Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
356/17.6GACSC.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: MAUS TRATOS A MENORES
PREVENÇÃO GERAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Integra o cometimento de um crime de maus tratos do artigo 152º, nºs 1, alínea d) e 2 do C.P. a conduta de quem desfere bofetadas na face do ofendido, seu filho de oito anos, com tal violência que causaram marcas dos dedos na região atingida, durante um considerável período de tempo.

II- Assim como igualmente constitui um crime de maus tratos o comportamento de quem aplicou pancadas com um cinto nas costas, zona do abdómen, braços e pernas da mesma criança, com tal violência que assim provocou na vítima, além das dores e humilhação, também equimoses com 5/6 cm de comprimento, principalmente na região inferior do abdómen, no dorso e coxas, riscas vermelhas paralelas extensas com cerca de 15 cm de comprimento, aos pares, nas coxas e nos braços.

III- A profusão de crimes de violência contra menores no seio da família tem causado intranquilidade pública e notória censura social, sendo indesmentível que as exigências de prevenção geral se revelam como particularmente significativas.

IV- Diante do conjunto de circunstâncias, considerando designadamente a danosidade social própria deste crime de violência em que é vítima uma criança, bem como os elementos da personalidade do arguido revelados nos factos, impõe-se a necessidade do cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada ao arguido, para corresponder a exigências mínimas de tutela dos bens jurídicos e de confiança da comunidade na validade e na vigência das normas jurídicas atingidas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. Nestes autos de processo comum nº 356/17.6GACSC do Juízo Local Criminal de Cascais (J2) da Comarca de Lisboa Oeste, após a realização da audiência de julgamento, o tribunal singular condenou a arguida LA... pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152, nºs 1, alínea d) e 2 do Código Penal, na pena de dois anos e quatro meses de prisão de execução suspensa por três anos, com regime de prova e condenou o arguido VA... pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152, nºs 1, alínea d) e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão de cumprimento efectivo.
Os arguidos LA... e VA..., em requerimento e motivações subscritas por Advogada, interpuseram recurso (fls. 446 a 463).
Se bem conseguimos compreender as motivações e “conclusões” dos recursos, os recorrentes pretendem que este Tribunal da Relação modifique a decisão em matéria de facto e o enquadramento legal desses mesmos factos, para que seja revogada a sentença da primeira instância, absolvendo-se ambos os arguidos ou, se assim não se decidir, condenando-se cada um em pena substancialmente inferior e de execução suspensa. Da motivação consta ainda a alegação de suspeição da imparcialidade da juiz titular deste processo, com alusão ao instituto da recusa (artigos 43º e 45º do CPPenal).
O Ministério Público formulou resposta ao recurso, concluindo que se deve manter a sentença recorrida, nos precisos termos em que foi proferida (fls. 466 a 477).
O Ministério Público, representado por Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da improcedência global dos recursos (fls. 493).
Os arguidos formularam resposta ao parecer, renovando a posição expressa nas motivações.
Recolhidos os “vistos” do juiz adjunto e do juiz presidente da secção e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. O objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deveria sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso.
Os argumentos expostos pelos recorrentes nas “conclusões” abrangem os seguintes temas ou questões, pela ordem lógica de conhecimento:
a) Audibilidade do registo do depoimento do ofendido AT... na audiência de julgamento – nulidade processual;
b) Suspeição da juíza que presidiu ao julgamento;
c) Impugnação da decisão em matéria de facto – erro notório na apreciação da prova.
d) Violação do princípio in dubio pro reo;
Consequências jurídicas dos factos. Escolha e determinação da medida concreta das penas.
3. Os arguidos recorrentes suscitaram nulidade processual por inaudibilidade do registo áudio do depoimento prestado pelo ofendido AT..., invocando, em síntese, que não sendo perceptível a gravação de prova, ficou coarctado o direito dos recorrentes de cumprirem o ónus de especificação previsto no artigo 412º do CPP e, de nessa parte, impugnarem a decisão em matéria de facto.
Estabelece o artigo 363º do Código de Processo Penal que as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta sob pena de nulidade e tem sido considerado pacificamente que as deficiências na gravação que a tornem ainda que parcialmente inaudível, são equiparáveis à ausência de registo da prova, uma vez que um registo cujo conteúdo não se consegue apreender vale tanto como nenhum registo.
Na sequência da nova redacção deste preceito decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, gerou-se divergência na jurisprudência sobre a questão de saber, em caso de inaudibilidade do registo dos depoimentos e declarações prestados na audiência de julgamento, qual a natureza da invalidade processual (se mera irregularidade, ou se nulidade e neste ultimo caso se se seria sanável), qual o meio processual adequado para suscitar essa invalidade processual (se necessariamente em requerimento autónomo perante o tribunal onde ocorrera a ausência ou deficiência do registo ou possivelmente na motivação de recurso que fosse interposto da sentença) e sobre o prazo para que pudesse ser suscitada a invalidade (vide a propósito, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-10-2013, proc. 211/10.0IDBRG-D.G1, do mesmo relator, in www.dgsi.pt).
A questão veio a ser objecto de acórdão proferido do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, fixando por unanimidade a seguinte jurisprudência:
“A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada (acórdão do STJ nº 13/2014, de 3 de Julho, publicado no D.R.I série nº 183, de 23 de Setembro de 2014).
Na fundamentação deste acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça considerou, além do mais, o seguinte:
“Não se tratando de nulidade elencada no artigo 119.º nem sendo expressamente classificada como insanável, pela própria norma, a nulidade prevista no artigo 363.º é, pois, uma nulidade sanável que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º
Por outro lado, é consubstanciada por um vício procedimental cometido durante a audiência.
Com efeito, a omissão da gravação ou a deficiência equiparável a falta de gravação ocorrem na audiência.
Não se trata, por conseguinte, de uma nulidade da sentença. Nulidades da sentença são só as previstas no n.º 1 do artigo 379.º e só para estas, compreensivelmente, está previsto um regime especial de arguição em recurso (artigo 379.º, n.º 2).
As demais nulidades devem ser arguidas, em requerimento autónomo, perante o tribunal onde foram cometidas, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 120.º, ou, na falta de norma especial, no prazo geral de 10 dias indicado no artigo 105.º, n.º 1.”
Não encontramos agora motivo de divergência susceptível de invalidar ou de contrariar o entendimento seguido pelo nosso mais alto Tribunal, sendo por isso de considerar que a imperceptibilidade de depoimento, ainda que seja essencial ao apuramento da verdade, não constitui nulidade processual e, sendo uma irregularidade, fica sanada se for tempestivamente suscitada perante o tribunal onde ocorreu..
No caso concreto destes autos, os arguidos, a sessão em que prestou depoimento o ofendido teve lugar em 22/06/2018, na presença do mandatário da arguida e de defensora do arguido nomeada oficiosamente (fls. 392 a 396), em 24/07/2018 foi entregue cópia de CD com a gravação da prova à defensora oficiosa do arguido (fls. 435), em 25/07/2018 foi requerida e na mesma data entregue cópia do registo à nova mandatária dos arguidos, advogada signatária da motivação de recurso.
Os arguidos não formularam qualquer requerimento de arguição de irregularidade perante o tribunal de primeira instância e suscitaram este problema apenas já nas motivações de recurso em 12/07/2018, quando há muito se encontrava esgotado o prazo de dez dias a contar da data da sessão em que houve a produção de prova testemunhal.
A existir irregularidade processual, a invalidade estaria já sanada por ausência de arguição tempestiva (artigos 118º a 121º, ambos do Código de Processo Penal). (não há inconstitucionalidade)
Segundo pudemos confirmar, o registo áudio acessível na plataforma “Citius” (aplicação Citius Media Studio) apenas permite compreender pequenos trechos ou segmentos das perguntas efectuadas pela Srª juíza e das respostas dadas pelo ofendido AT....
É lamentável que no decorrer ou, pelo menos, logo no fim da inquirição da criança, a Srª funcionária e o tribunal não se tenham apercebido das deficiências da gravação, sanado o problema técnico ou eventualmente logo repetida a inquirição.
Contudo, uma vez que os arguidos mantiveram o acesso à gravação, dispuseram de prazo adequado para procederem ao controlo da qualidade dessa mesma gravação e para suscitarem a invalidade processual, teremos de concluir que o constrangimento na possibilidade de reapreciação da prova não constitui uma ofenda intolerável e inadmissível dos direitos de defesa do arguido, constitucionalmente consagrados no artigo 32º ou em outro preceito da C.R.P.
Nestes termos, inexiste fundamento para declaração de nulidade da prova e de repetição, ainda que parcial, da audiência de julgamento, pelo se indefere a pretensão formulada neste âmbito pelos recorrentes.
4. Na motivação de recurso, os arguidos suscitaram a suspeição da juiz titular do processo, presumindo a parcialidade da magistrada judicial que presidiu ao julgamento destes autos “face à condenação dos arguidos em especial a do 2º recorrente, que aconteceu sem que se tivesse produzido qualquer prova contra este e bem assim a forma sugestiva como conduziu a inquirição do menor”.
 Em conformidade com o artigo 43.º n.ºs 1 e 3 do Código do Processo Penal, a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada a requerimento do arguido, desde que se verifique motivo que seja de tal forma sério e grave que se revele adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Neste âmbito, a jurisprudência e a doutrina têm salientado a necessidade de concordância prática entre os princípios constitucionais da imparcialidade e do juiz natural, relembrando que o artigo 32.°, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa pretende assegurar uma decisão imparcial, por um Tribunal previsto como competente por normas gerais e abstractas contidas em anteriores leis processuais e de organização judiciária, mas a regra do juiz natural também está expressamente consagrada ainda no artigo 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, enquanto elemento central da noção de processo equitativo, e só pode ser derrogada em casos excepcionais, para dar satisfação bastante e adequada a outros princípios de relevo semelhante como sejam os da independência dos tribunais e da imparcialidade dos juízes.
O deferimento do pedido de recusa do juiz dependerá de se poder concluir, do ponto de vista do cidadão médio, que no caso concreto a manutenção do juiz natural poderá fazer perigar objectivamente a confiança pública na administração da justiça e a imparcialidade do tribunal. Para que possa proceder, é imprescindível desde logo que o requerente da suspeição alegue os eventos ou factos concretos de onde resulte inequivocamente um estado de suspeição e de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
A mera discordância na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento e na determinação da pena não constitui fundamento para deferimento de recusa de juiz.
Em todo o caso, decorre inequivocamente do disposto nos artigos 43º a 45º do Código de Processo Penal que essa alegação, visando a futura intervenção do juiz, tem de ser feita em incidente autónomo, com procedimento próprio.
Como é por demais sabido, o recurso interposto de uma sentença tem como objecto essa decisão judicial, pelo que nunca seria este o meio processual adequado para se decidir sobre a eventual recusa ou suspeição de um juiz.
Nestes termos, e sem necessidade de outros considerandos, improcede liminarmente a pretensão dos arguidos.
5. A matéria de facto provada na sentença recorrida é a seguinte (transcrição):
“1. Os arguidos são casados entre si e residem, pelo menos desde junho de 2016, na Rua M..., ...- A, A..., em A..., C...;
2. O ofendido AT... é filho da arguida LA... e nasceu na Roménia a 7 de dezembro de 2008;
3. O ofendido viveu na Roménia com os seus avós maternos até junho de 2016, altura em que veio para Portugal, passando a integrar o agregado familiar dos arguidos;
4. Pelo menos desde o início de março de 2017, com periodicidade variável e por diversas vezes, no interior do domicílio comum (nomeadamente na sala e na casa de banho, onde o arguido pedia ao ofendido que se despisse previamente), o arguido VA... infligiu maus tratos físicos ao ofendido, agredindo-o em várias partes do corpo, o que fez brandindo um cinto nas costas, barriga, braços e pernas do ofendido, causando-lhe dores e vergões nas zonas atingidas;
5. O que aconteceu, designadamente no dia 29 de março de 2017 e em datas anteriores não apuradas desse mesmo mês de março de 2017, com o conhecimento e sem oposição da arguida LA..., mãe do ofendido;
6. No dia 29.03.2017, no interior do domicílio comum, a hora não apurada, a arguida LA..., mãe do ofendido, desferiu número não apurado de bofetadas violentas nas duas faces do ofendido, causando-lhe dores e hematomas nas zonas atingidas;
7. Em consequência das condutas dos arguidos, o ofendido sofreu várias equimoses bilaterais na face, incluindo no pavilhão auricular esquerdo, equimoses com 5/6 cm de comprimento, principalmente na região inferior do abdómen, no dorso e coxas, riscas vermelhas paralelas extensas com cerca de 15 cm de comprimento, aos pares, nas coxas e braços, lesões que lhe determinaram 15 (quinze) dias de doença, 11 (onze) dos quais com incapacidade;
8. O ofendido recebeu assistência médica no Hospital de Cascais no dia 31.03.2017, onde ficou em internamento protetor até ao dia 10.04.2017, data em que foi acolhido na C..., onde ainda se encontra;
9. Em consequência dos factos praticados pelos arguidos, o ofendido sentiu-se desprotegido, humilhado, nervoso e teve medo, sentimentos que ainda manifesta quando recorda os episódios vividos;
10. O ofendido gosta de estar na C... e não tem vontade de voltar a residir com a os arguidos, o que expressa de forma clara e inequívoca;
11. Bem sabiam os arguidos que, agindo como descrito, atingiam a integridade física, magoavam e causavam lesões e dores a AT..., então com 8 (oito) anos, o que quiseram e conseguiram;
12. Ao atuar do modo acima descrito, cada um dos arguidos quis maltratar AT..., ofendendo-o na sua dignidade pessoal, humilhando-o, amedrontando-o e perturbando-o no seu sentimento de segurança, o que decidiram fazer no interior do domicílio comum e conseguiram, muito embora soubessem que, na qualidade de mãe e padrasto do ofendido, sobre eles impendia um dever acrescido de respeito para com este, bem como de cuidar do seu bem-estar físico e psíquico;
13. Bem sabiam os arguidos que, por força dos seus 8 (oito) anos de idade e da sua dependência emocional e económica, AT... não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à atuação dos arguidos, circunstância de que se aproveitaram no sentido descrito;
14. Os arguidos agiram de modo deliberado, livre e consciente, bem sabendo praticarem atos proibidos e punidos por lei;
15. Os arguidos são casados um com o outro e vivem com 2 filhos a cargo (2 anos e 9 meses);
16. A arguida trabalha como empregada de limpeza, auferindo € 580.00 mensais;
17. O arguido trabalha na construção civil e aufere cerca de € 1.000,00 mensais;
18. A arguida não tem antecedentes criminais;
19. O arguido tem os antecedentes criminais que constam do CRC de fls. 389 e seguintes, tendo sido condenado: em 2011, por crime de condução em estado de embriaguez em pena de multa, que pagou; em 2014 e em 2016, por crimes de condução sem habilitação legal em penas de multa, a primeira das quais já paga.”
Na motivação da decisão sobre a matéria de facto da sentença recorrida, consta o seguinte (transcrição):
“O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base na análise crítica e conjugada, ponderada com juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos seguintes meios de prova:
- declarações do arguido na parte em que reconheceu a coabitação e o termo dessa mesma coabitação. Negou, contudo, a essência dos factos, o que não convenceu o Tribunal e foi contrariado pela demais prova produzida e que será analisada de seguida. O arguido negou toda e qualquer agressão física ao menor (afirmou não lhe ter batido com um cinto porque não usa cintos), referiu-se a ele como se já fosse um rapaz crescido e que, provavelmente, as lesões (que referiu nunca ter visto ou dado conta) teriam sido feitas na escola ou com colegas, o que, tendo em conta toda a demais prova (nomeadamente fotografias de fls. 17 e 49 e o facto de ter sido claro que o menor, na escola, era pacífico, bem comportado e não se envolvia em brigas) não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal. Foi evidente a falta de verdade que o arguido colocou nas respostas que deu, nomeadamente no que diz respeito ao dia 30.03.2017. Nesse dia (dia anterior à ida do ofendido ao Hospital, levado pela escola, perante as lesões que apresentava na cara, o estado emocional que evidenciava e a pouca abertura da mãe, quando chamada à escola nesse mesmo dia) o ofendido faltou à escola e o arguido afirmou que faltou porque quis e sem que os arguidos soubessem ou tivessem autorizado, sendo certo que, produzida a prova, ficou seguro e claro que o menor não foi à escola porque os arguidos não o deixaram ir, para que as marcas que tinha na cara, então ainda mais intensas, não fossem vistas na escola (assim o referiu o menor, de forma lúcida e objetiva). No mais, o arguido mostrou-se sempre distante, frio e sem qualquer ligação aos factos imputados, como se fossem nada, como se não tivessem importância e isto fosse tudo um exagero, não tendo esboçado qualquer emoção ou reação (nem ele nem a arguida) quando o Tribunal lhe comunicou, por súmula o conteúdo do depoimento do menor. Foi igualmente evidente algum ascendente que o arguido tem sobre a arguida, mãe do menor (visível quando se preparava para responder a perguntas que lhe foram feitas a ela);
- declarações da arguida LA..., mãe do ofendido, na parte relativa às suas atuais condições de vida, não tendo prestado declarações sobre os factos imputados e mantendo-se imperturbável durante toda a produção de prova;
- depoimento de Ac..., militar da GNR afeta à Escola Segura, que acompanhou a situação, esteve em contacto com a professora do menor, foi ao Hospital e visualizou as lesões que o menino então apresentava, tudo tendo relatado com objetividade e isenção;
- depoimento de AT..., hoje com 9 (nove) anos e que, de forma expressiva, sentida, emocionada e espontânea, tudo relatou ao Tribunal. Referiu, em suma: que a mãe lhe deu, uma única vez, as bofetadas na cara que o deixaram marcado naquele dia e nos seguintes, tendo sido por causa dessas marcas visíveis que a mãe e o padrasto não quiseram que ele fosse à escola no dia seguinte (30.03.2017), mais tendo dito que isso aconteceu porque ele “não respondia logo”; que o padrasto lhe bateu muitas vezes, em casa (na sala, entre a sala e a cozinha, na casa de banho) com um cinto e que ele (menino) lhe pedia que não lhe batesse, que lhe doía muito e que, muitas vezes, o padrasto ia com ele para a casa de banho, ali lhe pedia que se despisse e que era depois de o menino estar despido que o padrasto lhe batia com um cinto; referiu que a mãe assistia e sabia e não fazia nada, não interferia nem dizia ao padrasto para não fazer aquilo. O menor esteve, ao longo de todo o depoimento, choroso, com os lábios a tremer, nervoso, a mexer e a puxar com força a ponta da camisola que vestia, mas foi seguro, lúcido, claro e isento em tudo o que referiu. Franzino, magro e inteligente, referiu gostar de estar na C... e não querer voltar a viver com os arguidos;
- depoimento de MM..., professora do ofendido, que referiu que naquele dia 31.03.2017 o menino chegou à escola a tapar a cara com as mãos e que depois percebeu as lesões que ele tentava esconder, envergonhado, com evidentes marcas de dedos adultos, tendo relatado tudo o que depois fez: conversou com o menino, que se desculpou com uma queda de bicicleta, mas acabou por contar o que tinha acontecido dois dias antes – bofetadas da mãe; ligou para a Escola Segura para se aconselhar, falou com a Coordenadora da escola, chamaram a mãe do menor, reuniram com ela naquele mesmo dia, à hora de almoço (o menor chegou a cruzar-se com a mãe na escola e ficou muito transtornado, segundo referiu) e por ela não ter dado abertura para irem com o menino para o Hospital (parecia querer encerrar ali o assunto, que não era nada de grave), decidiram ir com o menino ao Hospital, onde, depois, ele foi observado e foram tomas as medidas já referidas. Foi segura, isenta (nomeadamente quando referiu que nunca antes tinha suspeitado de nada, uma vez que o ofendido parecia um menino normal, era bem comportado, bom aluno e gostava de ajudar na escola) e objetiva;
- depoimento de CS..., auxiliar na escola do ofendido, que relatou as marcas que lhe viu na cara naquele dia e que até o pai de um outro menino chamou a atenção para o estado da cara do ofendido e preocupação com o que lhe teria acontecido. Referiu que o menino, perguntado, disse ter sido de bicicleta e que, quando a testemunha lhe disse que não pareciam ferimentos de uma queda de bicicleta, que ele começou a chorar, aflito. Mais referiu que era um menino calmo e sossegado. Foi clara e objetiva;
- depoimento de SS..., coordenadora da escola do ofendido, relatou toda a situação detetada naquele dia, as chamadas de atenção feitas pela professora MM..., a reunião com a mãe do ofendido e a ida ao Hospital, que acompanhou. Mais referiu que não suspeitara de nada antes, mas que naquele dia, em face do estado do menino e depois da reunião com a mãe, decidiu atuar e seguir para o Hospital. Ali chegados, presenciou a consulta, a observação do menor e relatou as marcas que no corpo deste viu: marcas em todas as partes do corpo, vários tipos de marca e com colorações diferentes (em diferentes fases de desenvolvimento). Foi espontânea, segura, objetiva e isenta;
- teor de fls. 3 e 4 (auto de notícia), perícia de fls. 15 a 18 e 240 a 241/vº, mail de fls. 27, 28 e 47, fotografias de fls. 17, 48 e 49, informações clínicas de fls. 83 a 141, certidão de fls. 187 a 216 e 266 a 294 (Processo de Promoção e Proteção) e CRC dos arguidos.
Como já se referiu, a arguida não prestou declarações e o arguido negou a factualidade imputada. Contudo, a prova produzida e já referida não deixou ao Tribunal qualquer dúvida sobre a verificação da factualidade dada como provada, pelos motivos expostos.
A intenção com que os arguidos agiram foi dada como provada a partir de conclusões lógicas retiradas da atuação por eles objetivamente desenvolvida e dada como provada, tendo em conta o homem médio colocado na concreta posição dos agentes, no contexto referido e com os conhecimentos que tinham.
O depoimento da testemunha de defesa MLP..., senhoria dos arguidos e deles vizinha, pouco contribuiu para a formação da convicção do Tribunal, uma vez que apenas começou a frequentar a casa dos arguidos depois do nascimento do filho mais novo do casal (já depois dos factos em causa).
Os factos dados como não provados tiveram por base a total falta de prova no sentido da sua verificação.”
6. Os tribunais da relação conhecem dos recursos em matéria de facto e em matéria de direito (artigos 427º e 428º do Código de Processo Penal) e a decisão sobre a matéria de facto pode ser alvo de recurso em dois planos bem distintos:
Uma primeira forma de colocar em crise a decisão de facto consiste na alegação de um dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova.
Sob esta perspectiva, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: como estabelece claramente a norma respectiva (o recurso pode ter por fundamento (…) desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras normas da experiência comum ), trata-se de analisar apenas o teor da fundamentação da sentença, à luz das regras da vivência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, nomeadamente ao conteúdo dos meios de prova produzidos, inclusive da prova oralmente produzida e gravada em audiência.
5. Se bem entendemos a motivação de recurso, os recorrentes não distinguem os diferentes planos, aludindo repetidamente ao erro notório na apreciação da prova e ao disposto no artigo 410.º nº 2, alínea c) do Código do Processo Penal, mas em nenhum lugar da motivação concretizam qualquer raciocínio de onde se possa concluir, com base apenas na leitura do texto à luz de regras normais de vivência comum, que se verifica uma antinomia inconciliável na fundamentação ou um desacerto ostensivo e grosseiro na apreciação da prova e os argumentos aduzidos decorrem sempre de uma distinta apreciação e valoração dos depoimentos das testemunhas e das declarações do arguido[1].
Improcede por isso o recurso no plano dos vícios decisórios do artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, devendo a questão suscitada ser seguidamente apreciada sob a perspectiva da verificação de erro de julgamento em matéria de facto.
7. Num plano distinto, genericamente admitido pelos artigos 412º nºs 3 e 4 e 431º, ambos do Código de Processo Penal, a análise não se limita ao texto da decisão e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.
Ainda assim, o recurso não pressupõe nem se destina a uma nova análise de todos os elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados.
Nestes autos, os excertos das declarações e dos depoimentos que os arguidos transcrevem na motivação dos recursos são as concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar, sem prejuízo de outras que se considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (art.º 412.º n.ºs 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal).
Impõe-se aqui realçar que será sempre irrelevante a mera apreciação genérica e a invocação de erros, contradições e incorrecções no juízo probatório de quem deve julgar, quando essas alegações surgirem desacompanhadas da concretização dos elementos de prova e dos argumentos de natureza lógica que na perspectiva de uma entidade imparcial e independente deveriam ter conduzido a uma decisão diferente em matéria de facto.
Uma vez cumprido pelo recorrente o ónus de especificação e concretização, o tribunal de recurso deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova especificados pelo recorrente e que este considera imporem decisão distinta.
Importa recordar uma vez mais que o contacto pessoal confere ao juiz em primeira instância os meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. Com efeito, na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação.
Assim, a fiabilidade de um depoimento depende em muito da espontaneidade, da pormenorização, da coerência do discurso, bem como da coincidência com os elementos extraídos de outros meios de prova. Note-se bem que a segurança de um testemunho pode desvanecer-se quando se revelam contradições ou incongruências em aspectos essenciais com anteriores afirmações ou perante outros elementos probatórios seguros.
Por fim, interessa notar que a autenticidade e a segurança de um depoimento também depende muito do conteúdo das perguntas e da forma como as mesmas são apresentadas ao declarante. Uma pergunta sugestiva ou capciosa pode destroçar uma afirmação assertiva de uma testemunha. Ora, convém notar que o tribunal de segunda instância não tem possibilidade de fazer as perguntas que entende deverem ser feitas, nem pela forma que considera adequada e processualmente válida.
Por isso, justificadamente se afirma que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada, para os efeitos do artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal, não pode deixar de ter um significado mais exigente do que simplesmente admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida.
Em todo o caso, a atribuição de confiança a um elemento de prova tem subjacente a utilização de regras ou máximas da experiência comum e o tribunal de recurso pode e deve não só questionar a razoabilidade da norma extraída da vivência comum subjacente à opção do tribunal recorrido, mas também apreciar a verosimilhança ou plausibilidade da narrativa de uma testemunha ou declarante, por forma a poder aferir da correcção do raciocínio indutivo constante da decisão em apreço.
8. Os recorrentes impugnam a decisão quanto a todos os factos constantes dos pontos 4 a 7 e 9 a 14 do elenco dos factos provados da sentença recorrida, reconhecendo apenas que os arguidos são casados entre si, que AT... é filho da arguida LA..., nasceu na Roménia a 7 de Dezembro de 2008 e viveu na Roménia com os seus avós maternos até Junho de 2016, altura em que veio para Portugal, passando a integrar o agregado familiar dos arguidos. Os recorrentes admitem ainda que o ofendido recebeu assistência hospitalar no Hospital e Cascais em 31/03/2017, onde ficou internado até ao dia 10/04/2017, data em que foi acolhido na C....
Antes de mais e perante a perspectiva gizada pela defesa dos arguidos, impõem-se algumas considerações genéricas, de perfeita aplicação neste recurso:
O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, leva-nos a ter sempre presente que o juiz não se encontra sujeito a regras, prévia e legalmente fixadas sobre o modo como deve valorar a prova. A lei adjectiva não regula em especial a aptidão probatória do depoimento do ofendido, nem prevê qualquer regra de corroboração necessária, quer em geral, quer para aquele meio de prova específico, quer mesmo para a prova de determinados factos, pelo que a valoração das declarações do ofendido deve respeitar apenas o princípio da livre apreciação da prova.
Como sabemos, a função do julgador não consiste em encontrar a versão que recolhe um número plural ou o maior número de testemunhos, mas, sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum, determinar como os factos se passaram: exista ou não pluralidade e univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade a quem compete julgar depende de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.
A segunda consideração justifica-se pela repetida afirmação dos recorrentes sobre a inexistência ou insuficiência de prova por documento ou por testemunho directo e presencial dos factos imputados a cada um dos arguidos.
Com efeito, nenhuma das pessoas inquiridas afirmou ter percepcionado directamente algum dos arguidos a desferir pancadas no corpo do ofendido. Não há testemunhos presenciais e directos dos factos imputados. Nos crimes que normalmente ocorrem no interior de casas de morada de família torna-se praticamente impossível a existência de testemunhos exteriores às pessoas directamente envolvidas e o tribunal tem de estar particularmente atento às declarações de arguido e de ofendido. A exigência de prova directa de todos os factos nestes crimes nestes crimes levaria seguramente à impunidade generalizada.
No nosso direito processual penal, a prova segura dos factos relevantes tanto pode resultar de declaração confessória, testemunho ou outro meio de comprovação imediata e directa dos eventos materiais, como também de um raciocínio lógico e indutivo com base em factos ou acontecimentos “instrumentais” ou “circunstanciais”, mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência, numa (artigos 124º a 127º do Código de Processo Penal e quanto à utilização de presunções como meios lógicos ou mentais para a descoberta dos factos, os artigos 349º e 351º do Código Civil)[2].
9. Revela-nos a sentença recorrida que a convicção do tribunal sobre os factos impugnados se baseia em primeiro lugar e de uma forma muito relevante no depoimento do próprio ofendido.
Recorde-se aqui que a esse propósito consta na motivação da convicção do tribunal recorrido que AT... relatou, “de forma expressiva, sentida, emocionada e espontânea, que a mãe lhe deu, uma única vez, as bofetadas na cara que o deixaram marcado naquele dia e nos seguintes, tendo sido por causa dessas marcas visíveis que a mãe e o padrasto não quiseram que ele fosse à escola no dia seguinte (30.03.2017), mais tendo dito que isso aconteceu porque ele “não respondia logo”; que o padrasto lhe bateu muitas vezes, em casa (na sala, entre a sala e a cozinha, na casa de banho) com um cinto e que ele (menino) lhe pedia que não lhe batesse, que lhe doía muito e que, muitas vezes, o padrasto ia com ele para a casa de banho, ali lhe pedia que se despisse e que era depois de o menino estar despido que o padrasto lhe batia com um cinto; referiu que a mãe assistia e sabia e não fazia nada, não interferia nem dizia ao padrasto para não fazer aquilo.
Segundo observou o tribunal, O menor esteve, ao longo de todo o depoimento, choroso, com os lábios a tremer, nervoso, a mexer e a puxar com força a ponta da camisola que vestia, mas foi seguro, lúcido, claro e isento em tudo o que referiu. Franzino, magro e inteligente, referiu gostar de estar na C... e não querer voltar a viver com os arguidos;
Os documentos clínicos e os relatórios de exame pericial de fls. 15 a 18 e 240 a 241 comprovam inequivocamente que a criança, então de oito anos de idade, sofreu várias equimoses bilaterais na face, incluindo no pavilhão auricular esquerdo, com marcas de dedos, equimoses com 5/6 cm de comprimento, principalmente na região inferior do abdómen, no dorso e coxas, riscas vermelhas paralelas extensas com cerca de 15 cm de comprimento, aos pares, nas coxas e braços.
Segundo o mesmo relatório pericial, as lesões examinadas em 31 de Março de 2017 e em 25 de Julho de 2017 demandaram um período de quinze dias para consolidação, onze dos quais com afectação da capacidade para a actividade escolar. A fotografia de fls. 17 é também eloquente, confirmando-nos a gravidade das lesões sofridas.
Em nossa apreciação, a mera observação dos sinais existentes no corpo da vítima, em vários estádios de evolução, leva qualquer cidadão medianamente conhecedor da vida a concluir que o ofendido AT... foi vítima de agressões físicas, violentas e repetidas no tempo. Dito de outro modo: a probabilidade de uma explicação diferente, isto é, de que aquelas marcas se tivessem ficado a dever a quedas involuntárias ou a actividade lúdica é praticamente desprezível e destituída de razoabilidade.
Ao mesmo tempo, cumpre salientar que a localização e aparência das lesões são consentâneas com a descrição efectuada pelo ofendido e não se antevê que motivo poderia haver para a criança mentir, “incriminando” a mãe e o padrasto.
Tanto quanto para nós ressalta da audição do registo áudio a partir da plataforma Citius, as testemunhas MM..., CS... e SS... prestaram os seus depoimentos nos termos constantes da motivação da convicção do tribunal acima transcrita.
Será aqui de realçar que as testemunhas viram os sinais na face do ofendido, que logo identificaram como sendo produzidas por pancadas com a mão aberta.
Como se escreveu na sentença, a testemunha SS..., professora e coordenadora da Escola do ofendido, viu marcas em todas as partes do corpo, de vários “tipos” e com colorações diferentes (isto é, diferentes fases de desenvolvimento). Esta testemunha referiu que na ocasião do exame médico, o ofendido, questionado sobre quem lhe tinha causado aquelas lesões, respondeu que “tinha sido a mãe e tinha sido o pai”.
Qualquer pessoa sabe que agredir uma criança de oito anos, com a violência suficiente para produzir as numerosas, extensas e persistentes lesões que foram examinadas no corpo de AT..., só se compreende enquanto forma voluntária de atingir a dignidade pessoal e de causar sentimentos de humilhação, medo e perturbação do sentimento de segurança da pessoa visada. O que certamente foi alcançado, segundo elementares regras normais extraídas da vivencia comum.
Como se escreveu na sentença recorrida, a prova segura da intenção com que os arguidos agiram resulta de conclusões lógicas retiradas da actuação por eles objectivamente desenvolvida, tendo em conta o homem médio colocado na concreta posição dos agentes, no contexto referido e com os conhecimentos que tinham.
Em lado algum transparece que no processo de formação da convicção, o tribunal tenha enfrentado uma situação de dúvida sobre a ocorrência dos factos desfavoráveis ao arguido e que julgou provados.
Sendo inquestionável que agora em sede de recurso também não se nos suscita dúvida que justifique a aplicação do princípio in dúbio pro reo.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual, improcede igualmente a argumentação do recorrente neste âmbito.
Em conclusão:
O tribunal de primeira instância ponderou todas as provas segundo critérios de objectividade e à luz das regras da experiência comum e da normalidade, no pleno uso do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal. Ainda que se saiba da vulnerabilidade de uma criança de nove anos de idade, não existe qualquer obstáculo processual a que o tribunal atribua credibilidade ao depoimento do ofendido, corroborado pelos relatórios de exame pericial e, em alguns aspectos, parcialmente pela prova testemunhal.
Agora em recurso, na valoração e articulação conjunta que fazemos dos elementos probatórios disponíveis, depois de termos procedido à audição do registo áudio das declarações, depoimentos e ao exame dos relatórios médicos, não encontramos no processo de formação da convicção do tribunal recorrido sobre todo o conjunto dos factos provados qualquer erro de racionalidade, a infracção de regras de experiencia comum ou outro fundamento que nos imponha uma solução diferente da que consta da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Deve por isso manter-se, como se mantém na íntegra, a decisão do tribunal de primeira instância em matéria de facto.
10. São susceptíveis de preencherem a conduta típica do crime de violência doméstica do artigo 152º nºs 1, alínea d) e 2 do Código Penal os actos que afectem de uma forma intensa a saúde física, psíquica, emocional ou a liberdade de determinação e assim ofendam a dignidade da vítima, enquanto pessoa inserida numa determinada relação interpessoal de proximidade e confiança.
No caso destes autos, a arguida LA... e o arguido VA..., agindo voluntária e conscientemente, infligiram maus tratos corporais a uma criança de oito anos, no domicilio comum, ambos revelando crueldade e afectando a saúde física psíquica e emocional da vítima: a arguida actuou desferindo bofetadas com tal violência que ficaram marcas dos seus dedos na face do ofendido, seu filho, durante um considerável período de tempo. As pancadas na face aproximaram-se e atingiram a zona do ouvido. O arguido aplicou pancadas com um cinto nas costas, zona do abdómen, braços e pernas do enteado AT..., com tal violência que causou na criança, além das dores e humilhação, também equimoses com 5/6 cm de comprimento, principalmente na região inferior do abdómen, no dorso e coxas, riscas vermelhas paralelas extensas com cerca de 15 cm de comprimento, aos pares, nas coxas e nos braços.
Os factos provados revelam que cada um dos arguidos cometeu efectivamente, um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 alínea d) e nº 2, do Código Penal, abstractamente punível com pena de dois a cinco anos de prisão.
11. Segundo o entendimento sedimentado na doutrina e jurisprudência do nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, o tribunal deve atender à culpa do agente, enquanto limite superior e inultrapassável da pena, mas a pena assume hoje um sentido fundamentalmente preventivo, não lhe cabendo como finalidade a retribuição qua tale da culpa.
Considerando que as finalidades de aplicação das penas incidem fundamentalmente na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade, o limite máximo da moldura do caso concreto deve fixar-se na medida considerada como “óptima” para a protecção dos bens jurídicos e para a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência das normas infringidas, consentida pela culpa do agente, enquanto o limite inferior há-de corresponder a um mínimo, ainda admissível pela comunidade para satisfação dessas exigências tutelares.
Por fim, entre os limites desta “sub moldura”, o tribunal deve fixar a pena num quantum que traduza a concordância prática dos valores decorrentes das necessidades de prevenção geral com as exigências de prevenção especial que se revelam no caso concreto, quer na vertente da socialização, quer na de advertência individual de segurança ou inocuização do delinquente .
Nesta tarefa de individualização, o tribunal dispõe dos módulos de vinculação na escolha da medida da pena constantes do artigo 71.º do Código Penal, consignando os critérios susceptíveis de “contribuírem tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-04-2008, Rel Souto Moura, cit. por Martins, A. Lourenço, Medida da Pena, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp242).
12. Como adequadamente se ponderou na sentença recorrida, as circunstâncias com relevo na determinação da medida da pena e que não se encontram já valoradas no tipo legal agravado são fundamentalmente as seguintes:
- Os arguidos agiram perante uma criança por quem deviam guardar um acrescido dever de protecção e de respeito.
Deve ser tida em conta a intensidade da violência utilizada nas agressões, bem revelada nas marcas no corpo.
A censurabilidade do comportamento do arguido é ainda acrescida em relação à da arguida, pela forma cruel das pancadas com o cinto.
Por outro lado, não se esquecerá que os maus tratos aconteceram num limitado período de tempo;
- As exigências de prevenção geral revelam-se muito elevadas, pelo alarme social que este tipo de crime compreensivelmente provoca na nossa sociedade e pela profusão de crimes contra de violência doméstica em que as vítimas são crianças e adolescentes;
- Em benefício dos arguidos importa considerar a integração familiar e social, com dois filhos muito pequenos a cargo, a ausência de antecedentes criminais da arguida e ausência de registo por este tipo de crime por parte do arguido.
Sopesando em conjunto todas as enunciadas circunstâncias, coincidimos com a sentença recorrida no entendimento de que as penas de dois anos e quatro meses de prisão para a arguida e de dois anos e dez meses de prisão para o arguido, correspondem adequadamente às exigências de tutela das expectativas da comunidade e às necessidades de prevenção especial, assim como são ainda consentidas pela culpa exteriorizada nos factos por cada um dos arguidos.
13. Desde logo por força do princípio da proibição da reformatio in pejus, sempre haveria que manter a condenação da arguida LA... na pena de suspensão de execução da prisão. Coincidimos no entendimento da sentença recorrida que a suspensão se deve fixar pelo período de três anos, subordinada ao regime de prova.
14. A suspensão de execução da prisão de VA... depende de uma apreciação relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de antecipar ou prever se a ameaça da pena se revela como adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição, o mesmo é dizer, para garantir a tutela dos bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade, entendida aqui como perspectiva que o condenado não volte a delinquir no futuro.
Este juízo de prognose exige a valoração em conjunto de todas as circunstâncias que tomem possível a conclusão sobre a conduta futura do arguido, aqui se incluindo os elementos disponíveis referentes sobre a personalidade, as condições de vida do agente (relevando a inserção familiar e profissional), a sua conduta anterior ao facto (considerando os antecedentes sobre o cometimento de crimes de idêntica ou diferente natureza), as circunstâncias concretas do crime (incluindo as motivações e os fins visados na conduta) e o comportamento posterior, aqui assumindo importância saber do reconhecimento da censurabilidade da conduta e da reparação do dano[3] .
A profusão de crimes de violência contra menores no seio da família tem causado intranquilidade pública e notória censura social, sendo indesmentível que as exigências de prevenção geral se revelam como particularmente significativas.
Dever-se-á ter presente que o arguido está integrado profissional e familiarmente e não regista antecedentes criminais por delitos desta natureza.
Porém, por outro lado, não se poderá deixar de notar também que as circunstâncias concretas do comportamento, com utilização repetida de violência absolutamente desproporcionada e injustificada, revelam necessariamente sentimentos de crueldade e de indiferença pelo sofrimento de uma criança indefesa. Estas circunstâncias, ainda que atinentes ao juízo de culpa, podem e devem ser valoradas nesta sede, por fazerem temer pela reincidência[4].
 Sabemos que um sincero arrependimento, a demonstração de capacidade de autocrítica ou uma postura colaborante na descoberta da verdade poderiam contribuir para atenuar o receio de cometimento de factos da mesma natureza.
O que no caso não ocorre.
Naturalmente que o arguido nunca poderá ser prejudicado pela circunstância de não reconhecer o cometimento dos factos e de manter uma postura de frieza e de indiferença perante os relatos da criança na audiência de julgamento, mas também é certo que não pode beneficiar de moderação das preocupações de prevenção.
Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-01-2010,
“O arguido tem o direito ao silêncio, ou a contar a “sua verdade”, cuja invocação, em circunstância alguma o pode prejudicar. Porém, o que está em causa não é a valoração de tal postura processual em sentido negativo, mas sim a valoração num sentido positivo, em termos de prevenção especial, da conduta contrária, ou seja, de uma assunção plena, e responsável, do acto ilícito cometido a qual inexiste no caso vertente.” (Santos Cabral, processo 6040/02.8TDPRT.S1, ww.dgsi.pt).
 Diante deste conjunto de circunstâncias, considerando designadamente a danosidade social própria deste crime de violência em que é vítima uma criança, bem como os elementos da personalidade do arguido, concluímos que uma reacção institucional de Justiça que se limitasse a uma mera censura do facto e a ameaça da prisão, ainda que com regime de prova, não satisfaria adequadamente os sentimentos de reprovação social pela conduta global do arguido VA..., nem as exigências de prevenção geral, consistindo antes numa mensagem de impunidade e de falência do regime penal.
Concluímos assim que a necessidade do cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada se impõe para corresponder a exigências mínimas de tutela dos bens jurídicos e de confiança da comunidade na validade e na vigência das normas jurídicas atingidas.
Termos em que improcedem na íntegra os recursos dos arguidos.
15. Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação de cada arguido nas custas pela actividade processual a que deu causa (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, as custas incluem, além dos encargos, uma taxa de justiça, a fixar a final, entre três e seis UC.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em quatro UC para cada um dos arguidos.
16. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento aos recursos dos arguidos LA... e VA... e em confirmar na íntegra a sentença recorrida.
Pelo decaimento no recurso, vai cada um dos arguidos condenado em quatro UC de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Outubro de 2018.
Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.
                                                
João Lee Ferreira
Nuno Coelho

[1] Deve contudo manter-se a distinção. Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2011, Rel. Cons. Pires da Graça, proc. nº 7266/08.6TBRG.G1.S1, “A apreciação da prova é um juízo valorativo, de raciocínio objectivo, de ponderação do que é revelado por cada prova produzida, e em conjugação com as demais, e eventual erro que daqui derive é um erro de julgamento na credibilidade de determinada prova, cuja impugnação é feita através do recurso em matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. O erro notório na apreciação da prova, é um conceito jurídico processual, técnico legal, que ao subsumir-se ao disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação (…).
[2] Neste âmbito, seguimos de muito perto o entendimento exposto nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007, Armindo Monteiro, proc. 07P4588, de 12-03-2009, Santos Cabral proc. 09P0395, de 06-10-2010, Henriques Gaspar, proc. 936/08.JAPRT, de 07-04-2011, Santos Cabral proc 936/08.0JAPRT.S1, de 09-02-2012, Armindo Monteiro, proc. 1/09.3FAHRT.L1.S1, de 09-02-2012, Santos Cabral, proc. 233/08.1PBGDM.P3.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-01-2009, Carlos Almeida, proc. 10693/08, 3ª secção e do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-05-2005, Oliveira Mendes, proc. 1056/05, todos acessíveis in www.dgsi.pt , bem como no estudo “Prova Indiciária e Novas Formas de Criminalidade”do Juiz Conselheiro Santos Cabral, acessível in www.stj.pt; Na doutrina SILVA, Germano Marques da, “Curso”, II, Lisboa, Verbo, 1993, p 82, PEREIRA, Patrícia Silva, Prova Indiciária no Âmbito do Processo Penal, Coimbra, Almedina, 2016, CASTANEDA, Juan Antonio Rosas “Algunas consideraciones sobre la teoría de la prueba indiciaria en el proceso penal y los derechos fundamentales del imputado”, in http://www.porticolegal.com/pa_articulo.php?ref=285, acedido em 18/06/2012, ALCOY, Francisco Pastor, “Prueba de indicios, credibilidad del acusado Y presunción de Inocência, Tirant lo Blanch, Valencia, 2003, BATTAGLIO, Silvia, “Indizio” e Prova Indiziaria” nel Processo Penale”, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, Giufrèditore, Ano XXXVIII, 1995, p 375. TONINI, Paolo, “Manuale di Procedura Penale”, 11ª ed. Giuffré Editore, Milano, 2010, pp 216 e “La Prova Penale”, 4ª ed. Cedam, Pádua, 2000, pp. 32ª 43, MITTERMAIER, “Tratado dela Prueba en Materia Criminal”, Madrid, Hijos de Réus Editores, 6ª edição, p 366 e p 387.

[3] Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Notícias, 1993, p. 332 e 333 , Robalo Cordeiro, A Determinação da Pena in Jornadas, CEJ, II, Lisboa 1998, p. 48, Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida concreta da pena privativa da liberdade e a escolha da Pena RPCC I 1991, nº 2, 243, .Hans-Henrich Jeschek, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, Bosch, Barcelona, p.1151 a 1165
[4] Vide, a propósito, Hans-Henrich Jeschek, loc. cit. p.1155