em razão de um assalto?
Mais uma vez não identificamos tais razões.

A nossa lei consagrou o princípio da livre apreciação, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (artigo 127.º, do C.P.P.).
Na expressão regras da experiência incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).

Na ausência de prova directa, admite-se a possibilidade de o tribunal deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária, devidamente valorada - cfr. Acs. do STJ de 11/12/03, Proc. n.º 03P3375; 07/01/04, Proc. n.º 03P3213; 09/02/05, Proc. n.º 04P4721; 04/12/08, Proc. n.º 08P3456; 12/03/09, Proc. n.º 09P0395 e de 18/06/09, Proc. n.º 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt -, reportando-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o recurso às regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar (ver, também, entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, C.J., Ano XXV, I, pp. 51 e seguintes, e o de 11 de Maio de 2005, proc. 1056/05, www.dgsi.pt, e bem assim o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, DR n.º 224, II Série, de 16/11/2015).

A prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos:
a)-Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis (embora excepcionalmente possa admitir-se um só se o seu significado for determinante); 
b)-Racionalidade da inferência obtida, de maneira que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo inteiramente razoável face a critérios de discernimento humano baseados na lógica e nas regras da experiência.
No caso em apreço, entendemos que a análise conjugada da prova documental e pessoal produzida habilita, com segurança, à luz da lógica e das regras da experiência, a que se tenha como provado que foi a arguida quem se dirigiu ao Banco BPI, SA, balcão de O....., preencheu e assinou a declaração de fls. 42, sabendo que estava a elaborar declaração não correspondente à verdade, tendo agido com o propósito, concretizado, de obstar ao pagamento do identificado cheque, razão por que devem passar a constar como provados os factos 1 e 3 da matéria dada como não provada.
Considerou também o tribunal recorrido que inexiste prova documental do incumprimento do crédito garantido pelo cheque, “nem o processado respeitante à insolvência da arguida reconhece a sua existência.”
Porém, esse incumprimento definitivo dos pagamentos acordados por parte da sociedade “RPU, Lda.” é atestado por FD e resulta das cartas de interpelação de fls. 17 a 22 e do preenchimento do cheque de fls. 9, não se vendo que outras provas pretende o tribunal a quo seriam necessárias.
A circunstância de a arguida ter-se apresentado, posteriormente, à insolvência e de, aparentemente, não ter indicado o crédito em questão e do mesmo não constar desse processo, não interfere com a factualidade provada, sendo que foi a própria arguida quem intentou a acção requerendo a declaração da sua insolvência a título pessoal - não da empresa da qual era sócia-gerente – e, porventura, por não ser devedora principal, mas sim avalista, não terá indicado o crédito no processo de insolvência.
Importa ainda recordar que, relativamente à materialidade conformadora dos factos inerentes à dimensão subjectiva, que são quase sempre indemonstráveis de forma naturalística – na ausência de confissão dos agentes –, a mesma tem de se extrair das circunstâncias objectivas que rodearam a sua prática, isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito –e da ausência ou afastamento das causas que os possam excluir, conferidas com as máximas da experiência e da lógica e as presunções judiciais admissíveis.
Daí termos como fundada a convicção de que a arguida agiu com a intenção de obter para si e para a sociedade RPU, Ld.ª o benefício pecuniário correspondente ao não pagamento do cheque, uma vez que o mesmo fosse apresentado para esse efeito, à custa de FD .
Por conseguinte, entendemos que também devem transitar para os factos provados os factos 2, 4 e 5 da matéria dada como não provada.

