Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
33/2004-5
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: RADIOTELEVISÃO
ABUSO SEXUAL
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: É de manter a sentença que condenou uma estação de televisão privada na coima de 4000000$00 (€19951,92) por ter emitido uma reportagem no Jornal da Noite contendo imagens e sons particularmente violentas e chocantes para quem quer que seja, em violação dos artºs 21º, nºs 2 e 3 e 64, nº 1, al. b) da Lei nº 31-A/98, de 14 de Julho (Lei da Televisão).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I
1. A recorrente não se conformou com a sentença que, julgando parcialmente improcedente o recurso de impugnação judicial da decisão da Alta Autoridade para a Comunicação Social, que, além do mais, lhe havia aplicado uma coima de Esc.:  4 000 000$00, correspondente a  € 19 951,92 (dezanove mil, novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos), pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 21.º, n.os 2 e 3 e 64.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 31-A/98, de 14 de Julho (Lei da Televisão), decidiu manter tal condenação.
Termina a motivação do presente recurso com as conclusões assim redigidas:
1ª - As imagens e o som ou palavras gravadas da peça televisiva objecto do processo não são particularmente chocantes ou violentas para quem quer que seja, designadamente para crianças ou público especialmente sensível, de acordo com o contexto temporal, social e cultural que se vive e os sentimentos dominantes na sociedade actual.
     2ª - Sobretudo não constituem ilícito susceptível de influir, determinante e gravemente, de modo negativo, na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis.
  3ª - Nem os media, nem as autoridades, podem esconder-se da realidade social e impedir quem quer que seja de discutir desassombradamente factos jornalística e socialmente relevantes,
4ª - O que impõe uma abordagem directa, por vezes crua e nua, a bem da transparência; e realística, sem hipocrisias e subterfúgios, a bem da verdade; das situações que se visam na informação transmitir aos telespectadores.
    5ª - Razão por que não foi cometida qualquer infracção e foi violado pela sentença recorrida o disposto nos art.os 21.º, n. os 2 e 3, e 64.º n.º al. b), ambos da Lei de Televisão, então aprovada pela Lei n.º 31-A/98, de 14 de Julho.
     6ª - Porquanto, não tendo ocorrido visionamento prévio da reportagem, não houve sequer, por parte da recorrente, o elemento intelectual do ilícito, quanto mais o elemento volitivo do mesmo.
7ª - Verificou-se, foi, contradição insanável da fundamentação, mais concretamente no que toca aos pontos 11 e 17 da sentença recorrida, o que gera erro notório na apreciação da prova;
     8ª - Pois não é compaginável a ausência de conhecimento dos verdadeiros contornos da peça televisiva, e sobretudo dos seus pormenores de visionamento, com a prática do ilícito, sobretudo a título de dolo, ainda que eventual, conformando-se o agente com o resultado.
9ª - É verdade que a Lei ressalva a punibilidade da mera negligência, ainda que inconsciente, a qual poderia eventualmente estar aqui em causa quanto à omissão da pretendida advertência prévia;
10ª - Situação que parece decorrer do ponto 8.8 da fundamentação da decisão da AACS, quando afirma que “o visionamento da peça antes da sua divulgação não foi «tão cuidado quanto seria desejável», devido «aos objectivos noticiosos prosseguidos pela TVI e ainda a circunstância da peça ter sido recebida em Lisboa e editada sob grande premência e urgência” e também no ponto 9.9 da mesma fundamentação.
11ª - Mas sobretudo do ponto 11 da sentença recorrida, na qual se dá como provado que “... a reportagem chegou aos estúdios em cima da hora do Jornal Nacional, o que não permitiu o seu visionamento prévio”.
