Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
466/16.7T8CSC.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE COMUNICAÇÃO
HABITAÇÃO
FURTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/29/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.– Em sede de proposta de adesão de um contrato de seguro do recheio da habitação, foi estabelecido que deveria ser elaborada uma listagem com os objectos “especiais”, ou sejas, os mais valiosos.


2.– Contudo, nada foi dito sobre as consequências da não elaboração de tal lista.

3.– Não tendo ficado provado que a Seguradora tivesse entregue aos tomadores do seguro cópia das condições gerais e nomeadamente da cláusula que limitava o valor a indemnizar pela seguradora em caso de sinistro, sempre que não tivesse sido elaborada tal lista e provando-se igualmente que esta cláusula foi incluída no contrato anos depois da sua celebração sem que tivesse sido comunicada aos segurados, a mesma deverá considerar-se excluída do contrato.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:
 

Vieram nos presentes autos A e  B ,  pedir a condenação da Ré C [ ….. Companhia de Seguros, S.A.] , a pagar-lhes a quantia de € 168.948,00 e, bem como nos juros, calculados à taxa legal desde a data em que o sinistro foi participado (22.11.2014) até integral pagamento e demais consequências legal decorrentes da procedência da acção.

Alegaram e em síntese terem celebrado contrato de seguro com a Ré, pela qual esta cobria os riscos de furto e roubo do recheio da sua habitação; foram furtados desta diversos bens, mas a Ré apenas aceita pagar uma parte dos objectos furtados, invocando cláusula contratual prevista no artigo 55º das Condições Gerais da Apólice.

O Autor desconhecia tal cláusula, porquanto não recebeu tais condições gerais, nem estas lhe foram explicadas.

Assim, por força do disposto no artigo 8º alínea a) do DL 446/85, tem que se considerar excluída do contrato esta cláusula, podendo os Autores exigir o valor dos objectos furtados, que fixam no valor peticionado.
 
Citada, a Ré contestou, impugnando o valor dos bens furtados e alegando que a cláusula 55ª do contrato de seguro estipula que quando o tomador do seguro não discriminar o recheio objecto a objecto, os valores relativos de bens que mencionam ficam limitados em caso de sinistro a 30% do valor total do recheio no seu conjunto e a € 1.750,00 por objecto, salvo convenção expressa nas condições particulares.

Os Autores conheciam essa cláusula, quer porque constava da proposta que assinaram nota informativa, alertando para a necessidade de discriminarem o valor dos bens de risco agravado, quer porque prometeram enviar uma lista com todos os objectos especiais.

Esta cláusula não está sujeita ao DL 446/85, porquanto o aderente estava em condições de afastar a sua aplicação - no caso, determinando que a referida cláusula fosse inaplicável, em virtude da prevalência do valor indicado (e, então, aceite pela Seguradora) pelo Cliente: podia, na fase de negociação, determinar a aplicabilidade/ vigência da norma acima citada do contrato de seguro.

Realizou-se o julgamento, vindo a ser proferida sentença que condenou a Ré a pagar aos AA o montante que vier a ser liquidado correspondente ao valor das jóias referidas no nº 13 da matéria provada.

Foram dados como provados os seguintes factos:
1)– Entre os Autores e a Ré foi celebrado um acordo de seguro Multi riscos Habitação titulado pela apólice nº 009610005494, com o teor que consta de fls. 14 e 15, onde se indica, além do mais que o seguro é do ramo Multi riscos Habitação, que o "objecto seguro é edifício e recheio" e que "Fazem parte da cobertura base os seguintes riscos e garantias, cujas definições e âmbito de encontram expressos nas condições gerais: ... furto ou roubo ... ".
2)– O objecto inicial do seguro foi o edifício sito na Rua do …., nº 5, no Estoril - seguro titulado pela apólice nº 009610005494, junto da Ré, com início de vigência em 31.10.12, conforme consta do documento que dos autos é fls. 11.
3)– O Autor subscreveu em 26.09.2002 a Proposta de Seguro que deu origem à emissão da referida apólice de seguro, a qual entrou em vigor no dia 29.10.2002.
4)– Seguidamente, em 16.05.2003, os Autores enviaram à Ré nova proposta, junta a fls. 11 dos autos.
5)– Nessa proposta - que viria a ser aceite pela Ré - veio a ser incluído, como objecto do seguro, o recheio da habitação, então avaliado pelos Autores em € 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil euros).
6)– Nessa proposta pode ler-se, imediatamente abaixo da parte assinalada como "recheio da habitação": Quando o valor a segurar exceder € 75.000, deverá ser elaborada nota descritiva dos bens. Quando o valor dos Objectos de Risco Agravado (aparelhos de fotografia, som e/ ou imagem, objectos de ouro, prata e outros metais preciosos, jóias e pedras preciosas, objectos raros, antiguidades, quadros, estampas ou gravuras e outras obras de arte, colecções de selos, moedas e outras, marfins e abafos de pele) exceder, no conjunto, 30% do valor do recheio ou, individualmente, € 1.750,00, deverão ser discriminados e valorizados"
7)– Nessa mesma proposta, no local destinado à indicação dos objectos de risco agravado pode ler-se: "posteriormente será enviada uma lista com o total dos objectos especiais."
8)– O capital seguro, relativamente ao recheio da habitação, foi aumentado para € 675.000,00, conforme Proposta de Seguros subscrita pelo Autor em 07/07/2003 conforme consta do documento junto a fls. 13.
9)– Nessa proposta também pode ler-se, imediatamente abaixo da parte assinalada como "recheio da habitação": "Quando o valor a segurar exceder € 75.000, deverá ser elaborada nota descritiva dos bens. Quando o valor dos Objectos de Risco Agravado (aparelhos de fotografia, som e/ ou imagem, objectos de ouro, prata e outros metais preciosos, jóias e pedras preciosas, objectos raros, antiguidades, quadros, estampas ou gravuras e outras obras de arte, colecções de selos, moedas e outras, marfins e abafos de pele) exceder, no conjunto, 30% do valor do recheio ou, individualmente, € 1.750,00, deverão ser discriminados e valorizados"
10)– O seguro tinha a validade de um ano prorrogável por iguais períodos de um ano e os capitais seguros têm vindo a ser actualizados.
11)– No período de 31.10.2014 a 30.10.2015, o capital seguro, relativamente ao recheio da habitação, ascendia a pelo menos € 841.853,26.
12)– O prémio em Outubro de 2014 ascendia a € 2.816,46, conforme consta do documento de fls. 14v.
13)– Na noite do dia 3 de Setembro de 2014, desconhecidos introduziram-se no interior da residência dos Autores, referida em 2, e subtraíram diversas jóias.
14)– O assalto de que os Autores foram vítimas foi participado à Ré.
15)– Juntamente com a participação do sinistro foi entregue à Ré uma lista com os objectos (jóias) furtados, que incluíam fotografias dos mesmos e respectivos valores.
16)– Os Autores nunca tinham participado qualquer sinistro coberto pela apólice de seguro que foi contratada com a Ré
17)– No dia 14.08.2015 a Ré enviou aos Autores um recibo de quitação, do qual resulta que apenas aceitava pagar a quantia de € 53.114,00.
18)– O Autor é um cidadão de nacionalidade irlandesa e que, na altura da celebração do contrato de seguro (Setembro de 2002), estava há muito pouco tempo em Portugal e não conhecia muito bem a língua portuguesa.
19)– A Ré não recebeu qualquer nota descritiva dos bens ou qualquer documento discriminando e valorizando os "objectos de risco agravado", enunciados como sendo os "aparelhos de fotografia, som e/ ou imagem, objectos de ouro, prata e outros metais preciosos, jóias e pedras preciosas, objectos raros, antiguidades, quadros, estampas ou gravuras e outras obras de arte, colecções de selos, moedas e outras, marfins e abafos de pele".
20)– As condições gerais do contrato não foram negociadas com o Autor, sendo que o contrato, excepto no que toca ao valor e bens seguros, se regulava pelas cláusulas estipuladas pela Ré, sem audição prévia dos Autores sobre o seu conteúdo, que não foi discutido com estes.

Inconformada, recorre a Ré, concluindo que:
- Com relevo para a decisão os factos provados nºs 4, 6, 7, 8, 9, 18, 19; a par com os factos não provados nº 2 e 4.
- O tribunal a quo acolheu a tese postergada pelos Recorrentes, julgando não provado que a cláusula contratual geral nº 55 estava em vigor à data da celebração do contrato de seguro contratualizado.
- Realça-se, desde logo, uma imediata contradição: por um lado, temos que o tribunal considera como provado que à data da celebração do contrato de seguro constava da proposta de adesão [2002] que "Quando o valor a segurar exceder  € 75.000,00, deverá ser elaborada nota descritiva dos bens. Quando o valor dos Objectos de Risco Agravado (aparelhos de fotografia, som e/ou imagem, objectos de ouro, prata e outros metais preciosos, jóias e pedras preciosas, objectos raros, antiguidades, quadros, estampas ou gravuras e outras obras de arte, colecções de selos, moedas e outras, marfins e abafos de pele) exceder, no conjunto, 30% do valor do recheio ou, individualmente, € 1.750,00, deverão ser discriminados e valorizados” - facto provado nº 6; por outro lado, temos que o tribunal conclui que cláusula gémea não constava das cláusulas contratuais gerais contratualizadas, atenta a "similitude" com a Lei do Contrato de Seguro, que entrou em vigor em 2008.
- Salvo melhor opinião, o Tribunal não pode usar factos de 2008 para tirar conclusões quanto ao que ocorreu em 2002.
- A circunstância de as condições gerais juntas aos autos conterem disposições semelhantes à lei do contrato de Seguro que entrou em vigor em 2008 permite chegar à conclusão de que aquelas condições gerais não estavam em vigor no momento da contratação, mas não permite chegar à conclusão de que não estavam em vigor no momento do sinistro.
- Com base na prova testemunhal produzida, no depoimento de parte e na proposta de adesão junta aos autos, crê a Recorrente que o Tribunal devia ter dado como provados os pontos que elencou como não provados sob os nºs 2 a 4.
- Na realidade, o que releva, para efeitos de aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais, é indagar, em concreto, se aos Autores foi ou não dado conhecimento da existência de limites indemnizatórios quanto aos objectos de risco agravado e à não entrega, pelos Autores, da lista com os respectivos valores.
- No entender da Recorrente, a prova é inequívoca no sentido de que os Autores sabiam que, para não lhes ser aplicável o regime
que consta da proposta, teriam de entregar uma listagem dos objectos de risco agravado e que nunca o fizeram.
- Consta da proposta de adesão datada (e assinada pelo Autor) de 26 de Setembro de 2002 o regime substantivo equivalente ao da cláusula 55 das condições gerais em vigor à data do sinistro.
- No processo de formação contratual, a proposta de adesão é  o formulário que é fornecido pelo segurador aos seus potenciais tomadores, com vista à celebração de um contrato de seguro, sendo, por isso, um elemento fundamental do processo formativo contratual.”
- A "força contratual" de tal cláusula (ainda que aposta na proposta de adesão) é similar à força jurídica que tem cláusula idêntica, incluída nas condições gerais, dado que a proposta de adesão é um elemento fulcral na formação de vontade contratual do segurado e do segurador.
- É certo que, atenta a configuração das cláusulas contratuais gerais, a lei obriga o contratante a informar de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique, bem como, a prestação de todos os esclarecimentos razoáveis solicitados - artigo 6º do DL nº 446/85].
- Da conjugação deste artigo 6º das Cláusulas Contratuais Gerais, com o artigo 18º, al. c) da Lei do Contrato de seguro resulta que o segurador tem de prestar esclarecimentos relativos às exclusões e limitações de cobertura, sendo a rácio do artigo 18º o estabelecimento a cargo do segurador de um dever geral de esclarecimento e informação ao tomador do seguro que o habilite à compreensão das condições do contrato, concretizando ainda os elementos de informação a constar obrigatoriamente de documento escrito disponibilizado ao tomador do seguro, antes deste se vincular”.
- No entanto, como o tribunal a quo enfatiza, a testemunha LA "Disse que afirmou aos Autores, nessa data, que havia regras, que tinha que saber se havia objectos especiais e que, tendo recebido resposta afirmativa, ficou assente que essa listagem seria entregue posteriormente, informando-o que tinha a obrigação de fazer uma lista com esses objectos especiais, visto que havia regras diferentes para esses bens, que tinham um custo acrescido na apólice, com uma taxa adicional." - realce nosso.
- As declarações da mencionada testemunha são, ainda, consonantes com o conteúdo da proposta de adesão junta aos autos [fls. 9 e seguintes], onde se pode ler "Posteriormente será enviada uma lista com o total dos objectos especiais" - [fls. 12] - documento assinado pelo Recorrido em 2003 e no qual se afirma, pelo punho do Recorrido, que "Tomei conhecimento das condições da Apólice ... ".
-  A lei determina para a prestação de esclarecimentos pré-contratuais, necessários à formação da vontade contratual do segurado, impondo que tais esclarecimentos sejam prestados "de forma clara, por escrito e em língua portuguesa, antes de o tomador do seguro se vincular" [artigo 21.º, n.º 1 da Lei do Contrato de Seguro].  
- A Lei acrescenta que o segurador deve fazer constar da proposta de seguro, "uma menção comprovativa de que as informações que o segurador tem de prestar foram dadas a conhecer ao tomador do seguro antes de este se vincular" - realce nosso [artigo 21.º, nº 5 da Lei do Contrato de Seguro].
- É da conjugação destas normas - e não apenas de uma análise, desprovida da ponderação da unidade do sistema jurídico - que é necessário concluir que a Recorrente cumpriu com todos os deveres de informação a que está legalmente vinculada;
- Essa conclusão não é afectada pelo facto de os Recorridos serem irlandeses, na medida em que a Recorrente só está obrigada a prestar os esclarecimentos em língua portuguesa, o que cumpriu, desde logo com a informação contratual que apôs na proposta.
- Os Recorridos nunca solicitaram cópia das condições gerais, nunca solicitaram esclarecimentos adicionais (quer em língua portuguesa, quer em língua inglesa), só se lembrando dos seus direitos de informação aquando da ocorrência do furto!
- Sob pena de perpetuarmos um ordenamento jurídico deveras paternalista, não pode ser exigido à Recorrente que esta adopte uma conduta diligente por si e pelos Recorridos!
- A Jurisprudência implícita na Sentença em crise não aplica convenientemente o Direito aos factos, pela simples razão de que faz equivaler, de forma cabalmente absurda, uma situação em que a Recorrente nada havia comunicado aos Recorridos (como, por exemplo, se da proposta contratual não constasse qualquer referência ao regime aplicável aos Objectos de Valor) com uma situação em que a existência dessa regra foi expressamente comunicada aos Autores na proposta, sendo certo que os Autores nenhuma aclaração suscitaram quanto ao texto da proposta e declararam, pelo seu punho, ter tido conhecimento das condições gerais.
-  Ora o Direito não se compadece com a mesma solução jurídica para duas situações de facto diversas. sendo certo que, no caso dos autos, é evidente que a proposta contratual assinada pelos Recorridos e o depoimento da testemunha LA permite concluir, por si só que os Recorridos tiveram acesso ao conteúdo material da norma e que, conhecendo-o, ainda assim quiseram contratar.
-  Assim, somos de concluir que os factos dados como não provado sob os nºs 2 a 4 devem ser dados como provados e atendidos, pugnando a Recorrente pela vigência, à data da contratualização do seguro, e à data do sinistro da cláusula 55 das condições gerais.
- Assim, uma vez considerada toda a argumentação ora impressa, devem V. Exas. revogar a sentença a quo, substituindo-a por outra que considere que a Recorrente cumpriu com todos os deveres de comunicação a que está obrigada  el em consequência, que julgue válida a cláusula 55 das condições gerais, limitando a responsabilidade da Recorrente ao resultante da aplicação dessa cláusula.

Os AA contra-alegaram sustentando a bondade da decisão recorrida.
*****

Cumpre apreciar.

A questão que se coloca é a de saber se é aplicável a cláusula contratual que limite o direito dos AA à indemnização.

A recorrente impugnou a decisão factual, entendendo que deveriam ter sido dados como provados os nºs 2, 3 e 4 da matéria julgada não provada.

O nº 2 dizia que:
“Na altura da celebração do contrato de seguro foram entregues ao Autor as Condições Gerais do contrato”.

O nº 3 tinha o seguinte teor:
“Foram prestados pela Ré ao Autor os esclarecimentos relativos às consequências, na definição do âmbito da cobertura concedida pelo seguro, da omissão de apresentação de uma lista dos bens seguros”.

Finalmente, podia ler-se no nº 4:
“Nas cláusulas contratuais gerais do contrato celebrado entre as partes ficou estipulado que, quando o Tomador do seguro não discriminar o recheio, objecto a objecto, dos valores seguros relativos a aparelhagem de fotografia e filmagem, de som/ou imagem, jóias, objecto de ouro, prata ou outros metais preciosos, objectos de arte, quadros, antiguidades, colecções de qualquer espécie e abafos de pele, ficam limitados, em caso de sinistro, a 30% do valor total do recheio, no seu conjunto, e a € 1.750,00 por cada objecto, salvo convenção expressa nas Condições Particulares”.

Esta factualidade foi dada como não provada pelo tribunal  a quo, no essencial fundamentando-se no depoimento da testemunha LA e no texto de diversas disposições contidas no DL nº 72/2008 de 16/04.

Ora, reapreciando a prova produzida há que reconhecer que não podia ter sido outra a decisão do tribunal a quo.

No seu depoimento, LA, dono de empresas de angariação de seguros, e que negociou com o Autor o contrato dos autos, foi claro ao dizer que nunca entregou ao Autor um exemplar do contrato contendo as condições gerais. Nem foi feita qualquer prova de que a seguradora tenha enviado tal apólice aos Autores aquando da celebração do contrato.

Logo esta matéria teria forçosamente de ser dada como não provada.

Quanto ao nº 3, mais uma vez será essencial o depoimento de LA. A testemunha descreveu a sequência da negociação com o Autor das propostas de adesão. A primeira, de 26/09/2002, não incluía o recheio da habitação (fls. 9 vº e 10). Ocorreu depois uma alteração a essa mesma apólice 005404 que passou a incluir o recheio da habitação, avaliado em € 450.000,00. Este proposta foi acordada em 16/05/2003 e nela consta, manuscrito, o seguinte texto: “posteriormente será enviada uma lista com o total dos objectos especiais”. Pode ainda ler-se nessa proposta: “quando o valor a segurar exceder os € 75.000,00 deverá ser elaborada  nota descritiva dos bens. Quando o valor dos objectos de risco agravado (aparelhos de fotografia, som e/ou imagem, objectos de ouro, prata e outros metais preciosos, jóias e pedras preciosas, objectos raros, antiguidades, quadros estampas ou gravuras e outras obras de arte, colecções de selos, moedas e outras, marfins e abafos de pele) exceder no conjunto 30% do valor do recheio ou, individualmente, € 1.750,00, deverão ser discriminados e valorizados”.

Essa parte foi explicada ao Autor por LA, justificando-a com o facto de tais objectos especiais implicarem um prémio acrescido (taxa adicional ou sobretaxa). Mas não referiu qualquer consequência da não elaboração de tal lista, em termos de indemnização a pagar pela seguradora em caso de sinistro que atingisse o recheio da casa, nem tal consequência consta de tal proposta de adesão às modificações na apólice (fls. 11 e 12).

Em 07/07/2003 dá-se nova modificação na referida apólice 005494, mediante a proposta de fls. 13 e 14. Aqui o valor do recheio da habitação sobe para € 675.000,00, fruto da inclusão de outros objectos que se processava pelo facto de os Autores se terem mudado recentemente para Portugal e irem trazendo o recheio da casa anterior.

Aqui já não existe qualquer nota manuscrita com a necessidade de elaboração de listagem de objectos especiais (embora a cláusula que a exige se mantenha idêntica).

LA já não falou ao Autor da necessidade de elaborar a aludida lista, até porque não sabia se ele já o havia feito e também porque a seguradora aceitou fazer o seguro do recheio, cobrando o respectivo prémio, mesmo sem envio da listagem dos objectos especiais.

Voltando a aceitar, sem quaisquer reparos ou advertências, a modificação de 07/07/2003, sem que o acréscimo de objectos especiais – a que correspondia o aumento do valor do recheio seguro – tivesse sido objecto de lista enviada à seguradora.

Aliás, LA disse ao cliente e ora Autor que deveria tirar fotografias desses objectos especiais para comprovar a sua existência.

Contudo e para efeitos do que está em questão nesse nº 3, nunca LA, nem a Ré, informaram o Autor das consequências do não envio da listagem em termos do âmbito da cobertura do seguro em caso de sinistro. Nomeadamente as consequências constantes do nº 55 das cláusulas contratuais gerais do contrato.

E aqui põe-se igualmente em causa se essa cláusula, que limita severamente os valores dos objectos especiais – expressa no nº 4 dos factos não provados – existia à data da celebração do contrato e das aludidas modificações (2002/2003).

É que, para lá de diversas outras cláusulas constantes das condições gerais da apólice de fls. 47 e seguintes, a cláusula 55ª (que é aqui a base da recusa da seguradora em pagar a indemnização pretendida pelos Autores) mostra, nos seus nºs 1 e 2 uma identidade total, literal, com os nºs 1 e 2 do art. 49º do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/04. Ora, é impossível que uma apólice celebrada em 2002/2003 coincida ipsis verbis em diversas cláusulas com um texto legal na altura inexistente e que só viria a ser elaborado e promulgado em 2008. Isto mostra que a cláusula 55ª (entre outras) foi aposta na apólice após a entrada em vigor do aludido normativo, ou seja, após 16/04/2008.

Assim, os nºs 3 e 4 teriam de ser dados como não provados, como efectivamente foram.

Logo, não existe qualquer reparo a fazer à decisão relativa à matéria de facto.

A recorrente até aceita que a identidade textual de várias cláusulas da apólice, nomeadamente a 55ª nºs 1 e 2, com o Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/04 põe em causa a sua existência à data da celebração do contrato. Com efeito na conclusão nº 6 afirma:
“A circunstância de as condições gerais juntas aos autos conterem disposições semelhantes à lei do contrato de Seguro que entrou em vigor em 2008, permite chegar à conclusão de que aquelas condições gerais não estavam em vigor no momento da contratação, mas não permite chegar à conclusão de que não estavam em vigor no momento do sinistro” (sublinhado nosso).   

Mas se assim fosse, e para que tais modificações contratuais passassem a vigorar entre as partes, a Seguradora, após 2008, teria de comunicar aos Autores a mudança nas condições gerais – e estes teriam de as aceitar. Contudo, em nenhum momento afirma a Seguradora ter comunicado aos Autores quaisquer modificações da apólice após 2003. Se efectuou tais alterações teria, no mínimo, de as comunicar ao outro contraente e não só não prova tê-lo feito, como nem sequer o alega. Na verdade, até alega o oposto, como decorre dos nºs 29º, 30º, 31º e 32º da contestação, sugerindo que a informação completa teria sido prestada com a celebração do contrato em 2002/2003. Ora, não era possível comunicar ao Autor em 2002/2003 cláusulas contratuais gerais que só foram elaboradas a partir de 2008.

É certo que os Autores, ao negociarem a proposta de adesão tiveram conhecimento de que deveriam apresentar uma lista com os objectos “especiais”, mas de modo algum ficou demonstrado, quer nas declarações da pessoa que celebrou o contrato em nome da Ré, a testemunha LA, quer por outro modo, que a Ré tivesse comunicado aos Autores a consequência, no âmbito da indemnização em caso de sinistro, do não envio de tal lista.

A Seguradora não pode invocar contra os segurados, em caso de sinistro coberto pela apólice, uma cláusula limitativa dos valores susceptíveis de indemnização quando nem sequer prova que tal cláusula já existisse à data da celebração contratual e fosse do conhecimento dos segurados.

Na fase de formação do contrato, é exigível à Seguradora prestar as informações e esclarecimentos necessários para que o tomador do seguro possa formar a sua vontade contratual, apetrechado com os devidos esclarecimentos. E não se prova que a Seguradora tivesse comunicado por algum modo ao tomador do Seguro e ora Autor as consequências, em termos do montante indemnizatório em caso de sinistro, caso a listagem dos objectos “especiais” não fosse elaborada e enviada à Seguradora.

Tal como não se prova que a Seguradora tenha elaborado a cláusula contratual geral nº 55 antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/04.

O contrato de seguro aqui em causa, com as suas alterações, foi celebrado em 2002/2003.

Por fim, não se prova que a Seguradora tenha comunicado ao Autor o teor dessa cláusula 55ª, até à data do sinistro (03/09/2014).

Sendo assim, deverá tal cláusula considerar-se excluída do contrato e não aplicável, nos termos dos artigos 5º nº 2 e 8º do Decreto-Lei nº 445/85, existindo claro incumprimento do disposto no art. 21º do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/04 – Lei do Contrato de Seguro.
                                                                                                     
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.


LISBOA, 29/11/2018


António Valente
Teresa Prazeres Pais
Isoleta Almeida Costa