Assim, a matéria de facto provada passa a estar reconfigurada do seguinte modo:
A)–Por acordo de cessão de créditos, no dia 02-03-2016, FD adquiriu um crédito no valor de 9.444,00€ (nove mil quatrocentos e quarenta e quatro euros) que a sociedade comercial RPU, Ld.ª tinha para com a sociedade comercial AC, Ld.a,
B)–Na mesma data, a arguida MS, na qualidade de gerente da sociedade RPU, Ld.ª, entregou ao referido FD o cheque com o n.° 5........2, da conta com o n.° 5.........1 do Banco BPI, SA, como garantia do bom pagamento e liquidação do mencionado crédito e acordaram que, em caso de incumprimento definitivo das prestações mensais, FD preencheria o dito cheque com o valor em causa, acrescido dos juros de mora vencidos.
C)–Depois da entrega do cheque nos termos descritos, no dia 31 de Maio de 2016, no Banco BPI, SA, balcão de O....., deu-se o preenchimento e assinatura de uma declaração através da qual se deu ordem ao referido banco solicitando “não procedam ao pagamento do cheque abaixo identificado em virtude de se tratar de cheque pré datado em poder do fornecedor que nos informou ter sido assaltado” e indicou o cheque n.° 4......2, da conta sacada 4......6-000-001.
D)–Mais foi declarado se ter conhecimento de “que os emitentes dos cheques que cancelem injustificadamente o seu pagamento (...) podem incorrer num crime de emissão de cheque sem provisão ou de burla.”
E)–Foi a arguida quem se dirigiu ao Banco BPI, SA, balcão de O....., e preencheu e assinou a declaração mencionada supra em B), C) e D).
F)–FD preencheu o cheque com o n.° 5........2, do Banco BPI, SA com o valor em dívida, acrescido dos juros de mora vencidos, num total de 10.199,50€ (dez mil cento e noventa e nove euros e cinquenta cêntimos).
G)–Apresentado a pagamento no dia 31 de Março de 2017, o dito cheque foi devolvido no dia 03-04-2017, com a menção, anotada no seu verso, de “Furto”, não tendo sido pago àquele FD .
H)–Tendo-se verificado o incumprimento definitivo dos pagamentos acordados por parte da sociedade RPU, Ld.ª, no dia 30-03-2017, foi por isso que FD preencheu o cheque em causa.
I)–Ao preencher, assinar e entregar a declaração mencionada em C), D) e E) no balcão do Banco BPI, a arguida agiu com o propósito, concretizado, de obstar ao pagamento do identificado cheque e de, através da mesma, comunicar ao banco o furto do cheque, sabendo a arguida que estava a elaborar declarações e escrito não verdadeiros e, dessa forma, levou a que fosse aposto no cheque “CHQ REVOG FURTO” e fê-lo com pleno conhecimento de que tal facto, declarações e escrito não correspondiam à verdade.
J)–A arguida agiu com a intenção de obter para si e para a sociedade RPU, Ld.ª o benefício pecuniário correspondente à quantia titulada no cheque, a que sabia não ter direito, e também traduzido na apresentação do mesmo e a sua devolução com o motivo nele exarado, tudo à custa do património de FD, o que conseguiu.
L)–A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.

3.2.–A arguida foi acusada da prática, como autora material, de um crime de falsificação de documento, previsto no artigo 256.º, n.º 1, d) do Código Penal.

No artigo 256.º, n.º1, do Código Penal, pune-se:
«1-Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a)-Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b)-Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c)-Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d)-Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e)-Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f)-Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»

Estamos perante um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 680) e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo objectivo]
- Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;

[Tipo subjectivo]
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade;

- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
In casu, a acção típica – face aos factos provados – traduziu-se em a arguida, no dia 31 de Maio de 2016, se ter dirigido ao Banco BPI, SA, balcão de O....., onde comunicou por escrito que “não procedam ao pagamento do cheque abaixo identificado em virtude de se tratar de cheque pré-datado em poder do fornecedor que nos informou ter sido assaltado”, com o que veio a conseguir que tal cheque, uma vez apresentado a pagamento, fosse devolvido, com a menção, anotada no seu verso, de “Furto”, não tendo sido pago, sabendo a recorrente que a razão invocada não correspondia à verdade, que causava um prejuízo ao ofendido e que a sua conduta, livre, deliberada e consciente, era proibida e punida por lei.
Atente-se que, sendo certo que no n.º 3 do artigo 256.º se pune a falsificação, além de outros documentos, de cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso, e ainda que, in casu, esteja envolvido um cheque, o documento do qual a arguida fez constar falsamente um facto juridicamente relevante é um mero documento particular consubstanciado na declaração de fls. 42 – que não se traduz num cheque ou documento comercial transmissível por endosso -, e por isso, não é subsumível à previsão daquele n.º 3.
Em conclusão, face à alteração da decisão de facto, a conduta da arguida preenche o tipo objectivo e subjectivo do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, d) do Código Penal. 

3.3.–Aqui chegados, haveria que determinar a pena, dentro da moldura penal abstracta.
Ocorre que a decisão de facto é totalmente omissa quanto a factos atinentes à personalidade, condição social, familiar, profissional e económica da arguida, bem como quanto aos seus antecedentes criminais.
Debateu-se largamente na jurisprudência se cabia à Relação ou à 1.ª instância a determinação da espécie e medida da pena no caso de a Relação, em recurso, revogar a decisão absolutória da 1.ª instância e formular um juízo positivo sobre a culpabilidade do arguido.
A jurisprudência dividiu-se em duas posições: uma a sustentar deverem os autos ser devolvidos (“reenviados”) à 1.ª instância para novo julgamento restrito à determinação da espécie e medida da pena; outra que entendia caber à Relação a decisão sobre essa questão, salvo nas situações em que os factos provados não fossem suficientes para, com o rigor exigível, proceder à determinação da espécie e medida da pena. Apenas nestas situações excepcionais impor-se-ia, então, a devolução do processo à 1.ª instância para a determinação da sanção.
Uma outra posição defendia que, no caso de a Relação revogar a sentença absolutória de 1.ª instância, substituindo-a por uma sentença condenatória, deveria proceder à determinação da espécie e medida da pena, mas salvaguardando o direito de defesa e o direito a um processo equitativo, assegurados por via da audição do arguido e de lhe ser reconhecida a possibilidade de requerer e de ser ouvido em audiência, em ordem a poder influenciar, argumentativamente, a decisão recursiva.

Veio o S.T.J. fixar a seguinte jurisprudência, no AFJ n.º4/2016 (Diário da República, 1.ª série, N.º 36, de 22 de Fevereiro de 2016).
«Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal

Diz o S.T.J. não ter qualquer sentido que, após o reexame da matéria de facto e ficando assente a culpabilidade do arguido que vinha absolvido da 1.ª instância, a Relação profira uma decisão condenatória incompleta, por omissão da consequência jurídica, e “reenvie” o processo para o tribunal a quo, a fim de aí ser determinada a espécie e medida da sanção.

No nosso sistema processual, à deliberação sobre a questão da culpabilidade segue-se a deliberação sobre a determinação da sanção – espécie e medida da sanção a aplicar -, nos termos dos artigos 368.º e 369.º do C.P.P.

O tribunal começa por deliberar e votar a questão da culpabilidade [artigo 368.º] e, resultando que ao arguido deve ser aplicada uma pena ou medida de segurança, “o presidente lê ou manda ler toda a documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social” [artigo 369.º, n.º 1], sendo, quando necessária a produção de prova suplementar exclusivamente para a determinação da espécie e medida da sanção a aplicar, reaberta a audiência, nos termos do artigo 371.º [artigo 369.º, n.º 2, primeiro segmento].

Diz o S.T.J. que, por regra, a Relação não se confrontará com uma insuficiente base de facto impossível de suprir, no caso de alteração de uma decisão de absolutória para condenatória, a implicar a impossibilidade de determinação da sanção e que, na hipótese de uma insuficiente base de facto, não está a Relação impedida de obter os elementos necessários à determinação da sanção por via da realização de uma audiência, nos termos do artigo 371.º, do C.P.P.

A verdade, porém, é que no caso de o tribunal de 1.ª instância não passar à questão da determinação da espécie e medida da pena porque, previamente, da deliberação e votação sobre a questão da culpabilidade, resultou que ao arguido não devia ser aplicada uma pena ou medida de segurança, podem faltar, efectivamente, elementos necessários à determinação da sanção.

Pensemos na hipótese de o arguido ter indicado, no seu rol, testemunhas – que não podem exceder o número de cinco – que só devam depor às matérias do artigo 128.º, n.º2, do C.P.P. – personalidade, carácter, condições pessoais e conduta anterior do arguido.

Se o tribunal de 1.ª instância não passou à questão da determinação da espécie e medida da pena, por se decidir pela absolvição, bem pode acontecer que essas testemunhas não tenham sequer sido inquiridas, ou que mesmo havendo prova sobre essas questões, o tribunal, por desnecessidade, não a tenha considerado na fixação dos factos provados.

Numa primeira mirada, pareceria decorrer do referido Acórdão de Fixação de Jurisprudência que nos casos de condenação na Relação de arguidos absolvidos na 1.ª instância, a prova suplementar que haja que produzir, incluindo prova testemunhal, em ordem à determinação da sanção, será produzida na Relação, que assim irá apreciar novos meios de prova, distintos dos produzidos em 1.ª instância. Não se tratará de renovação da prova, mas de produção de prova nova, em contraste com o entendimento de há muito perfilhado de que a Relação não pode apreciar elementos de prova que o tribunal recorrido não apreciou, para decidir uma questão nova, não conhecida na 1.ª instância.