12ª - Entende a arguida que, conjugada a sua ausência de antecedentes contra-ordenacionais em matéria de conteúdos com o facto de não poder estar em causa uma atitude dolosa, mas sim, quando muito, a mera negligência, e ainda assim culpa inconsciente e levíssima,
13ª - E quando muito ilícito pouco intenso, a coima aplicada para a violação do disposto nos n. os 2 e 3 do art.º 21.º não deveria ter ido além do mínimo legal, isto é 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), conforme decorre do disposto no art.º 64.º, n.º 1, al. b) e impõe o art.º 18.º n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, normativos que foram violados pela decisão recorrida
14ª - O art.º 21.º da Lei da Televisão, interpretado de modo a que seja proibida a difusão de qualquer expressão em vernáculo ainda que necessária ao esclarecimento do público, meramente isolada ou inserida em contexto socialmente relevante e inócuo, viola a garantia constitucional da liberdade de expressão e de informação e a proibição de censura previstas nos art. os 37.º, n.os 1 e 2, e 38.º n.os 1 e 2 al. a), ambos da Constituição da República Portuguesa, os quais foram também violados.
15ª - A decisão recorrida enferma de nulidade invocada nos termos do art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo, na sentença recorrida, não se pronuncia sobre a questão que podia e devia conhecer, isto é, da alegada inconstitucionalidade do art.º 21º da Lei da Televisão.
Termos em que deve ser suprida a nulidade invocada, sob pena de repetição do julgamento, e revogada a decisão recorrida, decidindo-se pela absolvição da recorrente ou, se ainda assim se entender, sem conceder e no limite, aplicada a coima mínima.
2. Exmo. Magistrado do Ministério Público, na primeira instância, apresentou resposta, na qual argumentou no sentido da confirmação da decisão impugnada.
Efectuado exame preliminar, foi designado dia para audiência, a que se procedeu com respeito pelas formalidades da lei.
II
1. A sentença impugnada é do seguinte teor, no que diz respeito à decisão da matéria de facto:
(...)
     II - FUNDAMENTAÇÃO
     2.1 Matéria de facto provada
     Com relevo para a decisão da causa encontra-se assente a seguinte factualidade:
1 – por comunicado da Polícia Judiciária de Leiria, foi dado conhecimento aos órgãos de comunicação social que havia sido detido um indivíduo por alegada prática de actos de pedofilia;
2 – as vítimas eram crianças entre os 11 e os 16 anos, rapazes e raparigas, todos residentes num bairro social dos arredores de Abrantes;
3 – as vítimas pertenciam a famílias numerosas, de fracos recursos económicos;
4 – no dia 23 de Fevereiro de 2001, a equipa da TVI e outras duas jornalistas compareceram no local para recolher informações sobre o que se tinha passado e encontraram na rua os menores, familiares e vizinhos que tinham acabado de falar com outra equipa da SIC;
5 – foram as mães dos menores que chamaram as crianças para serem entrevistadas pela televisão, tendo um dos rapazes recusado falar, afastando-se do local;
6 – as entrevistas foram conduzidas pelo correspondente da TVI, (G)
7 – as crianças entrevistadas foram filmadas sob um ângulo oblíquo que permite o seu reconhecimento;
8 – não foi introduzido qualquer sinal sonoro ou visual que distorcesse o som e a imagem;
9 – a emissão da reportagem não foi precedida de qualquer advertência expressa que desse a conhecer antecipadamente a natureza do seu conteúdo, susceptível de perturbar públicos mais vulneráveis;
10 – o jornalista que fez as entrevistas e montou a peça falou com o editor da secção, por telefone, sobre o tratamento a dar à reportagem em pós-produção;
11 – a reportagem chegou aos estúdios em cima da hora do Jornal Nacional, o que não permitiu o seu visionamento prévio;
12 – no mencionado dia, pelas 20 horas, no Jornal da Noite, a TVI  apresentou a aludida reportagem sobre a detenção de um homem, residente em Abrantes, por eventual prática continuada de actos pedófilos;
13 – a referida reportagem, com cerca de 180 segundos, consistia em depoimentos de dois jovens, alegadamente vítimas do crime de pedofilia, de seus familiares e de terceiros, vizinhos ou conhecidos dos protagonistas;
14 – depois de um dos jovens afirmar “despíamos as calças ......... E começava a fazer-nos aquilo. Fazia-nos aquilo.” o referido jornalista perguntou-lhe “O quê ?”
jovem :”um broche”;
15 – ao outro jovem o jornalista perguntou “o que é que ele te fazia ?”
jovem : “um broche”;
jornalista : “e como é que era? Era muitas vezes?”
