Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
469/13.3PBAMD.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - Dirigir, com frequência não apurada, as expressões “porca de merda”e “atrasada mental” à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b) do CP;
II - O tribunal ad quem pode e deve, quando considera que se preenchem os elementos constitutivos de um tipo legal de crime, condenar o Arg., que vinha absolvido, determinando a respectiva pena, se os autos contiverem os necessários elementos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Na Secção Criminal da Instância Local da Amadora, por sentença de 09/11/2014, constante de fls. 326/340, foram os Arg.[i] XXX e YYY, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[ii], respectivamente, de fls. 73 e 83[iii]) absolvidos nos seguintes termos:
“…Face ao exposto, atentas as considerações expendidas e as disposições legais citadas, decido:
- Absolver o arguido XXX da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1 e n.º2, 4 e 5 do Código Penal;
- Absolver o arguido YYY da prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º n.º1 do Código Penal;
- Absolver o demandado do pedido formulado pelo Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca Epe na quantia de €132,50 acrescida de juros de mora legais contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento;

Sem custas. …”.

*

Não se conformando, a Exm.ª Magistrada do MP[iv] interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 346/373, concluindo da seguinte forma:

”… 1- Por douta sentença proferida em 04/10/2014,  foi, para  além do mais,  o arguido  XXX,  absolvido  da  pratica  do  crime  de violência domestica agravado, p. e p. pelo art.º   152°, n.º   1, al. b), n.º  2, 4 e 5, do  Código  Penal  (adiante  designado  de CP), na vertente  de mau  trato psicológico.

2- É, desta  parte  da  douta  sentença  absolutória  que  se recorre,  por existir contradição entre a matéria de facto dada como provada, a fundamentação e a decisão, e como provada er entender  que  a  factualidade dada integra a pratica do crime imputado ao arguido, na sua vertente  de mau trato psicol6gico e não de um crime de injuria  como foi decidido.

3- A Mma. Juiz não efetuou uma adequada interpretação e aplicação das normas penais relativas ao tipo de crime, tendo em conta a factualidade apurada e dada como provada.

4- Da matéria de facto dada como provada consta que:

"O arguido XXX e a ofendida ZZZ, entre Setembro de 2012 e Março de 2013, mantiveram uma relação, vivendo como se de marido e mulher se tratem, em comunhão de cama mesa e habitação.

Nesse período habitaram na residência da ofendida sita na Rua (…) Amadora.

A partir de Dezembro de 2012 e até a separação  do casal com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e a noite, o arguido apelidou a ofendida de ''porca de merda" e "atrasada mental':

Ao agir da forma descrita em 2.1.3. quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam.

O arguido XXX agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

5- O tribunal formou a sua convicção na analise crítica do  conjunto  da prova produzida, a qual, apreciada de acordo com  as  regras  da experiencia e o normal suceder das coisas.

6- O que foi suficiente para dar por assente os factos que não obstante o arguido ter negado estes factos, o mesmo chamou os nomes supra descritos à ofendida quando os mesmos moravam juntos.

7- A sentença padece do vício previsto no art.º 410º/2-b) do CPP.

8- Porque se deu como provado que o arguido entre dezembro de 2012 e março de 2013, por mais do que uma vez, em numero não determinado, proferiu as supra descritas expressões dirigidas a ofendida e em seguida se dá como assente,  em  sede  de  enquadramento  jurídico-penal   e decisão, que apenas resultou provado que o arguido numa ocasião apelidou a ofendida  de "porca  de merda" e "atrasada  mental".

9- Ficou provado que ao agir da forma descrita  quis  o  arguido  XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam.

10-E que o arguido XXX agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida  e punida por  lei".

11- Estribou-se a douta decisão no depoimento da queixosa Maria Assunção Beirão, e da testemunha Ricardo Ferreira, filho da mesma que com o arguido e a mãe coabitava, que descreveram a relação mantida entre o casal e as palavras proferidas pelo arguido.

12- Verifica-se assim existir contradição entre os factos dados como provados, a fundamentação e a conclusão a que se chegou que redundou na absolvição do arguido, quanto a estes factos.

13- O vicio que se argui resulta expressamente da decisão recorrida, do contexto factual inserido na decisão, por si, não passando despercebido ao comum observador, ou seja qualquer pessoa media, facilmente dele dará conta.

14- É manifesta a contradição entre os factos provados, a fundamentação e a decisão, quando se deu como provado que a partir de dezembro de 2012 e ate a separação do casal, com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e a noite, o arguido apelidou a ofendida de ''porca de merda' e "atrasada mental' , que a quis humilhar dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam e que agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e incompreensivelmente em sede de decisão, na parte referente ao enquadramento jurídico-penal, para justificar que a conduta integra crime diverso se diga que tenha resultado provado que o arguido apenas numa ocasião tenha apelidado a queixosa de "porca de merda" e "atrasada  mental".

15- A factualidade dada como provada, e a sua  fundamentação,  de acordo com o raciocínio 1ógico, permitem concluir que essa fundamentação justifi.ca uma decisão oposta a que foi proferida, havendo colisão entre os factos provados, a fundamentação e a decisão.

16- Na mesma sentença afirma-se e nega-se os mesmos factos, sendo que se trata de emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras.

17- A apontada contradição, e insanável e irredutível, não podendo  ser afastada com por via da decisão recorrida e das regras da experiencia.

18- Na construção da decisão, o tribunal apenas pode sustentar-se na factualidade dada como provada.

19- Tendo dado como provados os factos acima descritos e face à fundamentação expendida sobre a matéria de facto, não podia extrair a conclusão que extraiu de que o arguido uma vez  apelidou  a  ofendia daquela forma e que os factos integram o crime de injuria  e  não  de violência domestica.

20- As contradições insanáveis que a lei considera  para  efeitos  de recurso, são aquelas que são intrínsecas da decisão recorrida e neste caso,  as mesmas são patentes e determinam a prolação de diferente decisão, pois que se não se tivesse verificado a apontada contradição impunha-se a condenação do arguido pela pratica dos factos acima descritos os quais integram o crime de violência domestica na sua vertente de maus trato psíquico.

21- Deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que  expurgue o mencionado vicio, e condene o arguido pela pratica do crime que lhe foi imputado, quanto à matéria de que se  recorre.