Porém, numa segunda leitura, não é evidente que assim seja, como se alcança dos termos da declaração do Conselheiro Manuel J. Braz (“Concordo com a jurisprudência proposta. Mas não com parte da fundamentação”), igualmente adoptada pelo Conselheiro Francisco Manuel Caetano. Reportando-se tal declaração à fundamentação do acórdão e não à decisão, não constituindo, por isso, um voto de vencido, continua expressamente a admitir que se a Relação, em recurso, passa de uma absolvição para uma condenação e verifica que a decisão recorrida não decidiu toda a matéria de facto relevante para determinar a pena concreta, só terá um caminho a seguir: decretar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente aos pontos de facto não decididos.

O mesmo ocorre com a declaração do Conselheiro Raúl Borges “(Voto o acórdão de acordo com a posição assumida em 09.11.2011 no processo 43/09.9PAAMD.L1.S1)”, pois no acórdão que invoca considerou, expressamente, que o poder de substituição da decisão recorrida não abarca a escolha da espécie e fixação da medida da pena “ se a decisão em exame não contiver os elementos necessários para a determinação da medida da pena, cuja ausência se poderá explicar em virtude da decisão absolutória em 1.ª instância fazer esquecer essa indagação, conduzindo à verificação do vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP”.

Estas declarações pressupõem que a parte dispositiva do AFJ não abrange os casos em que o tribunal de primeira instância não procedeu ao apuramento e fixação dos factos necessários à determinação da pena.

Quer isto dizer que a leitura mais atenta do AFJ, ponderadas as mencionadas declarações de voto, sugere que a jurisprudência fixada no dispositivo tem, afinal, um alcance mais limitado do que aparenta ter numa primeira análise, ficando aquém do sentido consentido por algumas passagens da respectiva fundamentação.

É o que sustenta a Relação de Évora, em acórdão de 05/07/2016, Processo 145/13.7GAMCQ.E1, tendo como relatora a Desembargadora Maria Leonor Esteves, citando o Desembargador João Latas, com indicação de valiosos argumentos.

Em suma, apesar de, numa primeira leitura, aquele dispositivo e partes da fundamentação do AFJ 4/2016 parecerem apontar para que na fixação de jurisprudência se encontrem abrangidos todos os casos em que, revogando decisão absolutória da 1.ª instância, a Relação concluir pela condenação do arguido, uma leitura mais circunstanciada impõe-nos a conclusão de que aquela fixação de jurisprudência não abrange os casos em que o tribunal de 1.ª instância não procedeu ao apuramento e fixação dos factos necessários à determinação da pena - e é justamente o que se verifica nos presentes autos.

Neste quadro, entendemos que os autos devem ser devolvidos à 1.ª instância para que desenvolva as diligências pertinentes com vista a apurar a factualidade relativa às condições de vida, comportamento e personalidade da arguida, a fim de lhe permitir a subsequente prolação de decisão condenatória em conformidade com o acima exposto (não se trata de um reenvio, mas antes de uma reabertura da audiência, em termos similares ao que temos vindo a entender nos casos de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por falta de indagação necessária à determinação da situação pessoal, económica e social do arguido, conforme perfilhado no acórdão do S.T.J., de 12 de Dezembro de 2008, no Proc. n.º 08P2816, que teve como relator o Conselheiro Simas Santos, em que se decidiu de acordo com a posição que o mesmo Conselheiro havia assumido no voto de vencido lavrado no Ac. do STJ de 29/04/2003, Proc. n.º 03P756, e bem assim de acordo com os acs. da R. de Guimarães de 05/06/2006, Proc. n.º 765/05-1, e de 11/06/2012, Proc. n.º 317/11.9GTVCT.G1R).

***

III–Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:

A)-Revogar a sentença recorrida e alterar a decisão da matéria de facto nos termos supra discriminados;

B)-Determinar que a arguida MS seja condenada como autora material de um crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, cujos elementos típicos a factualidade dessa forma alterada preenche; e

C)-Que os autos sejam devolvidos à 1.ª instância para que se indaguem os factos, relativos ao circunstancialismo de vida pessoal, comportamento e personalidade da arguida, com interesse para a determinação da medida da pena, e, subsequentemente, aí seja proferida decisão condenatória com determinação da pena de acordo com o ora decidido.

Sem custas do recurso.


Lisboa, 18 de Janeiro de 2022



(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


(Jorge Gonçalves)                              
(Fernando Ventura)