16 – as aludidas referências ao acto sexual, não tinham qualquer disfarce sonoro;
17 – ao emitir a referida reportagem sem utilizar disfarce sonoro ou de imagem e não advertindo previamente da sua natureza a recorrente actuou de forma livre e consciente aceitando como possível que a mesma nas condições em que foi transmitida era susceptível de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, conformando-se com este resultado;
18 – no ano de 2000 a TVI apresentou um resultado líquido do exercício no montante de esc. 3.119.655.941$00.
*
    
2.2 - Matéria de facto não provada
Não se apuraram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa e nomeadamente os que se encontram em oposição com os acima elencados.
*
     2.3. Motivação da decisão de facto
     O Tribunal assenta a sua convicção com base na apreciação crítica e conjugada da prova produzida designadamente, no visionamento das cassetes vídeo relativas à reportagem da TVI, bem como das reportagens efectuadas e transmitidas sobre o mesmo assunto pela SIC e RTP.
    Atendemos, ainda, ao depoimento das testemunhas ouvidas em audiência, mormente (F), (S), jornalista de uma radio local e de um jornal regional, que se encontravam no local e descreveram a forma como foi feita a reportagem, tal como ficou provado;(G), repórter que efectuou a entrevista em causa e que esclareceu que contava que nas instalações da TVI efectuassem o disfarce da imagem e som; (H), à data subdirector de informação, que explicou que o serviço de pós-produção é muito moroso e que a peça chegou cerca de 20 minutos depois de o Jornal estar no ar não sendo viável disfarçar a imagem e som.
     Tivemos em consideração os elementos juntos a fls. 1 a 3, 46 a 48.
(...)
2. A recorrente aponta à sentença:
Erro notório na apreciação da prova, por verificação de contradição insanável da fundamentação;
Nulidade, por omissão de pronúncia relativamente à inconstitucionalidade da interpretação do artigo 21.º da Lei da Televisão feita pela decisão da Alta Autoridade para a Comunicação Social;
Incorrecta interpretação e aplicação dos n.os 2 e 3 do referido artigo 21.º, em violação dos artigos 37.º, n.os 1 e 2 e 38.º, n.os 1 e 2, alínea a), da Constituição;
Erro na imputação da modalidade da culpa; e,
Excesso na determinação medida concreta da coima.
3. Quanto à primeira questão:
Segundo a recorrente, a sentença incorreu em erro notório na apreciação da prova, por contradição insanável da fundamentação, ao declarar provado que:
(...)
11 – a reportagem chegou aos estúdios em cima da hora do Jornal Nacional, o que não permitiu o seu visionamento prévio; e,
(...)
17 – ao emitir a referida reportagem sem utilizar disfarce sonoro ou de imagem e não advertindo previamente da sua natureza a recorrente actuou de forma livre e consciente aceitando como possível que a mesma nas condições em que foi transmitida era susceptível de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, conformando-se com este resultado;
(...)
O erro notório na apreciação da prova – a que refere a alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal – consiste em ter-se como provada (ou não provada) uma realidade que, à luz das regras da experiência, manifestamente, na apreciação do comum dos observadores, não podia ter acontecido (ou tinha de ter acontecido).[1]
(...)
O erro notório, previsto na alínea c), é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial.[2]
(...)
O vício de contradição insanável da fundamentação, a que se refere o primeiro segmento da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre a declaração de provado e a declaração de não provado relativamente ao mesmo facto ou na declaração de que se provaram duas realidades que, segundo as regras da lógica, se excluem uma à outra, isto é, não podem coexistir, porque só uma delas pode ser verdadeira[3].
Temos por seguro que nenhum daqueles factos cuja declaração de demonstração a recorrente impugna, se apresenta, aos olhos de um observador dotado de mediana inteligência e experiência, como de verificação impossível, no contexto da descrição feita na sentença e da fundamentação respectiva.
Também não é evidente, em face das provas referidas na motivação da convicção do tribunal que elas apontavam num sentido e a decisão concluiu, contra as regras da lógica e da experiência comum, em sentido contrário.