22- Alem do acima expendido, a Mma. Juiz de Direito, efetuou um incorreto enquadramento  jurídico  dos  factos  e  por  essa  via  violou  o  disposto  no art.º   152°, do CP.

23- Os factos de que ora se recorre, não integram o crime de injuria, como veio a ser decidido.

24- Consubstanciam um crime de violência doméstica, porquanto o tipo penal em apreço exige para o seu preenchimento um tratamento degradante ou humilhante, capaz de diminuir a condição a dignidade humana da vitima.

25- O que resulta a conduta ao arguido XXX, que diminuiu a dignidade da vitima, sua companheira, menosprezando-a e rebaixando-a, fazendo-o no recato do seu lar, a noite.

26- O arguido tratou a ofendida de forma degradante e humilhante ao  longo de pelo menos 3 meses, no interior da residência habitada pelo casal.

27- Com a reforma operada o Código Penal, em 1995 e depois em 2007, os maus tratos psíquicos, viram ampliado o leque de condutas que neles tern cabimento e consequente previsão no tipo legal.

28- Estão assim contemplados no tipo legal as humilhações, provocações e ameaças, insultos, quer isto dizer as condutas que  se revelem  desprezo pela condição humana do companheiro, podendo nele provocar sentimentos de culpa de diminuição e necessariamente sofrimento psicológico.

29- Resulta evidente da factualidade dada como provada e da fundamentação bem como do enquadramento jurídico que o arguido XXX  ao proferir as referidas expressões em inúmeras ocasiões dirigidas a sua companheira, quis minimiza-la e desse modo, colocar-se numa posição de domínio sobre a mesma, querendo deixa-la numa situação de maior vulnerabilidade, fazendo-o sempre e tão só na residência  habitada pelo casal.

30- Existia uma ligação afetiva entre o arguido e a ofendida que permitiu ao arguido por via da conduta, procurar domina-la e rebaixa-la na sua condição pessoal,  diminuindo-a enquanto pessoa, atentando assim  contra a dignidade pessoal da sua companheira e não contra a honra da mesma.

31- A injuria traduz-se na manifestação por qualquer meio de um conceito ou pensamento que importe um ultraje contra alguém.

32- Os factos apurados e dados como  provados,  devidamente contextualizados, integram o crime de violência doméstica agravado, porquanto reiteradamente ocorreram na residência do casal, sendo o comportamento dirigido contra a dignidade humana da  ofendida, enquanto companheira do arguido e por causa dessa relação,  e no âmbito da mesma e da convivência do casal, visando humilhar, e diminuir a ofendida na sua dignidade, enquanto companheira do ofendido.

33- As expressões utilizadas e o contexto em que o foram, são reveladoras  de um profundo desprezo pela condição humana e pessoal da ofendida e visaram minimiza-la a desconsidera-la a destrata-la de forma ignóbil e ultrajante, para alem da protecção do bem pessoal traduzido na honra, mas atingindo a dignidade da ofendida.

34- Os atos do arguido, perpetrados dolosamente pelo arguido, contra a ofendida, consistiram em maus tratos psíquicos, os quais  foram humilhantes e rebaixavam  quem  quer  que, deles  fosse vitima, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, em particular  da  ofendida.

35- Ao dar-se como provado os factos acima descritos e que o arguido o fez agindo com intenção de a humilhar, estamos perante  expressões reveladoras de uma vontade livre e esclarecida de diminuir e enxovalhar a sua companheira, a pessoa com quem partilhava a sua vida, agredindo-a verbalmente, quando lhe devia um  respeito  acrescido  ate  pela circunstancia de com ela conviver em  condições  análogas  às  dos cônjuges,  sendo profundamente  censurável  a sua conduta.

36- Os  factos ocorreram sempre no domicílio do casal, local habitado  por ambos, ainda que pertencente a ofendida, configurando assim  o conceito de domicilio suscetível de agravar o crime de violência   domestica.

37- Trata-se do local onde se estabelece  um  laço  de particular  intimidade e de privacidade entre o agressor e a vitima, sendo o local onde ambos se relacionam como casal e de expressão mais viva dessa relação.

38- Os factos provados, mantendo-se inalterados, são suficientes para a condenação do arguido pelo  crime  de violência  domestica,  na  parte que se se reconduz o presente recurso.

39- O arguido rebaixou, enxovalhou e humilhou a ofendida, revelando profundo desprezo pela mesma, na medida em que por diversas vezes durante  três  meses,  na  casa  habitada  pelo  casal,  a noite,  lhe  dirigiu  as referidas expressões que são enxovalhantes e  idóneas  a  pôr  em  causa a sua dignidade a rebaixá-la, reduzindo-a a um ser desprovido das suas capacidades plenas.

40- Por via da relação que mantinha com a ofendida era-lhe exigida conduta diversa, das humilhações que a fez sofrer.

41- Pelo  que deve ser o arguido  ser condenado  pela  pratica  de um  crime  de violência  domestica  agravada, p.  e p. pelo  art.º 152°, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CP, quanto aos maus tratos psíquicos, mantendo-se no mais a decisão recorrida.

42- O crime de violência domestica agravado, e punido com a pena de prisão de dois a cinco anos.

43- O dolo é directo e é de considerável intensidade atentas as circunstancias do caso, dado que o arguido agiu do modo descrito durante três meses, menosprezando, humilhando e rebaixando a ofendida sua companheira.

44- O comportamento do arguido, é passível de um juízo de censura acentuado na medida em  que,  voluntaria  e  conscientemente  atentou contra a integridade psicológica  da ofendida.

45- As exigências de prevenção geral são elevadas, pois está-se perante um crime em crescendo, que gera no seio da comunidade acentuada preocupação e a expetativa de uma efetiva punição.

46- As exigências de prevenção especial, que se fazem sentir, não são muito elevadas, dado que o arguido não tem antecedentes criminais o relacionamento com a ofendida já não existe, ainda que o  seu comportamento revele uma personalidade pouco contida.

47- Deve a pena fixar-se no seu limite mínimo, de dois anos.

48- Deve suspender-se a execução da pena por igual período, porquanto a simples formulação do juízo de que a censura do facto e a ameaça de prisão são suficientes para afastar o arguido de futuros crimes.

Pelo que devera a douta sentença, na parte  objeto de recurso  ser revogada e em consequência substituída por outra na qual devera o arguido XXX Paulo ser condenado pela pratica de um crime de violência domestica agravado, p. e p. pelo art.º 152°, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CP, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. …”.

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O Arg. XXX respondeu ao recurso, a fls. 382/384, nos seguintes termos:

“…Vem o recurso em causa interposto da sentença proferida nos presentes autos, absolver o Arguido XXX, do crime de violência doméstica, p.e p. pelo artigo 152º nº 1, al b), nº 2, 4 e 5 do CP.

Não se conformando com esta sentença, entendeu por bem a Digna Magistrada do Ministério Público levá-la à censura de Vªs Exªs, resultando do teor das conclusões, que pede a sua revogação e substituição pela condenação do arguido em pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.

Para tanto, fundamenta a Recorrente ter havido contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Ora, salvo melhor e mais douta opinião, parece-nos não assistir razão às motivações apresentadas pela Digna Magistrada do Ministério Público.

Pois, apesar de o Arguido e a Queixosa terem vivido em condições análogas às dos cônjuges entre Setembro de 2012 e Março de 2013 e, “numa ocasião apelidou a queixosa de “porca de merda” e “atrasada mental” , a verdade é que por se considerar provado que numa ocasião tal facto tenha acontecido, não é motivo suficiente para que este possível crime de injúria, seja convertido em crime de violência doméstica, nos termos do artº 152º do CP.

Mais, não se provou em momento algum, que tenha havido uma pluralidade de condutas contra a saúde física ou psíquica da Queixosa, por parte do Arguido, que convencesse o Tribunal a quo a condenar o Arguido no Crime de Violência Doméstica.

Pelo contrário, de certa forma, até foi notória e bem, a contradição entre as testemunhas de acusação.

Facilmente se deixou perceber que a queixosa padecia de doenças do foro psíquico, tal como documentos médicos juntos aos autos, que veio a tribunal, notoriamente para tentar uma vingança contra o arguido, por ter sido deixada por este.

Como também, a segunda testemunha, filho da queixosa, convenientemente escolhida, mas mal instruída, deixou um testemunho confuso e dúbio.

Ora, não é no Tribunal que se resolvem questões de vingança de relações amorosas mal sucedidas.

Portanto, mais não podia a Meretíssima Juíz do Tribunal a quo, que esteve bem, mediante tais confusões, dúvidas e apenas uma situação pontual provada de injuria, condenar um arguido no crime de violência domestica, pois também isso sim ficou provado, que não houve qualquer crueldade ou gravidade por parte do arguido.

Pelo exposto, salvo melhor e mais douta decisão e por não se vislumbrar qualquer censura à sentença recorrida, deve-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença, assim se fazendo JUSTIÇA. …”.

*

Neste tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto (fls. 394).

*
A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis ou seja o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e o princípio “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.

A decisão em crise fixou da seguinte forma a matéria de facto:

“…
2.1. Matéria de facto provada:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1.O arguido XXX e a ofendida ZZZ, entre Setembro de 2012 e Março de 2013, mantiveram uma relação, vivendo como se de marido e mulher se tratem, em comunhão de cama mesa e habitação.
2.1.2. Nesse período habitaram na residência da ofendida sita na Rua aaa, n.º bbb, ccc. Amadora.
2.1.3.A partir de Dezembro de 2012 e até  à  separação do casal,  com  uma  frequência não concretamente apurada, no interior da residência e à noite, o arguido apelidou a ofendida de “porca de merda” e “atrasada mental”.
2.1.4.Após o términus da relação o arguido e a ofendida mantiveram contactos, e no dia 5 de Abril de 2013, pelas 2H30m, encontraram-se na Av. (…), na Amadora.
2.1.5. Juntamente com o arguido XXX encontrava-se o arguido YYY.
2.1.6.  Nesse dia, hora e local, por motivos que não foi possível apurar os três começaram a discutir.
2.1.7. De forme não concretamente apurada a ofendida ficou com contusão no ombro e na mão, dor intensa ao nível do ombro direito, mialgias difusas, equimoses dispersas pelos membros superiores sem feridas ou escoriações e múltiplos hematomas no corpo e no couro cabeludo.
2.1.8. No dia 7 de maio de  2013  a  ofendida  apresentava  dores  nas  amplitudes máximas da mobilidade do braço direito, dor à palpação da goteira bicipital com irradiação pela face ântero-interna do mesmo braço e bordo lateral desse antebraço.
2.1.9. Ao agir da forma descrita em 2.1.3. quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam.
2.1.10.O arguido XXX agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2.1.11. O arguido XXX é solteiro, tem um filho e mora com a mãe.
2.1.12. É motorista de táxi ganhando €505 por mês.
2.1.13. Tem um veículo automóvel de matrícula (…).
2.1.14. Tem o 2º ano de ciclo.
2.1.15. Não tem antecedentes criminais.
2.1.16. O arguido YYY é solteiro, tem uma filha maior de idade e mora com a companheira.
2.1.17. Está desempregado fazendo biscates onde ganha cerca de €500 por mês e a sua companheira está reformada ganhando €485 mensais.
2.1.18. Mora em casa da companheira.
2.1.19. Não tem carro nem mota.
2.1.20. Tem o 9º ano de escolaridade.
2.1.21. O arguido tem antecedentes criminais tendo já sido condenado em:
- pena de multa no âmbito do processo n.º321/99.3GT, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal a 04.05.99, por sentença de 19.05.99
- pena de multa no âmbito do processo n.º220/03.6PTLRS, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal a 10.12.2003, por sentença de 18.01.2007, transitada em julgado a 04.02.2007.
- pena de multa no âmbito do processo n.º82/12.2SPLSB, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez a 19.05.2012, por sentença de 29.01.2014, transitada em julgado a 19.03.2014.
*
2.2. Matéria de facto não provada: Não resultou provado que:
2.2.2. Os arguidos e a ofendida tenham entrado em confronto físico.
2.2.3. O arguido XXX tenha torcido o braço da ofendida e a atirado ao chão.
2.2.4. Os dois arguidos tenham desferido pontapés e socos pelo corpo da ofendida enquanto a mesma estava caída no chão, puxando-lhe os cabelos e arrastando-a.
2.2.5.Nessa altura o arguido XXX dizia ao arguido YYY “dá-lhe mais” fazendo com que este continuasse a desferir socos e pontapés na ofendida.
2.2.6. A certa altura a ofendida conseguiu levantar-se e um dos arguido, com o acordo do outro, atirou-a contra uma parede fazendo com que a mesma embatesse com a cabeça num ferro ali existente.
2.2.7. A conduta dos arguidos cessou quando passou pelo local uma viatura da PSP.
2.2.8. Ao agir da forma descrita quis o arguido XXX, em conjugação com o arguido YYY, desferir golpes físicos na ofendida de modo a causar-lhe dores e ferimentos.
2.2.9. O arguido YYY, em conjugação com o arguido XXX, quis causar ferimentos no corpo da ofendida.
2.2.10. O arguido YYY agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. …”.

*
Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[v] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado[vi].
No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:
“…O Tribunal formou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, a qual, apreciada de acordo com as regras da experiência e o normal suceder das coisas, foi suficiente para, para além da dúvida razoável, dar por assente os factos, nomeadamente:
              Nas declarações dos arguidos os quais depuseram acerca das suas condições económicas e sociais.
Quanto aos factos os arguidos negaram a prática dos mesmos.
Assim o arguido XXX afirmou nunca ter chamado nomes à queixosa durante o período em que estiveram juntos.
Quanto aos factos ocorridos no dia 5 de Abril afirmou que quando estava no carro com o arguido YYY a queixosa apareceu e agarrou este ultimo pelo braço e começou a bater-lhe, pelo que este saiu do carro e agarrou-a, de modo a domina-la, sendo que ele foi estacionar o carro e quando voltou sentou a queixosa no passeio. Afirmou que depois passou a polícia que depois de falar com eles os mandou ir para casa, o que eles fizeram. No entanto depois de ele ter ido buscar o carro e de o estar a estacionar ao pé de casa apareceu novamente a queixosa que se atirou para cima do veículo e não o deixava andar,  e  aí  o arguido YYY chamou a policia, que quando lá chegou os voltou a mandar dispersar.
Por sua vez o arguido YYY referiu que estava no carro com o arguido XXX quando apareceu a queixosa que com a chave lhe começou a bater, motivo porque ele saiu do carro e agarrou-a pelo braço imobilizando-a, sendo que nessa altura a queixosa se atirou ao  chão, e quando o arguido XXX chegou fez com que esta se sentasse no passeio. Afirmou que não deu as chaves à queixosa para que esta não lhe batesse, só o fazendo  na  presença  da polícia. Disse que depois de a polícia chegar os mandou ir embora, o que eles fizeram. No entanto, quando ele ia buscar o seu carro para ir para casa viu a queixosa e outra pessoa perto do arguido XXX que estava encostado à parede, motivo porque ele chamou a polícia que os mandou dispersar, mais uma  vez.,
- No depoimento da queixosa ZZZ, a qual descreveu a relação que manteve  com  o arguido  XXX,  designadamente  quais as  palavras  proferidas pelo mesmo.
Quanto aos factos ocorridos a 5 de Abril referiu que tinha combinado encontrar-se com o arguido XXX, e que depois de muito esperar apareceram os dois arguidos que lhe começaram a bater.
Assim referiu quais as agressões de que foi alvo por parte de cada um dos arguidos, referindo que estes apenas pararam porque ela gritou quando viu a polícia.
Afirmou ainda que apesar de a policia os ter mandado embora o arguido XXX não foi e eles continuaram a discutir, apenas terminando quando a policia voltou a aparecer e os mandou embora.
Por fim referiu que quem a levou ao hospital foi o filho.
             - No depoimento da testemunha EEE, filho da queixosa, a qual descreveu qual a relação da mãe com o arguido XXX, descrevendo quais os nomes que aquele lhe chamava.
Para além disso e em relação aos factos ocorridos a 5 de Abril afirmou não ter presenciado os mesmos, sabendo apenas que quando a mãe chegou a casa tinha o braço aleijado, motivo porque foram para o hospital.
              - No depoimento da testemunha FFF, o qual referiu que no dia 5 de Abril a ofendida lhe telefonou a dizer que o arguido XXX lhe tinha batido, motivo porque ele foi ter com ela, sendo que quando lá chegou já lá estava a polícia, que os mandou embora, tendo ele ficado com a queixosa que quando viu o arguido XXX a passar de carro correu  na direcção do mesmo e pôs-se à frente impedindo-o de avançar, sendo que depois voltou a aparecer a polícia.
Referiu também que da primeira que vez que estava com a polícia a queixosa caiu ao chão, sem ninguém lhe fazer nada, e magoou o  braço.
              - As testemunhas GGG, HHH, JJJ e LLL, depuseram acerca do carácter e personalidade do arguido XXX.
             - Na informação clínica de fls.33 a 49.
             - No relatório pericial de fls.60 a 62, 142 a 143, 196 a 198.
- Na informação clínica de fls.123, 126 a 128, 178 e 179, 190, 205 a 209, 214
              O certificado de registo criminal junto aos autos foi relevante para prova dos antecedentes criminais.
Face à prova produzida temos que da conjugação do depoimento da queixosa e da testemunha EEE resultou que, não obstante o arguido XXX ter negado, este chamou os nomes supra descritos à ofendida quando os mesmos moravam juntos, motivo porque não teve o Tribunal duvidas em dar como provados os mesmos.
No entanto em relação aos factos ocorridos a 5 de Abril temos duas versões para os mesmos.
Assim, por um lado temos a versão dos dois arguidos que negaram a prática dos mesmos afirmando que foi a queixosa quem se atirou para o chão, sendo que também a testemunha MMM referiu que apesar de ter chegado já depois também ter visto aquela a cair no chão e a magoar o braço.
Por outro lado temos a versão da queixosa  que  referiu  que  foram  os  dois  arguidos quem lhe bateu provocando-lhe as lesões supra descritas.
Sendo que mais nenhuma das testemunhas inquiridas estava presente quando os factos constantes da acusação ocorreram.
Assim, e face à prova produzida em sede de audiência de julgamento, surge inevitavelmente no nosso pensamento uma dúvida: terão os arguidos efectivamente praticado os factos de que vêm acusados?
O problema da dúvida no processo penal, como em qualquer outro processo judicial, existe exactamente pelas mesmas razões que tornam necessária a fase probatória da lide: porque o julgador não presenciou as situações que ocorreram no passado e que são irrecriáveis.
A função da prova é precisamente a de demonstrar que um facto existiu e de que forma existiu. Mas nem sempre é possível efectuar essa demonstração: “a certeza não está sempre ao alcance da inteligência humana, nem os meios de que se serve a justiça, os meios de prova, facultam, em todos os casos, a possibilidade de a obter” (Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa, 1981, pág. 303).
Por isso que nessa reconstituição ou reconstrução de situações pretéritas, em que se analisa o processo, a dúvida seja muitas vezes inevitável.
Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao acto de julgar.
Sendo, pois, proibido o “non liquet” fundado na insuficiência de provas,  em  caso  de dúvida insanável, como fundamentar  a  decisão  sobre  os  factos  independentemente  da certeza sobre os mesmos   factos?
Ora,  em processo  penal,  há que se fazer  uso  do princípio “ in  dubio  pro reo”.
O princípio “in dubio pro reo” significa que, um “non liquet” na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, não apenas em relação aos elementos constitutivos do tipo de crime, mas também quanto aos tipos justificadores.
Este princípio, como corolário importante na materialização do princípio da presunção da inocência, apresenta-se-nos como um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, pois impede o julgador de tomar uma decisão segundo o seu critério no que respeita aos factos duvidosos desfavoráveis ao arguido.
O princípio “in dubio pro reo” é, pois, uma garantia subjectiva e, além disso, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
As considerações que antecedem servem para justificar a decisão a tomar no caso em apreço. Aliás, mais do que uma justificação, são o apontar do caminho legalmente imposto em caso de dúvida quanto à prática dos factos delituosos.
Assim, e uma vez que os factos apurados nos autos não nos permitem concluir, com certeza, que os arguidos tenham praticado os factos que lhe eram imputados na acusação e ocorridos a 5 de Abril cabe-nos, em homenagem e cumprimento do princípio “in dubio pro reo” dar os mesmos como não provados.

Ou seja, não obstante as lesões sofridas pela queixosa estarem documentadas nos autos, não é possível ao Tribunal afirmar com segurança e sem margem para duvidas que foram os arguidos os causadores das mesmas, pelo que são tais factos dados como não provados. …”.
*
É pacífica a jurisprudência do STJ[vii] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[viii], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[ix].

Da leitura dessas conclusões, e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

I – Vício de contradição insanável entre a fundamentação de facto e a de direito;

II - Preenchimento dos elementos do tipo da violência doméstica pela conduta do Recorrido.

*

Cumpre decidir.

I –Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece do vício de contradição insanável entre a fundamentação de facto e a de direito.

Antes do mais, importa ter em consideração que os vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, são de conhecimento oficioso e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[x].
“… contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou, quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.[xi].

O MP encontra essa contradição por, por um lado, se ter dado como provado que “…A partir de Dezembro de 2012 e até à separação do casal com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e à noite, o arguido apelidou a ofendida de ''porca de merda" e "atrasada mental” e que “Ao agir da forma descrita em 2.1.3. quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam. …” e, por outro lado, se ter referido, em sede de fundamentação de direito, que apenas “… numa ocasião apelidou a ofendida  de "porca de merda" e "atrasada mental".”.

Não podemos deixar de concordar.

Na verdade, existe uma contradição insanável entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada, uma vez que o que ficou provado foi uma pluralidade não determinada de acções do Arg. e não uma só acção, como depois se considerou na discussão sobre o preenchimento dos elementos do tipo da violência doméstica.

Quando se verifica este tipo de vício, o processo só deve ser devolvido à 1.ª Instância se o tribunal superior não dispuser dos elementos necessários à sua sanação (art.º 431º/a) do CPP).

Ora, os autos dispõem dos elementos necessários à sanação deste vício, uma vez que a matéria de facto não foi impugnada, assim tendo que se considerar como assente, pelo que basta o recurso à mesma para sanar o vício.

É o que faremos, indagando se tal matéria de facto permite concluir pelo preenchimento dos elementos do tipo da violência doméstica.

Procede, pois, nesta parte, o recurso.

*

Importa consignar que não vislumbramos na decisão recorrida qualquer outro dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, nomeadamente qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou erro notório.

*

II – Entende o MP que a conduta do Recorrido preenche os elementos do tipo da violência doméstica.

            O tipo da violência doméstica pune o exercício de maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais sobre o cônjuge ou ex-cônjuge; pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.

Os maus-tratos previstos neste tipo são os actos que, pelo seu carácter violento sejam, por si só, ou conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física e psíquica da vítima[xii], ou, noutra formulação, são os actos que provocam “… lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral…”[xiii].

            O bem jurídico que o tipo da violência doméstica visa proteger é a saúde[xiv], enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão[xv],[xvi], [xvii].

O dolo exigido, que, para alguns, é variável, em função da espécie de comportamento do agente, há-de sempre abarcar, pelo menos, o dolo de perigo da afectação da saúde, no sentido supra exposto e “… o conhecimento da relação de protecção-subordinação e da menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo.[xviii].

            Uma vez que este tipo abarca condutas que são também puníveis por outros tipos legais, neste caso, a injúria, torna-se necessário distinguir, com um mínimo de segurança, quais as condutas que integram um e outros.

Para que integre a violência doméstica, a acção do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que, “… seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. …”[xix].

Ou, como se diz no acórdão do STJ de 14/11/1997[xx]: “…a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente.…”.

Ou como afirma Plácido Conde Fernandes[xxi], “... só com a intensidade do desvalor da acção e do resultado que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. …” se preenche o conceito de maus-tratos pressuposto neste tipo legal.

No presente caso, são relevantes os seguintes factos: durante a coabitação, que durou cerca de 6 meses, o Recorrido “A partir de Dezembro de 2012 e até à separação do casal, com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e à noite, o arguido apelidou a ofendida de “porca de merda” e “atrasada mental” eAo agir da forma descrita em 2.1.3. quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam.”.

Assim, contrariamente ao que se considerou na sentença recorrida, o Recorrido, por diversas vezes (só pode ser esse o sentido da expressão “… com uma frequência não apurada …”), durante um período de cerca de 3 meses, dirigiu à Ofendida aquelas injúrias, que a rebaixaram (só pode ser esse o sentido da expressão “…expressões que bem sabia que a rebaixavam …”).

Ora, dirigir, com frequência, as expressões “porca de merda” e “atrasada mental” à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica[xxii], p. e p. pelo art.º 152º/1-b) do CP[xxiii],.

Porque a conduta do Recorrido ocorreu na residência comum, a conduta é agravada, nos termos do disposto no art.º 152º/2 do CP.

Por isso, concordando com o MP, entendemos que no presente caso a conduta do Recorrido preenche os elementos do tipo da violência doméstica, pelo que o recurso é procedente.

*

Uma tal procedência, com a tipificação da conduta do Arg. como integrando a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b)/2 do CP, uma vez que o Recorrido vinha absolvido, implica a determinação da pena a aplicar.

Importa, antes do mais, questionar sobre se caberá a este Tribunal proceder a tal determinação (nesta matéria, seguimos de muito perto a fundamentação do acórdão da RL, proferido no Recurso n.º 8.905/08-3ª Secção, relatado por Domingos Duarte.).

A jurisprudência dos tribunais superiores, sobre tal matéria, não é unânime.

A maioritária defende que a determinação da espécie e da medida concreta da pena a aplicar incumbe ao tribunal a quo, argumentando que só assim se pode cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição acolhido no art. 32º/1 da CRP[xxiv].

Outra, alheando-se desta tese, mesmo sem apontar qualquer outra, procede às operações necessárias para aquele fim.

Outra, ainda, a que perfilhamos, entende que o direito ao recurso em matéria penal (duplo grau de jurisdição), inscrito constitucionalmente como uma das garantias de defesa, significa e impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um modelo de impugnação das decisões penais que possibilite, de modo efectivo, a reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e sobre a medida da pena.

Assim, ao tribunal ad quem, ao reexaminar a causa, tal como lhe assiste a faculdade de passar de uma decisão condenatória para uma decisão absolutória, assistir-lhe-á a de passar de uma decisão absolutória para uma decisão condenatória e, neste último caso, dispondo dos necessários elementos, fixar a espécie e medida da pena.

No sentido que perfilhamos, cf. a declaração de voto subscrita por Ernesto Nascimento, junta ao acórdão da RP de 05/03/2008, tirado no processo 0746465, in ZZZ.dgsi.pt, donde citamos: “O direito ao recurso em Processo Penal tem que ser entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição e, não, perspectivado, como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da 1ª decisão condenatória, ainda que proferida em via de recurso.

Este entendimento não colide com o estatuído no artigo 32º, nº1 da Constituição da República, pois que a apreciação do caso por 2 tribunais de grau distinto, é de molde a tutelar de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

De resto, referira-se que o artigo 2º do protocolo nº. 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República 22/90 de 27.9 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República 51/90 da mesma data, dispõe que : qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei; este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos das lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição. Esta tese foi defendida no Ac. Tribunal Constitucional 49/03, relatora Maria Beleza, que com a devida vénia vimos seguindo de perto, com transcrição. Tal como na 1ª instância o arguido teve a oportunidade de se defender, exercendo o direito ao contraditório, perante a acusação deduzida pelo MP, também, nesta instância de recurso, teve a mesma possibilidade de se defender, exercendo o mesmo direito do contraditório, porventura com mais 1 oportunidade (a do artigo 417º/2 C P Penal) perante a motivação do recorrente. Também na tese que fez vencimento se ponderou que ao determinar a espécie e medida da pena em via de recurso, se estaria a impedir o arguido de participar na escolha de algumas penas de substituição, que reclamam o seu consentimento. Não cremos relevante tal argumento, pois que o tribunal de recurso, para quem entenda que a sua opinião tem que ser dada pessoalmente, sempre podia determinar a comparência em audiência, ao abrigo do artigo 421º/1 C P Penal. Assim, cremos que no caso, fora o caso de falta de factos provados que permitam - com justeza e adequação - a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos artigos 70º e 71º C Penal, sempre o tribunal de recurso pode e deve, na consideração da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, condenar o agente, que vinha absolvido. No caso, esta falta de factos – elementos a ponderar naqueles termos, não se verifica, o que a ocorrer, justificaria, então se determinasse a reabertura da audiência, nos termos dos artigos 369º, 370º e 371º C P Penal.”.
E o citado Ac. n.º 49/2003 do Tribunal Constitucional, in ZZZ.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, donde citamos: “Por outras palavras, o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso. Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação.
Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus fundamentos substanciais (como resulta do que já se disse), mas levaria também, em bom rigor, a resultados inaceitáveis, como se passa a demonstrar.
Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará.
A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.
Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. Esta segunda justificação, aliás, explica a diferença entre as alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal; com efeito, se ao crime em causa for aplicável pena de prisão "não superior a oito anos" (alínea f)) – não sendo hipótese abrangida pela alínea e), naturalmente –, só não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão condenatório proferido pela Relação se este confirmar "decisão de 1ª instância".

Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

A concluir, refira-se o artigo 2º do protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 22/90, 27 de Setembro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 51/90, da mesma data), cujo texto é o seguinte:

Artigo 2º

1 – Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei.

2 – Este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.

  Como se vê, a parte final do nº 2 ressalva, precisamente, a hipótese que está em apreciação no presente recurso.» …”.

Tal como na 1ª instância o Arg. teve a oportunidade de se defender, exercendo o direito ao contraditório, perante a acusação deduzida pelo MP, também, nesta instância de recurso, teve a mesma possibilidade de se defender.

Com excepção das situações em que a factualidade provada não permita, com o rigor exigível, a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos art.ºs 70º e 71º do CP, o que a ocorrer, justificaria, então que se determinasse a reabertura da audiência, nos termos dos art.ºs 369º, 370º e 371º do CPP, o tribunal ad quem pode e deve, na consideração da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, condenar o Arg., que vinha absolvido.

Nos presentes autos existem elementos suficientes para se fazer a determinação da medida da pena.

Passemos, pois, à determinação da pena a aplicar.

O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b)/2 do CP, é punível com prisão de 2 a 5 anos.
A determinação da medida concreta da pena, nos termos do art.º 71º do CP, deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente[xxv].

No presente caso, há que ter em conta a ilicitude que foi mediana; as circunstâncias do crime (tempo de vida em comum e expressões proferidas); a gravidade das consequências, que não se apurou que tenham sido elevadas; o dolo, que foi directo; a falta de confissão, que, no caso, implica a falta de arrependimento; a sua situação económica, laboral (encontra-se empregado) e familiar (vive com a mãe e tem um filho); a sua primariedade e a sua idade.

Tendo em conta todos estes elementos, julgamos ajustada a pena de 2 anos de prisão.

Sendo o Recorrido condenado numa pena de prisão inferior a 5 anos, importa apreciar a possibilidade da suspensão da execução da mesma.

Quando à suspensão da execução da pena de prisão, seguimos a lição do Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pp. 342 e ss.: “… Pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (art.º 49.º-1) - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade» (art.º 48.º-1). Para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.

A lei torna deste modo claro que, na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração - na medida possível: supra § 355 ss. - em sede de medida da pena: com isto não deve dizer-se violada a proibição de dupla valoração. Não pode deixar de ser valorada para este efeito, v. g., a circunstância de o condenado por um crime relacionado com o consumo de álcool ou de estupefacientes se ter submetido com êxito posteriormente ao crime, mas anteriormente à condenação, a uma cura de desintoxicação (cf. de resto os arts. 41.º e ss. do DL n.º 15/9.1. de JAN22).

§ 519 A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».

Por isso, um prognóstico favorável fundante da suspensão não está excluído - embora se devam colocar-lhe exigências acrescidas - mesmo relativamente a agentes por convicção ou por decisão de consciência (nos casos, naturalmente. em que também estes últimos sejam puníveis). Mas já o está decerto naqueles outros casos em que o comportamento posterior ao crime, mas anterior à condenação, conduziria obrigatoriamente, se ocorresse durante o período de suspensão, à revogação desta (art. 51.º-1 e infra § 546). Por outro lado, a existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão: mas compreende-se que o prognóstico favorável se torne, nestes casos, bem mais difícil e questionável - mesmo que os crimes em causa sejam de diferente natureza - e se exija para a concessão uma particular fundamentação (fundamentação, aliás, sempre necessária: intra § 523).

§ 520 Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (art. 48.º-2 in fine). Já determinámos (supra § 502) que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise. …”.
            Ora, atenta esta lição, importa ter em conta que o Arg. é priYYY e se encontra laboral e familiarmente inserido.
            Estes elementos apontam seriamente para a formulação de um juízo de prognose positivo quanto à sua reinserção social e ao perigo de reincidência, pelo que é de concluir que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.

Aliás, nesse sentido aponta a jurisprudência, que tem vindo a suspender a execução de penas de prisão em casos de violência doméstica praticados por acção e com dolo directo[xxvi], o que, em princípio, tornaria o prognóstico positivo mais difícil, sendo essa jurisprudência relevante[xxvii].

*****
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, decidimos julgar provido o recurso e, consequentemente:
a) Condenar o Arg. XXX pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b)/2 do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) Suspender a execução da pena aplicada em a), pelo período de 2 (dois) anos;
c) No mais, confirmar a decisão recorrida;
d) Condenar o Arg. nas custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC.
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Notifique.

D.N..

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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

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Lisboa, 23/04/2015

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(João Abrunhosa)

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(Maria do Carmo Ferreira)

[i] Arguido/a/s.
[ii] Termo/s de Identidade e Residência.
[iii] Prestados em 20/06/2013.
[iv] Ministério Público.
[v] Código de Processo Penal.
[vi] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.
Ver, por último, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.
[vii] Supremo Tribunal de Justiça.
[viii]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[ix] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”.
[x] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[xi] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 75.
[xii] Neste sentido, ver Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 19.
[xiii] André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 45.
[xiv] Também neste sentido, mas conferindo a ratio do tipo na protecção da dignidade humana, cf. Taipa de Carvalho, in “comentário Conimbricense do CP”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 332.
[xv] Neste sentido, ver Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 14.
No mesmo sentido, cf. Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal, na Revista do CEJ, n.º 8 (Especial), 2008,p. 305,  que defende que o bem jurídico aqui em causa é “… a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos crueis, degradantes ou desumanos, um bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. …”.
[xvi] Sobre o bem jurídico protegido por este tipo, cf, os seguintes acórdãos:
- do STJ de 30/10/2003, relatado por Pereira Madeira, in CJ, III, do qual citamos: “I - Os bens jurídicos protegidos pela incriminação estabelecida no nº. 2 do art. 152º do CP são, em geral, os da dignidade humana, particularmente, a saúde compreendendo-se nesta o bem estar físico, psíquico e mental podendo a sua violação ocorrer por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade do cônjuge e seja susceptível de por em causa qualquer dos bens acima mencionados.…”;
- da RP de 19/09/2012, relatado por Ernesto Nascimento, no processo 901/11.0PAPVZ.P1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”. Da actual descrição do tipo do artigo 152º, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta,a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges;o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas e,que, por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação. “O desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo”. [7]“A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente”. [8] “Neste sentido, o crime de violência doméstica assume não a natureza de crime de dano mas de crime de perigo, nomeadamente de crime de perigo abstracto. É, com efeito, o perigo para a saúde do objecto de acção alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto”. [9] “O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um “risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima”. [10] Só em tal situação se impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.…”;
- da RP de 26/09/2012, relatado por Airisa Caldinho, no processo 176/11.1SLPRT.P1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “I – No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.II – Visa tutelar a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.III - O bem jurídico protegido por este tipo legal é, assim, primordialmente, a saúde da vítima, entendida nas suas vertentes de saúde física, psíquica e mental, visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoal, afectem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros.IV – Trata-se de crime específico porquanto pressupõe que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. V - As condutas típicas preenchem-se com a inflição de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações).VI - Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada).”;
- da RC de 29/01/2014, relatado por Jorge Dias, no processo 1290/12.1PBAVR.C1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado ou não inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento conjugal, ou análogo, e determinada por força desse relacionamento e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima.…”.
[xvii] No sentido de que é um crime de resultado, cf. André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 42/3.
No sentido de que tanto pode ser um crime de resultado, ou um crime de mera conduta, ou um crime de dano, ou de perigo, cf. Taipa de Carvalho, in “comentário Conimbricense do CP”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 334.
[xviii] Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do CP”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 334.
[xix] Neste sentido, ver Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 22.
[xx] Relatado por Sá Nogueira, in CJ,III, p. 235 e ss..
[xxi] In “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal, na Revista do CEJ, n.º 8 (Especial), 2008,p. 308,
[xxii] Neste sentido, para casos similares, cf, os seguintes acórdãos:
- da RL de 27/02/2008, relatado por Carlos Almeida, no processo 1.702/2008-3, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “1. Para efeitos de integração do conceito de maus tratos referido no art.º 152º CP, assumem relevância não só as injúrias proferidas em alta voz que se prolongaram no tempo, durante meses, e se seguiram a comportamentos idênticos valorados no âmbito de anterior condenação, mas também a ameaça e o repetido bater com força a porta do frigorífico e as loiças, o que, tudo junto, provocou «estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição aos humores dele».  …”;
- da RG de 15/10/2012, relatado por Fernando Monterroso, no processo 639/08.6GBFLG.G1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…III) Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. …”;
- da RP de 10/07/2013, relatado por Maria do Carmo da Silva Dias, no processo 413/11.2GBAMT.P1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Ora perante os factos concretos apurados (…) não há dúvidas que todo esse sucessivo e repetido comportamento do arguido (portanto considerado não só individual como globalmente) integra o conceito de “maus-tratos psíquicos”, tendo em atenção o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica. Todos esses episódios e actos, praticados dolosamente pelo arguido contra a sua ex-mulher (os quais consistiram em lhe infligir maus-tratos psíquicos[…], através de repetidas injúrias e ameaças - algumas delas presenciadas por terceiros - que são idóneas a afectar o seu bem estar psicológico, pois além de representarem total desrespeito para com a sua ex-mulher, causaram-lhe medo e ansiedade, como era de esperar), eram humilhantes e rebaixavam quem fosse vítima deles, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso com a assistente. Para além de ter atingido a honra e consideração da ofendida e de lhe ter causado medo e receio pela sua integridade física, com a descrita repetida conduta o arguido também violou a liberdade de determinação e de decisão daquela, que configura a conduta típica, na modalidade de infligir maus-tratos psíquicos. A descrita conduta do arguido (que até assumiu um modo especialmente desvalioso) é penalmente censurável tendo em atenção o tipo legal em questão (crime de violência doméstica) e o bem jurídico protegido[…]. …”;
- da RE de 14/01/2014, relatado por Ana Brito, no processo 1.015/12.1GCFAR.E1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “1. A realização do tipo de crime de violência doméstica previsto no art. 152º, nºs 1, al- a) e 2 do Código Penal não exige a imposição de maus-tratos físicos. 2. A reiteração da prolação de expressões injuriosas e a adopção de um comportamento psicologicamente agressivo e repetido ao longo de vários anos relativamente a cônjuge que se vai fragilizando e diminuindo enquanto “pessoa” consubstancia maus-tratos psíquicos no nível de intensidade contido no tipo. …”
[xxiii] Código Penal.
[xxiv] Constituição da República Portuguesa.

[xxv] A este respeito, porque sintetiza e expõe de forma exemplar a doutrina e a jurisprudência dominantes quanto à determinação das medidas das penas, citamos o Ac. do STJ de 09/12/1998, relatado pelo Sr. Conselheiro Leonardo Dias, in BMJ 482/77: “Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre e tanto quanto for possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa – a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.

A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda, realiza, eficazmente, aquela protecção.

Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem, todavia, sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.

[Poderia objectar-se que esta concepção abre, perigosamente, caminho ao terror penal. Uma tal objecção, porém, ignoraria, para além do papel decisivo reservado à culpa, que, do que se trata, é do direito penal de um estado de direito social e democrático, onde quer a limitação do jus puniendi estatal, por efeito da missão de exclusiva protecção de bens jurídicos, àquele atribuída (a determinação do conceito material de bem jurídico capaz de se opor à vocação totalitária do Estado continua sendo uma das preocupações prioritárias da doutrina; entre nós Figueiredo Dias – que, como outros prestigiados autores, entende que na delimitação dos bens jurídicos carecidos de tutela penal haverá que tomar-se, como referência, a própria Lei Fundamental – propõe a seguinte definição: «unidade de aspectos ônticos e axiológicos, através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso», cfr. «Os novos rumos da política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43º, 1983, pag. 15) e os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer, da pena, uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal, acabe dirigida contra a sociedade. Depois, prevenção geral, no Estado de que falamos, não é a prevenção estritamente negativa ou de pura intimidação. Um direito penal democrático que, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, tem de, pela mesma razão, colocar a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Assim, subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, já se vê que a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, sim, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.]
Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura geral – a moldura penal aplicável ao caso concreto («moldura de prevenção») há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.”.
Quanto à determinação da medida da pena, cf. também o Ac. do STJ de 09/03/2006, relatado pelo Sr. Conselheiro Arménio Sottomayor, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss..

Ver ainda o Ac. do STJ de 29/05/2008, processo 08P1145, in www.dgsi.pt, relatado pelo Sr. Conselheiro Souto de Moura, do qual citamos: “ … É hoje entendimento uniforme deste S.T.J., bem como da doutrina, que a escolha e medida da pena constituem tarefas cuja sindicabilidade se tem que assegurar, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reacções penais legalmente previstas, numa aplicação do direito autêntica, e não num exercício do que possa ser apelidado, simplesmente, de “arte de julgar”. Tal não impede que, em sede de recurso de revista para este S.T.J., a controlabilidade da determinação da pena deva sofrer limites. Assim, podem ser apreciadas “a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais” (…) “E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada” (do Ac. deste S.T.J. e 5ª Secção, de 13/12/07, Pº 3292/07, relatado pelo Cons. Simas Santos. Cfr. também Figueiredo Dias in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 197). Importa então recordar os critérios a que deve obedecer a determinação da pena concreta. Assinale-se que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no art.º 40º do C. P., nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, quando tiver lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Quando pois o art.º 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art.º 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229). Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir. O nº 2 do art.º 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. …”.
[xxvi] Vejam-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos:

Ac. da RPProc. 413/11.2GBAMT.P110/07/2013Dr.ª M.ª do Carmo da Silva DiasArg. não primárioViolência doméstica praticada por acção1 ano de prisãoConfirma a suspensão da execução
Ac. da RPProc. 2167/10.0PAVNG.P106/02/2013Dr. Coelho VieiraArg. primárioViolência doméstica praticada por acção2 anos de prisãoConfirma a suspensão da execução
Ac. da RPProc. 368/09.3PQPRT.P129/02/2012Dr. Joaquim GomesArg. primárioViolência doméstica praticada por acção1 ano e 6 meses de prisãoConfirma a suspensão da execução
Ac. da RCProc. 3121/0521/12/2005Dr. Belmiro AndradeArg. primárioViolência doméstica praticada por acção2 anos e 2 meses de prisãoSuspende a execução


[xxvii] Nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.