Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9782/19.5T8LSB.L1-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
PERDA TOTAL DO VEÍCULO
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
AQUISIÇÃO DE VIATURA PELO LESADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Na perspectiva da substância do direito de reparação da perda total da viatura, não se concebe que, na operação aritmética, os valores em equação reportem à data do pagamento da indemnização ao lesado, visto que, a reconstituição dos elementos integrantes deverá reflectir, necessariamente, a data da ocorrência do evento danoso, seja no tocante ao valor comercial da viatura, seja do valor do salvado, operando-se a devida actualização monetária através dos juros de mora incidentes sobre o total indemnizatório apurado, sob pena de um indevido e ilícito locupletamento. 
2. Prosseguindo a densificação jurisprudencial do alcance do direito de reparação pela privação do uso do veículo, a compensação monetária a fixar pressupõe a intercepção de juízos de equidade.
3. Evidenciando-se a perda total da viatura e a aquisição de uma outra viatura pelo lesado, a partir daí não subsiste, ipso facto, a frustração das vantagens de utilização, ou outro dano concreto apurado, que razoavelmente justifique compensação monetária acrescida.    
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:  Acordam os Juízes da 7ªSecção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.RELATÓRIO
1.Da Acção
J… instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, contra, Seguradoras Unidas, S. A [1]pedindo: a condenação da Ré a pagar-lhe:  a)a quantia de 16.400,00 Euros a título de indemnização pela perda total do veículo de sua propriedade,  acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do acidente e até integral pagamento, a liquidar em execução de sentença;  b)a quantia de 2.273,03 Euros a título de reembolso do custo de deslocações feitas pela  Autora em táxis e veículos de aluguer, bem como outras que venha a efectuar, durante o  período de paralisação da viatura, a liquidar em execução de sentença; c)a pagar-lhe uma compensação diária de 50,00 Euros, pela privação do uso do veículo,  desde o dia 6.11.2018 e até integral pagamento, a liquidar em execução de sentença e, d)a pagar-lhe os custos de aparcamento do veículo que eventualmente venham a ser apresentados à Autora por via da sua imobilização durante a pendência da acção.    
Em fundamento sintetizado, alegou para tanto que no dia 5.11.2018, em Lisboa,  ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo da sua propriedade ...-VB-...,  e o veículo  ...-LB-..., seguro na Ré, sendo a viatura da Autora na altura conduzido pelo seu companheiro de facto, e  que o sinistro se deveu ao facto de o veículo seguro na demandada ter invadido a faixa onde o veículo da Autora circulava, ter o seu veículo sofrido danos que a Ré considerou implicarem a sua perda total por o custo da sua reparação ser superior ao seu valor de mercado ( de 16.400,00 Euros ) e que a Ré, apesar de ter apresentado à Autora uma proposta de indemnização condicional, de 9.749,00 Euros, veio a declinar a responsabilidade pelo sinistro, acrescentando ainda que está privada do veículo desde o sinistro e que o usava diariamente para deslocações pessoais, familiares e de trabalho e que, por isso, se viu forçada a recorrer ao uso de táxis, alugueres e empréstimos desde então, tendo já despendido, com deslocações em táxi e alugueres, a quantia de 2.273,03 Euros.
Contestou a Ré, impugnando a dinâmica factual do acidente e imputando ao condutor do veículo da Autora a sua ocorrência; de qualquer modo, alega que ao valor do veículo terá de ser abatido o valor do salvado, propriedade da demandante e na sua posse e impugnando parte dos valores peticionados pela Autora. 
Prosseguindo a instância os demais trâmites, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, vindo o tribunal a quo a proferir sentença que culmina no seguinte dispositivo decisório:  « Julgar parcialmente procedente, por provada, a acção e, consequentemente, condenar a Ré a pagar à Autora as seguintes quantias:  a)a quantia de 9.749,00 Euros, a título de indemnização pela perda total do veículo; b)a quantia de 2.221,78 Euros, a título de indemnização pelos danos decorrentes das despesas incursas em deslocações em táxis e com o aluguer de uma viatura e, c)a quantia diária de 10,00 Euros, a contar de 6.11.2018 e até 31.12.2019, a título de indemnização pelo dano de privação do veículo, tudo acrescido de juros vencidos e vincendos a contar da citação e até integral pagamento, juros esses à taxa legal para os créditos dos não comerciantes. No mais, julgar improcedente a acção e absolver a Ré do demais pedido.»
2. Do Recurso                                                                           
Inconformada, a Autora interpôs recurso da sentença.
As suas alegações encerram com as conclusões que se transcrevem:
 «1 Para quantificação do valor do salvado, a deduzir no valor venal, aplicam-se as normas contidas nos art°. 41°, n° 3 do DL 291/07 e 611° do CPC. O sentido em que tais normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas era o de, no caso de declinação de responsabilidade pela seguradora, o valor do salvado a considerar para efeitos de quantificação da indemnização, é aquele que for apurado no momento do encerramento da discussão, permanecendo o salvado na posse do proprietário/lesado;
2 — Não se conhecendo o valor do salvado à data do encerramento da discussão, isso não constitui razão para se tomar o valor apurado à data do acidente (ocorrido 19 meses antes), uma vez que o tribunal dispõe do mecanismo previsto no n°2, do art°. 609° do CPC;
3 — O entendimento plasmado no segmento da decisão em análise é susceptível de beneficiar o comportamento infractor da seguradora que, ilicitamente (como resulta do dispositivo) declinou a responsabilidade, não pagando quando devia tê-lo feito, em prejuízo da lesada que se viu obrigada a demandar, suportando os custos inerentes e o tempo de pendência processual, ainda beneficiando a seguradora da vantagem de ver deduzido na indemnização o valor que o salvado teria anos antes e que, manifestamente, já não tem no momento em que o tribunal, por fim, reconhece o direito da Recorrente. Assim vale a pena não pagar e aguardar, quase dois anos, que o tribunal decida;
4 — Se o juiz a quo considera que o direito á indemnização por privação de uso do veículo sinistrado é independente do facto de o lesado poder ter outro ou outros veículos, então existe uma contradição entre o fundamento e a decisão pois, a final, veio a decidir que esta obrigação de indemnização da seguradora cessa no momento da aquisição de outro veículo, em 31/12/2019;
5 — O sinistro, com perda total, não faz com que o veículo deixe de ter proprietário. A eventual existência de outro ou outros veículos, à disposição do proprietário/lesado, não apaga o dano decorrente da privação de uso daquele que se encontra sinistrado (o que pode é fazer variar a sua intensidade). Este dano decorre, por natureza, da propriedade e não depende de existir ou não outro veículo (excepto se esse veículo for fornecido pela seguradora em substituição do sinistrado). Entender de outra forma seria contrariar a norma vertida no art°. 562° do CPC;
6 — A indemnização, à razão de 10E/dia por privação de uso, nos termos das disposições conjugadas dos art°. 42°, n° 1 e 2 do DL 291/07 e 562° do CC, deve ser contada entre o dia do acidente e o dia em que a seguradora colocar à disposição da Recorrente o pagamento da indemnização devida e em que foi condenada, não sendo relevante a existência de outro veículo. Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, com as legais consequências.»
*
A Ré nas contra-alegações refutou a argumentação da recorrente, pugnando pela improcedência do recurso e a manutenção do decidido.                                                                    
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O recurso foi regularmente admitido como apelação e com efeito devolutivo.  
Corridos os Vistos, cumpre decidir.
3.O Objecto do recurso
Consabido que a actuação do tribunal de recurso está delimitada pelas conclusões do recorrente, haverá que decidir se, o valor do salvado deve repercutir actualização à data da sentença, e se, a privação do uso da viatura é extensível até à data do efectivo recebimento da compensação.
 Suscitando–se   o debate e decisão sob os seguintes tópicos recursivos:
- O “salvado” e o decurso temporal da lide; o valor à luz do critério estabelecido no artigo 41.º n.º 3 do DL 291/2007, de 21de Agosto (SORCA);
- O dano pela privação do uso do veículo sinistrado; a natureza e pressupostos da atribuição e delimitação temporal do direito; juízos de equidade.          
II. FUNDAMENTAÇÃO
A. Os Factos
O Tribunal a quo deu por provada a seguinte factualidade:
1 - A Autora é proprietária do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-VB-..., de marca Citroen, modelo KF, do ano de 2014.
2 - No dia 5.11.2018, pelas 16 horas, o veículo aludido em 1 - circulava na Avª Infante D. Henrique, no sentido Lisboa/Sacavém.
3 - No dia, hora e local aludidos em 2 - o veículo da Autora era conduzido por Bruno Pereira Semedo, que vivia e vive em união de facto com a Autora.
4 - No dia, hora e local aludidos em 2 - o veículo da Autora circulava na faixa mais à esquerda, junto ao separador de betão - que delimitava os dois sentidos de trânsito da via - e dentro da sua faixa de rodagem quando, próximo do lote 306, antes da entrada do túnel que passa por baixo da Avª Marechal Gomes da Costa, foi embatido, na sua lateral direita, pela lateral esquerda do veículo ...-LB-..., ao serviço como táxi, o qual invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o veículo aludido em 1 -.
5 - Em resultado do embate aludido em 4 -, o veículo da Autora foi projectado para o seu lado esquerdo, embatendo, por sua vez, contra o separador central de betão ali existente ( com cerca de 80 cm de altura ), com a sua lateral esquerda.
6 - Em consequência do choque aludido em 5 -, o veículo da Autora foi projectado para o seu lado direito, ocorrendo um novo embate entre o mesmo e o veículo de matrícula ...-LB-..., provocando um embate ligeiro deste último veículo contra outro que seguia no mesmo sentido, à direita.
7 - Após os embates aludidos supra o veículo da Autora e o de matrícula ...-LB-... vieram a imobilizar-se sobre a linha tracejada que separa as duas faixas de rodagem, ficando o veículo da demandante parado mais à frente.
8 - Imediatamente antes da invasão da faixa da esquerda e do embate aludidos em 4 -, o veículo de matrícula ...-LB-... circulava na mesma via em que circulava o veículo da Autora e no mesmo sentido de trânsito, transitando pela faixa imediatamente à direita daquela por onde circulava o veículo da Autora.
 9 - À data referida em 2 - a responsabilidade civil emergente de danos decorrentes da circulação do veículo de matrícula ...-LB-... encontrava-se transferida para a Ré através da apólice de seguro com o nº 0003986599, contrato de seguro inicialmente outorgado com a Companhia de Seguros Tranquilidade, S. A., cuja denominação se alterou para Seguradoras Unidas, S. A. por acto registado em 30.12.2016, a qual incorporou, por projecto de fusão de 1.10.2020, a Generali Vida – Companhia de Seguros, S. A. e a Generali Companhia de Seguros, S. A., alterando a sua denominação para Generali Seguros, S. A.
10 - Em consequência do acidente e dos embates aludidos supra, o veículo da Autora e o de matrícula ...-LB-... ficaram com os danos visíveis nas fotos constantes dos documentos de fls. 8 e 11, verso a 13, verso, dos autos, ficando a viatura da demandante, designadamente, com danos na lateral direita e esquerda e roda direita dianteira, ficando esta inutilizada.
11 - Na sequência dos embates aludidos em 4 - e 5 - o veículo da Autora ficou impossibilitado de circular, tendo sido removido do local para a Citroen Sacavém, onde foi submetido a peritagem pela Ré.
12 - A reparação do veículo da Autora foi orçada, em sede da peritagem aludida em 11 -, em 22.262,00 Euros, sem desmontagem, podendo, efectuada esta, vir a ascender a mais cerca de 10 a 20% daquele valor.
13 - Em 14.12.2018 a Ré considerou elaborou boletim de perda parcial do veículo da Autora, atenta a circunstância de o valor orçado da sua reparação ser de 22.262,00 Euros, o seu valor venal de mercado ser de 16.400,00 Euros e o valor do salvado ser de 6.651,00 Euros, maior valor oferecido em sede de leilão electrónico lançado pela Ré.
14 - Por carta datada de 14.1.2019 a Ré comunicou ao companheiro da Autora, sob o “Assunto: Proposta condicional de perda parcial “o seguinte: “Exmo/a(s) Senhor/a(s): No seguimento da vistoria efectuada constatámos que viatura de V. Exa. Sofreu danos cuja reparação se torna excessivamente onerosa face ao seu valor de mercado antes do acidente. Na situação em concreto, considerando o valor estimado para a reparação 22.262,00 € na oficina Psar Portugal, Sa, a melhor propôs a de aquisição da sua viatura com danos ( 6.651,00 € ), bem como o seu valor de mercado antes do acidente ( 16.400,00 € ) e embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, propomos condicionalmente a quantia de 9.749,00 € solicitando que nos remeta fotocópias do bilhete de identidade, cartão de contribuinte do proprietário e documentos da viatura Na eventualidade de pretender desde já comercializar o veículo sinistrado pelo valor acima referido, indicamos desde já a entidade que deverá contactar: A2B Visual Av. D. João II, 4º Piso, Edf. Mar Vermelho – Parque das Nações
1990-095 Lisboa Tel/Fax:211212075Alertamos que a proposta de aquisição termina no dia 09.02.2019, pelo que a partir desta data não nos responsabilizamos pela redução deste valor. ) Na hipótese de V. Exª não pretender reparar o veículo nem o comercializar no estado em que ele se encontra, cumpre-nos adverti-lo(a) para a obrigação de obter um certificado de destruição da viatura com vista ao cancelamento da matrícula e do registo de propriedade de acordo com as disposições legais dos veículos em fim de vida. Se pretender obter algum esclarecimento adicional, por favor contactem-nos através de um dos meios abaixo indicados. Com os nossos melhores cumprimentos, (assinatura) “.
15 - Da carta referida em 14 - constavam os meios de contacto da Ré, quer telefónicos, fax, email e o respectivo site, além da morada da respectiva sede.
16 - Por carta datada de 15.2.2019 - constante de fls. 15, verso dos autos, cujo teor, no mais se dá por reproduzido - a Ré comunicou ao companheiro da Autora que, de acordo com os elementos disponíveis, o sinistro ocorrera devido ao facto de o mesmo ter infringido o disposto no artº 24º, nº 1 do C. da Estrada e que, consequentemente, declinava a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização resultando do mesmo sinistro.
17 - À data aludida em 2 - a responsabilidade civil decorrente dos danos emergentes da circulação do veículo da Autora encontrava-se transferida para N – Seguros, S. A. através da apólice 5102136, mediante seguro outorgado por Bruno Pereira Semedo com tal entidade.
18 - O valor comercial do veículo da Autora era, à data do acidente, de 16.400,00 Euros.
19 - No local do sinistro a Av. Infante D. Henrique tem 4 faixas de rodagem no sentido Lisboa/Sacavém e, na altura, havia trânsito relativamente intenso no local.
20 - A Autora e o seu companheiro têm dois filhos em comum, sendo um nascido em 14.9.2007 e outro em 16.8.2011, ambos estudantes e que frequentavam, à data de 5.11.2018, estabelecimentos escolares integrados no Agrupamento de Escolas D. Dinis, em Lisboa.
21 - A Autora não tem carta de condução, sendo o veículo aludido em 1 - conduzido pelo seu companheiro.
22 - Até à data aludida em 2 - a Autora utilizava o veículo referido em 1 -, conduzido pelo seu companheiro, para transportar os filhos de casa para a escola e vice-versa, para os fazer transportar para a frequência das actividades extra- escolares que os mesmos frequentavam e para os levar a consultas médicas. 23 - A Autora explorava à data do sinistro e explora ainda hoje um estabelecimento de café/pastelaria.
24 - A Autora e o seu companheiro utilizavam ainda o veículo aludido em 1 - para as deslocações para aquisição e transporte de produtos para a pastelaria aludida em 23 - e para as suas deslocações profissionais, de lazer, enquanto família e, em suma, para as deslocações que precisavam de efectuar.
25 - A partir da data aludida em 2 - a Autora e seu companheiro não voltaram a poder usar o veículo aludido em 1 -.
26 - A partir da data aludida em 2 - e até cerca de um ano antes de 20.11.2020, a Autora e o seu companheiro utilizaram, para efectuar as deslocações aludidas em 22 - e 24 -, táxis, veículos emprestados e um veículo alugado pelo companheiro da Autora, entre 2.4.2019 e 15.4.2019.
27 - Pelo aluguer aludido em 26 - o companheiro da Autora liquidou a quantia de 415,00 Euros.
28 - Em deslocações efectuadas pela Autora e/ou seu companheiro, em táxis, como aludido em 26 -, a Autora e seu companheiro pagaram a quantia de 1.806,78 Euros, tendo as mesmas facturas sido emitidas ora em nome da Autora, ora em nome do seu companheiro, por ser este o tomador do seguro aludido em 17 -.
29 - Em data não concretamente apurada, mas perto do final do ano de 2019, a Autora adquiriu outra viatura automóvel.
B. Do Mérito do recurso   
1.  Draft do litígio
Discutida e julgada a causa, o tribunal a quo decidiu que, o acidente de viação objecto do litígio, que envolveu a viatura da Autora e a viatura segurada pela Ré, se ficou a dever à culpa exclusiva do condutor desta última, e em consequência, condenando-a ao ressarcimento dos danos patrimoniais apurados, respectivamente : a)a quantia de 9.749,00 Euros, a título de indemnização pela perda total do veículo; b)a quantia de 2.221,78 Euros, a título de indemnização pelos danos decorrentes das despesas incursas em deslocações em táxis e com o aluguer de uma viatura e, c)a quantia diária de 10,00 Euros, a contar de 6.11.2018 e até 31.12.2019, a título de indemnização pelo dano de privação do veículo, tudo acrescido de juros vencidos e vincendos a contar da citação e até integral pagamento, juros esses à taxa legal para os créditos dos não comerciantes. 
A Autora permanece, contudo, inconformada no que se refere aos valores indemnizatórios fixados na sentença recorrida, no segmento da perda total do seu veículo, pugnando pela actualização do valor do salvado até ao momento, e no que diz respeito à componente compensatória da privação do uso do veículo, que o seu termo se estenda até ao pagamento efectivo pela Ré.  
Estabilizada a matéria de facto provada, posto que a apelante não impugnou, a reapreciação recursiva confina-se ao escrutínio dos critérios prosseguidos na sentença a propósito: 1) do valor do salvado, abatido ao valor comercial da viatura com perda total; e 2) o terminus ad quem a considerar na indemnização a título de privação do uso da viatura sinistrada.        
1.1. A perda total do veículo e o valor do salvado 
Algumas breves notas do enquadramento normativo da questão.
Afigura-se pacífico que, o fim do dever de indemnizar o dano patrimonial é o de propiciar uma situação que se aproxime o mais possível daquela outra, que em termos de probabilidade o lesado teria se não ocorresse o facto ilícito -artigo 562º e artigo 566º, nº2, do Código Civil, no apoio da chamada “fórmula da diferença”.
O dano patrimonial é igual à diferença entre a situação patrimonial em que estaria o lesado se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação e a sua situação patrimonial estaria actualmente. 
Os princípios enformadores da indemnização em responsabilidade civil, apontam para que o quantitativo monetário devido pela perda de um bem material seja fixado na medida suficiente e necessária para se operar a substituição na esfera jurídica do lesado por outro bem com valor económico e uso concreto equivalente ao bem danificado.  [2]
Na sentença atribuiu-se pela perda do veículo sinistrada a quantia indemnizatória de Euros 9.749,00 Euros, por aplicação do valor comercial da viatura ao tempo do acidente – Euros 16.400,00- deduzido o valor do salvado de Euros 6.651,00- pontos 13,14 e 18 dos factos provados.
Nessa operação teve-se em linha de conta, e bem, o disposto no artigo 41º, nº 2 e nº3 (Perda total do veículo) do SORCA, que assim dispõe: “2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente. 3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.”
Tópico que, de resto, merecia anterior e igual entendimento na determinação da indemnização devida ao lesado, se houver salvados e se quanto a eles nada tiver sido convencionado, há que abater na indemnização devida o seu valor, pois nos termos do §2.º do artigo 439.º do Código Comercial "o segurado não tem direito de abandonar ao segurador os objectos salvos do sinistro, e o valor destes não será incluído na indemnização devida pelo segurador"
A apelante censura o tribunal a quo, segundo se alcança, ao não actualizar o valor do salvado à data da decisão, e que no limite, não dispondo os autos desse valor, devia remeter para liquidação em execução de sentença.
Não colhe a argumentação, salvo o devido respeito.
É vero que a Autora deduziu a título de indemnização pela perda do seu veículo a quantia de Euros 16.400,00, acrescida de juros de mora até integral pagamento; olvida, porém, que aceitando ficar com o salvado, não questionou o valor indicado na proposta da Ré, i.e, Euros 6.651,00. [3]
Ou seja, a apelante  nem pôs em causa esse valor ( cfr. artigos 11º a 14º da petição ) ou  alegou quaisquer factores relevantes para apurar de outro valor actual do salvado.[4]
Esse valor do salvado resulta provado, conforme os pontos 13 e 14 da matéria de facto assente, que a apelante não impugnou oportunamente, nem outro elemento objectivo, mensurável e coerente consta dos autos que justifique a sua alteração.       
Donde, a aventada liquidação de outro valor do salvado em execução de sentença revela-se postergada, face à imposição do ónus de alegação e impugnação não exercido e que competia à ora apelante.
De igual sorte, na perspectiva da substância do direito de reparação da perda total da viatura, não se concebe que, na operação aritmética, os valores em equação reportem à data do pagamento da indemnização ao lesado, visto que, a reconstituição dos elementos integrantes deverá reflectir, necessariamente, a data da ocorrência do evento danoso, seja no tocante ao valor comercial da viatura, seja do valor do salvado, operando-se a devida actualização monetária desde então  através da obrigação dos  juros de mora incidente sobre o total indemnizatório apurado .
A proceder-se, como pretende a apelante, redundaria a seu favor um indevido e ilícito locupletamento. [5]
Cabe ainda mencionar que, dispondo o regime previsto no SORCA à fase do procedimento pré judicial de regularização do sinistro automóvel, não impedindo, por isso, que o tribunal venha a fixar diferentes valores de indemnização, em aplicação das regras gerais de cálculo da indemnização, suportado nos artigos 562º e 566º do Código Civil, o convocado artigo 41º, nº3, do SORCA dá resposta inequívoca ao ponto do dissídio da apelante. [6]
Sublinhe-se, à latera, que a apelante não questionou a perda total do veículo pela excessiva onerosidade da reparação, seguindo a proposta inicial da Ré, ou, tão pouco dissentiu do valor da indemnização atribuída, sob a tónica da restauração por equivalente do valor comercial da viatura ou da restauração natural, correspondente ao valor do veículo de substituição.
Pretende apenas a “actualização” do valor do salvado que ficou na sua posse e que resultou provado.[7]
E, na peculiar discórdia da apelante, se pela natureza das coisas, a avaliação monetária de um “monte de sucata”, decorridos quase 4 anos, podia redundar em seu favor, também poderia dar em valor igual (ou superior), e, portanto, inconsequente no valor final da indemnização por perda total da viatura. [8]
Em suma, mantém-se o valor do salvado em 6651,00 Euros, e como tal, o quantum   indemnizatório fixado na sentença recorrida na componente da perda do veículo.      
1. 2.   A privação do uso do veículo; valorização do dano
Sustenta a apelante que a sentença enferma de erro de direito, ao considerar como terminus da indemnização -31.12.2019- com o fundamento na aquisição de outra viatura nessa data, devendo, no seu entender, estender-se até à data do recebimento efectivo da indemnização.  
Importa considerar que resultou provado (ponto 29), que a apelante veio a adquirir nova viatura para o seu uso no final do ano de 2019, e que nessa medida, o tribunal a quo considerou que a partir daí não subsistia causa de atribuição compensatória fixada per diem em Euros 10,00, desde a data do acidente.        
Na senda da aquisição consolidada pela doutrina e jurisprudência no âmbito da responsabilidade civil em cenário de acidente estradal, é de ressarcir o lesado pela privação do uso do veículo danificado.[9]
Estando à partida, quanto a este dano, comprometida a possibilidade de reconstituição natural pelo decurso do tempo, a sua indemnização será por consequência fixada por equivalente.
No estado actual da jurisprudência não se identifica uniformidade a propósito da alegação e prova pelo lesado das vantagens específicas e reais que foram interrompidas ou perturbadas pela privação do uso da viatura.
Oscilando os doutos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, entre a exigência dessa condição ou a sua desnecessidade, prevalece, contudo, a orientação que vem reconhecendo, sem hesitação, o direito de indemnização de privação do uso do veículo em que este é usado habitualmente para deslocações, desvinculando o lesado de alegar e provar que a falta do mesmo foi causa de despesas acrescidas.
Por seu turno, a previsão do artigo 42º do DL 291/2007, de 21.08 sugere que, o pressuposto do direito de indemnização pelo dano de privação de uso do veículo se basta com a sua imobilização ditada pelo sinistro. 
Propendendo nós para, que a avaliação deste dano se ancore no apuramento das vantagens reais e concretas do dono da viatura, que foram interrompidas ou perturbadas, também o recurso cego aos custos de aluguer diário de viatura na fixação do valor desta indemnização, não se apresenta como a melhor solução, tal como bem entendeu o Tribunal a quo.  
Na impressiva demonstração de Menezes Leitão, «(..) O montante do prejuízo resultante da privação do uso não é, na verdade, igual ao custo de aluguer, sem mais Direito das obrigações, i, 333, n. 696), desde logo, porque é diferente o valor de uso de um automóvel próprio do valor de uso de um automóvel alugado. A concreta vantagem do uso da coisa pode ser medida pelos custos indispensáveis para tal concretização, mas o seu valor depende, ainda, por exemplo, da idade da coisa e da sua situação concreta. Aliás, é preciso ter em conta as particularidades do caso concreto quanto aos próprios custos de aluguer, que podem variar. Figure-se um ex. em que alguém é impedido de utilizar justamente durante dois meses uma viatura que alugara: se a alugara durante um ano, o custo do aluguer é um sexto do total; mas se a tivesse alugado só pelos dois meses em que se viu privado do bem, o custo será muito mais elevado, pois as tarifas de aluguer pelo prazo de dois meses são mais elevadas do que um sexto de um aluguer por um ano. (…)»   [10]
Com expressão elucidativa refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de  8.5.2013 :“Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc, nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado); e que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu no acórdão recorrido, há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)”.[11]
Alinhado o breve enquadramento geral da questão sob apreciação, revisitemos o caso judicando.
Ficou provado que o veículo sinistrado era utilizado pela apelante (conduzido por terceiro) para realizar tarefas necessárias ao exercício da sua actividade comercial de pastelaria, e em deslocações do agregado familiar.
De acordo com tais factos assentes, em consequência da privação da viatura pelo acidente, foi atribuído à apelante a verba de Euros 2.273,00 (alínea b) do dispositivo da sentença), compreendendo as despesas efectuadas com o aluguer de viatura de substituição e táxis, a par da indemnização diária de 10,00 Euros desde a data do acidente e até 31.12.2019 (alínea c), objecto do recurso.
A apelante pretende, todavia, que a indemnização pela privação do uso da viatura seja reavaliada, em ordem a que o seu termo coincida com o pagamento da indemnização, afirmando irrelevante e espúrio para o efeito, que tenha ou não adquirido, entretanto, outra viatura automóvel. 
Não se nos afigura, s.d.r., defensável a tese da apelante, em face dos contornos concretos da situação apurada.
Presente o desenvolvimento e alcance da indemnização deste dano acima exposto, a reparação por equivalente, compensação monetária devida ao lesado pela diferença de situação, pressupõe a intercepção de juízos de equidade. [12]
Pertinente se afigura realçar, além do mais, que a Autora não alegou ou demonstrou, que tenha exercido a faculdade de exigir da Ré uma viatura de substituição, destinada a suprir a falta da sua e que não lhe tenha sido concedida. 
Acresce que, segundo alguma linha de jurisprudência, não  tendo a Autora e apelante aceite a proposta razoável da Ré, cujo teor , como se viu, acabou por corresponder ao valor atribuído na sentença pela perda do veículo, seja viável que o período de privação de uso do veículo vá para além da data da proposta respectiva.[13] 
Na verdade, a proposta de um valor indemnizatório, sem referência à data em que se cumpriria a obrigação assumida, corresponderia a uma obrigação pura, cujo cumprimento poderia ser exigido a qualquer momento, e por isso no próprio momento da aceitação, ficando a seguradora em mora se não a pagasse no momento em que lhe fosse exigida (artigos 777º, nº1 e 805º, nº1, do Código Civil).   
Por outro lado, evidenciando-se a perda total da viatura sinistrada e a aquisição de uma outra viatura pelo lesado, não subsiste, ipso facto, a frustração das vantagens de utilização daquela, ou outro dano concreto apurado, que razoavelmente justifique compensação monetária acrescida.       
Serve isto para concluir, que no balanceamento dos factos ajuizados e das regras de experiência, fazendo uso do princípio da equidade, limitada pelos imperativos da justiça real (a justiça adequada às circunstâncias ínsitas no artigo 566º, nº3 do Código Civil), não existe motivo para divergir da quantia de Euros 10,00 per diem, ajuizada na sentença e até 31.12.2019, acrescendo os devidos juros de mora até à data do pagamento.   
Afigurando-se in casu corresponder ao valor correlativo da compensação pelo não uso do veículo demonstrado, expressando, a outro tempo, justa medida na diferença da situação anterior ao acidente e a perda dos poderes de fruição da viatura.
Soçobra a argumentação da apelante.

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes em negar provimento ao recurso, confirmando-se o julgado de primeira instância.
As custas são a cargo da apelante.

Lisboa, 26.04.2022
ISABEL SALGADO
CONCEIÇÃO SAAVEDRA
CRISTINA COELHO
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[1] . Anterior Companhia de Seguros Tranquilidade, S. A. e ora Generali Seguros, S. A. - face à alteração da sua denominação social após incorporação, na demandada, das seguradoras Generali – Companha de Seguros, S. A. e Generali Vida – Companhia de Seguros, S. A.
[2] Cfr. a propósito, na doutrina, designadamente, Paulo Mota Pinto, in Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, pág. 570.
[3] No caso concreto, a Autora assumiu, inequivocamente, ficar com a propriedade do salvado, existindo a   possibilidade de a seguradora adquirir o salvado.
[4] O que diz, aceitando expressamente que a Ré seja condenada a pagar-lhe o valor comercial da viatura apresentado (16.400,00), é que não aceita que deixar de ser compensada pela privação da utilização da viatura.
[5] Na perspectiva da apelante, que se subentende, ser o valor actual do salvado inferior à avaliação na data próxima ao sinistro, reduzindo, em consequência, a quantia a abater ao valor comercial da viatura.  
[6] Cfr. neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/2010 –proc 344/07.0TACVD.P1. S1, e de 09/09/2010 –proc 2572/07.0TBTVD.L1, in www.dgsi.pt.
[7] A apelante dispensou-se de dar notícia nos autos de qual o destino que prosseguiu com o salvado ou a sua situação actual, afirmando apenas na peça recursiva “Resulta dos autos à evidência que o salvado não foi vendido” -  pág.2.  
[8] Posto que no caso de perda total do veículo, a matrícula é cancelada nos termos do artº 119º do Código da Estrada (artº 41º nº 5 do SORC).
[9]  Entre inúmeros arestos, v.g.  o Acórdão do STJ de 24-05-2011 : «(…) A privação do uso de veículo constitui em si um dano patrimonial, que terá de ser ressarcido em termos de equidade, se provado o nexo de causalidade dessa privação com a conduta do lesante. » disponível open space in sumários do STJ; na doutrina , entre outros,  Paulo Mota Pinto- Dano da privação do uso- in  RESPONSABILIDADE CIVIL CINQUENTA ANOS EM PORTUGAL, QUINZE ANOS NO BRASIL, II, FDC, pág.199 e seg., disponível em open space;  Abrantes Geraldes, in Temas da responsabilidade civil — 1: Indemnização do dano da privação do uso, Almedina, 2005, pág. 132-137; e,  J. Gomes in “Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?”; id., O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Porto: Univ. Católica Portuguesa, 1998, pág. 257 e 274.
[10] Em sentido oposto, cfr. Maria da Graça Trigo, in Responsabilidade civil, temas especiais, Universidade Católica Portuguesa, setembro de 2015, pág. 63.
[11] No Proc. nº 3036/04.9TBVLG.P1. S1, e também assim decidido por este colectivo, inter alia, no Proc. nº 14081/18.7T8LSB.L1, ambos in www.dgis.pt.
[12]   Cfr. o Acórdão do STJ de 5.07.2018 na sua preclara argumentação: «tese ainda mais benévola para o lesado é defensável e encontra também na jurisprudência bastas adesões no sentido de fazer corresponder à privação do uso uma indemnização autónoma, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação. Essa é a tese que o ora relator defendeu na monografia citada pela recorrente (Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso), a qual é compartilhada por diversos autores também citados pela recorrente e com adesão de um largo setor da jurisprudência (…) proceder à reparação integral dos danos imputáveis a este, o que, além do mais, pode passar pela concessão ao lesado de um veículo de substituição (obrigação que, aliás, costuma estar prevista nos contratos de seguro relativamente a danos próprios), como forma de se alcançar ou de se aproximar da reconstituição natural da situação que existiria se acaso não tivesse ocorrido o acidente, nos termos do art. 562º do CC.(..)Acerca da quantificação da indemnização, consta, “ (…)dentro das regras da equidade, qual a justa compensação que deve ser atribuída ao A. a título de privação do uso”, não devendo ainda ser descurados aspetos particulares que emergem da decisão da matéria de facto.»
[13]  Embora, na verdade, a Ré tenha posteriormente retirado essa proposta; seja como for, tal questão sempre estaria prejudicada à luz do princípio da proibição da reformatio in pejus.