Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
122/13.8TELSB-AR.L1-9
Relator: MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
BENS DE TERCEIRO
REGISTO PREDIAL
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2018
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. O arresto preventivo previsto no artº 228º, nº1, 1ª parte do CPP, segue o disposto nos artºs 364º e 365º do CPC no que concerne à forma de processamento e à relação entre o procedimento cautelar e o processo principal.

2. O pedido deve ser tramitado em requerimento autónomo, a apensar ao processo principal, com observância do preceituado nos artºs 392º e 393º, e 365º “ex vi” artº 376º, todos do Código do Processo Civil.

3. Esse requerimento inicial deve observar ainda o disposto na alínea a) do nº 1 do artº 552º do CPC, indicando e identificando quem são os visados (requeridos) pela diligência.

4. Como ensina o Conselheiro Maia Costa em anotação ao artº 228º, nº 1, 1ª parte do CPP, mesmo quando o arresto preventivo decorre do disposto nos artºs 10 e 11º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, segue o preceituado no artº 228º do CPC, logo, segue sempre os termos do processo civil já supra referidos.

5. Sendo o arresto um meio de conservação da garantia patrimonial dos credores que consiste numa apreensão judicial de bens, só pode ser decretado sobre bens que estão, ou estiveram, na titularidade do requerido da diligência.

6. Para que possa ser decretado sobre bens de terceiro têm de estar indiciado que o requerido do arresto, inicialmente proprietário dos mesmos, os transmitiu para terceiro, a título gratuito ou quase gratuito, para diminuir a garantia dos credores.
7. No caso do arresto preventivo requerido ao abrigo do disposto nos artºs 10º e 11º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, o requerente está dispensado de invocar o justo receio exigido pela lei processual civil, mas tem sempre de seguir os restantes preceitos legais, no que concerne à titularidade dos bens a arrestar.

8. Com efeito, sendo o direito de propriedade sobre imóveis um facto sujeito a registo, esse registo faz prova plena do direito no sentido previsto no artº 347º do Código Civil, ou seja, faz prova que só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto.

9. Não constando o recorrente como requerido quer na promoção, (não existiu requerimento inicial do procedimento cautelar de arresto, mas promoção efectuada no processo de inquérito) quer na decisão judicial que sobre aquela promoção recaiu, não foi proferida contra ele qualquer decisão que o afecte, tanto mais que não constando, nem tendo constando como titular registado dos bens a arrestar, não podia ser alvo de decisão a ordenar o arresto.

10. Consequentemente, o recorrente não tem qualquer interesse em agir contra uma decisão em que não foi visado, e o recurso que interpuser, em que requer a absolvição da instância por não ser titular dos bens, deve antes ser rejeitado por falta do pressuposto processual de interesse em agir, uma vez não constar do despacho judicial recorrido como sendo parte na instância do processo cautelar de arresto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: JS... veio interpor o presente recurso (que foi tramitado em separado) do despacho judicial proferido a fls, que determinou o arresto do a) Monte das Margaridas; b)casa em Paris; c) imóveis sitos no Cacém; d) Imóvel sito na Rua Braancamp, em Lisboa, imóveis na “titularidade registal” (registral) de SF... e CS..., que o MºPº entende terem sido adquiridos com dinheiro movimentado por CS..., arresto que foi pedido para acautelar as quantias que o MºPº entende serem devidas pelo recorrente 1) a título de IRS, no valor de 19 500 000,00 €, e juros, 2) ou para acautelar perda de vantagens do crime no montante de pelo menos 32 029 925,00 €.
Conclui que
O direito de propriedade sobre os bens arrestados pertence aos referidos SF... e CS..., não tendo sido impugnados judicialmente os contractos em que se basearam esses direitos de propriedade, pelo que o recorrente é parte ilegítima neste procedimento, e deve ser absolvido da instância.

2. O MºPº entende que por decisão de 28.09.2017 (fls 44963 e seguintes dos autos principais e apenso de arresto AL) foi determinado o arresto preventivo nos termos do artº 228º do CPP, dos seguintes imóveis registados sob a titularidade formal dos arguidos CS... e SF....
Baseia esse pedido de arresto na acusação deduzida nos autos, em que conclui que os bens que descreve no pedido de arresto foram adquiridos a terceiros no interesse do acréscimo patrimonial do arguido JS....
E entende que o arresto foi decretado não só contra os efectivos titulares “registais” dos imóveis mas também contra o arguido em virtude de se ter considerado suficientemente indiciado…”que os imóveis objecto do arresto foram adquiridos com fundos que na verdade pertenciam a este último, e foram obtidos através de ilícitos criminais com o intuito de dissimular a sua origem e a sua titularidade.
Deste modo, na medida em que o arresto visa acautelar… “não só o pagamento de indemnizações ou outros que venham a ser apurados, bem como a eventual perda a favor do Estado, considerou-se que a medida de arresto também afectaria a esfera jurídica do arguido JS... pelo que se justificava conceder-lhe a oportunidade para se opor à mesma…”
Assim, resulta evidente que tendo o despacho de acusação considerado indiciada a titularidade oculta dos bens arrestados por parte do arguido JS... não pode deixar de se considerar que este arguido é parte legítima no incidente de arresto…”
Pede que se considere que a decisão que decreta o arresto não merece censura e que se julgue improcedente o recurso.

3. Nesta Relação, o MºPº apôs o seu visto.

4. Apreciando, então: (sumariamente)
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que a única questão a decidir nos presentes autos de recurso em separado é a de saber se o recorrente é parte legítima nos autos de providência cautelar de arresto, ou se, ao invés, deve ser considerado parte ilegítima, e consequentemente, se deve ser absolvido da instância.

Vejamos, então:
Analisando o texto do despacho recorrido verifica-se que o mesmo se inicia dizendo:
…”Do arresto de bens:
Com os fundamentos constantes da douta promoção que antecede, veio o detentor da acção penal requerer a providência cautelar de arresto, que deverá incidir sobre os seguintes imóveis:
1. Monte das Margaridas…
2. Casa em Paris…
3. Imóveis sitos no Cacém…
4. Imóvel sito na Rua Braancamp, em Lisboa,…

Atentos os elementos de prova indicados, corroboramos o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal de que o actual estado de investigação permite a conclusão de que se mostra suficientemente indiciada a factualidade descrita na petição que infra se transcreve…”
E termina:
…” Consequentemente, face aos fundamentos supra aduzidos, deferindo o doutamente promovido pelo detentor da acção penal… ordeno o arresto à ordem dos presentes autos dos bens abaixo identificados…ex vi das disposições conjugadas dos artºs 228º, com referência ao artº 192º, 2 do Código do Processo Penal com a alteração introduzida pela Lei nº 30/2017, de 30 de Maio, e 391º a 393º do CPC….
Constitua apenso de arresto para já com certidão do presente despacho e da douta promoção antecedente.

Oportunamente, após a efectivação do arresto, serão notificados os arrestados, nos termos legais…”
“…”
Vejamos:
Desta transcrição do texto da parte decisória do despacho judicial recorrido, conclui-se que até agora não se sabe quem são os arrestados, a não ser por aquilo que vem afirmado na resposta à motivação do recurso apresentada pelo MºPº.
Dito de outro modo: O arresto não foi requerido nos termos do disposto no artº 228º, nº 1, 1ª parte, do Código do Processo Penal, que remete para os termos da lei do Processo Civil, uma vez que não respeitou o disposto nos artºs 364º e 365º do CPC actual (antigos 382º e 383º do CPC 1961) no que concerne à relação entre o procedimento cautelar e o processo principal, e à forma de processamento, aplicável aos procedimentos nominados em tudo quanto se não encontre especialmente prevenido, por força do disposto no artº 376º deste último diploma legal.
Ou seja, o “detentor da acção penal” ao invés de requerer ao Mmo Jic em requerimento autónomo (a apensar ao processo principal) a providência cautelar de arresto, com observância do preceituado nos artºs 392º e 393º do CPC, e 365º deste mesmo diploma aplicável por força do artº 376º também do CPC, aos procedimentos cautelares nominados, logo, aplicável ao presente procedimento por força do disposto no artº 228º, nº 1, 1ª parte, do CPP, promoveu nos próprios autos uma diligência cautelar de arresto. (talvez por sugestão da epígrafe do artigo 8º da Lei nº 5/2002, 11 de Janeiro – promoção de arresto de bens).
Ao promover nos próprios autos em vez de formular a pretensão em requerimento autónomo, não deu cumprimento ao disposto no artº 365º, nº 1, do CPC, ou seja, não entregou petição com a formulação exigida pelo artº citado, e pelo artº 552º daquele mesmo diploma, no que concerne aos requisitos da petição inicial, aplicável aos processos especiais por força do artº 549º ainda do mesmo CPC.
Assim, não indicou as partes, ou seja, os requeridos na providência cautelar de arresto, não indicou os seus nomes, domicílios, números de identificação civil e de identificação fiscal, profissões e locais de trabalho, como impõe a alínea a) do nº 1 do artº 552º do CPC sobre os requisitos da petição inicial.
Consequentemente, o arresto decretado nos presentes autos foi-o sem que tenha sido cumprido o formalismo legal de identificação dos destinatários do pedido formulado pelo MºPº que revestiu, no caso “sub judice” a forma de “promoção”, numa clara confusão entre a figura jurídica do “detentor da acção penal”, ou seja, do titular da acção penal enquanto titular do inquérito, e responsável pela sua direcção, e a figura do requerente do procedimento cautelar, com o ónus de formular a pretensão a submeter à apreciação do Mmo JIC, enquanto titular do poder (jurisdicional) de ordenar os actos jurisdicionais que devam ocorrer na pendência do inquérito.
Como ensina o Sr. Conselheiro Maia Costa em Código de Processo penal Comentado, em anotação ao artº 228º, sob a epígrafe arresto preventivo, os artºs 10º e 11º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, prevêem um regime específico de arresto aplicável à criminalidade organizada e económico financeira, que tem em vista assegurar o pagamento do valor liquidado na acusação como sendo vantagem da actividade criminosa, e o arresto é decretado pelo juiz sempre que existam “fortes indícios da prática de crime” independentemente da verificação dos pressupostos indicados neste artigo do Código Processo Penal … mas sempre nos termos da lei processual civil, como impõe o artº 228º, nº 1, 1ª parte do Código do Processo Penal.
Sucede que como vimos já a providência não foi requerida nos termos do Código do Processo Civil, conforme ordena o artº 228º, nº 1, 1ª parte do CPP, com observância dos requisitos da petição inicial tendentes à identificação das partes, deficiência que não pode ser suprida por este Tribunal de recurso, e da parte decisória do despacho judicial cuja notificação ao recorrente deu causa ao presente recurso não é possível concluir quem são os visados pela providência, tanto mais que, nos termos dos artºs1º, 2ºnº1 a) o) e p), 3º, 5º, nº 1,7º e 8º do DL 224/84, de 6 de Julho, na versão dada pela Lei nº 89/17, de 21 de Agosto, enquanto não for judicialmente impugnada, a propriedade presume-se de quem figura no registo como proprietário do bem – o registo constitui presunção de que o direito existe, e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define, exceptuados os casos em que pode haver lugar a impugnação pauliana ou a acções previstas na lei registral, o que também está previsto no artº 7º,nº 2 b) da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro – bens transferidos para terceiros a título gratuito, ou mediante contraprestação irrisória….
No caso vertente, os autos não foram devidamente tramitados, não decorre do despacho judicial sob recurso quem são os arrestados, melhor, quem são os requeridos da providência de arresto “promovida” em vez de requerida (numa clara confusão entre o termo promoção usado na epígrafe do artº 8º da Lei nº 5/2012, de 11 de Janeiro, e o termo promoção usado para definir o acto processual em que dentro de um determinado processo, o MºPº requer a realização de diligências tendentes com vista a impulsionar o seu andamento), pelo que não cabe a este Tribunal de recurso concluir, conforme pretende o MºPº na resposta à motivação, contra lei expressa, pela legitimidade do recorrente.
A irregular tramitação do processado tem igualmente reflexos na tramitação do presente recurso, que deveria antes ter subido no apenso de providência cautelar, constituído após prolacção do despacho judicial que recaíu sobre a “promoção de arresto” – cfr despacho nesse sentido.
Com é sabido, o arresto é em termos jurídicos uma garantia geral das obrigações prevista no artº619º do Código Civil.
A este propósito, dizem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, citando Prof. Vaz Serra, Realização Coactiva da Prestação, nº 2 Bol. 73….”É nova a introdução na legislação civil da matéria do arresto. Bem andou o legislador, pois trata-se de um meio de conservação da garantia patrimonial dos credores, que apenas na sua parte adjectiva tem de estar regulado no Código do Processo Civil. Uma coisa é determinar quais são os requisitos do arresto e quais são os seus efeitos, outra dizer como se pode fazer o arresto e quais são as suas vicissitudes”.
Não podendo a providência cautelar de arresto ordenada ir contra lei expressa contida nos artigos do Código de Registo Predial já citados, a não ser nos casos excepcionais indicados neste Código, no Código Civil e na Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, não constando da “promoção do arresto” e do despacho judicial que sobre a mesma recaiu quem são os destinatários da providência, não cabe a este Tribunal de recurso interpretar o que se não encontra na decisão, pelo que se entende ser de rejeitar o recurso interposto pelo recorrente nos termos das disposições conjugadas dos artºs 417º, nº 6 alínea a), 420º, nº 1 b) e 414º, nº 2, todos do CPP, por existir circunstância que obsta ao conhecimento do mesmo, ou seja, por não existir interesse em agir por parte do recorrente.
Decisão sumária:
Termos em que se decide rejeitar o recurso interposto por JS..., ao abrigo do disposto nos artºs 417º, nº 6 a), 420º, nº 1 b) e 414º, nº 2 do C.P. Penal.
Taxa de justiça devida pelo mínimo.
Registe e notifique, nos termos legais.

Lisboa, 4 de julho de 2018.
Margarida Vieira de Almeida