Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1351/2007-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEI ESTRANGEIRA
LEI APLICÁVEL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - No domínio dos processos de insolvência foi adoptado o Regulamento (CE) nº 1346/2000, de 29 de Maio de 2000, com o objectivo de “melhorar a eficácia e a eficiência dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços”, vinculativo e directamente aplicável nos Estados-Membros.
II – De acordo com o regulamento em questão, salvo disposição em contrário do próprio regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, designado por «Estado de abertura do processo (art. 4º).
III – Nos seus artigos 16º e 17º consagrou-se o falado reconhecimento automático ao estatuir que qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente, é reconhecida em todos os Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo, produzindo a decisão de abertura do processo, sem mais formalidades, em qualquer dos Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo.
IV – O direito interno não pode servir de obstáculo à vigência e aplicação do direito da União Europeia na ordem interna face ao reconhecimento da primazia deste sobre o direito interno. É o que resulta do estabelecido no artigo 8º nº 4 da Constituição. A primazia do direito da EU traduz-se na sua imunidade face ao sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade e da «legalidade reforçada».
V – A recusa por um Estado-Membro do reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro só pode ter lugar, à luz do disposto no artigo 26º do referido Regulamento, se o mesmo produzir efeitos “manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição”.
VI – A circunstância de, por força da decisão proferida ao abrigo da lei inglesa, ter ficado vedado à autora o recurso à jurisdição portuguesa para obter o reconhecimento do direito que se arroga não contende com a garantia constitucional de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, pois sempre poderá exercê-lo com observância do regime jurídico do Estado de abertura do processo de insolvência, não constituindo a maior dificuldade ou onerosidade que tal lhe poderá acarretar, só por si, fundamento susceptível de comover ou abalar os fundamentos da ordem jurídica portuguesa e accionar a excepção de reserva de ordem pública.
VII - De acordo com o art. 99º do CIRE, a compensação de créditos sobre a insolvência com contra-créditos da massa insolvente só é admissível, se o preenchimento dos pressupostos legais da compensação for anterior à data da declaração da insolvência (al. a)); se o crédito sobre a insolvência tiver preenchido antes do contra-crédito da massa os requisitos estabelecidos no artigo 847º do Código Civil (al. b)).
FG
Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
M, S.A., instaurou, em 21 de Setembro de 2005, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra M, Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização pelos danos resultantes do não cumprimento das obrigações emergentes de cinco contratos de distribuição ou concessão comercial exclusivos que haviam celebrado e que vieram a ser resolvidos com justa causa pela autora. Confessando dever à ré a quantia de € 322.398,89, declarou parcialmente compensado o seu crédito sobre a ré com o débito desta, pedindo que a mesma fosse condenada a pagar-lhe € 2.162.027,92, remanescente da indemnização global a que tem direito e, bem assim, os respectivos juros moratórios desde a data da citação. Mais pediu a condenação da ré a averbar a propriedade dos veículos que identificou a favor dos respectivos compradores finais, devendo a mesma abster-se ainda de ordenar ao B à C a execução das garantias bancárias.
Na contestação a ré invocou a inadmissibilidade da presente acção, alegando que foi instaurado em Inglaterra processo de insolvência transfronteiriça da ré, nos termos do Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho, do que decorre a aplicação da lei inglesa aos efeitos daquele processo, impedindo, no caso em apreço, a instauração da presente acção contra si. Mais alegou não poder operar a pretendida compensação de créditos, pugnando pela sua absolvição da instância.
Impugnou ainda a factualidade alegada pela autora, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Em reconvenção pediu a condenação da autora no pagamento de € 170.152,78, acrescidos de juros moratórios, e na restituição de 11 viaturas que lhe tinham sido entregues em consignação e a indemnizá-la dos prejuízos decorrentes da sua não entrega atempada.
Após a réplica e a tréplica, foi proferida decisão que absolveu a ré da instância com fundamento na inadmissibilidade do direito de acção e absolveu a autora da instância reconvencional por ser inadmissível o pedido reconvencional.

            Inconformadas, recorreram autora e ré.

            Na sua alegação a autora formulou as seguintes conclusões:
            «1°- E inaceitável que uma relação contratual nascida e desenvolvida há mais de 60 anos em Portugal, entre duas sociedades de direito português, sedeadas em território nacional, não possa ser objecto dum processo judicial aberto num tribunal português, por virtude de uma lei ordinária inglesa.
            2°- A decidida inadmissibilidade do direito de acção é tanto mais grave quanto é certo que as partes, nos cinco contratos escritos que integram a causa de pedir, convencionaram expressamente que esses contratos eram regulados pela lei portuguesa, concordaram submetê-los à jurisdição de Tribunais portugueses e elegeram o foro da comarca de Lisboa.
3°- Resulta dos factos alegados peia Autora que os contratos anexos à p.i. são iguais aos demais contratos firmados entre a Ré e os demais distribuidores autorizados M espalhados pelo país.
            4°- Qualquer distribuidor da Ré, e não apenas a Autora, tinha o direito de compensar os seus créditos com os contra-créditos da Ré, na hipótese de resolução do contrato de distribuidor autorizado fundada na cláusula 7.2, alíneas e) e f).
            5°- A Autora resolveu os cinco contratos referidos no art. 3° da p.i. em virtude de a Ré ter sido declarada insolvente, ter deixado de produzir os veículos e as peças das marcas M e ter cessado totalmente a sua actividade.
            6°- Ou seja, a A. resolveu os contratos com fundamento no convencionado nas alíneas a), d), e) e h) da dita cláusula 7.2.
            7°- A Ré previu e aceitou "ab initio", nos aludidos contratos, que se entrasse em insolvência assistia a qualquer seu distribuidor o direito de resolver o contrato de distribuição autorizada com justa causa e o direito de requerer a compensação dos seus créditos com os contra-créditos dela, Ré.
8°- Tudo isso está pactuado por escrito nas cláusulas 12.5, 12.7 e 7.2.
9°- Deste modo, o douto tribunal "a quo" não só fez tábua raza do princípio "pacta sunt servanda" (art.s 406° e ss do CO), como não apreciou nenhum desses factos.
10°- Assim como não apreciou nenhum dos factos que fundamentam o pedido formulado na alínea e) do pedido (condenação da Ré a averbar a propriedade das 4 viaturas cujo pagamento a Ré peticiona em sede de reconvenção).
11°- Nem apreciou os factos que servem de fundamento ao pedido formulado na alínea f) do pedido (condenação da Ré a abster-se de ordenar a execução de uma garantia caduca e outra que se destinava a garantir uma dívida que se encontra praticamente paga).
12°- Só depois de analisadas as cláusulas contratuais e depois de apreciados os factos alegados pela A./Reconvinda é possível fazer a respectiva subsunção jurídica-normativa.
13°- A avaliação de tais factos e cláusulas são absolutamente indispensáveis para a boa decisão da causa.
14°- Assim como os factos inerentes ao invocado abuso de direito. Com efeito, a Autora alega que seria duma injustiça gritante admitir-se o direito do "falido" a receber os seus créditos quando o dano por ele causado ao seu credor é manifestamente superior.
15°- Deste modo, e além do mais, o tribunal "a quo" não apreciou nenhum desses factos e cláusulas contratuais, razão pela qual deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, sendo assim, a douta sentença recorrida nula por omissão de pronúncia.
16°- Da aplicação do artigo 43 do "Insolvency Act" de 1986 e da decisão do tribunal inglês ao caso concreto, resulta a inadmissibilidade do direito da presente acção e, consequentemente, a infracção ao disposto na Constituição ou aos princípios nela consignados, nomeadamente, ao art. 20° que prevê o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e ao princípio da igualdade previsto no art. 13°.
            17°- Tal direito potestativo (de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) é reconhecido a todos (pessoas humanas e pessoas jurídicas) e tem como reverso o dever de prestar a cargo do Estado, dever que este cumpre através de tribunais, órgãos de soberania.
            18°- O direito de acesso à justiça consagrado no art. 20 da CRP situa-se num plano superior à norma ordinária inglesa que, alegadamente, impede a propositura de acções contra as "empresas filhas" espalhadas pelos vários Estados-Membros.
            19°- Ora, o cumprimento integral dessa norma ordinária inglesa e da decisão do tribunal inglês invocados pela "empresa-mãe", sociedade de direito inglês sedeada em Inglaterra, que detém a totalidade da sociedade Ré portuguesa e das demais "empresas filhas" espalhadas pelo espaço europeu, implicaria pôr em causa um valor fundamental do nosso ordenamento, consagrado constitucionalmente.
            20°- Assim, é certo e seguro que a aplicação do citado art. 43° da lei de insolvência inglesa de 1986 e a decisão do tribunal inglês resultam numa inconstitucionalidade que a Recorrente expressamente invoca nos termos e para os efeitos do disposto nos art.s 204° e 208° da CRP. Acresce que,
            21°- nomeadamente, à luz do disposto nos artigos 4° e 17° da Regulamento (CE) n.° 1346/2000, respeitante a insolvências transfronteiriças, o reconhecimento do processo de insolvência instaurado num determinado Estado-Membro pode não operar automaticamente noutro Estado-Membro.
            22°- Com efeito, sob a epígrafe "Ordem Pública" prescreve o art. 26° do Regulamento: "Qualquer Estado-Membro pode recusar o reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro ou execução de uma decisão proferida no âmbito de um processo dessa natureza, se esse reconhecimento ou execução produzir efeitos manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição"
23°- A lei inglesa além de contrariar normas e princípios constitucionalmente consagrados, também contraria normas imperativas e de ordem pública do direito material e adjectivo português.
            24°- À luz do preceituado nos art.s 89° e 102° do CIRE podem ser propostas acções declarativas e procedimentos cautelares durante a pendência dum processo de insolvência.
            25°- No direito interno institui-se, aliás, no art. 102° do CIRE, de forma imperativa e inovadora, um «princípio geral» em que perante a "recusa de cumprimento" de um contrato bilateral em curso à data da declaração de insolvência pelo administrador de falência, a outra parte fica constituída no direito de reclamar indemnização pelos prejuízos sofridos como crédito da insolvência.
            26°- E «Na falta de entendimento, competirá à contraparte suscitar a intervenção do tribunal, o que, por não existir regulamentação específica, parece só poder concretizar-se através de uma acção declarativa, que correrá por apenso, sendo do autor o "ónus da prova" » - cfr. Carvalho Fernandes/João Labareda, ob. cit., anot. n.° 6 ao art. 102°, pág. 394.
            27°- Mas, pelos vistos, nada disso sucede no direito de falências inglês!
            28°- A jurisdição inglesa não se rege pelo princípio da igualdade, uma vez que o direito inglês não permite a instauração de processos contra o insolvente, mas já admite que os administradores do insolvente venham cobrar judicialmente créditos noutro país para depois serem integrados na massa insolvente.
            29°- O direito invocado pela A. apenas se torna efectivo por meio de acção proposta em território português. De resto, a propositura da acção em Inglaterra, ainda que fosse admissível face ao direito inglês, constituiria para a Autora dificuldade apreciável e onerosa. Tal circunstancialismo é factor de atribuição de competência internacional de tribunais portugueses nos termos da al. d) do n.° 1 do art. 65° do CPC.
            30°- Por sua vez, o art. 22° do CC consagra a reserva de ordem pública que é uma excepção à aplicação da lei estrangeira normalmente competente, aplicando-se a lei do estado do foro. Segundo a reserva de ordem pública não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira quando a sua aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais do Estado Português, como sucede no presente caso.
31°- Do exposto, resulta que quer à luz do próprio Regulamento Comunitário de processos de insolvências transfronteiriços, quer à luz do direito material e adjectivo interno, seria de afastar a lei da insolvência inglesa por violação da ordem pública.
            32°- Entende, porém, a A. que nem sequer é necessário deitar mão do previsto art. 22° do CC, porquanto não só o direito português e o Tribunal de Lisboa foram convencionados pelas partes nos contratos, como também a compensação foi por elas prevista desde a primeira hora.
            33°- E, tais convenções de jurisdição e foro competente, de resolução e compensação, são plenamente válidas e eficazes e, advirta-se, nunca foram sequer postas em causa pela Ré na sua contestação.
            34°- Mas ainda que seja aplicável ao caso concreto o Regulamento Comunitário em questão, ainda assim seria de admitir a presente acção e a compensação nela peticionada pela Autora ao abrigo do art. 6° do Regulamento.
            35°- O qual remete para a lei portuguesa.
            36°- Ora, de acordo com o direito português aplicam-se aos contratos de distribuição autorizada celebrados entre as partes, as regras definidas pelos próprios contraentes desde que lícitas, os princípios de direito dos contratos e do negócio jurídico, o regime das cláusulas contratuais gerais, a legislação da defesa da concorrência, as regras dos contratos mais próximos, no caso, as regras do contrato de agência, que se aplicarão por analogia.
            37°- Ora, conforme se alegou na p.i. e na réplica, o direito à compensação foi regulado na cláusula 12.7 dos cinco contratos anexos à p.i..
            38°- Mas ainda que não existissem regras definidas pelos próprios contraentes para apreciar a invocada compensação, seria então aplicável o art. 847° do CC ou o art. 99° do CIRE.
            39°- Ora, conforme resulta do acima alegado nas pág.s 21 a 24 destas alegações, 85% do valor dos créditos reclamados pela Ré/Reconvinte, venceram-se depois de 19 de Setembro de 2005, ou seja, são posteriores ao crédito que a A./Reconvinda se arroga neste processo emergente da resolução dos contratos.
            40°- À luz do art. 6° do Regulamento, do pactuado por escrito entre as partes e do regime jurídico da compensação consagrado no direito português, a compensação invocada pela Autora/Reconvinda é plenamente admissível, pelo que a douta sentença incorre em erro de julgamento na verificação dos pressupostos legais da compensação.
41°- A douta sentença recorrida violou, entre outros, os art.s 405°, 406°, 847° e 22° do CC, o art. 65°, n.° 1 al.d) do CPC, o art. 89° e 102° do CIRE, bem assim como acolheu errada interpretação e aplicação, nomeadamente, dos art.s 4°, 6°, 17° e 26° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000».
Nestes termos, deve revogar-se o despacho saneador-sentença e ser admitido o direito a acção, sob pena de inconstitucionalidade resultante da aplicação da lei inglesa e da decisão do tribunal inglês, o que expressamente se invoca nos termos e para os efeitos dos art.s 20°, 13°, 204° e 280° todos da CRP, e/ou ofensa da reserva de ordem pública prevista no art. 26° do Regulamento CE n.° 1346/2000. E, em consequência, ordenar-se o prosseguimento dos autos para produção de prova e julgamento da presente acção.»

            A ré deduziu na respectiva alegação a seguinte síntese conclusiva:
«1. O Tribunal a quo decidiu pela inadmissibilidade do pedido reconvencional deduzido pela ora Recorrente por entender que este se encontrava numa relação de dependência com o pedido formulado pela ora Recorrida.
2. Não existindo qualquer dependência in casu entre os pedidos formulados, o Tribunal a quo deveria ter apreciado o pedido reconvencional regularmente deduzido pela ora Recorrente.
3. Ao decidir não conhecer dos pedidos reconvencionais, o Tribunal Recorrido violou o disposto no art. 274º., n.° 6, do CPC.
            Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão do Tribunal a quo no que tange ao pedido reconvencional e substituindo-a por outra que admita tal pedido e condene a M na sua satisfação».

            Nas respectivas contra alegações autora e ré defenderam a bondade das suas posições.
            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            2. Fundamentos:
            2.1. De facto:
            Para a decisão dos recursos releva a seguinte dinâmica processual:
a) Em 15 de Abril de 2005 foi apresentado no High Court of Justice, Chancery Division, Birmingham District Registry, pedido de insolvência da aqui ré M Veículos e Peças, Lda., ao abrigo do artigo 1°, n.° 1 e 3°, n.° 1 do Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho;
b) em 18 de Abril de 2005, foi proferida decisão nesse processo, tendo sido nomeados os administradores de insolvência;
c) esta decisão foi publicada no Diário da Republica, IIIª série, de 3 de Junho de 2005;
d) e a nomeação dos administradores de insolvência foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Cascais através da Ap. 08/25/050427 (doc. fls. 195 a 203);
e) no acordo celebrado entre a autora e a ré foi, além do mais estipulado o seguinte:
7.2. O Distribuidor pode terminar imediatamente este Contrato notificando a Companhia (…):
(e) se a Companhia ou alguma das suas Sócias for liquidada ou dissolvida (…) ou tenha sido nomeado um fiel depositário, liquidatário, gestor judicial ou qualquer funcionário semelhante para a totalidade ou parte substancial da empresa ou bens da Companhia ou de qualquer das suas Sócias ou tenha sido nomeado um gestor judicial relativamente à companhia ou alguma das suas sócias;
(…)
12.5 Este Contrato será regulado pela Lei Portuguesa. As partes concordam submetê-lo à jurisdição dos Tribunais Portugueses sendo o foro o da Comarca de Lisboa.
(…)
12.7 Sem prejuízo de quaisquer direitos que as partes tenham por lei e não obstante o previsto em qualquer outro contrato entre as partes (…), se o Distribuidor vier a ter o direito de terminar este Contrato de acordo com a Cláusula 7.2 (d) (…) o distribuidor terá direito, através de notificação por escrito dirigida à Companhia (…), de requerer que haja uma compensação entre o conjunto dos valores devidos pelo Distribuidor às Partes Relevantes na data efectiva de tal notificação sobre qualquer conta que seja e o conjunto dos valores efectivamente devidos e pagáveis por todas ou qualquer das Partes relevantes ao Distribuidor sobre qualquer conta que seja nessa data”
f) em 20 de Maio de 2005 os credores da ré, entre os quais a autora, foram convocados para uma assembleia de credores a realizar no dia 7 de Julho de 2005, em Oeiras, Lisboa;
g) a autora escreveu à ré carta datada de 19 de Setembro de 2005, cuja cópia se encontra a fls.164-167, na qual escreveu, além do mais o seguinte: “…face à impossibilidade definitiva e absoluta de execução dos contratos devido ao vosso colapso financeiro e, nomeadamente, ao abrigo das alíneas a), b), e) e h) da cláusula 7.2 dos contratos de «Distribuidor Autorizado para a Venda de Veículos e Peças e de Reparador Autorizado”, vimos por este meio rescindir os mesmos com justa causa e com efeitos imediatos.”
h) a presente acção foi intentada em 21 de Setembro de 2005.

2.2 De direito:
Do recurso da autora:
Face às conclusões da respectiva alegação, que delimitam o seu objecto, o recurso da autora apresenta, basicamente, como questões a decidir saber:
- se, à luz do disposto nos artigos 4º e 17º do Regulamento (CE) nº 1346/2000, de 29 de Maio de 2000, relativo a processos de insolvência, o reconhecimento do processo de insolvência instaurado num Estado-Membro pode operar automaticamente noutro Estado-Membro;
- se a aplicação da lei de insolvência (inglesa) do Estado-Membro que a decretou pode envolver inconstitucionalidade por violação de princípios constitucionais nacionais;
- se, face ao Regulamento referido e ao direito interno, é de afastar a lei da insolvência estrangeira (inglesa) por dela resultar violação da reserva de ordem pública (artigo 26º do Regulamento e 22º do Código Civil) e fraude à lei;
- se ocorrem os requisitos exigidos para a compensação de créditos.

2.2.1. Considerando-se “necessário e oportuno que as disposições em matéria de competência, reconhecimento e direito aplicável” no domínio dos processos de insolvência constem de um acto normativo da Comunidade, vinculativo e directamente aplicável nos Estados-Membros, foi adoptado o Regulamento (CE) nº 1346/2000, de 29 de Maio de 2000, com o objectivo de “melhorar a eficácia e a eficiência dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços”.
Nesta linha o regulamento em questão, obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável nos Estados-Membros em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, estabeleceu no seu artigo 4º que, salvo disposição em contrário do próprio regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, designado por «Estado de abertura do processo».
E no seus artigos 16º e 17º consagrou o falado reconhecimento automático ao estatuir que qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente, é reconhecida em todos os Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo, produzindo a decisão de abertura do processo, sem mais formalidades, em qualquer dos Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo.
No caso em apreço, foi instaurado em Inglaterra processo de insolvência da ré M Lda., ao abrigo dos artigos 1°, n.° 1 e 3°, n.° 1 do referido Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho. O pedido de insolvência foi apresentado no High Court of Justice, Chancery Division, Birmingham District Registry, em 15 de Abril de 2005. Nesse processo foi proferida decisão em 18 de Abril de 2005, tendo sido nomeados os administradores de insolvência, decisão que foi publicitada no Diário da República, IIIª Série, de 3 de Junho de 2005, e levada ao registo comercial.
A lei inglesa, por ser a do «Estado de abertura do processo», é, assim, a que rege quanto aos efeitos do processo de insolvência nas acções individuais, como decorre do artigo 4.°, n.° 2, alínea f) do Regulamento.
Ora, o High Court of Justice, Chancery Division, Birmingham District Registry, por decisão datada de 11 de Maio de 2005, cuja cópia se encontra junta a fls. 346, determinou a inadmissibilidade da instauração de processos contra a aqui ré ao determinar, de acordo com o disposto no artigo 43(6)A do “Insolvency Act” de 1986, "No legal process (including legal proceedings, execution, distress and diligente) may be instituted or continued against the Company or the property of the Company, except with the consent of the administrators or leave of the English Court" .
O que significa, por efeito do reconhecimento automático consagrado no Regulamento, que, em face do direito inglês e da decisão proferida ao seu abrigo, a acção da autora terá, em princípio, de correr perante o tribunal do processo de insolvência e de acordo com os trâmites da lei inglesa.
 
            2.2.2. Argumenta, porém, a autora que a lei de insolvência inglesa e a decisão do tribunal inglês resultam na violação de princípios constitucionais nacionais.
            Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira[1], o direito interno não pode servir de obstáculo à vigência e aplicação do direito da União Europeia na ordem interna face ao reconhecimento da primazia deste sobre o direito interno. É o que resulta do estabelecido no artigo 8º nº 4 da Constituição.
            Segundo estes constitucionalistas, “isso quer dizer desde logo que o direito da EU não pode ser declarado inconstitucional nem desaplicado por alegada inconstitucionalidade ou por qualquer outro tipo de desconformidade com normas de direito interno (leis orgânica, etc.) Nem o Tribunal Constitucional nem os demais tribunais podem julgar sobre a conformidade das suas normas com a Constituição ou outro instrumento de direito interno. Sob esse ponto de vista, a primazia do direito da EU traduz-se na sua imunidade face ao sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade e da «legalidade reforçada». A norma do art. 8º-4 implica portanto uma derrogação das normas constitucionais de garantia da Constituição em relação ao direito comunitário, não valendo para este a norma do art. 277º-1 da CRP, segundo a qual «são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados»”[2].
            Sendo assim, posto que outro entendimento se afigura incompatível com o texto constitucional, e decorrendo a aplicação do direito inglês, no caso, exclusivamente do regime instituído pelo citado Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho, não é possível sindicar a conformidade constitucional das normas de direito inglês sob pena de, ao fazê-lo, se escrutinar, ainda que indirectamente, a constitucionalidade do direito da União Europeia.
Logo, não faz sentido pretender dar prevalência ao convencionado pelas partes nos contratos quanto à jurisdição (portuguesa) e ao foro (comarca de Lisboa), uma vez que também tal convenção tem de ceder perante o regime estabelecido no Regulamento em questão.
Nem pode, pelas razões apontadas, sobrepor-se a aplicação das normas de direito interno que integram o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), em particular os artigos 89º e 102º, que permitem a propositura de acções declarativas e procedimentos cautelares durante a pendência dum processo de insolvência,
           
2.2.3. E não se verifica, ao contrário do que é sustentado pela autora, violação da reserva de ordem pública.
            Com efeito, a recusa por um Estado-Membro do reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro só pode ter lugar, à luz do disposto no artigo 26º do referido Regulamento, se o mesmo produzir efeitos “manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição”, ou seja, será sempre preciso que comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna[3].
            Acontece que a circunstância de, por força da decisão proferida ao abrigo da lei inglesa, ter ficado vedado à autora o recurso à jurisdição portuguesa para obter o reconhecimento do direito que se arroga sobre a ré não contende com a garantia constitucional de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, pois sempre poderá exercê-lo com observância do regime jurídico do Estado de abertura do processo de insolvência, não constituindo a maior dificuldade ou onerosidade que tal lhe poderá acarretar, só por si, fundamento susceptível de comover ou abalar os fundamentos da ordem jurídica portuguesa e accionar a excepção de reserva de ordem pública, quer a estabelecida no citado artigo 26º do regulamento, quer a consagrada no artigo 22º do Código Civil, também invocada pela autora.
Só uma violação inaceitável da ordem jurídica portuguesa permitiria, no caso vertente, o recurso à invocada cláusula de ordem pública.
            E a determinação da jurisdição competente para a abertura do processo de insolvência, não integra, no caso, fraude à lei, a qual só poderia configurar-se desde que ilidida, quanto à ré, a presunção de que “o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária” contida no artigo 3º nº 1 do falado Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho.
Não tendo a autora ilidido tal presunção, como era seu ónus, por força do disposto no artigo 344º nº 1 do Código Civil, há que reconhecer a competência dos tribunais ingleses e, bem assim, a aplicabilidade da lei inglesa, pelo que vedado está à autora exercer o seu direito na jurisdição portuguesa.

            2.2.4. Aqui chegados e no que respeita à compensação, sufraga-se por inteiro a sentença recorrida.
Com efeito, estando esta contratualmente prevista e dispondo o artigo 6º do Regulamento que “A abertura do processo de insolvência não afecta o direito de um credor a invocar a compensação do seu crédito com o crédito do devedor, desde que seja permitida pela lei aplicável ao crédito do devedor insolvente”, há que concluir que a lei aplicável ao crédito do devedor insolvente é a portuguesa, concretamente, o estabelecido no artigo 99º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, uma vez que a compensação surge no âmbito de um processo de insolvência e por causa desta, pelo que só pode fazer-se apelo ao regime legal instituído pelo Código Civil, em particular no artigo 847º, na medida em que aquele preceito para este remeta.
Ora, de acordo com o citado artigo 99º a compensação de créditos sobre a insolvência com contra-créditos da massa insolvente só é admissível: se o preenchimento dos pressupostos legais da compensação for anterior à data da declaração da insolvência (al. a)); se o crédito sobre a insolvência tiver preenchido antes do contra-crédito da massa os requisitos estabelecidos no artigo 847º do Código Civil (al. b)).
Como se escreveu na decisão recorrida, “O crédito que a A. reclama ter sobre a R. fundamenta-se na resolução com justa causa dos contratos que havia celebrado com a R.. Ora, a A. resolveu esses contratos com efeitos a partir de 19 de Setembro de 2005, pelo que só após esta data se tornou exigível o crédito que ora reclama. Por sua vez, o processo de insolvência foi apresentado no High Court of justice em 15 de Abril de 2005. Acresce que, a verificação dos pressupostos estabelecidos no art. 847° do CC se deu em primeiro lugar relativamente ao crédito da R. sobre a A., na medida em que este crédito emerge de situações ocorridas na pendência da relação contratual das partes e anteriores à resolução dos contratos”.
Não se verifica, por conseguinte, qualquer dos requisitos enunciados para que possa operar a compensação.

Uma nota final apenas para referir que a absolvição da ré da instância, que a decisão recorrida fundou na inadamissibilidade do direito de acção da autora, deriva da falta de jurisdição do tribunais portugueses geradora da incompetência absoluta dos mesmos (artigo 101º do Código de Processo Civil).
Improcedem, pois, as conclusões da alegação da autora na totalidade.

Do recurso da ré:
Neste recurso está essencialmente em causa saber se a reconvenção deduzida pela ré é processualmente admissível.
Considerou-se na decisão recorrida que o pedido reconvencional se encontrava numa relação de dependência do pedido formulado pela autora, não tendo, por tal razão, sido admitido.
A reconvenção é pacificamente entendida como uma contra-acção deduzida pelo réu e que se cruza com a proposta pelo autor, cuja admissibilidade depende de factores de conexão[4] que a lei enuncia no artigo 274º do Código de Processo Civil, mas que goza de autonomia face à inadmissibilidade ou improcedência da acção.
Assim, dispõe o nº 6 daquele preceito que “a improcedência da acção e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor”.
Compulsados os articulados das partes, em particular a petição inicial e a contestação, deles se extrai que a reconvenção foi deduzida tomando por base a declaração de compensação da autora entre o seu alegado crédito sobre a ré e o contra-crédito desta sobre aquela (cfr. artigos 192º a 201º da petição inicial e 114º e seguintes da contestação).
O reconhecimento do direito de crédito da ré pela autora, de montante alegadamente inferior ao desta, surgiu unicamente num quadro de extinção de obrigações recíprocas pela via da compensação parcial de créditos.
Existe, por conseguinte, uma relação de dependência entre o pedido reconvencional e o pedido deduzido pela autora na acção integradora da causa de exclusão da apreciação do pedido reconvencional prevista naquele preceito face sorte da acção[5].
Improcedem, igualmente, as conclusões da alegação da ré.

3. Decisão:
Termos em que se acorda em negar provimento aos agravos e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelas agravantes.
29 de Maio de 2008
(Fernanda Isabel Pereira)
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
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[1] In Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª ed. Revista, Coimbra Editora, pág. 270.
[2] Loc. cit.
[3] Batista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1974, pág. 263.
[4] Cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 1º, Coimbra Editora, pág. 488.
[5] Cfr. neste sentido Lebre de Freitas, ob. cit, pág. 526.