A argumentação da recorrente pretende pôr em evidência uma alegada contradição entre duas realidades que a sentença declarou provadas: por um lado, que a hora a que a reportagem chegou aos estúdios “não permitiu o seu visionamento”; por outro, que a recorrente “actuou de forma livre e consciente aceitando como possível que a mesma nas condições em que foi transmitida era susceptível de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, conformando-se com este resultado”.
Uma leitura correcta da sentença revela que a afirmação contida no n.º 11 dos factos provados deve ser entendida, tendo presente todo o contexto da decisão, incluindo os motivos em que se baseou a convicção do tribunal[4], no sentido de que o momento em que a reportagem chegou aos estúdios só “não permitiu o seu visionamento”, porque os responsáveis quiseram inserir a peça, imediatamente, no serviço noticioso que estava para ser ou a ser emitido, e não por qualquer impossibilidade estranha à vontade da recorrente.
E a opção de inserção imediata supõe o conhecimento da natureza do assunto tratado na peça – tanto mais que o jornalista falou com o editor sobre o tratamento a dar à reportagem –, por isso que a afirmação contida no n.º 17 dos factos provados não é contraditória com o teor do referido n.º 11.
De resto, resulta claro do texto da sentença, que quer o repórter, quer o subdirector de informação, tinham consciência da natureza chocante da peça, pois se o primeiro contava que viesse a ser efectuado o disfarce de imagem e som, o segundo explicou que a morosidade de tal operação tornava inviável a inclusão no jornal que estava no ar.
Cremos, pois, não se verificar nem o erro notório, nem a contradição insanável da fundamentação.
4. A segunda questão:
Na peça em que impugnou a decisão da Alta Autoridade para a Comunicação Social, a recorrente apenas suscitou a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 21.º da Lei da Televisão, na interpretação que dela fez aquela entidade[5], ao considerar que havia sido violado aquele preceito e cometida a contra-ordenação prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 64.º do referido diploma.
A sentença recorrida concluiu pela absolvição da recorrente da prática daquela contra-ordenação, por considerar que não tinha sido infringido o disposto no preceito cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada.
Ora, perante tal conclusão, inútil se tornou a apreciação, por parte do tribunal, da questão da inconstitucionalidade, por isso que tal apreciação deixou de ter interesse para a decisão, na parte em que, alegadamente, a poderia afectar.
Daí que, e bem, a sentença tenha considerado “prejudicada a apreciação da invocada inconstitucionalidade da interpretação efectuada pela AACS”.
Não ocorre, pois, a nulidade a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
5. A terceira questão:
Invoca, agora, a recorrente que o artigo 21.º da Lei da Televisão, “interpretado de modo a que seja proibida a difusão de qualquer expressão em vernáculo ainda que necessária ao esclarecimento do público, meramente isolada ou inserida em contexto socialmente relevante e inócuo, viola a garantia constitucional da liberdade de expressão e de informação e a proibição de censura previstas nos art. os 37.º, n.os 1 e 2, e 38.º n.os 1 e 2 al. a), ambos da Constituição da República Portuguesa, os quais foram também violados”, interpretação que, na sua perspectiva, foi a da sentença recorrida.
Em causa está apenas a conformidade do sentido extraído das normas constantes dos n.os 2 e 3 do citado artigo 21.º – as únicas que o tribunal recorrido considerou infringidas pela recorrente – com as garantias constitucionais relativas à liberdade de expressão e de informação.
Importa, pois ter presente o seu texto:

Artigo 21.º
Limites à liberdade de programação
1– .......................................................................................
2 – As emissões susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, designadamente pela exibição de imagens particularmente violentas ou chocantes, devem ser precedidas de advertência expressa, acompanhadas da difusão permanente de um identificativo apropriado e a penas ter lugar em horário subsequente às 22 horas.
3 – As imagens a que se refere o número anterior podem, no entanto, ser transmitidas em quaisquer serviços noticiosos quando, revestindo importância jornalística, sejam apresentadas com respeito pelas normas éticas da profissão e antecedidas de uma advertência sobre a sua natureza.
(...)
A Constituição da República garante, no artigo 37.º, n.os 1 e 2, a liberdade de expressão e de informação, sem impedimentos nem discriminações, proibindo qualquer forma de censura; e, no artigo 38.º, n.os 1 e 2, alínea a), a liberdade de expressão e criação dos jornalistas.
O n.º 3 do artigo 37.º prevê que as “infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei”.
Decorre, claramente, deste preceito que a lei fundamental admite limites ao exercício do direito de expressão e de informação pois que, “se assim não fosse, não seria possível a previsão de infracções cometidas em tal exercício, infracções essas que até, segundo o comando constante daquela disposição, estão submetidas aos princípios gerais de direito criminal”[6] ou do ilícito de mera ordenação social.
Mais detalhadamente, o n.º 2 do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no pressuposto de que o exercício daquelas liberdades “implica deveres e responsabilidades”, consagra a possibilidade de tal exercício “ser submetido a certas (...) restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para (...) a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem (...)”.
 “A liberdade de expressão — como, de resto, os demais direitos fundamentais — não é um direito absoluto nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção pára ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (v., neste sentido, J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, págs. 213 e segs.).”[7]
Ora, nos preceitos da Lei da Televisão em causa, surpreende-se o escopo de proteger “a formação da personalidade das crianças ou adolescentes” e de prevenir a influência negativa em “outros públicos mais vulneráveis”, objectivo prosseguido através de restrições, de horário, na difusão de “imagens particularmente violentas ou chocantes”, e da imposição da obrigação de advertência expressa de um sinal indicativos da natureza daquelas imagens (n.º 2 do artigo 21.º); e, tratando-se de peças que revistam “importância jornalística”, sujeitando a sua apresentação, permitida em qualquer serviço noticioso, ao “respeito pelas normas éticas da profissão” e a uma prévia “advertência sobre a sua natureza” (n.º 3 do artigo 21.º).
Não está a causa a importância jornalística da peça que a recorrente exibiu em serviço noticioso, mas, sim, a caracterização das imagens como particularmente chocantes e o cumprimento das exigências contidas no n.º 3 do artigo 21.º.
Cremos poder afirmar que devem considerar-se particularmente chocantes, no sentido pretendido pela lei, imagens que, pela mensagem que podem transmitir, atentem contra a dignidade da pessoa humana[8], de que é parte integrante a liberdade e autodeterminação sexual, sendo que tais valores, socialmente estruturantes, são hoje reconhecidos como um dos pilares da moral social, para além de merecerem vigorosa tutela do direito penal.
E, assim, não temos dúvidas de que a difusão de imagens revelando jovens, facilmente identificáveis, a declarar, a perguntas de um jornalista, que um indivíduo, denunciado como autor de práticas sexuais com menores, lhes “fazia um broche”, chocam – no contexto em que tais declarações e imagens foram colhidas – gravemente com os sentimentos de moralidade social inerentes ao respeito pela dignidade humana, sendo, outrossim, susceptíveis de influir negativamente na formação da personalidade das crianças ou adolescentes e de afectar públicos vulneráveis.
Por isso, a difusão de tais imagens deveria ter sido precedida de uma advertência da sua natureza e apresentada com respeito pelas normas éticas da profissão de jornalista.
Desta interpretação, que é a da douta sentença recorrida, não pode inferir-se que “seja proibida a difusão de qualquer expressão em vernáculo, ainda que necessária ao esclarecimento do público”, como pretende a recorrente, mas tão só que, em casos como o dos autos, se justificam alguns cuidados, que consubstanciam restrições, quanto ao modo de exercício do direito de expressão e informação, aliás regulado no Estatuto dos Jornalistas e no Código Deontológico dos Jornalistas.
Dispõe o Estatuto do Jornalista (Lei n.º 1/99, de 13 de Janeiro):
Artigo 14º
Deveres
Independentemente do disposto no respectivo código deontológico, constituem deveres fundamentais dos jornalistas:
a) Exercer a actividade com respeito pela ética profissional, informando com rigor e isenção;
b) ...........................................................................................
c) ...........................................................................................
d) Não identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes contra a liberdade e auto-determinação sexual, bem como os menores que tiverem sido objecto de medidas tutelares sancionatórias;
e) ...........................................................................................
f) Abster-se de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoas;
g) Respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas;
h) ...........................................................................................
i) ...........................................................................................
E o Código Deontológico dos Jornalistas, aprovado em 4 de Maio de 1993, prescreve, no ponto 7, que “o jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais”.
Resulta claro que o comportamento da recorrente infringiu quer os preceitos do Estatuto dos Jornalistas, [alíneas a), d), f) e g) do artigo 14.º], quer o Código Deontológico.
Conjugando todas as normas convocadas, somos levados a concluir, ponderados os interesses em conflito, porque as restrições consignadas no artigo 21.º, n.os 2 e 3 da Lei da Televisão, na interpretação que se deixou referida, não constituem uma compressão, desproporcionada, incompreensível e intolerável dos direitos consignados nos citados preceitos da Constituição da República, que improcede, no que concerne, a alegação da recorrente.
Procedendo ao enquadramento jurídico dos factos, a douta sentença discorreu assim:
(...)
A reportagem em apreço não teve o cuidado, que se impunha, de proteger os jovens entrevistados (pois filmou-os num plano oblíquo, de forma que possibilita o seu reconhecimento), nem teve em consideração os públicos vulneráveis (v.g. crianças e adolescentes), o que ressalta de forma inequívoca da insistência por parte do jornalista na descrição pormenorizada do acto sexual praticado. Porém, esta matéria está directamente relacionada com a violação do disposto nos n.os 2 e 3 do art.º 21.º da Lei da Televisão.
  O argumento invocado pela recorrente quanto à necessidade cabal de esclarecer a opinião pública para quem - no seu entender – é fundamental distinguir entre acto sexual com penetração ou sexo oral não se nos afigura justificativo. Independentemente da relevância de tal distinção para a opinião pública, existem outras formas de informar quer utilizando o depoimento de terceiros, quer recorrendo a texto em “voz off” – isto é, sem abordar estes aspectos directamente com os envolvidos, tendo em conta nomeadamente a sua idade e fazendo uso de uma linguagem mais apropriada. E não se argumente com a citação de Silva Araújo “Perguntar tudo e as vezes necessárias para ficar devidamente esclarecido. Para o jornalista não há perguntas indiscretas. Ele pergunta, que é a sua missão; se as pessoas não quiserem responder, que não respondam”.
   Sem nos alongarmos na interpretação crítica do texto citado apenas diremos que a liberdade de informação não é ilimitada. Acresce que o jornalista não se limitou a perguntar, pois na falta de resposta imediata, insistiu e instou.
    Por outro lado, o modo como foram colocadas as questões aos dois jovens, a insistência pormenorizada do acto sexual praticado, quando aqueles mostravam relutância, vergonha, em esclarecer o que se tinha passado, instando-os a dizer a palavra identificativa do acto sexual (em calão), um após outro, consiste ainda numa violência que atingiu, para além dos próprios entrevistados, públicos vulneráveis, mormente outras crianças.
As imagens em causa, no seu conjunto, são violentas e chocantes e susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, pelo que deveriam ser precedidas de uma advertência sobre a sua natureza e apresentadas com respeito pelas normas éticas da profissão (art.º 21.º, n.os. 2 e 3).  
A justificação apresentada de a peça ter sido recebida em Lisboa e editada sob premência e urgência não justifica a omissão total dos aludidos cuidados e é completamente inadequada relativamente à falta de advertência prévia.
Verifica-se, pois, a contra-ordenação prevista e punida pelo art.º 64.º, al. b) da Lei da Televisão.
(...)
Estas considerações, de algum modo coincidentes com o que, sumariamente, acima se explanou relativamente ao sentido e alcance das normas da Lei da Televisão, merecem a nossa inteira adesão e são de tal modo elucidativas que dispensam quaisquer reflexões adicionais, para concluir que a recorrente cometeu a infracção por que foi condenada. 
6. Quarta questão:
Pretende a recorrente que não agiu com dolo, mas, quando muito, com mera negligência inconsciente.
A modalidade da culpa releva dos factos provados e a sentença declarou provado que a recorrente “actuou de forma livre e consciente aceitando como possível que a mesma nas condições em que foi transmitida era susceptível de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, conformando-se com este resultado”.
Como se viu, a propósito dos alegados vícios de erro notório e de contradição insanável, a decisão relativamente à matéria de facto não merece, no âmbito dos poderes deste tribunal, qualquer reparo, por isso que, face ao teor do n.º 17 dos factos provados e tendo presente o disposto no artigo 14.º, n.º 3, do Código Penal[9], não temos dúvidas em considerar, que a recorrente agiu com dolo eventual.



7. Quinta questão:
Segundo a recorrente, a coima deveria ser fixada no limite mínimo da respectiva moldura, face à ausência de antecedentes contra-ordenacionais, à culpa inconsciente e levíssima, e à pouca intensidade do ilícito.
A sentença, para confirmar a decisão da Alta Autoridade para a Comunicação Social, no que concerne ao montante da coima, observou:

(...)
A infracção imputada é punível com uma coima de esc. 2.000.000$00/€ 9.975,96 a esc. 20.000.000$00/ € 99.759,58 (art.º 64.º n.º 1, alínea b) da Lei da Televisão).
   A recorrente entende que a verificar-se a contra ordenação esta foi cometida por negligência e que, consequentemente deveria ter sido aplicada a coima mínima.
     Apurou-se que a recorrente actuou com dolo eventual.  
Importa ter em consideração os critérios estabelecidos no art.º 18.º do D.L. 422/82.
Quanto à gravidade da contra-ordenação há que ponderar que a reportagem em causa foi transmitida no Jornal da Noite, cuja emissão se inicia às 20 horas, isto é, durante um serviço noticioso com grande audiência.
No domínio da culpa há que ponderar que não só a peça não foi tratada em termos de imagem e som, como não foi efectuada a advertência prévia.
Não estão demonstrados antecedentes contra-ordenacionais, pelo menos, por violação da mesma norma.
No que concerne ao benefício económico retirado da prática da contra-ordenação, não existem nos autos quaisquer elementos que nos permitam concluir pela sua existência nem tão pouco quantificá-la, pelo que não poderá ser tido em conta.
Por último, há que atender à situação económica tal como resultou provado.
     Face ao exposto, consideramos equilibrada a coima fixada, a qual se situa muito abaixo de metade do limite máximo.
(...)
Já se viu que não procede a alegação no sentido da actuação com culpa inconsciente.
Por outro lado, em face dos factos provados, não pode afirmar-se a pequena gravidade da ilicitude dos factos, pelas razões explanadas na sentença.
A mera ausência de antecedentes contra-ordenacionais não tem, na ponderação de todos os factores consignados no artigo 18.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, vigor suficiente para conduzir à redução da coima para o pretendido limite mínimo.
Assim sendo, e, também neste particular, aderindo à fundamentação da sentença recorrida, não há razões para alterar o montante da sanção aplicada.
III
Por tudo o que vem de ser exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, na íntegra, a douta sentença impugnada.
Condena-se a recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em  5 UC  e a procuradoria em 1/2 do valor daquela taxa.

Lisboa, 22 de Junho de 2004

Adelino César Vasques Dinis
Manuel Cabral Amaral
Armindo Marques Leitão
Celestino Sousa Nogueira
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[1] Cfr. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 4.ª Edição, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2001, pp.76-78
[2] Acórdão de 12 de Novembro de 1997, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, 471, 47, também disponível, em texto integral, em www.dgsi.pt., N.º Convencional JSTJ00032503.
[3] Cfr. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, op. cit. pp. 72-73.
[4] “(G), repórter que efectuou a entrevista em causa e que esclareceu que contava que nas instalações da TVI efectuassem o disfarce da imagem e som; (H), à data subdirector de informação, que explicou que o serviço de pós-produção é muito moroso e que a peça chegou cerca de 20 minutos depois de o Jornal estar no ar não sendo viável disfarçar a imagem e som.”
[5] Conclusões 27 a 30 – fls. 119.
[6] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 113/97, de 5 de Fevereiro de 1997, Boletim do Ministério da Justiça, 464, 113; e Diário da República, II Série, n.º 88, de 15 de Abril de 1997, pág. 4478.
[7] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 81/84, de 18 de Julho de 1984, Boletim do Ministério da Justiça, 352, 188; e Diário da República, II Série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1985.
[8] Artigo 1.º da Constituição da República.
[9] Aplicável por força do disposto no artigo 32.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações.