Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1454/09.5TVLSB.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: DIREITO DE OPINIÃO
DIREITO À RESERVA E INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
DEVERES DE SIGILO E RESERVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Pretendendo o autor, através dele, expor a sua visão de determinados factos, respondendo a ataques ao seu brio e honorabilidade, tem de se considerar a publicação de um livro como traduzindo legítimo exercício do direito de opinião.
-Deve entender-se a multiplicação de entrevistas e intervenções, nos órgãos de comunicação social, como voluntária limitação do direito à reserva e intimidade da vida privada.
-Não subsistem os deveres de sigilo e reserva, e consequente limitação ao exercício do direito à opinião, relativamente a factos já tornados públicos pela autoridade judiciária, e amplamente debatidos na comunicação social.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:       Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório.


1.K..., G..., M..., S... e A..., os 3 últimos menores, representados por seus pais, 1º e 2º AA., vieram propor, contra G..., G... SA, V... SA, e T... SA, acções seguindo forma ordinária, posteriormente apensadas e distribuídas à 1ª Vara Cível de Lisboa, pedindo a condenação do 1º R. a pagar aos AA. a quantia total de € 1.200.000, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, a título de indemnização por danos morais, decorrentes da publicação pelo 1º R., em livro e DVD, da sua versão dos factos relativos ao desaparecimento da menor, M... , ora 3ª A. e, bem assim, a proibição da venda, edição ou divulgação, por qualquer dos RR., do livro e DVD em causa.

Contestaram todos os RR., impugnando a responsabilidade que lhes é imputada - concluindo pela improcedência da acção.

Efectuado julgamento, foi proferida sentença, na qual se considerou a acção parcialmente procedente, condenando-se o 1º R. a pagar a cada um dos 1º e 2º AA. a quantia de € 250.000, acrescida de juros legais, e proibindo-se os 1º, 2ª e 3ª RR. de proceder à venda, execução de novas edições e cedência de direitos de autor relativos ao livro e DVD em causa - absolvendo-se esses RR. do demais peticionado e a 4ª R. da totalidade do pedido.

Inconformados, vieram os 1º, 2ª e 3ª RR. interpor recursos de apelação, cujas alegações terminaram com a formulação das seguintes conclusões :

R. G...
-O livro, documentário e entrevista em causa nos presentes autos têm como principal motivação a defesa, por parte do R. G..., da sua honra pessoal e profissional.
-A escrita e publicação do livro, bem como o documentário e entrevista referidos, estão ao abrigo dos direitos constitucionalmente garantidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e pela Constituição da República Portuguesa, designadamente nos seus arts. 37º e 38º.
-Direitos esses que, de forma alguma, poderão ser afastados através da invocação de quaisquer obrigações especiais de reserva atribuídas ao apelante, só porque foi Inspector da Polícia Judiciária, como é feito na decisão recorrida.
-O respectivo conteúdo não ofende nenhum dos direitos fundamentais dos AA., quer no que respeita à reserva da sua vida privada, nos termos e para os efeitos dos arts. 80º e 81º do C.Civil, na medida em que foram eles próprios quem, voluntariamente, limitou/afastou esse direito, ao se terem multiplicado em entrevistas e intervenções nos órgãos de comunicação social.
-Quer, da mesma forma, relativamente à sua imagem e bom nome, ao colocarem o caso na praça pública e dando-lhe notoriedade a nível mundial, abrindo, assim, todas as portas para todas as opiniões, mesmo àquelas que lhes sejam adversas.
-Quer, ainda, no respeitante a quaisquer garantias de usufruírem do processo penal, nomeadamente a uma investigação justa e ao direito à liberdade e segurança, na medida em que o conteúdo do livro, documentário e entrevista em causa descrevem os factos constantes da investigação.
-Factos esses, aliás, postos à disposição do público em geral pela própria Procuradoria-Geral da República, que determinou a criação de uma cópia digital do processo de inquérito, com ressalva de elementos sujeitos a sigilo absoluto, e a sua entrega, sob requerimento, a diversas pessoas, nomeadamente jornalistas, o que ocorreu.
-Tendo o conteúdo de tal cópia digital sido divulgado, designadamente através da Internet e conhecido, comentado e discutido pública e universalmente.
-Não existe, por isso, qualquer dever de reserva que possa ser imposto ao R. sobre factos que foram divulgados e tornados públicos, designadamente todo o processo de inquérito.
-Inexistindo esse dever de reserva, a liberdade de expressão do R. prepondera e prevalece sobre os invocados direitos dos apelados, tal como a sentença considerou até ter introduzido aquele inusitado dever de reserva.
-A actuação do R., ora em causa, não é, assim, ilícita, nos termos e para os efeitos do art. 4830 do C.Civil, não podendo ele, consequentemente, ser condenado a pagar qualquer indemnização e devendo ser inteiramente absolvido do pedido formulado pelos AA.
-Nem, tampouco, impedido de publicar, vender e divulgar o livro e o DVD em causa.
-Sendo de notar que, nos termos da mesma norma, para além da ilicitude, que não se verifica, para sustentar o pedido de indemnização cível, seria também necessária prova de nexo de causalidade entre o comportamento do R. e danos, dignos de nota, sofridos pelos AA., o que, se atentarmos às respostas dadas aos arts. 11 a 16 da base instrutória, bem como à respectiva motivação, está totalmente afastada.
-Devendo, ainda, tomar-se em linha de conta que as afirmações constantes desses artigos se afiguram mais como conclusões e não como factos a serem levados a uma base instrutória.
-Conclusões essas que, de forma alguma, se encontram alicerçadas em qualquer factualidade, quer constante da mesma base, quer vertida nos articulados dos AA.
-Para o caso, porém, de, por absurdo, se considerarem como tal (danos de facto alegados, dignos de protecção e de algum modo causados pelo livro e pelo DVD) os constantes dos arts 13ºa 15ºda base instrutória - nada mais a título de danos foi dado como provado - diga-se que os mesmos não são verdadeiros.
-Para se aferir dessa falsidade, e na medida em que o ora apelante entende que infirmam tais "factos", bastará a reapreciação da prova gravada, ou seja, o depoimento da testemunha M..., o depoimento da testemunha A... e o depoimento da testemunha A...
-Depoimentos esses que evidenciam que, já antes da publicação do livro e do documentário em causa, circulavam publicamente, com o pleno conhecimento dos AA., designadamente na Internet, teorias e teses idênticas às do R.
-Pelo que, a serem verdadeiros os sentimentos dados como provados na matéria factual ora em causa, sejam eles de raiva, desespero, angústia, mal-estar ou preocupação, nomeadamente quanto ao que os filhos possam vir a pensar, a verdade é que as razões para os mesmos já existiam antes de qualquer intervenção do R., ora apelante.
-O mesmo se podendo afirmar no que a insónias e falta de apetite respeita.
-Devendo o Tribunal ter em linha de conta que os depoentes são todos testemunhas próximas dos AA. (familiar, psicólogo e advogado) e que, notoriamente, nas suas declarações, acabam sempre por tentar desvalorizar as teses anteriores ao livro e ao documentário e, naturalmente, sobrevalorizar o impacto destes no estado de espírito dos AA.
-Especialmente em relação à testemunha M..., que estava encarregada de acompanhar os AA., após o desaparecimento da menor M..., na divulgação de campanhas e monitorização de alguns sites e informação veiculada via Internet.
-Testemunha essa que, em sede de análise sumária e crítica dos principais depoimentos testemunhais, foi desacreditada pelo Tribunal (e bem) por se fazer acompanhar por notas manuscritas onde surgem ordenados, numa sequência cronológica quase perfeita, os tópicos de respostas às perguntas que lhe foram feitas na audiência final.
-Mas cujas declarações, nesta sede, quando aceita, evidentemente contrariada, que já anteriormente ao livro e ao documentário circulavam as teses adversas ao casal M... - contra o R./apelante - devem, pelo contrário, ser especialmente tidas em conta.

-Tudo isto sem prejuízo de se poder afirmar não se compreender o porquê de relativamente a estes factos, ora impugnados, o Tribunal não ter já na sentença recorrida, optado por dá-los como não provados, quando, como se pode ver da motivação relativa à resposta ao art. 13º da base instrutória, expressamente conduiu: "Art. 13º- A resposta à matéria dos arts. 12º e 13º não pode alhear-se da asserção (que se julga elementar a partir das regras da experiência comum) que mais do que qualquer teoria ou opinião sobre as causas do desaparecimento de M... B... M... é o facto do seu desaparecimento que domina, em efeitos negativos, o estado emocional/ psicológico dos AA. seus pais. Esse estado emocional negativo é pré-existente ao livro, ao documentário e à entrevista versadas na acção e não deve confundir-se com as consequências psicológicas específicas desses concretos eventos”.
-Assim sendo, ao decidir no sentido que decidiu, a sentença recorrida incorreu em flagrante inconstitucionalidade, por violação substantiva do disposto no art. 37º da CRP e no art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem contrariando frontalmente a jurisprudência dominante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre esse preceito;
-Não se mostrando preenchidos os requisitos às condenações em causa, quer quanto à existência e concretização de quaisquer direitos dos apelados quer quanto à sua lesão séria e/ou ameaça de lesão que, mesmo que existissem - e não existem - não se sobreporiam nunca ao direito opinião e de liberdade de expressão do apelante.
-Mais viola a decisão recorrida o art. 483º do C.Civil, na medida em que da actuação do apelante não resultaram quaisquer danos para os apelados.
-Termos em que deve ser revogada a sentença recorrida, julgando-se totalmente improcedente, por não provada, a acção, com a consequente absolvição do R. relativamente a todos os pedidos contra si formulados, reconhecendo-se-lhe o seu constitucional direito à opinião e a sua liberdade de expressão.

     RR. G... SA, e  V... SA.

-Estamos num Estado de direito democrático, baseado no pluralismo de expressão, que assegura a liberdade de pensamento e a sua livre divulgação, para além de devermos todos contribuir para o enriquecimento da cultura, pela publicação de livros e documentários.
-Indiscutível a notoriedade e a fama que os requerentes alcançaram em Portugal e no mundo, não podem estes permitir que os órgãos de comunicação social lhe façam entrevistas, até na intimidade do seu lar, se tal lhes é favorável, e depois proibir a publicação de livros ou comentários até, sobre factos públicos, quando alegadamente estas lhe podem ser desfavoráveis.
-Assim, a esfera da vida privada dos requerentes, quer pela sua notoriedade, quer por sua opção, não pode deixar de se considerar reduzida, nomeadamente para os termos e efeitos do disposto no nº 2 do art. 80º do CC.
- Os presentes autos são constituídos por duas acções autónomas: uma acção declarativa de condenação intentada contra o R. G... pedindo, nomeadamente, a condenação no pagamento aos AA. de uma indemnização no valor de € 1.200.000; e uma acção apensa em que, baseando-se nos mesmos factos e fundamentos, os AA. peticionaram que diversos RR. fossem condenados nas condutas mencionadas sob os pontos I a VII da sentença.
-A sentença recorrida considera relevante analisar se o livro escrito pelo co-R. G... o documentário e a entrevista são ilícitos/antijurídicos nos termos do art. 484º do CC se houve danos, qual o montante da sua indemnização e se os pedidos formulados na acção apensa são adequados à remoção dos efeitos ilícitos cometidos.
-As recorrentes consideram que não lhes cabe assegurar a defesa do co-R. G..., mas a forma como está construída a sentença a isso as obriga.
-O autor do livro "M...", o co-R. G... foi investigador no processo de desaparecimento de M..., tendo sido objecto por parte dos recorridos de ataques pessoais e profissionais, na imprensa nacional e estrangeira.
-Pelo que o livro deve ser analisado também como o exercício legítimo do co-R. G... à defesa da honra e do seu bom nome que tinha sido ofendido pelos recorridos.
-O ponto 43 dos factos provados, da sentença recorrida, refere a declaração feita pela recorrente VCF: "O mistério persiste, o ex-inspector acredita que um dia se saberá a verdade. Por enquanto só sabemos que no dia 3 de Maio de 2007, M... desapareceu na Praia .... Tinha 3 anos de idade e era uma criança feliz." .
-A sentença recorrida analisa os deveres de reserva a que um investigador está obrigado, mas estes só existem para os funcionários em serviço, o que não era o caso do co-R. G....
-Mas sem prescindir, a violação do dever de reserva não é apta a ofender o bom nome e reputação dos recorridos, pois o bem jurídico que protege é a administração da justiça.
-A sentença recorrida consignou que na forma apontada de resolução do conflito entre direitos, revela-se a ilicitude da conduta do co-R. G..., para os efeitos do disposto no art. 484º do CC, o que não colhe.
-Nos termos do disposto no art. 334º do CC, só é ilegítimo o exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites da boa-fé, o que não foi o caso.
-E a colisão de direitos deve ser resolvida de acordo com os pressupostos previstos no art. 335º do CC e não se pode, através da sua resolução, aferir a ilicitude de uma conduta.
-Pelo que a ilicitude de qualquer facto praticado pelo co-R. G... não foi efectivamente conhecida na sentença proferida, o que a fere de nulidade, nos termos da al. d) do nº1 do art. 615º do CPC.
-Também o mesmo se verifica com os demais pressupostos enumerados no art. 483º do CC, que não foram analisados no que concerne ao co-R. G..., e muito menos foi analisado o nexo de causalidade entre as declarações preferidas pelo co-R. G... no livro e no documentário e os supostos danos sofridos pelos recorridos, até porque todos eles foram dispersos no tempo.
-Não foi ponderado se os supostos danos sofridos pelos recorridos resultaram directa e necessariamente das declarações preferidas pelo co-R. G... no livro e no documentário e não por causa dos factos neles relatados, ou seja, pelo desaparecimento de M..., por terem sido constituídos arguidos e objecto de notícias desfavoráveis por tal facto, nacional e internacionalmente.
-Sendo que estes factos são públicos e notórios, pelo que não carecem de alegação ou prova, nos termos do disposto no art. 412º, nº1, do CPC, mas mesmo assim foram alegados pelas recorrentes.
-Face aos factos dados como não provados sob os pontos j) e k), e o valor que os tribunais atribuem ao dano morte, é injusta a atribuição de uma indemnização no valor total do peticionado pelos recorridos, até pelas condições económicas dos lesados e lesante.
-Somente na parte IV da sentença se indicam os diversos pedidos formulados pelos recorridos na acção apensa.
-Está em causa nos presentes autos, o livro "M...", da autoria do co-R. G..., e por esta editado - pontos 16 a 22 dos factos provados -cujo contrato de edição foi celebrado com a recorrente G e P a 10/3/2008 e a obra publicada a 24/7 desse mesmo ano.
-A recorrente VCF celebrou com o co-R. G... um acordo escrito denominado "opção de direitos - deal memo" em 7/3/2008, com vista à adaptação audiovisual de um livro sobre a investigação do desaparecimento da Praia ... - ponto 35 dos factos provados da sentença recorrida, concretizado quando ao livro em causa nas datas e termos referidos nos pontos 36 a 38 dos factos provados.
-Nos termos do art. 5º, nº1, do CPC, é às partes que cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, mas o juiz não está sujeito às alegações das partes, quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, conforme estipula o nº3.
-A petição inicial que deu origem à presente acção, no que às recorrentes diz respeito não contém factos que preencham os pressupostos enumerados no nº2 do art. 70º do CC.
-E tal dispositivo legal prevê que a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
-O livro em causa foi publicado através de outras editoras, em diversos países - ponto 28 dos factos provados.
-Circulam na Internet, sem autorização das recorrentes, uma versão inglesa e uma versão portuguesa do livro em causa nos factos provados.
-Por outro lado, a Procuradoria da República de Portimão determinou a criação de uma cópia digital do processo de inquérito, procedeu à sua entrega, mediante requerimento, que acabou por ser divulgado através da Internet - pontos  65 e 66 dos factos provados.
-"Os factos relativos à investigação criminal do desaparecimento de M... que o R. G... refere no livro, na entrevista ao jornal "C..." e no documentário são, na sua maioria, factos ocorridos e documentados nessa investigação (arts. 27º e 28º da base instrutória)" - art. 80º dos factos provados.
-Isto é, mesmo com as proibições decretadas e sem que as recorrentes o possam evitar, o livro em versão portuguesa e inglesa e documentário encontram-se ilicitamente e contra a vontade dos detentores dos seus direitos de edição e transmissão, a circular na Internet, bem como todo o processo-crime aberto na sequência do desaparecimento de M....
-Foi considerado como não provado que, por causa das afirmações do R. G... no livro, no documentário e na entrevista ao C..., os recorridos se encontrem totalmente destruídos, de um ponto de vista moral, social ético, sentimental, familiar, muito para além da dor que a ausência da sua filha lhes provoca - ponto j) dos factos não provados na sentença recorrida.
-Por fim, para a aplicação das medidas peticionadas, a decisão recorrida considerou que as 3 RR. constituiram-se como veículos do ilícito cometido pelo R. G..., pelo que são sujeitos passivos das medidas que, ao abrigo do nº2 do art. 70º do CC, devem ser ordenadas, referindo que importa analisar detalhadamente cada urna das medidas peticionadas e verificar, caso a caso, se elas são legais, adequadas e proporcionais ao caso concreto e quem são os destinatários das mesmas.
-O certo é que a sentença recorrida não as analisou, nem as fundamentou, de facto ou de direito, conforme prevê o art. 158º do CPC, o que fere a sentença de nulidade, nos termos da al. b) do nº1 do art. 615 º do CPC.
-E, assim, sem qualquer fundamentação, foi determinado que a proibição de venda e a ordem de recolha dos livros, para entrega aos AA., consagram os atributos invocados e devem dirigir-se ao R. G... e à recorrente G...
-A proibição de execução de novas edições do livro ou DVD, bem como a cedência dos direitos de edição e de autor é adequada, devendo ser dirigida contra o R. G... e às recorrentes.
-Ora, no caso concreto, após a providência cautelar que determinou parte das medidas ora decretadas, já tinha considerado que: "não deve ser decretada providência cautelar de apreensão de livro, tendo o livro como principal motivação a defesa da honorabilidade pessoal de inspector policial encarregado da investigação de determinado crime, em que este expõe a sua interpretação dos dados recolhidos nessa investigação e tornados públicos pelas entidades competentes, sendo certo que os requerentes limitaram voluntariamente o seu direito à intimidade privada ao divulgarem profusamente o respectivo caso através dos media" - ac. TRL, de 14/10/2010, in www.dgsi.pt.
-Face a estes factos dados como provados sob os pontos 30 e 63, as medidas decretadas são inadequadas, e não atenuam os efeitos da suposta ofensa.
-A fixação da sanção pecuniária compulsória em € 50.000 também não foi fundamentada e é excessiva e desproporcional.
-A sentença padece de nulidade nos termos do disposto nas als. b) e d) do nº1 do art. 615º do CPC, devendo ser revogada, absolvendo-se as recorrentes das medidas decretadas, com todas as consequências legais.
-E por a decisão proferida ter violado, nomeadamente, os arts. 37º, 38º e 42º da CRP, 5º, 158º e 615º do CPC,  334º e 335º do CC e 19º da Dedaração dos Direitos do Homem.

Em contra-alegações, pronunciaram-se os apelados pela confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
1.Os AA. K... e G... são casados um com o outro (al. A).
2.A A. M... nasceu em 12/5/2003, sendo filha dos AA. K... e G... (al. B).
3.O A. S... nasceu em 1/2/2005, sendo filho dos AA. K... e G... (al. C).
4.A A. A... nasceu em 1/2/2005, sendo filha dos AA. K... e G... (al. D).
5.A A. M... encontra-se desaparecida desde 3/5/2007, tendo sido aberto o inquérito criminal nº 201/07.0GALGS pela Procuradoria da República do Círculo de Portimão (al. E).
6.Os cães da polícia britânica “Eddie” e “Keela” detectaram marcas de odores de sangue humano e de cadáver no apartamento 5-A do O... (al. AR).
7.Os cães da polícia britânica “Eddie” e “Keela” detectaram marcas de odores de sangue humano e de cadáver num veículo automóvel alugado pelos AA. K... e G... após o desaparecimento de M... (al. AS).
8.Os AA. K... e G... foram constituídos arguidos no inquérito criminal (al. F).

9.A fls. 2587-2602 do inquérito criminal, em 10/9/2007, o Inspector Chefe T... elaborou um relatório, do qual consta nomeadamente o seguinte:
 “De todo o apurado, os factos apontam no sentido de que a morte de M... ocorreu, na noite de 3 de Maio de 2007, no interior do apartamento 5 A, do resort O... da Praia..., ocupado pelo casal M... e pelos três filhos. (fls. 2599 dos autos criminais)  (…)

Por todo o exposto, resulta dos autos que:

A)a menor M... morreu no apartamento 5 A do O... da Praia..., na noite de 03 de Maio de 2007;
B)ocorreu uma simulação de rapto;
C)de forma a impossibilitar a morte da menor antes das 22H00, foi inventada uma situação de vigilância das crianças do casal M... enquanto dormiam;
D)K... e G... estão envolvidos na ocultação do cadáver da sua filha M...;
E)neste momento, parece não existirem ainda fortes indícios de que a morte da menor não tenha ocorrido devido a um trágico acidente;
F)do apurado até ao momento, tudo indica que o casal M..., como autodefesa, não queira fazer a entrega de forma imediata e voluntária do cadáver, existindo uma forte probabilidade de o mesmo ter sido transladado do local inicial de depositação. Esta situação é susceptível de levantar questões quanto às circunstâncias em que ocorreu a morte da menor.

Assim, sugere-se a remessa dos Autos ao Exm.º Sr. Procurador da República, no círculo de Lagos, para:

G)eventual novo interrogatório dos arguidos K... e G...;
H)avaliar da aplicação de medida de coação que se julgar adequada ao caso. (fls. 2601 dos autos criminais)” (al. AT).

10.A fls. 2680 do inquérito criminal, em 10/9/2007, o Procurador da República titular do inquérito proferiu um despacho, do qual consta nomeadamente o seguinte:
 “No desenrolar da investigação em que continua a investigar-se o desaparecimento da M..., estando portanto em aberto a investigação, quer para confirmar, quer para infirmar a sua ocorrência, relativamente aos crimes de rapto, homicídio, exposição ou abandono e ocultação de cadáver e conforme plano delineado, torna-se necessário documentar a hora real do referido desaparecimento, apurar a localização de cada um dos interve- nientes - desde o casal M... ao grupo de amigos que com eles se encontravam de férias nos apartamentos turísticos O... na Praia ...: J..., R..., M..., R..., D..., F... e D... - à data dos factos e nos momentos posteriores, assim como determinar as movimentações dos arguidos G... e K..., no período em que viveram em Portugal, estabelecendo também as conexões entre todos os intervenientes e terceiros.

Nesse sentido e porque as diligências que a seguir se indicam se mostram essenciais para a descoberta da verdade, nomeadamente proceder à análise da informação do tráfego telefónico do casal M... e seus amigos, bem como de outros números de telefone que se verificou estarem relacionados com os factos ocorridos na noite de 03 de Maio de 2007, remeta os autos ao Mmo. JIC.” (al. AU).
11. A fls. 3170 do inquérito criminal, em 3/12/2007, o Juiz de Instrução Criminal de Portimão proferiu um despacho, do qual consta nomeadamente o seguinte:

“Por nos presentes autos se investigar a prática dos crimes de rapto, homicídio, exposição ou abandono e ocultação de cadáver, sendo os três primeiros punidos com pena de prisão superior a 3 anos e por se afigurar relevante a identificação da pessoa que revelou o comportamento suspeito ocorrido nas imediações do local onde desapareceu a criança e a que aludem os depoimentos de fls. 3150 e 3154 e ss., possuindo, assim, extrema relevância para a descoberta da verdade, os dados solicitados pelo Ministério Público, ordeno (…) se solicite à operadora telefónica Portugal Telecom (…)” (al. AV).

12.O R. G... foi, até ao dia 2/10/2007, o Inspector da Polícia Judiciária encarregado da coordenação da investigação relativa ao desaparecimento da A. M... (al. G).

13.O R. G... ficou na situação de aposentado da Polícia Judiciária a partir de 1/7/2008 (art. 19º).

14.Em 21/7/2008 a Procuradoria-Geral da República divulgou uma “Nota para a Comunicação Social” anunciando que tinha sido determinado o arquivamento do inquérito referido no nº 5 e informando que o mesmo poderia vir a ser reaberto, por iniciativa do Ministério Público ou a requerimento de algum interessado, se surgissem novos elementos de prova que originassem diligências sérias, pertinentes e consequentes  (art. 20º).

15.No inquérito criminal foi proferido despacho de arquivamento pelo Procurador da República em 21/7/2008, consignando-se nomeadamente o seguinte:

Tendo em conta que havia determinados pontos dos depoimentos dos arguidos e testemunhas que revelavam, pelo menos aparentemente, contradição ou que careciam de comprovação física, foi decidido proceder-se à “reconstituição do facto”, diligência esta consagrada no artigo 150º do CPP no sentido de esclarecer devidamente e no próprio local dos factos os seguintes importantíssimos detalhes, entre outros:
1-A proximidade física, real e efectiva entre J..., G... e J..., no momento em que a primeira passou por eles, e que coincidiu com o avistamento do suposto suspeito, transportando uma criança. Resulta, a nosso ver, estranho que tanto G... como J... não a tenham visto, nem ao alegado raptor, apesar da exiguidade do espaço e da pacatez do local;
2-A situação relativa à janela do quarto onde M... dormia, juntamente com os gémeos, a qual estava aberta, segundo K.... Afigurava-se então necessário esclarecer se existia alguma corrente de ar, já que se menciona movimento das cortinas e pressão sobre a porta de entrada do quarto, o que seria, eventualmente, descortinável através da reconstituição;
3-O estabelecimento de uma linha de tempo e de controlo efectivo dos menores deixados sozinhos nos apartamentos, uma vez que a crer-se que tal controlo seria tão apertado como as testemunhas e os arguidos o descrevem, seria, pelo menos, muito difícil que se reunidas condições para a introdução de um raptor na residência e posterior saída do mesmo, com a criança, mormente por uma janela com escasso espaço. Acresce que o suposto raptor só poderia passar, nessa janela, com a menor numa posição diferente (na vertical) à que a testemunha J... o visualizou (na horizontal);
4-O que aconteceu no espaço de tempo que mediou entre cerca das 18H45/19H00 - hora a que M... foi vista pela última vez, no seu apartamento, por pessoa diferente (D...) dos seus pais ou irmãos - e a hora a que é reportado o desaparecimento por K...  - cerca das 22H00;
5-As vantagens óbvias e consabidas da apreciação imediata da prova, ou por outras palavras, a concretização do princípio da imediação da prova em ordem à formação de uma convicção o mais firme possível sobre o presenciado por J...T... e demais intervenientes e, eventualmente, arredar de vez quaisquer dúvidas que pudessem subsistir sobre a inocência dos pais da desaparecida.
Foram nesse sentido seguidos os procedimentos legais em conformidade com as normas e convenções em vigor, sendo solicitada a comparência das testemunhas, convidando-as a estarem presentes fazendo-se inclusivamente o apelo à solidariedade com o casal M..., sendo certo que desde o início houve, da parte destes, adesão a tal diligência processual.
Contudo, não obstante as autoridades nacionais terem assumido todas as medidas para viabilizar a sua deslocação a Portugal, por motivos que se desconhecem, depois de várias vezes terem sido esclarecidas as muitas dúvidas que levantavam sobre a necessidade e oportunidade da sua deslocação, optaram por não comparecer o que inviabilizou a diligência.
Temos para nós que os principais prejudicados foram os arguidos M..., que perderam a possibilidade de comprovarem aquilo que desde a sua constituição como arguidos têm protestado: a sua inocência face ao fatídico acontecimento; também estorvada restou a investigação, porque tais factos ficaram por esclarecer (…)
Tal denota que os pais não estavam persistentemente preocupados com os filhos, que não iam fazer a sua verificação como depois declararam efectuar, antes negligenciaram, embora não temerária nem grosseiramente, o dever de guarda dos mesmos filhos. (…)
Se é um facto incontornável que a M... desapareceu do Apartamento 5ª do “O...”, já não o é o modo e circunstâncias em que tal sucedeu - não obstante as muitíssimas diligências feitas nesse sentido - mantendo-se intocável o leque de crimes indiciados e referidos ao longo do Inquérito (…)
No respeitante aos outros crimes indiciados não passam disso mesmo e pese embora se nos afigurar não ser de descartar, dado o seu elevado grau de probabilidade, a verificação de um homicídio, tal não pode passar de mera suposição por carência de elementos de sustentação nos autos.
O não envolvimento dos arguidos pais da M... em qualquer actuação penalmente relevante parece resultar das circunstâncias objectivas de não estarem no apartamento aquando do seu desaparecimento, no seu comporta- mento normal adoptado até esse desaparecimento e posteriormente, como amplamente decorre do depoimento das testemunhas, da análise das comunicações telefónicas e também das conclusões das perícias, principalmente dos relatórios do FSS e do Instituto de Medicina Legal.
A isso acresce que, na realidade, nenhum dos indícios que levou à sua constituição como arguidos veio a obter confirmação ou consolidação posteriores. Senão vejamos: não se confirmaram as informações de prévio alerta da comunicação social, em preterição das polícias, não se verificou a ratificação laboratorial dos vestígios assinalados pelos cães e as indicações iniciais do e-mail acima transcritas, mais bem esclarecidas posteriormente, vieram a revelar-se inócuas.
Ainda que, por hipótese, se admitisse que G... e K... pudessem ser os responsáveis pela morte da criança, sempre restaria por explicar como, por onde, quando, com que meios, com a ajuda de quem e para onde se libertaram do seu corpo no estrito espaço temporal de que, para tanto, teriam disposto. Acresce que a sua rotina diária até ao dia 3 de Maio se circunscrevera aos estreitos limites do aldeamento “O...” e à praia que lhe está adjacente, desconhecendo os terrenos circundantes e, para além dos amigos ingleses que com eles aí veraneavam, não tinham amigos ou contactos conhecidos em Portugal (…)
Foram realizados exames e análises em duas das instituições mais prestigiadas e credenciadas para o efeito - Instituto Nacional de Medicina Legal e o laboratório britânico Forensic Science Service -cujos resultados finais não valorizaram positivamente os vestígios recolhidos, nem vieram corroborar as marcações caninas.
Não foi conseguido qualquer elemento de prova que permita a um homem médio, à luz dos critérios da lógica, da normalidade e das regras gerais de experiência, formular qualquer conclusão lúcida, sensata, séria e honesta sobre as circunstâncias em que se verificou a retirada da criança do apartamento, nem enunciar, sequer, um prognóstico consistente e inclusive - o mais dramático - apurar se ainda está viva ou se está morta, como parece mais provável (…)
Assim, tudo visto, analisado e devidamente ponderado, face ao que se deixa exposto determina-se: (…) o arquivamento dos Autos quanto aos arguidos G... e K..., por não existirem indícios de os mesmos terem praticado qualquer crime” (al. AQ).

16.A R. G... SA, é uma sociedade comercial, que tem por objecto designadamente a edição, publicação e comercialização, incluindo importação e exportação, de livros (al. L).

17.Em 10/3/2008, a R. G... SA, e o R. G... celebraram o acordo escrito junto a fls. 277-281, denominado “contrato de cedência de direitos de autor”, através do qual o R. G... cedeu à R. G... SA, em exclusivo, por um período de 10 anos, os direitos para publicar o texto “M... ” na forma de livro, impresso ou electrónico, em todas as línguas e para todo o mundo (al. M).

18.A cláusula 4ª, nº1, deste acordo tem a seguinte redacção: “A retribuição a pagar pelo 1º outorgante ao 2º outorgante a título de direitos de autor relativamente às edições da obra para comercialização em Portugal será de: a) 12% do preço de capa de cada exemplar vendido, líquido de IVA, até 30.000 exemplares; b) 14% do preço de capa de cada exemplar vendido, líquido de IVA, a partir dos 30.001 exemplares vendidos até 50.000 exemplares; c) 16% do preço de capa de cada exemplar vendido, líquido de IVA, a partir dos 50.001 exemplares vendidos.” (al. N).

19.A cláusula 5ª, nº2, deste acordo tem a seguinte redacção: “Se o 1º outorgante vender para outras línguas, em qualquer outro país do mundo, os direitos da obra, fica estabelecido que a receita líquida dessas vendas, após deduzidos os custos que decorram directamente da operação de venda, será dividido entre o 1º e o 2º outorgantes em partes iguais, ou seja, 50% para cada um” (al. O).
20.O R. G... é autor do livro “M...”, editado pela R. “G... S.A.” (al. H).

21.Na capa do livro encontra-se, a vermelho, a palavra “confidencial” e na contracapa estão os dizeres “leitura reservada” e “contém revelações únicas” (al. P).

22.Da ficha técnica do livro, na sua página 4, consta nomeadamente o seguinte: “Revisão: F.... Capa e paginação: I.... Fotografia do autor: S... © G... S.A., 2008. Reservados todos os direitos. © Cofina media para fotografias e infogravuras. Infogravuras elaboradas por N...” (al. Q).

23.Do livro “M...” consta nomeadamente o seguinte:

 “Nota introdutória.
Este livro surge da necessidade que senti de repor o meu bom nome, que foi enxovalhado na praça pública, sem que a instituição a que pertencia há 26 anos, a Polícia Judiciária Portuguesa, tenha permitido que me defendesse ou que o fizesse institucionalmente. Pedi autorização para falar nesse sentido, pedido ao qual nunca recebi resposta. Respeitando rigorosamente os regulamentos da Polícia Judiciária, mantive-me em silêncio. Este, porém, era dilacerante para a minha dignidade.
Mais tarde fui afastado da investigação. Entendi então que era a hora de fazer a minha defesa pública.  
Para tal, pedi imediatamente a passagem à aposentação, de forma a readquirir a plenitude da minha liberdade de expressão.
Este livro tem ainda um propósito maior. O de contribuir para a descoberta da verdade material e a realização da justiça, na investigação conhecida como «Caso ...». Estes são valores fundamentais aos quais me obriguei por imperativo de consciência, por convicção e por disciplina à instituição a que tive o orgulho de pertencer. Estes mesmos valores não se extinguiram com a minha aposentação e continuarão a estar sempre presentes na minha vida.
Em nenhuma circunstância o livro põe em causa o trabalho dos meus colegas da Polícia Judiciária, nem compromete a investigação em curso. É meu entendimento profundo que a revelação numa obra deste tipo de todos os factos poderia comprometer diligências futuras determinantes para a descoberta da verdade. Todavia, o leitor encontrará dados que desconhece, interpretações dos factos - sempre à luz do direito - e, naturalmente, interrogações pertinentes.
Uma investigação criminal apenas se compromete com a busca da verdade material. Não se deve preocupar com o politicamente correcto (págs. 11-12) (…)
Muita coisa foi dita até ao momento - verdades e mentiras, assistindo-se, a par do dever de informação, a campanhas de desinformação que visaram descredibilizar a investigação criminal desenvolvida e os responsáveis pela mesma. Para mim a investigação estava morta desde 2 de Outubro de 2007, quando parecia ter vingado um novo ultimatum inglês no próprio dia em que se discutia o Tratado de Lisboa, pelo que já nada me admirava. Nos últimos tempos tinha assistido a mais um espectáculo mediático, um último forcing pela tese do rapto, com a divulgação por parte da família M... de um retrato-robô de um presumível raptor. Já nada me surpreende.

- Não ligues. É Carnaval.
Prosseguimos com conversa de circunstância, mas senti que, definitivamente, o meu mundo tinha como que colapsado.
Depois de desligar, voltei a olhar para as amendoeiras, plantadas no chão duro algarvio, chão esse que pode ter tido influência na estratégia de ocultação de um cadáver e, pensei, não se teria Deus precipitado ao fazê-las florir no Inverno? (pag. 16)  (…)

Um inquérito destinado ao arquivo.
Tenho o pressentimento de que com aquela declaração o director nacional pretende preparar a opinião pública para o inevitável, ou seja, o fim da investigação e o arquivamento do inquérito. Essa parecia ser a estratégia adoptada em 2 de Outubro de 2007, a qual veio consolidar-se com a realização de diligências para cumprir calendário, um pouco para inglês ver. Temi logo que fosse colocada em causa a investigação realizada até ali, de forma a facilitar um eventual arquivamento. Esta investigação tinha vindo a desgastar a imagem da Polícia Judiciária, dos seus investigadores e de Portugal, e talvez por isso teria de terminar.

A constituição de K... e G..., pais de M..., como arguidos deveria ter sido o ponto de viragem na relação entre as polícias envolvidas e o casal. Se, quanto à polícia portuguesa, essa ruptura aconteceu, o mesmo parece não se poder dizer relativamente à polícia inglesa. Havia um entendimento entre ambas as polícias para avançar num rumo de investigação que encarava seriamente a possibilidade de a morte da criança ter ocorrido no apartamento mas, subitamente, a polícia inglesa inflectiu o rumo sem explicação técnica coerente - como adiante veremos. Causou-nos sempre estranheza a forma como o casal era tratado, mesmo após a sua constituição como arguido, e a informação policial a que eventualmente tiveram acesso.
Mentalmente, vou revendo a investigação, as recordações brotam em catadupa.
Penso principalmente naquela criança que, pouco antes de fazer 4 anos viu, de forma repentina, negado o seu direito à existência, a fazer-se mulher, a uma potencial vida de felicidade e sucesso na companhia dos seus familiares e amigos, que abruptamente se perdeu. Nada faz sentido. Parece estar a ser preparado um abafamento dos factos, diminuindo-se a força de todo e qualquer tipo de indício, esquecendo-se os direitos daquela e de outras crianças. Mas quem é que deseja este resultado? Quem exigiu a minha saída da coordenação operacional da investigação? Quem deseja o fim do estatuto dos M... e de M... como arguidos? Aqueles que insistem numa tese de rapto? Os que afirmaram, e adiante direi quem são, que por muito menos já tinham prendido pessoas em Inglaterra? Ou os que insistem na mentira esquecendo a busca da verdade material? A alguém há-de servir o eventual arquivamento do inquérito e o fim das investigações.
Depois da minha saída de Portimão em 2 de Outubro de 2007, tinha decidido esquecer o caso. Talvez fosse melhor, face aos poderes que parecem estar envolvidos.
Se as autoridades do país natal da criança pouco querem saber do que lhe aconteceu, alimentando a tese de rapto, porque terei eu de me preocupar? Não será uma declaração despropositada (ou induzida pela entrevistadora) de um director de polícia que vai conseguir apagar os indícios existentes (também não terá sido dita com essa intenção), o nosso trabalho está plasmado nos autos. Só destruindo-os é que se pode apagar o registo do que foi feito e, mesmo assim, resta-nos a nossa memória e a daqueles que connosco levaram a cargo a árdua tarefa de tentar descobrir a verdade material (págs.. 19-20)  (…)
Sim, morreu uma criança! E digo-o não por juízos de valor, mas por dedução fundamentada pela recolha de informações, indícios e provas de factos que estão plasmados nos autos (pag. 21)  (…)
A prudência de uma decisão
Já em Portimão, encontro o inspector-chefe T..., que integrava a equipa que coordenei.
Conhecemo-nos desde os tempos em que ingressámos na Polícia Judiciária. Está apreensivo com as palavras do director nacional, fala de um inquérito que já terá solicitado à Direcção Nacional da Polícia Judiciária. Para ele, o inquérito ao nosso trabalho virá repor a verdade.
-Durante os cinco meses em que nos mantivemos na investigação, ouvimos de tudo um pouco, mas fomos realizando o nosso trabalho.
Relembramos o que fizemos, com muito esforço e, honestamente, temos dúvidas que outros pudessem ter feito melhor. Não é presunção, é confiança no rigor do trabalho de todos os profissionais de polícia envolvidos:

-Ouve! Esta malta não sabe fazer contas? Como se pode falar de precipitação quando o casal foi constituído arguido quatro meses depois dos factos. Eles não conhecem o princípio da não auto-incriminação?
Referia-se à impossibilidade legal de continuar a recolher declarações de alguém, como testemunha, de forma a que esta dê a conhecer factos que a venham a incriminar. Ou seja, quando alguém está a prestar declarações sobre um determinado caso e, a dado momento, se verifica que esse cidadão terá um eventual envolvimento ou responsabilidade na prática de qualquer acto ilícito, é constituído arguido. Com isso o cidadão tem direitos e deveres. Curiosamente, e ao contrário do que se vê tantas vezes escrito na imprensa, sobretudo na inglesa, o arguido ganha protecção com a possibilidade de se remeter ao silêncio sem que com isso cometa um crime de falsas declarações - como seria o caso se ainda se mantivesse como testemunha.
-Concordo contigo. Se existem erros na investigação esse é um deles. O atraso em proceder à constituição do casal como arguido. Houve política a mais e polícia a menos.
-Bem, não diria tanto. O erro foi termos tratado o casal «com pinças». Bem sabes que desde muito cedo vimos que muita coisa não batia certo e eles foram tratados com privilégios. Isso é que não é normal! (pag. 23)
-Talvez o director nacional pense que o casal só abandonou o Algarve por terem sido constituídos arguidos.
-O casal foi ficando pelo Algarve, enquanto se falava da tese de rapto…quando tal tese foi colocada em causa, começaram logo a falar em regressar a Inglaterra.
-Donde se conclui que a sua constituição como arguidos foi um falso pretexto para abandonarem o nosso país.
-Sabes!? Houve jornalistas ingleses que consideraram Portugal um país do Terceiro Mundo… discordei e continuo a discordar, no entanto, só num país de Terceiro Mundo é que se afasta o responsável por uma investigação criminal em curso, sem que o mesmo tivesse sido posto em causa pela investigação que conduzia.
-Fala-se muito na governamentalização da justiça … esquece-se a forma como se pode influenciar uma qualquer investigação criminal…
-É fácil… distribui-se a investigação a pessoas da nossa confiança … ou então, se as coisas não correm bem, mudam-se os responsáveis pelas mesmas…
-Não me parece que tenha sido essa a razão de fundo, mas…
-Existem sempre argumentos válidos e legais… Enfim. O único obstáculo a essa gestão da investigação, quase política…são os dirigentes máximos das polícias.
É preciso que se oponham a situações dúbias e contrárias ao interesse da investigação. Não podem concordar com tudo só para ficarem agarrados ao poder…
-Companheiro… As pessoas não dirigem as polícias por interesses pessoais … dirigem-nas na prossecução do interesse público. Só assim se pode entender o papel das polícias num Estado democrático e de direito.
-Mas, olha!... Podemos chegar ao ponto em que determinadas investigações só serão realizadas por quem os arguidos quiserem… talvez fosse uma questão de “modernidade”.
-De modernidade ou de interesses… isto é tudo uma merda! (págs.. 22-24)  (…)
Burla ou abuso de confiança?
Num momento de relaxe de uma destas reuniões, terei cometido um deslize ou, quiçá, terei sido inoportuno e pouco diplomático. Preocupado com a possibilidade de o casal M... estar, de alguma forma, envolvido no desaparecimento de sua filha, e quando raciocinava quanto aos tipos de crime que os mesmos pudessem ter praticado, apercebi-me de um facto. Se, realmente, se viesse a confirmar qualquer tipo de responsabilidade do casal M..., então poderia estar em causa, relativamente ao fundo criado para as buscas por M..., que atingia mais de 2 milhões de libras, um crime de burla ou abuso de confiança. Abriu-se então o debate e, de facto, com as premissas indicadas, os crimes de burla qualificada ou abuso de confiança poderiam existir, mas Portugal não teria jurisdição para investigar e julgar por tal crime. Esta pertenceria ao Reino Unido, por o fundo se encontrar registado naquele país. Os colegas ingleses aperceberam-se então de uma dura realidade: a forte possibilidade de terem um crime para investigar no seu país, tendo como eventuais suspeitos o casal M..., coisa que parecia não lhes agradar muito. Tendo-me apercebido de uma repentina palidez na face dos britânicos presentes (pág. 193)  (…)

Um desaparecimento, uma janela e um cadáver.

Aqui chegados importa fazer uma síntese dedutiva sobre este caso. Ou seja, rejeitar o que é falso; afastar o que não se pode provar, por insuficiente; dar como válido e adquirido aquilo de que se fez prova.

Assim:

1.A tese do rapto é defendida desde a primeira hora pelos pais de M...;
2.No seio do grupo, apenas os seus progenitores declaram ter observado a janela aberta no quarto da menina desaparecida; a maioria não pode testemunhá-lo fielmente por ter acorrido ao apartamento já depois de ter sido dado o alarme;
3.O único depoimento externo ao grupo que refere a janela aberta e os estores levantados, é o de A..., uma das educadoras do O..., que aponta a sua observação para cerca das 22h20 / 22h30, logo, bastante depois de ser dado o alarme e não provando que aquela assim estivesse aberta à hora em que ocorreu o crime;
4.O conjunto de depoimentos e testemunhos evidenciam um elevado número de imprecisões, incongruências e contradições - o que poderá ser tipificado, em alguns casos, como falsos testemunhos. Em particular, o depoimento-chave para a tese do rapto, o de J..., perde toda a credibilidade por ter evoluído sucessivamente ao longo de vários momentos, tornando-se ambíguo e desqualificando-se;
6.Há um cadáver não localizado, constatação validada pelos cães ingleses EVRD e CSI e corroborados pelos relatórios laboratoriais preliminares (págs. 219-220)” (al. I).

24.O R. G... concluiu no livro “M...” o seguinte:

Para mim e para os investigadores que comigo trabalharam no caso até Outubro de 2007, os resultados a que chegámos foram os seguintes:
1.A menor M... morreu no apartamento 5-A do O..., da Vila ..., na noite de 3 de Maio de 2007;
2.Ocorreu uma simulação de rapto;
3.K... e G... são suspeitos de envolvimento na ocultação do cadáver da sua filha;
4.A morte poderá ter sobrevindo em resultado de um trágico acidente.
5.Existem indícios de negligência na guarda e segurança dos filhos (págs. 220-221)” (al. J).

25.O livro “M...” foi lançado no dia 24/7/2008, no centro comercial El Corte Inglés, em Lisboa (al. R).

26.No dia do seu lançamento, em 24/7/2008, o livro foi também vendido com o jornal “C...” (al. S).

27.O livro “M...” teve as seguintes edições em Portugal: 1ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 30.000 exemplares; 2ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 3ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 4ª, em Julho de 2008, com a tiragem de 30.000 exemplares; 5ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 25.000 exemplares; 6ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 7ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 15.000 exemplares; 8ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 9ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 10ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; 11ª, em Agosto de 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares; e 12ª, em 2008, com a tiragem de 10.000 exemplares (al. T).

28.O livro foi publicado, através de outras editoras, nos seguintes países:em Espanha, em Setembro de 2008, com eventual comercialização em castelhano nos países da América Latina; na Dinamarca, em Novembro de 2008, com eventual comercialização noutros países nórdicos; em Itália, em Dezembro de 2008, com comercialização em língua italiana para todo o mundo; na Holanda, em Abril de 2009, com comercialização em língua neerlandesa para todo o mundo; em França, em Maio de 2009, com comercialização em língua francesa para todo o mundo; na Alemanha, em Junho de 2009, com comercialização também na Áustria e Suíça (al. U).

29.No âmbito da providência cautelar apensa, foram entregues à mandatária dos AA. cerca de sete mil exemplares do livro (al. V).

30.Circulam na Internet, sem autorização da R. G... SA, uma versão inglesa e uma versão portuguesa do livro (al. X).

31.O preço de capa do livro “M...”, em Portugal, foi fixado pela R. G... SA, em € 13,33, com IVA incluído (art. 2º ).

32.A venda dos livros foi efectuada, em parte, à consignação e, noutra parte, em conta firme com direito a devolução, estando sujeita a devoluções por diversos motivos, nomeadamente, defeitos de fabrico, manuseamento ou não transacção (art. 23º ).

33.O R. G... auferiu com a venda do livro “M...”, nos anos de 2008 e 2009, a quantia de € 342.111,86 (arts. 3º e 4º ).

34.A R. V.... SA, é uma sociedade comercial, que tem por objecto designadamente a criação, desenvolvimento, produção, promoção, comercialização, distribuição, exibição e difusão de obras cinematográficas e audiovisuais (al. AA).

35.Em 7/3/2008, o R. G... e a R. V.... SA, celebraram o acordo escrito junto a fls. 282-283, denominado “opção de direitos - deal memo”, através do qual o R. G... cedeu à R. V.... SA, em exclusivo, os direitos de adaptação audiovisual (documentário e ficção) de um livro sobre a investigação do desaparecimento da Praia da Luz (al. AB).

36.Em 11/3/2008, o R. G... e a R. V.... SA, celebraram o acordo escrito junto a fls. 284-288, denominado “cessão de direitos - contrato de opção”, através do qual o R. G... cedeu à R. V.... SA, em exclusivo, por um período de dois anos, o direito de opção para proceder à adaptação do livro “M...” para um documentário e ou ficção, que poderá ter o formato de um filme para cinema ou de um telefilme para televisão (al. AC).

37.A cláusula 2ª deste acordo tem a seguinte redacção: “Pela cessão desse direito exclusivo de opção, a V... obriga-se a pagar ao autor a importância ilíquida de € 25.000, sujeita às taxas legais, e acrescida do IVA respectivo (...).” (al. AD).

38.Da cláusula 4ª deste acordo consta nomeadamente o seguinte: “1. Para a adaptação do livro a documentário, o autor obriga-se a participar como narrador, cedendo todos os direitos de imagem e de som. 2. Por essa participação, e pela cedência de todo o conteúdo patrimonial dos direitos de autor e conexos à V..., o autor receberá a importância ilíquida de € 15.000, sujeitos à taxa legal. (…)  3. Pela cedência dos direitos referidos no ponto anterior, o autor receberá 10% de todas as receitas, nacionais e internacionais, da exploração do documentário (em todas as plataformas e em todos os suportes inventados e a inventar) após dedução dos custos de produção.” (al. AE).

39.A R. V.... SA, acordou com a sociedade V... S.A, em 6/6/2008, ceder a esta os direitos de comercialização, distribuição, exibição e difusão de um conjunto de obras cinematográficas e audiovisuais (filmes, mini-séries e documentários) que se propunha produzir num prazo de 5 anos (art. 30º da base instrutória).

40.A R. V.... SA, produziu o documentário intitulado “M...”, realizado por C..., que corresponde à adaptação da obra literária (livro) do R. G..., documentário esse que o DVD junto aos autos reproduz (al. AF).

41.No início do documentário, o R. G... afirma o seguinte:
 “O meu nome é G... e fui investigador da Polícia Judiciária durante 27 anos. Coordenei a investigação do desaparecimento de M... no dia 3 de Maio de 2007. Nos próximos 50 minutos, vou provar que a criança não foi raptada e que morreu no apartamento de férias na Praia .... Descubra toda a verdade sobre o que se passou naquele dia. Uma morte que muita gente quer encobrir.” (al. AG).

42. No final do documentário, o R. G... afirma o seguinte:
“Aquilo que sei diz-me que M... morreu no apartamento 5-A no dia 3 de Maio de 2007. Tenho a certeza de que esta verdade um dia será apurada. A investigação foi brutalmente interrompida e houve um arquivamento político e precipitado. Há quem esconda a verdade, mas mais tarde ou mais cedo, o verniz vai estalar e as revelações vão surgir. Só então haverá justiça para M...” (al. AH).
43.A R. V.... SA, concluiu o documentário com a seguinte declaração:
“O mistério persiste, o ex-inspector acredita que um dia se saberá a verdade. Por enquanto só sabemos que no dia 3 de Maio de 2007, M... desapareceu na Praia da Luz. Tinha 3 anos de idade e era uma criança feliz” (al. AI).

44.Na sequência de deliberação social tomada no dia 27/10/2008 ocorreu um aumento do capital da R. V... SA, o qual foi registado em 28/9/2009, pelo qual o capital da mesma sociedade passou a ser detido, na proporção de 60% pela sociedade Estúdios V... SA e, na proporção de 40%, pelo Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual (art. 29º).

45.Nos dias 13/4/2009 e 12/5/2009 o documentário foi transmitido pela R. T... SA (al. AJ).

46.Antes da emissão do documentário, a R. T... SA, emitiu a seguinte declaração:
“O programa que se segue é um documentário baseado no livro de G..., ex-inspector da PJ que investigou o desaparecimento de M..., no Algarve. A sua versão dos acontecimentos é repudiada pelos pais de M..., que continuam a defender tratar-se de um caso de rapto.
O processo crime conduzido pelas autoridades portuguesas terminou com o arquivamento do inquérito, decisão contestada por G....
Mais do que apontar responsáveis, tarefa que incumbe à justiça, a emissão deste documentário destina-se a contribuir para que se faça luz sobre um caso que permanece um mistério por desvendar, há quase dois anos, e que se facultem elementos que ajudem a sua compreensão por parte da opinião pública” (al. AL).

47.Pelo menos dois milhões e duzentas mil pessoas assistiram ao programa transmitido no dia 13/4/2009 (art. 10º).

48.O R. G... deu uma entrevista ao jornal “C...”, conduzida pelos jornalistas E... e H..., publicada na edição de 24/7/2008, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, com chamada de 1ª página, tendo-lhe sido atribuídas nomeadamente as seguintes afirmações:
 “C...-Qual é a sua tese, como investigador do caso?

G...-A menina morreu no apartamento. Está tudo no livro, que é fiel à investigação até Setembro: reflecte o entendimento das polícias portuguesa, inglesa e do Ministério Público. Para todos nós, até ali estavam provadas: a ocultação do cadáver, simulação de rapto e exposição ao abandono.”

C...-O que o levou a indiciar os M... por todos esses crimes?
G...-Tudo começa numa teoria de rapto forçada pelos pais. E o rapto baseia-se em dois factos: um é o testemunho de J..., que diz que viu um homem passar à frente do apartamento com uma criança ao colo; o outro é a janela do quarto que, segundo K..., estava aberta quando devia estar fechada. Provou-se que nada disso aconteceu.

C...-Como é que se provou?
G...-J... não é credível: identifica e reconhece pessoas diferentes. Começa por M..., mais tarde fala-se noutra pessoa, pelo desenho feito por uma testemunha, e ela já diz que é aquela, completamente diferente de R...
C...-O testemunho de J... orientou a tese de rapto.
G...-Para se avançar por aí era preciso dar-lhe crédito: nada mais indiciava o rapto. E a questão da janela do quarto, onde M... e os irmãos dormiam, é fulcral. Leva à simulação. Isto é, se estava ou não aberta quando Jane diz que viu o homem de criança ao colo. A mãe da menina, K..., é a única a falar na janela aberta.

C...-Isso desmonta a tese de rapto?
G...-Ali está a solução. Estar ou não fechada indicia fortemente simulação. E porque é que se simula rapto e não se diz que a criança desapareceu?
Pode ter aberto a porta e saído…
C...-As impressões digitais de K... reforçam a tese de simulação?
G...-São as únicas impressões digitais na janela. E em posição de forma a abrir a janela. (…)

C...-O que é que na sua opinião aconteceu ao corpo?
G...-Tudo indiciava que o corpo, depois de estar num determinado local, foi movimentado de carro para outro, vinte e tal dias depois. Com os vestígios encontrados no carro, a menina teria de ter sido ali transportada.

C...-Como é que pode afirmar isso?
G... - Por aquele tipo de fluido, dizemos nós polícias, peritos, que o cadáver foi congelado ou conservado em frio e ao ser colocado na bagageira, com o calor que fazia na altura, parte do gelo derreteu. Numa curva, por exemplo, caiu alguma coisa do lado direito da mala, por cima da roda. Podem dizer que é especulação, mas é a única forma de explicar o que ali aconteceu.

C...-Se o corpo foi primeiro escondido na zona da praia esteve sempre fora do alcance das buscas?
G...-A praia foi batida a uma hora que não se sabe se o corpo ainda lá estava. Utilizando cães, mas os cães-pisteiros têm limitações, como a água salgada, por exemplo. Depois poderá ter sido removido” (al. Z).

49.O R. G... proferiu as afirmações que lhe são atribuídas no número anterior (art. 1º).

50.O R. G... concedeu entrevistas à R. T... SA, nos dias 16/5/2009 e 27/5/2009 (al. AM).

51.No final de Abril de 2009, o documentário começou a ser comercializado em DVD, com o título e subtítulo “M... - Um poderoso documentário baseado no best-seller “A ...” de G...” (al. AN).

52.O DVD referido no número anterior foi editado e as cópias editadas foram comercializadas pela sociedade V...SA, mediante acordo celebrado com a sociedade P... SA (art. 8º).

53.Foram distribuídos para venda 75.000 exemplares do DVD (al. AO).

54.63.369 exemplares do DVD não foram vendidos, tendo sido posteriormente destruídos (art. 18º ).

55.Na capa do vídeo encontra-se, a vermelho, a palavra “confidencial” (al. AP).

56.O DVD foi vendido pela sociedade P... SA, conjuntamente com o jornal de que era proprietária - “C...” - ao preço de venda ao público de € 6,95, com IVA incluído (art. 6º).

57.Até à presente data, o documentário só uma vez foi reproduzido para ser editado, publicado e comercializado em Portugal em formato vídeo, no caso o DVD referido no nº 42 (art. 31º).

58.A reprodução e a edição do documentário em formato vídeo foram autorizadas pela V... SA, à sociedade P... SA, proprietária do jornal C..., conforme contrato entre ambas estabelecido (art. 32º).

59.Nos termos do qual, os DVD, respectivas capas e embalagens seriam, como foram, fabricados por conta, ordem e sob a responsabilidade da P..., para serem distribuídos e comercializados conjuntamente com o jornal C... (art. 33º).

60.E todo o processo de registo e classificação da edição em vídeo (DVD) do documentário junto do IGAC seria, como foi, desenvolvido pela V..., processo esse cujos custos a P... suportaria, como suportou (art. 34º).

61.O DVD do documentário foi distribuído para venda em conjunto com a distribuição para venda do jornal “C...” (art. 35º).

62.O R. G... auferiu com a venda do DVD, no ano de 2008, a quantia de € 40.000 (art. 7º).

63.O documentário foi reproduzido, inclusive legendado em língua inglesa, por terceiros que o difundiram na Internet, sem a autorização e contra a vontade da R. V... SA (art. 36º).

64.Essa difusão ilícita prejudica não só os direitos de que a R. V.... SA, é titular sobre o documentário, como a respectiva exploração comercial, pois qualquer cidadão pode aceder ao documentário, também à distância de um “clic” (art. 37º).

65.A Procuradoria da República de Portimão determinou a criação de uma cópia digital do processo de inquérito, com ressalva de elementos sujeitos a sigilo absoluto, e a sua entrega, sob requerimento, a diversas pessoas, nomeadamente jornalistas, o que ocorreu (al. AX).

66.O conteúdo de tal cópia digital foi divulgado, designadamente através da Internet, tendo sido conhecido, comentado e discutido pública e universalmente (al. AZ).

67.Os AA. K... e G... alertaram a imprensa para o desaparecimento da sua filha (al. BA).

68.Os AA. K... e G... concederam uma entrevista ao programa norte-americano de televisão “O...”, apresentado por O..., revelando a existências de novos testemunhos, reconstituições e retratos robot (al. BB).

69.A entrevista ao programa “O...” foi transmitida para o mundo inteiro por sinais disponíveis através de satélites e de redes de cabo (al. BC).

70.Esta entrevista para o programa “O...” foi transmitida, em Portugal, pela SIC, nos dias 9/5/2009 e 12/5/2009 (al. BD).

71.Os AA. K... e G..., em colaboração com a estação televisiva britânica “Channel 4”, realizaram um documentário sobre o desaparecimento da sua filha, intitulado “Still missing M...”, com a duração de 60 minutos (al. BE).

72.Em 15/4/2009, a R. T... SA, celebrou um acordo preliminar, com vista ao licenciamento da transmissão, em exclusivo, em Portugal, do documentário “Still missing M...”, por € 35.000 (al. BF).

73.Os AA. K... e G... deram instruções para que o licenciamento da transmissão do documentário “Still missing M...” não fosse atribuído à R. T... SA (al. BG).

74.O documentário “Still missing M...”, sob a tradução “M..., dois anos de angústia”, foi transmitido pela SIC no dia 12/5/2009 (al. BH).

75.Em 17/10/2007, C..., porta-voz dos AA. K... e G..., afirmou que estes eram suficientemente realistas para admitirem que a sua filha estaria provavelmente morta (al. BI).

76.Era enorme o interesse público, em Portugal e por todo o mundo, acerca dos acontecimentos que rodearam o desaparecimento de M..., das investigações levadas a efeito para a encontrar e para apurar o que de facto sucedeu, sua evolução e vicissitudes, nestas se incluindo a constituição dos AA. K... e G... como arguidos no correspondente processo de inquérito e o afastamento do R. G... das investigações que neste processo foram desenvolvidas sob sua coordenação (al. BJ).

77.Os AA. K... e G... contrataram, através do Fundo M..., empresas de comunicação e porta-vozes (al. BL, dos factos assentes).

78.O denominado “Caso ...” tem sido profundamente tratado na sociedade portuguesa e estrangeira, seja por órgãos da comunicação social, seja em livros, como foram as obras da autora de P..., M... e H... (art. 24º).

79.O denominado “Caso ...” foi comentado pelo dr. F..., ex-inspector, escritor, criminalista e comentador, nessa qualidade, em diversos órgãos de comunicação social (art. 25º).

80.Os factos relativos à investigação criminal do desaparecimento de M... que o R. G... refere no livro, na entrevista ao jornal “C...” e no documentário são, na sua maioria, factos ocorridos e documentados nessa investigação (arts. 27º e 28º).

81.Em consequência das afirmações do R. G... no livro, no documentário e na entrevista ao C..., os AA. K... e G... sentiram raiva, desespero, angústia, preocupação, tendo sofrido insónias e falta de apetite (art. 13º).

82.Os mesmos AA. sentem mal-estar por serem considerados, pelas pessoas que acreditam na tese do R. G... sobre o desaparecimento de M..., como responsáveis pela ocultação do cadáver desta e como autores da simulação do seu rapto (art. 14º).

83.Os AA. K... e G... sentem, com muita preocupação, a necessidade de afastarem os filhos mais novos do conhecimento da tese referida no número anterior (art. 15º).

84.S... e A... ingressaram na escola em Agosto de 2010 não tendo ainda tomado conhecimento da tese do R. G... referida no mesmo número (art. 17º, da base instrutória).  

3.Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente
A questão a decidir centra-se, pois, essencialmente, na apreciação da alegada ilicitude, e decorrente responsabilidade, imputada ao 1ºR.,  ora apelante, da publicação, pelos 2º e 3º RR., igualmente apelantes, das obras em causa.
Em matéria de direitos de personalidade, dispõe o art. 26º, nº1, da Constituição, que a todos são reconhecidos os direitos ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
Na mesma lei fundamental, e com igual dignidade, se tutelando a liberdade de expressão, ao preceituar-se, no nº1 do art. 37º,  que todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
E, bem assim, no nº2 do art. 38º,  a liberdade de imprensa, ao consagrar-se a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores.
Estabelecendo-se, no nº2 do art. 18º, para a eventualidade de conflito entre direitos fundamentais, que as restrições legais a esses direitos se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Por seu turno, na lei ordinária, consagrando o art 70º do C.Civil, como princípio, que a  lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua integridade física ou moral, dispõe o art. 80º desse diploma que todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem.
Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares, nos termos do  nº1 do art. 335º, ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer deles - prevalecendo (nº2 desse preceito), sendo os direitos desiguais ou de espécie diferente,  o que deva considerar-se superior.

Assim, e como vem entendendo a jurisprudência dominante :

“Um dos limites à liberdade de informar, que não é por isso um direito absoluto, é a salvaguarda do direito ao bom-nome. Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade.
-Assiste aos media o direito, a função social, de difundir notícias e emitir opiniões críticas ou não, importando que o façam com respeito pela verdade e pelos direitos intangíveis de outrem, como são os direitos de personalidade.
-O direito à honra, em sentido lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são tradicionais domínios de conflito.
-A crítica tem como limite o direito dos visados, mas não deixa de ser legítima se for acutilante, acerada, desde que não injuriosa, porque quantas vezes aí estão o estilo de quem escreve.
-Criticar implica censurar, a censura veiculada nos media só deixa de ser legítima como manifestação da liberdade individual quando exprime antijuricidade objectiva, violando direitos que são personalíssimos e que afectam, mais ou menos duradouramente segundo a memória dos homens, bens que devem ser preservados como são os direitos aqui em causa, à honra, ao bom nome e ao prestígio social” (acórdão do STJ, de  20/1/2010, www.dgsi.pt).

No caso concreto, para além do relato dos factos constantes do inquérito relativo ao desaparecimento da menor M..., resulta da análise do livro e demais material publicado aí sustentar o ora 1º apelante a tese de que não terá ocorrido um rapto, mas sim a morte acidental da criança, seguida do respectivo encobrimento - através da ocultação do seu cadáver e da simulação de tal crime - pelos AA. G... e K..., ora apelados.

Decorrendo da aludida publicação que os meios de prova e indícios a que aquele se reporta são, essencialmente, os referidos e documentados no inquérito criminal a tal respeitante.

Porém, a tese exposta, de que a menor faleceu acidentalmente e esse facto foi ocultado pelos pais, que difundiram, para o iludir, a hipótese de rapto, não reveste novidade - já que a mesma se mostra igualmente contida no relatório, a que alude o nº9 dos factos provados, determinando a constituição como arguidos desses apelados, e veio, na sequência da disponibilização da cópia do inquérito, a ser publicitada pela comunicação social (nºs 65 e 66, dos factos provados).

Como se entendeu no acórdão, desta Secção, proferido na providência cautelar apensa, pretendendo, através dele, o 1º apelante - uma vez que a instituição à qual estava vinculado lhe não permitiu responder a ataques ao seu brio e honorabilidade, enquanto profissional da polícia de investigação criminal - ali expor a sua visão dos factos, tem de se considerar a publicação do livro em causa como traduzindo legítimo exercício do direito de opinião.

E resultando da matéria provada que - para além de se tratar de factos profusamente plasmados no inquérito e mesmo publicitados por iniciativa da Procuradoria-Geral da República - foram eles os próprios apelados a, beneficiando de aí terem fácil acesso, multiplicar-se em entrevistas e intervenções nos órgãos de comunicação social nacionais e internacionais, deve concluir-se terem sido os mesmos quem, voluntariamente, limitou os seus direitos à reserva e à intimidade da vida privada.

Pelo que, ao assim procederem, abriram caminho a que qualquer pessoa opinasse igualmente sobre o caso, contradizendo a sua tese -sem com isso deixar de exercer um legítimo, e constitucionalmente consagrado, direito de opinião e liberdade de expressão do pensamento.
Por outro lado, não se vislumbra que o direito dos apelados a beneficiarem, na sequência da sua constituição como arguidos, das garantias do processo penal - incluindo o direito a uma investigação justa e o direito à liberdade e segurança - possa ser ofendido pelo conteúdo de um livro que, no essencial, descreve e interpreta factos constantes de inquérito cujo conteúdo foi publicitado.
Nada obstando a que, embora não tenham sido julgados suficientes para levarem a uma acusação criminal, tais factos sejam objecto de apreciação diversa, nomeadamente em obra de cariz literário.      
Assim sendo, e por contida nos direitos assegurados, designadamente, nos arts. 37º e 38º da Constituição, se impõe considerar lícita a publicação em causa.
Entendeu-se, todavia, na decisão recorrida que, tendo sido o ora 1º apelante, G..., até 2/10/2007, o coordenador da investigação criminal, relativa ao desaparecimento de M..., estaria aquele, mesmo após a sua aposentação, em 1/7/2008, sujeito aos deveres de sigilo e reserva, regulamentarmente impostos aos funcionários em serviço na Polícia Judiciária.
E, em tais termos, pese embora as razões pessoais invocadas na nota introdutória do livro, numa situação de conflito com os direitos ao bom nome e reputação dos apelados, não gozaria aquele, face aos resultados da investigação, de ampla e total liberdade de expressão - sendo, pois, ilícita a sua conduta, para os efeitos do art. 484º  do C.Civil.
Do que acima, a tal respeito, ficou dito, claramente se intui que a argumentação expendida não pode merecer acolhimento.
Com efeito, e independentemente das razões invocadas pelo apelante para a publicação, mal se compreenderia que um funcionário, além do mais aposentado, mantivesse os aludidos deveres de sigilo e reserva, ficando limitado no exercício do seu direito à opinião, relativamente à interpretação de factos já tornados públicos pela autoridade judiciária, e amplamente debatidos (aliás, em grande medida, por iniciativa dos próprios intervenientes) na comunicação social, nacional e estrangeira.
Na ausência do seu primordial pressuposto, se haverá, pois, de concluir, ao invés do decidido, pela improcedência de qualquer dos pedidos formulados pelos ora apelados - quedando-se prejudicada a reapreciação da matéria de facto, subsidiariamente requerida.

4.Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo provimento a ambos os recursos, revogar a decisão recorrida e, julgando-se a acção quanto a eles improcedente, absolver os RR. apelantes da totalidade dos pedidos.
Custas, em ambas as instâncias, pelos AA. apelados.


Lisboa,14.4.2016


Ferreira de Almeida - relator
Catarina Manso - 1ª adjunta
Alexandrina Branquinho - 2ª adjunta
Decisão Texto Integral: