Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA MEDIDA DA PENA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/23/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIMENTO | ||
Sumário: | I - Dirigir, com frequência não apurada, as expressões “porca de merda”e “atrasada mental” à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b) do CP; II - O tribunal ad quem pode e deve, quando considera que se preenchem os elementos constitutivos de um tipo legal de crime, condenar o Arg., que vinha absolvido, determinando a respectiva pena, se os autos contiverem os necessários elementos. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
Na Secção Criminal da Instância Local da Amadora, por sentença de 09/11/2014, constante de fls. 326/340, foram os Arg.[i] XXX e YYY, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[ii], respectivamente, de fls. 73 e 83[iii]) absolvidos nos seguintes termos: Sem custas. …”. * Não se conformando, a Exm.ª Magistrada do MP[iv] interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 346/373, concluindo da seguinte forma: ”… 1- Por douta sentença proferida em 04/10/2014, foi, para além do mais, o arguido XXX, absolvido da pratica do crime de violência domestica agravado, p. e p. pelo art.º 152°, n.º 1, al. b), n.º 2, 4 e 5, do Código Penal (adiante designado de CP), na vertente de mau trato psicológico. 2- É, desta parte da douta sentença absolutória que se recorre, por existir contradição entre a matéria de facto dada como provada, a fundamentação e a decisão, e como provada er entender que a factualidade dada integra a pratica do crime imputado ao arguido, na sua vertente de mau trato psicol6gico e não de um crime de injuria como foi decidido. 3- A Mma. Juiz não efetuou uma adequada interpretação e aplicação das normas penais relativas ao tipo de crime, tendo em conta a factualidade apurada e dada como provada. 4- Da matéria de facto dada como provada consta que: "O arguido XXX e a ofendida ZZZ, entre Setembro de 2012 e Março de 2013, mantiveram uma relação, vivendo como se de marido e mulher se tratem, em comunhão de cama mesa e habitação. Nesse período habitaram na residência da ofendida sita na Rua (…) Amadora. A partir de Dezembro de 2012 e até a separação do casal com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e a noite, o arguido apelidou a ofendida de ''porca de merda" e "atrasada mental': Ao agir da forma descrita em 2.1.3. quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam. O arguido XXX agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”. 5- O tribunal formou a sua convicção na analise crítica do conjunto da prova produzida, a qual, apreciada de acordo com as regras da experiencia e o normal suceder das coisas. 6- O que foi suficiente para dar por assente os factos que não obstante o arguido ter negado estes factos, o mesmo chamou os nomes supra descritos à ofendida quando os mesmos moravam juntos. 7- A sentença padece do vício previsto no art.º 410º/2-b) do CPP. 8- Porque se deu como provado que o arguido entre dezembro de 2012 e março de 2013, por mais do que uma vez, em numero não determinado, proferiu as supra descritas expressões dirigidas a ofendida e em seguida se dá como assente, em sede de enquadramento jurídico-penal e decisão, que apenas resultou provado que o arguido numa ocasião apelidou a ofendida de "porca de merda" e "atrasada mental". 9- Ficou provado que ao agir da forma descrita quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam. 10-E que o arguido XXX agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei". 11- Estribou-se a douta decisão no depoimento da queixosa Maria Assunção Beirão, e da testemunha Ricardo Ferreira, filho da mesma que com o arguido e a mãe coabitava, que descreveram a relação mantida entre o casal e as palavras proferidas pelo arguido. 12- Verifica-se assim existir contradição entre os factos dados como provados, a fundamentação e a conclusão a que se chegou que redundou na absolvição do arguido, quanto a estes factos. 13- O vicio que se argui resulta expressamente da decisão recorrida, do contexto factual inserido na decisão, por si, não passando despercebido ao comum observador, ou seja qualquer pessoa media, facilmente dele dará conta. 14- É manifesta a contradição entre os factos provados, a fundamentação e a decisão, quando se deu como provado que a partir de dezembro de 2012 e ate a separação do casal, com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e a noite, o arguido apelidou a ofendida de ''porca de merda' e "atrasada mental' , que a quis humilhar dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam e que agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e incompreensivelmente em sede de decisão, na parte referente ao enquadramento jurídico-penal, para justificar que a conduta integra crime diverso se diga que tenha resultado provado que o arguido apenas numa ocasião tenha apelidado a queixosa de "porca de merda" e "atrasada mental". 15- A factualidade dada como provada, e a sua fundamentação, de acordo com o raciocínio 1ógico, permitem concluir que essa fundamentação justifi.ca uma decisão oposta a que foi proferida, havendo colisão entre os factos provados, a fundamentação e a decisão. 16- Na mesma sentença afirma-se e nega-se os mesmos factos, sendo que se trata de emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras. 17- A apontada contradição, e insanável e irredutível, não podendo ser afastada com por via da decisão recorrida e das regras da experiencia. 18- Na construção da decisão, o tribunal apenas pode sustentar-se na factualidade dada como provada. 19- Tendo dado como provados os factos acima descritos e face à fundamentação expendida sobre a matéria de facto, não podia extrair a conclusão que extraiu de que o arguido uma vez apelidou a ofendia daquela forma e que os factos integram o crime de injuria e não de violência domestica. 20- As contradições insanáveis que a lei considera para efeitos de recurso, são aquelas que são intrínsecas da decisão recorrida e neste caso, as mesmas são patentes e determinam a prolação de diferente decisão, pois que se não se tivesse verificado a apontada contradição impunha-se a condenação do arguido pela pratica dos factos acima descritos os quais integram o crime de violência domestica na sua vertente de maus trato psíquico. 21- Deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que expurgue o mencionado vicio, e condene o arguido pela pratica do crime que lhe foi imputado, quanto à matéria de que se recorre. 22- Alem do acima expendido, a Mma. Juiz de Direito, efetuou um incorreto enquadramento jurídico dos factos e por essa via violou o disposto no art.º 152°, do CP. 23- Os factos de que ora se recorre, não integram o crime de injuria, como veio a ser decidido. 24- Consubstanciam um crime de violência doméstica, porquanto o tipo penal em apreço exige para o seu preenchimento um tratamento degradante ou humilhante, capaz de diminuir a condição a dignidade humana da vitima. 25- O que resulta a conduta ao arguido XXX, que diminuiu a dignidade da vitima, sua companheira, menosprezando-a e rebaixando-a, fazendo-o no recato do seu lar, a noite. 26- O arguido tratou a ofendida de forma degradante e humilhante ao longo de pelo menos 3 meses, no interior da residência habitada pelo casal. 27- Com a reforma operada o Código Penal, em 1995 e depois em 2007, os maus tratos psíquicos, viram ampliado o leque de condutas que neles tern cabimento e consequente previsão no tipo legal. 28- Estão assim contemplados no tipo legal as humilhações, provocações e ameaças, insultos, quer isto dizer as condutas que se revelem desprezo pela condição humana do companheiro, podendo nele provocar sentimentos de culpa de diminuição e necessariamente sofrimento psicológico. 29- Resulta evidente da factualidade dada como provada e da fundamentação bem como do enquadramento jurídico que o arguido XXX ao proferir as referidas expressões em inúmeras ocasiões dirigidas a sua companheira, quis minimiza-la e desse modo, colocar-se numa posição de domínio sobre a mesma, querendo deixa-la numa situação de maior vulnerabilidade, fazendo-o sempre e tão só na residência habitada pelo casal. 30- Existia uma ligação afetiva entre o arguido e a ofendida que permitiu ao arguido por via da conduta, procurar domina-la e rebaixa-la na sua condição pessoal, diminuindo-a enquanto pessoa, atentando assim contra a dignidade pessoal da sua companheira e não contra a honra da mesma. 31- A injuria traduz-se na manifestação por qualquer meio de um conceito ou pensamento que importe um ultraje contra alguém. 32- Os factos apurados e dados como provados, devidamente contextualizados, integram o crime de violência doméstica agravado, porquanto reiteradamente ocorreram na residência do casal, sendo o comportamento dirigido contra a dignidade humana da ofendida, enquanto companheira do arguido e por causa dessa relação, e no âmbito da mesma e da convivência do casal, visando humilhar, e diminuir a ofendida na sua dignidade, enquanto companheira do ofendido. 33- As expressões utilizadas e o contexto em que o foram, são reveladoras de um profundo desprezo pela condição humana e pessoal da ofendida e visaram minimiza-la a desconsidera-la a destrata-la de forma ignóbil e ultrajante, para alem da protecção do bem pessoal traduzido na honra, mas atingindo a dignidade da ofendida. 34- Os atos do arguido, perpetrados dolosamente pelo arguido, contra a ofendida, consistiram em maus tratos psíquicos, os quais foram humilhantes e rebaixavam quem quer que, deles fosse vitima, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, em particular da ofendida. 35- Ao dar-se como provado os factos acima descritos e que o arguido o fez agindo com intenção de a humilhar, estamos perante expressões reveladoras de uma vontade livre e esclarecida de diminuir e enxovalhar a sua companheira, a pessoa com quem partilhava a sua vida, agredindo-a verbalmente, quando lhe devia um respeito acrescido ate pela circunstancia de com ela conviver em condições análogas às dos cônjuges, sendo profundamente censurável a sua conduta. 36- Os factos ocorreram sempre no domicílio do casal, local habitado por ambos, ainda que pertencente a ofendida, configurando assim o conceito de domicilio suscetível de agravar o crime de violência domestica. 37- Trata-se do local onde se estabelece um laço de particular intimidade e de privacidade entre o agressor e a vitima, sendo o local onde ambos se relacionam como casal e de expressão mais viva dessa relação. 38- Os factos provados, mantendo-se inalterados, são suficientes para a condenação do arguido pelo crime de violência domestica, na parte que se se reconduz o presente recurso. 39- O arguido rebaixou, enxovalhou e humilhou a ofendida, revelando profundo desprezo pela mesma, na medida em que por diversas vezes durante três meses, na casa habitada pelo casal, a noite, lhe dirigiu as referidas expressões que são enxovalhantes e idóneas a pôr em causa a sua dignidade a rebaixá-la, reduzindo-a a um ser desprovido das suas capacidades plenas. 40- Por via da relação que mantinha com a ofendida era-lhe exigida conduta diversa, das humilhações que a fez sofrer. 41- Pelo que deve ser o arguido ser condenado pela pratica de um crime de violência domestica agravada, p. e p. pelo art.º 152°, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CP, quanto aos maus tratos psíquicos, mantendo-se no mais a decisão recorrida. 42- O crime de violência domestica agravado, e punido com a pena de prisão de dois a cinco anos. 43- O dolo é directo e é de considerável intensidade atentas as circunstancias do caso, dado que o arguido agiu do modo descrito durante três meses, menosprezando, humilhando e rebaixando a ofendida sua companheira. 44- O comportamento do arguido, é passível de um juízo de censura acentuado na medida em que, voluntaria e conscientemente atentou contra a integridade psicológica da ofendida. 45- As exigências de prevenção geral são elevadas, pois está-se perante um crime em crescendo, que gera no seio da comunidade acentuada preocupação e a expetativa de uma efetiva punição. 46- As exigências de prevenção especial, que se fazem sentir, não são muito elevadas, dado que o arguido não tem antecedentes criminais o relacionamento com a ofendida já não existe, ainda que o seu comportamento revele uma personalidade pouco contida. 47- Deve a pena fixar-se no seu limite mínimo, de dois anos. 48- Deve suspender-se a execução da pena por igual período, porquanto a simples formulação do juízo de que a censura do facto e a ameaça de prisão são suficientes para afastar o arguido de futuros crimes. Pelo que devera a douta sentença, na parte objeto de recurso ser revogada e em consequência substituída por outra na qual devera o arguido XXX Paulo ser condenado pela pratica de um crime de violência domestica agravado, p. e p. pelo art.º 152°, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CP, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. …”. * O Arg. XXX respondeu ao recurso, a fls. 382/384, nos seguintes termos: “…Vem o recurso em causa interposto da sentença proferida nos presentes autos, absolver o Arguido XXX, do crime de violência doméstica, p.e p. pelo artigo 152º nº 1, al b), nº 2, 4 e 5 do CP. Não se conformando com esta sentença, entendeu por bem a Digna Magistrada do Ministério Público levá-la à censura de Vªs Exªs, resultando do teor das conclusões, que pede a sua revogação e substituição pela condenação do arguido em pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período. Para tanto, fundamenta a Recorrente ter havido contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Ora, salvo melhor e mais douta opinião, parece-nos não assistir razão às motivações apresentadas pela Digna Magistrada do Ministério Público. Pois, apesar de o Arguido e a Queixosa terem vivido em condições análogas às dos cônjuges entre Setembro de 2012 e Março de 2013 e, “numa ocasião apelidou a queixosa de “porca de merda” e “atrasada mental” , a verdade é que por se considerar provado que numa ocasião tal facto tenha acontecido, não é motivo suficiente para que este possível crime de injúria, seja convertido em crime de violência doméstica, nos termos do artº 152º do CP. Mais, não se provou em momento algum, que tenha havido uma pluralidade de condutas contra a saúde física ou psíquica da Queixosa, por parte do Arguido, que convencesse o Tribunal a quo a condenar o Arguido no Crime de Violência Doméstica. Pelo contrário, de certa forma, até foi notória e bem, a contradição entre as testemunhas de acusação. Facilmente se deixou perceber que a queixosa padecia de doenças do foro psíquico, tal como documentos médicos juntos aos autos, que veio a tribunal, notoriamente para tentar uma vingança contra o arguido, por ter sido deixada por este. Como também, a segunda testemunha, filho da queixosa, convenientemente escolhida, mas mal instruída, deixou um testemunho confuso e dúbio. Ora, não é no Tribunal que se resolvem questões de vingança de relações amorosas mal sucedidas. Portanto, mais não podia a Meretíssima Juíz do Tribunal a quo, que esteve bem, mediante tais confusões, dúvidas e apenas uma situação pontual provada de injuria, condenar um arguido no crime de violência domestica, pois também isso sim ficou provado, que não houve qualquer crueldade ou gravidade por parte do arguido. Pelo exposto, salvo melhor e mais douta decisão e por não se vislumbrar qualquer censura à sentença recorrida, deve-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença, assim se fazendo JUSTIÇA. …”. * Neste tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto (fls. 394). * A decisão em crise fixou da seguinte forma a matéria de facto: “… * Ou seja, não obstante as lesões sofridas pela queixosa estarem documentadas nos autos, não é possível ao Tribunal afirmar com segurança e sem margem para duvidas que foram os arguidos os causadores das mesmas, pelo que são tais factos dados como não provados. …”. Da leitura dessas conclusões, e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes: I – Vício de contradição insanável entre a fundamentação de facto e a de direito; II - Preenchimento dos elementos do tipo da violência doméstica pela conduta do Recorrido. * Cumpre decidir. I –Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece do vício de contradição insanável entre a fundamentação de facto e a de direito. Antes do mais, importa ter em consideração que os vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, são de conhecimento oficioso e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[x]. O MP encontra essa contradição por, por um lado, se ter dado como provado que “…A partir de Dezembro de 2012 e até à separação do casal com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e à noite, o arguido apelidou a ofendida de ''porca de merda" e "atrasada mental” e que “Ao agir da forma descrita em 2.1.3. quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam. …” e, por outro lado, se ter referido, em sede de fundamentação de direito, que apenas “… numa ocasião apelidou a ofendida de "porca de merda" e "atrasada mental".”. Não podemos deixar de concordar. Na verdade, existe uma contradição insanável entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada, uma vez que o que ficou provado foi uma pluralidade não determinada de acções do Arg. e não uma só acção, como depois se considerou na discussão sobre o preenchimento dos elementos do tipo da violência doméstica. Quando se verifica este tipo de vício, o processo só deve ser devolvido à 1.ª Instância se o tribunal superior não dispuser dos elementos necessários à sua sanação (art.º 431º/a) do CPP). Ora, os autos dispõem dos elementos necessários à sanação deste vício, uma vez que a matéria de facto não foi impugnada, assim tendo que se considerar como assente, pelo que basta o recurso à mesma para sanar o vício. É o que faremos, indagando se tal matéria de facto permite concluir pelo preenchimento dos elementos do tipo da violência doméstica. Procede, pois, nesta parte, o recurso. * Importa consignar que não vislumbramos na decisão recorrida qualquer outro dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, nomeadamente qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou erro notório. * II – Entende o MP que a conduta do Recorrido preenche os elementos do tipo da violência doméstica. O tipo da violência doméstica pune o exercício de maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais sobre o cônjuge ou ex-cônjuge; pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite. Os maus-tratos previstos neste tipo são os actos que, pelo seu carácter violento sejam, por si só, ou conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física e psíquica da vítima[xii], ou, noutra formulação, são os actos que provocam “… lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral…”[xiii]. O bem jurídico que o tipo da violência doméstica visa proteger é a saúde[xiv], enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão[xv],[xvi], [xvii]. O dolo exigido, que, para alguns, é variável, em função da espécie de comportamento do agente, há-de sempre abarcar, pelo menos, o dolo de perigo da afectação da saúde, no sentido supra exposto e “… o conhecimento da relação de protecção-subordinação e da menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo.”[xviii]. Uma vez que este tipo abarca condutas que são também puníveis por outros tipos legais, neste caso, a injúria, torna-se necessário distinguir, com um mínimo de segurança, quais as condutas que integram um e outros. Para que integre a violência doméstica, a acção do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que, “… seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. …”[xix]. Ou, como se diz no acórdão do STJ de 14/11/1997[xx]: “…a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente.…”. Ou como afirma Plácido Conde Fernandes[xxi], “... só com a intensidade do desvalor da acção e do resultado que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. …” se preenche o conceito de maus-tratos pressuposto neste tipo legal. No presente caso, são relevantes os seguintes factos: durante a coabitação, que durou cerca de 6 meses, o Recorrido “A partir de Dezembro de 2012 e até à separação do casal, com uma frequência não concretamente apurada, no interior da residência e à noite, o arguido apelidou a ofendida de “porca de merda” e “atrasada mental” e “Ao agir da forma descrita em 2.1.3. quis o arguido XXX humilhar a ofendida dirigindo-lhe expressões que bem sabia que a rebaixavam.”. Assim, contrariamente ao que se considerou na sentença recorrida, o Recorrido, por diversas vezes (só pode ser esse o sentido da expressão “… com uma frequência não apurada …”), durante um período de cerca de 3 meses, dirigiu à Ofendida aquelas injúrias, que a rebaixaram (só pode ser esse o sentido da expressão “…expressões que bem sabia que a rebaixavam …”). Ora, dirigir, com frequência, as expressões “porca de merda” e “atrasada mental” à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica[xxii], p. e p. pelo art.º 152º/1-b) do CP[xxiii],. Porque a conduta do Recorrido ocorreu na residência comum, a conduta é agravada, nos termos do disposto no art.º 152º/2 do CP. Por isso, concordando com o MP, entendemos que no presente caso a conduta do Recorrido preenche os elementos do tipo da violência doméstica, pelo que o recurso é procedente. * Uma tal procedência, com a tipificação da conduta do Arg. como integrando a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b)/2 do CP, uma vez que o Recorrido vinha absolvido, implica a determinação da pena a aplicar. Importa, antes do mais, questionar sobre se caberá a este Tribunal proceder a tal determinação (nesta matéria, seguimos de muito perto a fundamentação do acórdão da RL, proferido no Recurso n.º 8.905/08-3ª Secção, relatado por Domingos Duarte.). A jurisprudência dos tribunais superiores, sobre tal matéria, não é unânime. A maioritária defende que a determinação da espécie e da medida concreta da pena a aplicar incumbe ao tribunal a quo, argumentando que só assim se pode cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição acolhido no art. 32º/1 da CRP[xxiv]. Outra, alheando-se desta tese, mesmo sem apontar qualquer outra, procede às operações necessárias para aquele fim. Outra, ainda, a que perfilhamos, entende que o direito ao recurso em matéria penal (duplo grau de jurisdição), inscrito constitucionalmente como uma das garantias de defesa, significa e impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um modelo de impugnação das decisões penais que possibilite, de modo efectivo, a reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e sobre a medida da pena. Assim, ao tribunal ad quem, ao reexaminar a causa, tal como lhe assiste a faculdade de passar de uma decisão condenatória para uma decisão absolutória, assistir-lhe-á a de passar de uma decisão absolutória para uma decisão condenatória e, neste último caso, dispondo dos necessários elementos, fixar a espécie e medida da pena. No sentido que perfilhamos, cf. a declaração de voto subscrita por Ernesto Nascimento, junta ao acórdão da RP de 05/03/2008, tirado no processo 0746465, in ZZZ.dgsi.pt, donde citamos: “O direito ao recurso em Processo Penal tem que ser entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição e, não, perspectivado, como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da 1ª decisão condenatória, ainda que proferida em via de recurso. Este entendimento não colide com o estatuído no artigo 32º, nº1 da Constituição da República, pois que a apreciação do caso por 2 tribunais de grau distinto, é de molde a tutelar de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas. De resto, referira-se que o artigo 2º do protocolo nº. 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República 22/90 de 27.9 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República 51/90 da mesma data, dispõe que : qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei; este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos das lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição. Esta tese foi defendida no Ac. Tribunal Constitucional 49/03, relatora Maria Beleza, que com a devida vénia vimos seguindo de perto, com transcrição. Tal como na 1ª instância o arguido teve a oportunidade de se defender, exercendo o direito ao contraditório, perante a acusação deduzida pelo MP, também, nesta instância de recurso, teve a mesma possibilidade de se defender, exercendo o mesmo direito do contraditório, porventura com mais 1 oportunidade (a do artigo 417º/2 C P Penal) perante a motivação do recorrente. Também na tese que fez vencimento se ponderou que ao determinar a espécie e medida da pena em via de recurso, se estaria a impedir o arguido de participar na escolha de algumas penas de substituição, que reclamam o seu consentimento. Não cremos relevante tal argumento, pois que o tribunal de recurso, para quem entenda que a sua opinião tem que ser dada pessoalmente, sempre podia determinar a comparência em audiência, ao abrigo do artigo 421º/1 C P Penal. Assim, cremos que no caso, fora o caso de falta de factos provados que permitam - com justeza e adequação - a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos artigos 70º e 71º C Penal, sempre o tribunal de recurso pode e deve, na consideração da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, condenar o agente, que vinha absolvido. No caso, esta falta de factos – elementos a ponderar naqueles termos, não se verifica, o que a ocorrer, justificaria, então se determinasse a reabertura da audiência, nos termos dos artigos 369º, 370º e 371º C P Penal.”. Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas. A concluir, refira-se o artigo 2º do protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 22/90, 27 de Setembro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 51/90, da mesma data), cujo texto é o seguinte: Artigo 2º 1 – Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei. 2 – Este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição. Como se vê, a parte final do nº 2 ressalva, precisamente, a hipótese que está em apreciação no presente recurso.» …”. Tal como na 1ª instância o Arg. teve a oportunidade de se defender, exercendo o direito ao contraditório, perante a acusação deduzida pelo MP, também, nesta instância de recurso, teve a mesma possibilidade de se defender. Com excepção das situações em que a factualidade provada não permita, com o rigor exigível, a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos art.ºs 70º e 71º do CP, o que a ocorrer, justificaria, então que se determinasse a reabertura da audiência, nos termos dos art.ºs 369º, 370º e 371º do CPP, o tribunal ad quem pode e deve, na consideração da verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, condenar o Arg., que vinha absolvido. Nos presentes autos existem elementos suficientes para se fazer a determinação da medida da pena. Passemos, pois, à determinação da pena a aplicar. O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b)/2 do CP, é punível com prisão de 2 a 5 anos. No presente caso, há que ter em conta a ilicitude que foi mediana; as circunstâncias do crime (tempo de vida em comum e expressões proferidas); a gravidade das consequências, que não se apurou que tenham sido elevadas; o dolo, que foi directo; a falta de confissão, que, no caso, implica a falta de arrependimento; a sua situação económica, laboral (encontra-se empregado) e familiar (vive com a mãe e tem um filho); a sua primariedade e a sua idade. Tendo em conta todos estes elementos, julgamos ajustada a pena de 2 anos de prisão. Sendo o Recorrido condenado numa pena de prisão inferior a 5 anos, importa apreciar a possibilidade da suspensão da execução da mesma. Quando à suspensão da execução da pena de prisão, seguimos a lição do Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pp. 342 e ss.: “… Pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (art.º 49.º-1) - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade» (art.º 48.º-1). Para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto. A lei torna deste modo claro que, na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração - na medida possível: supra § 355 ss. - em sede de medida da pena: com isto não deve dizer-se violada a proibição de dupla valoração. Não pode deixar de ser valorada para este efeito, v. g., a circunstância de o condenado por um crime relacionado com o consumo de álcool ou de estupefacientes se ter submetido com êxito posteriormente ao crime, mas anteriormente à condenação, a uma cura de desintoxicação (cf. de resto os arts. 41.º e ss. do DL n.º 15/9.1. de JAN22). § 519 A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência». Por isso, um prognóstico favorável fundante da suspensão não está excluído - embora se devam colocar-lhe exigências acrescidas - mesmo relativamente a agentes por convicção ou por decisão de consciência (nos casos, naturalmente. em que também estes últimos sejam puníveis). Mas já o está decerto naqueles outros casos em que o comportamento posterior ao crime, mas anterior à condenação, conduziria obrigatoriamente, se ocorresse durante o período de suspensão, à revogação desta (art. 51.º-1 e infra § 546). Por outro lado, a existência de condenação ou condenações anteriores não é impeditiva a priori da concessão da suspensão: mas compreende-se que o prognóstico favorável se torne, nestes casos, bem mais difícil e questionável - mesmo que os crimes em causa sejam de diferente natureza - e se exija para a concessão uma particular fundamentação (fundamentação, aliás, sempre necessária: intra § 523). § 520 Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (art. 48.º-2 in fine). Já determinámos (supra § 502) que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise. …”. Aliás, nesse sentido aponta a jurisprudência, que tem vindo a suspender a execução de penas de prisão em casos de violência doméstica praticados por acção e com dolo directo[xxvi], o que, em princípio, tornaria o prognóstico positivo mais difícil, sendo essa jurisprudência relevante[xxvii]. ***** Notifique. D.N.. ***** Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP). ***** Lisboa, 23/04/2015 ______________________ (João Abrunhosa) __________________________ (Maria do Carmo Ferreira) [xxv] A este respeito, porque sintetiza e expõe de forma exemplar a doutrina e a jurisprudência dominantes quanto à determinação das medidas das penas, citamos o Ac. do STJ de 09/12/1998, relatado pelo Sr. Conselheiro Leonardo Dias, in BMJ 482/77: “Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre e tanto quanto for possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa – a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos. A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda, realiza, eficazmente, aquela protecção. Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem, todavia, sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências de prevenção geral de integração. [Poderia objectar-se que esta concepção abre, perigosamente, caminho ao terror penal. Uma tal objecção, porém, ignoraria, para além do papel decisivo reservado à culpa, que, do que se trata, é do direito penal de um estado de direito social e democrático, onde quer a limitação do jus puniendi estatal, por efeito da missão de exclusiva protecção de bens jurídicos, àquele atribuída (a determinação do conceito material de bem jurídico capaz de se opor à vocação totalitária do Estado continua sendo uma das preocupações prioritárias da doutrina; entre nós Figueiredo Dias – que, como outros prestigiados autores, entende que na delimitação dos bens jurídicos carecidos de tutela penal haverá que tomar-se, como referência, a própria Lei Fundamental – propõe a seguinte definição: «unidade de aspectos ônticos e axiológicos, através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso», cfr. «Os novos rumos da política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43º, 1983, pag. 15) e os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer, da pena, uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal, acabe dirigida contra a sociedade. Depois, prevenção geral, no Estado de que falamos, não é a prevenção estritamente negativa ou de pura intimidação. Um direito penal democrático que, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, tem de, pela mesma razão, colocar a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Assim, subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, já se vê que a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, sim, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.] Ver ainda o Ac. do STJ de 29/05/2008, processo 08P1145, in www.dgsi.pt, relatado pelo Sr. Conselheiro Souto de Moura, do qual citamos: “ … É hoje entendimento uniforme deste S.T.J., bem como da doutrina, que a escolha e medida da pena constituem tarefas cuja sindicabilidade se tem que assegurar, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reacções penais legalmente previstas, numa aplicação do direito autêntica, e não num exercício do que possa ser apelidado, simplesmente, de “arte de julgar”. Tal não impede que, em sede de recurso de revista para este S.T.J., a controlabilidade da determinação da pena deva sofrer limites. Assim, podem ser apreciadas “a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais” (…) “E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada” (do Ac. deste S.T.J. e 5ª Secção, de 13/12/07, Pº 3292/07, relatado pelo Cons. Simas Santos. Cfr. também Figueiredo Dias in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 197). Importa então recordar os critérios a que deve obedecer a determinação da pena concreta. Assinale-se que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no art.º 40º do C. P., nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, quando tiver lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Quando pois o art.º 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art.º 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229). Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir. O nº 2 do art.º 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. …”.
[xxvii] Nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”. |