Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3335/16.7T9SNT.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/31/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O vício de erro notório na apreciação da prova, bem como os demais enunciados no nº 2, do artigo 410º, do CPP, são vícios relativos à sentença, não tendo aplicação à decisão instrutória a que se reporta o artigo 307º, do mesmo Código.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


1.Nos presentes autos com o NUIPC 3335/16.7T9SNT, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Instrução Criminal de Sintra - Juiz 3, foi proferido, aos 11/05/2017, despacho de não pronúncia da arguida A..

2.O assistente não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando que seja substituído por outro que pronuncie a arguida por factos integradores da prática de um crime p. e p. pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal.

2.1Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1.O M.º Juiz de instrução fez incorrecta valoração da prova, nos termos do artigo 127 do CPP, pois das diligências probatórias levadas a cabo em sede de instrução e da conjugação da demais prova só poderia o M.º Juiz de Instrução Pronunciar a Arguida;
2. A tese da Arguida não tem qualquer cabimento, segundo as regras da experiência comum, analisados os depoimentos, como supra se referiu, sendo contraditórios;
3.A forma como o M.º Juiz de Instrução desatende, sem qualquer fundamento relevante os depoimentos das testemunhas A.C. e AV., e distorce o depoimento de R.S.L. e valora o depoimento da Agente da PSP, que não esteve no local à hora do acidente, mas descreve como se tivesse estado, este não deveria merecer qualquer credibilidade, até porque é lacunoso, pois a testemunha nem sequer averiguou se o carro em que a Arguida foi embater se encontrava no local do acidente, é apenas um dos elementos, em conforme o trabalho não foi realizado, pois o M.º juiz não teve a imediação da prova, viola claramente o disposto no artigo 127 do CPP.
4.E violado o artigo 289 do CPP, porquanto no conteúdo da instrução a única testemunha ouvida mentiu deliberadamente sobre os factos.
5.Mais é violado o artigo 308 do CPP, porquanto o mesmo refere "Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz por despacho, pronuncia o arguido (...)" Ora da prova carreada em sede de instrução indicia-se claramente que a Arguida tenha praticado o crime do qual se requereu a abertura de instrução.
6.Encontram-se violados os artigos 286 n.º 1 do CPP, face aos factos carreados o M.º Juiz a quo deveria ter pronunciado a Arguida.
7.Encontra-se violado o artigo 308 n.º 1 do CPP, pois se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos índicos deverá a Arguida ser pronunciada, no caso concreto, foram recolhidos indícios suficientes de levar a Arguida a julgamento.
8.O artigo 283 n.º 2 do CPP, também se encontra violado conjugado com o artigo 308 n.º 1 do CPP, face à prova produzida deveria ser submetida a Arguida a julgamento.
9.A não sujeição da arguida a julgamento constitui uma grave denegação de justiça, artigo 20 da CRP, violando-se nessa medida a Constituição.
10.Pois a Instrução visa tão só o apuramento de indícios suficientes da prática do crime e não um juízo de certeza de condenação.
11.Pois, da enunciação descrita, no objecto da instrução, e analisadas as provas recolhidas na fase de inquérito e na fase de instrução, temos de concluir que existem indícios suficientes de que a Arguida praticou o crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148 n.º 1 do CP. Como passaremos a demonstrar.
12.Diz-se na decisão recorrida de não pronúncia que: «trata-se de duas versões do mesmo evento incompatíveis entre si, sendo que conforme já se deixou expresso, nenhuma das referidas testemunhas presenciou o evento.».
13.Ora as testemunhas arroladas pelo Assistente, A.C.e A.V., socorreram o Assistente, logo após a ocorrência dos factos.
14.A testemunha R.S.L., ouvido oficiosamente, estava no local do acidente, tendo o seu veículo sofrido danos colaterais do embate da Arguida, superiores a 4.000,00€, tendo visto o Arguido ser projectado vários metros.
15.Apenas do cotejo destes elementos e de outros a que aludiremos já deveriam ser considerados suficientemente indiciadores da prática do crime por parte da Arguida. O M.º Juiz não conclui dessa forma, pois refere que não foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime por parte da Arguida. Não podemos, porém, sufragar tal entendimento, pois as testemunhas merecem credibilidade pelo que conhecem e das razões de ciência, assim, dever-se-ia ter atribuído credibilidade a tal meio de prova, conjugado com um conjunto de elementos de prova, que constam do processo, nomeadamente os documentos a fls. 37 e 38, que face à aproximação de um entroncamento, muito movimentado, local de entrada e saída de peões e de carros pois é acesso de um hipermercado, impõe, as regras da experiência comum, que o aproximar de um entroncamento daquela natureza, impõem especiais deveres de cuidado, nomeadamente moderar a velocidade ao aproximar-se de um entroncamento, pois que, desde logo, se poderão encontrar diversos motivos plausíveis para que isso não tivesse acontecido. Assim agiu a arguida com um profundo desrespeito pela integridade física do Assistente.
16.Ora o Tribunal deu como assente o seguinte facto, numerado sobre o ponto 3, “Quando o veículo conduzido pela arguida seguia junto ao hipermercado Continente, situado do lado esquerdo, atendo o sentido em que aquela transitava, a parte frontal da viatura embateu no assistente, em local não concretamente apurado da faixa de rodagem”. Desde logo daqui ressalta de forma cristalina que o Tribunal não logrou apurar o local do embate, pois o Assistente, antes de atravessar prestou atenção à estrada, quer ao sentido esquerda para a direita, e da direita para esquerda, não se aproximando carros e tendo verificado que se encontrava a grande distância de ambas as passadeiras, iniciou a travessia. Após ter iniciado a travessia e já tinha dado alguns passos é surpreendido, como descrito em 3 pela Arguida, que o projecta e vai embater noutra viatura. Tais factos, face às regras da experiência comum — o facto de Arguida se aproximar de um entroncamento, ponto de entrada e saída de viaturas de um hipermercado, o facto de ter atropelado o peão, projectando-o vários metros, após este ter inicio a travessia, encontrando-se já a meio da faixa de rodagem, embateu noutro veículo, na parte da frente, logo a seguir ao atropelamento, resultando danos superiores a € 4.000,00, incluindo o tubo de escape que caiu, ora o tudo de escape situa-se na parte de trás de veículo, e dadas as amolgadelas, superiores a € 4.000,00 - verifica-se sem sombra de dúvida e forma cristalina que a Arguida agiu, negligentemente.
17.A negligência é, por conseguinte, a violação de um dever objectivo de cuidado, ou seja, consiste na omissão de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime (cfr. Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, Volume III, Pág. 150). Para existir negligência é necessário, desde logo, que se esteja perante uma situação em que é objectivamente previsível o perigo de uma determinada acção ou omissão, como sucede in casu. Como é manifesto, ela pressupõe a inobservância do cuidado adequado a impedir a ocorrência do resultado típico.
18.Destarte, é necessário, para que se esteja perante uma conduta negligente, a ausência do cuidado que efectivamente poderia impedir o evento que a própria norma pretende evitar, se a Arguida conduzisse a uma velocidade menor poderia evitar o embate, pois nunca ela poderia vir a uma velocidade moderada, pois não travou, embateu noutro veículo provocando danos muito avultados, incluindo a queda do tubo de escape e a imobilização do veículo. Tal como sucede no presente caso a Arguida superou o risco permitido, como já evidenciamos "o facto da Arguida se aproximar de um entroncamento, ponto de entrada e saída de viaturas de um hipermercado, o facto de ter atropelado o peão, projectando-o vários metros, após este ter inicio a travessia, encontrando-se já a meio da faixa de rodagem, embateu noutro veículo, na parte da frente, logo a seguir ao atropelamento, resultando danos superiores a €4.000,00, incluindo o tubo de escape que caiu, ora o tubo de escape situa-se na parte de trás de veículo, e dadas as amolgadelas, superiores a € 4.000,00."
19.Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Ora no caso concreto a Arguida não tomou qualquer atitude que pudesse evitar o embate. Há negligência pois a Arguida, superou os limites do risco permitido, maxime ou seja, no atropelamento criou e potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da vítima. Pois nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, ou seja, não havia obstáculos na via, esta tinhas boas condições, bem iluminada, bom pavimento, o assistente trajava ténis brancos e uma mochila branca, estava facilmente visível, para além que que a travessia em locais junto a um hipermercado e um entroncamento impunham um especial dever de cuidado. A Arguida não travou, e em consequência do embate o peão foi projectado.
20.De notar em particular o ponto 5 da factualidade indiciada "No local onde teve lugar o embate, inexistiam obstáculos que impedissem a visão da berma a partir da via por onde a arguida transitava." Ou seja, a Arguida se tivesse sido prudente poderia ter tomado outra atitude e evitado o embate, mas como ficou demonstrado não tomou qualquer atitude, pelo que deverá ser responsabilizada e pronunciada.
21.O dever objectivo de cuidado decorre das circunstâncias particulares do caso em análise, das normas jurídicas que regulam comportamentos existentes, designadamente das que visam limitar ou diminuir os riscos próprios de certas actividades, como são, a título de exemplo, as disposições relativas à circulação rodoviária. A violação de uma norma deste teor constituirá sempre um indício forte de responsabilidade penal do agente. Embora a circulação rodoviária não consubstancie uma actividade proibida, a mesma oferece uma razoável probabilidade de lesão dos bens jurídicos, designadamente, a vida humana, e é por isso que constitui uma actividade tida como perigosa, afígurando-se o veículo automóvel - especialmente no contexto histórico-social hodierno - como uma "arma" potencialmente letal. Outro aspecto a ter em conta são as lesões sofridas pelo Assistente, pois teve de ser transportado para o Hospital, e segundo perito médico do Tribunal houve escoriações no crânio, o membro superior direito, fratura do membro superior esquerdo, escoriações no membro inferior direito, escoriações no membro inferior esquerdo, nos joelhos. O assistente fez fisioterapia durante 5 meses. A cura/consolidação das lesões é fixável em 201 dias tendo em conta a reabilitação e o tipo e extensão das lesões. Tais informações constam de fls. 130-133 dos autos, bem como dos elementos de fisioterapia que foram juntos aos autos no debate instrutório, cuja junção foi admitida. Donde se infere claramente que o Arguida agiu de forma negligente e ostensiva. Conjugando as lesões sofridas, e o que supra se descreveu ao nível da falta de cuidado, as boas condições do piso, a boa visibilidade deveriam despertar na Arguida um especial dever de cuidado.
22.Indiscutivelmente, as normas legais que regulam o trânsito podem constituir um importante ponto de partida para aferir da existência, no caso concreto, de um dever objectivo de cuidado.
23.Acresce que o tribunal recorrido fez tábua rasa de um outro elemento de prova recolhido em sede de inquérito, a saber, a perícia médica, que acima apontamos a fls. 130-133, o qual reforça inquestionavelmente o declarado pela Assistente da extensão das lesões.
24.Em suma, analisada criticamente a prova recolhida quer no decurso do inquérito, quer na instrução, impõe-se a conclusão de que foram recolhidos indícios suficientes que permitem «formar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável» de que a Arguida seja responsável pelos factos narrados no requerimento de abertura de instrução, pelo que, consequentemente, o despacho recorrido deverá ser alterado e substituído por outro que pronuncie a Arguida.
25.Pois bem, tenhamos presente que, nos termos do artº 286º, nº 1 do CPP" A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento " Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.
26.A referencia que o artº 301º, nº 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelo factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que a prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (artº 283º, nº 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.
27.A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação" — v. "Curso de Processo Penal, 2ª ed. III vol. , pág. 179.
28.A fls 63-65, a Arguida declara que, no dia 12/11/2015, na Estrada de são Marcos pelas 18h20, quando conduzia participou no sinistro. Refere "Procedendo da faculdade que frequenta e seguindo em direcção à sua ex-residência estudantil (...)". Ora daqui infere-se que a Arguida conhecia bem o local. Reconhece que existe um supermercado Continente. Refere que o peão não tomou precauções, referindo o sentido em que o peão fazia a travessia da esquerda para a direita. E que Antes de embater no peão este terá dado um ou dois passos. Guinou a arguida o seu carro antes de haver contacto físico. Ora o peão foi projectado. Vide facto assente sob o n.º 9, sofrendo múltiplos ferimentos. Ora, resulta à evidência, tendo a Arguida visto o peão, a marcha, deveria ter travado. Na realidade há uma ausência de travagem. Refere a Arguida que não havia visibilidade não era adequada. Ora tal é contrariado pelos factos assentes sob os números 4, 5, 6, 7. Que indicam as boas condições do piso, a boa visibilidade, boa iluminação e a ausência de obstáculos que pudessem limitar a vista. Ora a Arguida é desmentida pelos factos que se consideram suficientemente indiciados. Refere ainda que a velocidade a que circulava não seria superior a 40 km/h. Ora basta atentar ao ponto indicado sob o n.º 9, com a projecção do peão por vários metros e conjugar com o depoimento da testemunha RSL a quem a Arguida foi embater, provocando danos superiores a € 4.000,00, vide declarações de inquérito fls.,78-79, e as declarações em sede de instrução, onde refere que caiu o tubo de escape, pois o ponto de colisão "pontos de contacto as frentes de ambos [os veículos], "não denotou qualquer reacção de travagem, já que só o embate frontal fez com que acabasse por se imobilizar." Acrescenta a testemunha que "o piso encontrar-se-ia seco e em bom estado de conservação, já que havia recebido um tapete novo há muito pouco tempo." Acrescenta a testemunha que "(...) foi o mesmo submetido a exame pericial condicional, sendo atribuída uma reparação superior a €4.000,00 (...). Daqui se infere que mediana clareza que a Arguida falta despudoradamente à verdade e que é desmentida, não só pelas suas contrariedades, mas também, pela prova que foi carreada para os autos.
29.Vide as lesões sofridas pelo Arguida, nomeadamente que foi socorrido por terceiros na via pública, foi conduzido para o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E. fls. 75-76, onde deu entrada pelas 19h20.57 de 12/11/2015 e saiu no dia seguinte às 00h26.17 de 13.11.2015. Foi realizada perícia médica fls. 130-133, donde se conclui pelo nexo de causalidade entre os danos sofridos e evento. Donde resultaram as sequelas, já supra descritas, que determinaram 201 dias de doença e 5 meses de fisioterapia. O Assistente prestou declarações a fls. 80-81 onde refere "Transitando pela Estrada de São Marcos, sita na localidade/ bairro com o mesmo nome, deteve-se junto do bordo separador do passeio e da faixa de rodagem, onde olhou para ambos os lados da faixa de rodagem, a fim de verificar se poderia efetuar a travessia daquela artéria em segurança. Não tendo verificado a aproximação de qualquer veículo, deu início à travessia pretendida e, após ter dado alguns passos, vem a ser atingido pelo veículo que se apresentava pela sua esquerda." Daqui denota-se com meridiana clareza que o Assistente observou todos os deveres de cuidado, que se lhe impunham, antes de proceder ao atravessamento da via.
30.Das declarações prestadas, da extensão dos danos no carro da testemunha RSL, das lesões sofridas, da ausência de travagem resulta evidente que a Arguida incumpriu com os deveres de cuidado estradais a que estava obrigada. Refere ainda o Assistente que foi projectado, facto dado como indiciado, e como refere a testemunha RSL fls. 78 verso "De igual modo observa um peão a ser atingido, com projeção de vários metros, na direcção onde estava imobilizado o veiculo do depoente, acabando prostrado no solo, próximo do seu veículo." Daqui se infere que o referido pelo Assistente não só é corroborado pela testemunha RSL, pelo próprio Assistente e pela demais prova produzida e já atrás descrita. Pelo que só podemos concluir que o Assistente antes de iniciar a travessia da via, assegurou-se que podia fazê-lo em segurança. Referiu ainda o Assistente que " Na sequência do atropelamento, sofreu lesões, pelas quais foi transportado ao Hospital de São Francisco Xavier, onde foi observado, assistido e submetido a exames da especialidade, tendo-lhe sido diagnosticada uma rutura de ligamentos no ombro esquerdo, o que obrigou a sustentação do braço e imobilização, escoriação do couro cabeludo, na área occipital, mas sem necessidade de sutura, para além de escoriações/hematomas vários." Daqui se infere que o Assistente colaborou com a descoberta da verdade, sendo sido verdadeiro o seu depoimento e por essa razão, devidamente corroborado pela prova, em consequência o seu depoimento, articulado com os demais e com os restantes meios de prova, imporão uma decisão diversa da recorrida.
31.O local do acidente foi indicado pela Arguida sem qualquer contraditório por parte do Assistente, e não foram realizadas quaisquer medições, conforme resultou do depoimento da Agente da PSP em sede de instrução em 3 de Fevereiro de 2017. A investigação a fls. 83-84 e 86 conclui-se que o peão por se encontrar a 47.20 metros da passadeira, é culpado do acidente, sem interligar a demais prova, produzida em sede de inquérito e instrução e com base nesta conclusão, conclui o inquérito e a instrução, mal diremos, pois não olharam a outros meios de prova produzidos como temos vindo a expor. O Assistente, notificado de uma contra-ordenação apresentou defesa. Do depoimento da testemunha MCL, agente da PSP, ressalta que foi a Arguida que indicou o local, não se sabendo com precisão o local exacto, porque não foram realizadas perícias ou medições, conforme atestou a testemunha em sede de instrução, tendo corroborado que a Arguida não travou e confirmou a boas condições do piso e da visibilidade. Aliás refere a decisão de não pronuncia, ora recorrida, que "o veículo conduzido pela Aguida embateu no Assistente quando este se encontrava a cerca de 1.40 metros da berma, ora daqui infere-se quo Assistente não tinha dado apenas um passo como quer fazer crer a Arguida, mas encontrava-se já a meio da faixa de rodagem, o que imporia só por si à Arguida o especial dever de cuidado, pois se o peão fosse a iniciar a travessia estaríamos a descrever não 1,40 metros, mas algum valor muito inferior a este. O que demonstra que a Arguida vinha, pelo menos em excesso de velocidade.
32.Veja-se o conceito de "velocidade excessiva", definido no artº 24º, nº 1, do Código da Estrada, comporta duas realidades distintas: uma vertente absoluta (sempre que exceda os limites legais) e uma vertente relativa (a não adequação à situação concreta, que leva a que o condutor não pare no espaço livre e visível à sua frente). Ora sabendo a condutora que se aproximava de um entroncamento, junto a um hipermercado, no local onde estudava e residiu, conhecia muito bem o local, logo eram-lhe exigidas especiais, deveres de prudência, cuidado e cautela. Ora ao não ter travado, dada a distância da berma, o Assistente olhou para a faixa de rodagem e certificou-se de que não havia carros, a extensão das lesões, o local, e os danos no veículo da testemunha RSL, onde a Arguida veio a embater sem travar, demonstram à evidência a falta de um dever de cuidado.
33.Pelo que o facto considerado não suficientemente indiciado, b) "que no momento em que ocorreu o embate, a arguida condizia o veículo sem prestar atenção ao que a rodeava.", tanto assim que é que bate no peão, projecta-o, vai embater noutro veículo causando danos superiores a €4.000,00, as extensões das lesões, o facto de se aproximar de um entroncamento, como resulta de fls. 37 e 38 dos autos, impunham especiais deveres de cuidado, se os observasse teria evitado os dois embates, um no peão, Assistente, e outro no veículo da testemunha Ricardo.
34.O Facto considerado não indiciado, "a Arguida teve a possibilidade de se aperceber de que o assistente havia iniciado a travessia da via", só pode dar-se como provado. Não há outra alternativa, vide declarações da própria Arguida fls. 64 "Ao se aperceber da presença do peão e mesmo antes de ocorrer o conflito, a arguida guinou sobre o seu lado esquerdo" e ainda "Ao se aproximar da área onde existe o supermercado Continente cem a ser confrontada, com a presença de um peão (...). Não trava, não buzina? Ora só se pode concluir que a Arguida vinha em velocidade excessiva.
35.E também em sede de instrução foi inquirida a testemunha MCL, em 3 de Fevereiro de 2017, nem sequer se recordava se o segundo veículo estava no carro. Ora esta agente, foi a responsável pela feitura do croqui. Disse ainda a testemunha que o carro da Arguida tinha danos na zona esquerda que estava danificada e que bateu na parte do meio do outro carro.
36.Ora o Interveniente Ricardo a quem a Arguida bateu e a própria arguida desmentem tal versão, pois a colisão foi frontal. Vide depoimentos fls. 64 onde a Arguida refere "(...) vem a ocorrer a colisão frontal (...)." E vide testemunha RSL fls. 78 verso "A colisão entre os veículos teve como pontos de contacto as frentes de ambos. Contradição claramente assinalada cuja decisão instrutória não assinala. A agente que não presenciou o acidente descreve a dinâmica do mesmo, sem ter presenciado, quando refere "toca e tenta desviar-se". Uma afirmação deste teor não pode ser tida em consideração pois a testemunha não presenciou os factos. Se tivesse feito bem o seu trabalho, saberia se o veículo da testemunha RSL se encontrava no local e teria assinalado os danos. O que manifestamente não fez. Pelo que o seu depoimento não pode ter qualquer crédito por contraditório com os factos apurados e com os intervenientes em questão. Alias a testemunha que não esteve no local ainda refere "O peão apareceu de repente". Novamente o Tribunal fundou a sua convicção em testemunhos pouco consistentes, o que se traduziu numa decisão pouco consistente e que não apreciou a prova na sua globalidade, nem tão pouco teve o cuidado de ver as flagrantes contradições. Pois a testemunha ainda refere mais, não sabia que o peão foi projectado e não fez a medição, vide gravação do depoimento. A testemunha é tão credível que diz "O outro condutor não se apercebeu do atropelamento." Para quem não presenciou o acidente é ousado afirmar tal coisa, pois a testemunha Ricardo que esteve no local viu o peão ser projectado vários metros, fls. 78 verso. "De igual modo observa um peão a ser atingido, com projecção de vários metros (...)." Reconhece a testemunha que no local havia amigos do peão.
37.A testemunha AC, no dia 3 de Fevereiro de 2017, deslocou-se ao local logo a seguir ao acidente, porque alguém ligou do telemóvel do Assistente, e quando chegou o Assistente estava do lado oposto da berma, e havia danos nos dois carros na parte da frente. Confirmou a testemunha a indumentária do Assistente e que o local estava em bom estado e com boa iluminação. Esta testemunha acrescentou que os óculos do Assistente não apareceram logo, e que o Assistente estava dorido, com hematomas, estava muito gente no local. Ora esta testemunha refere, em suma que o Assistente sofreu um acidente, danos físicos, e os carros também apresentavam danos e que o local tinha boa iluminação e boas condições e que o peão estava do outro lado da estrada. No mesmo sentido aponta o depoimento de A.V., prestado no mesmo dia, que estava preocupada com a saúde do Assistente.
38.Acresce que o tribunal recorrido fez tábua rasa de outros elementos de prova recolhido em sede os relatórios médicos, a perícia médica e os documentos clínicos juntos no debate instrutório, cuja junção foi admitida, o qual reforça inquestionavelmente o declarado pelo Assistente.
39.Em suma, analisada criticamente a prova recolhida quer no decurso do inquérito, quer da instrução, impõe-se a conclusão de que foram recolhidos indícios suficientes que permitem «formar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável» de que a Arguida seja responsável pelos factos narrados no requerimento de abertura de instrução.
40.Refere o M.º Juiz de Instrução na discussão dos indícios o seguinte: "Por fim, se, como o assistente alega, a arguida tinha a possibilidade de o avistar, também, aquele teria possibilidade de avistar a aproximação do veículo conduzido pela mesma. A versão dos factos apresentada pelo assistente só seria plausível se estivesse indicado que a arguida surgiu no local de forma repentina, quando aquela já estava a travessar a via, e portanto, em velocidade excessiva." Ora que radica o busílis da questão, ora quando o Assistente atravessou, vide as suas declarações a fls. 80-81, o peão certificou-se se podia passar. Uma vez que podia atravessar em segurança iniciou a travessia, entrecruzando este elemento com o croqui fls.37 c 38, verifica-se que o Assistente já tinha percorrido pelo menos 1.40 metros. Atentas as declarações do Assistente, o facto de ser projectado, as declarações do Assistente e as declarações da testemunha RSL, fls. 78-79, os danos que este sofreu, e o local concreto, próximo de um entroncamento, não esquecer que os danos são superiores a € 4.000,00, tendo embatido as frentes, o tudo de escape caiu, incluindo o radiador ficou danificado, na sequência do embate. Ora todos os factos devidamente interligados fazer prever que a Arguida deverá ser pronunciada e submetida a julgamento.
41.Refere o despacho sob censura "Termos em que, também no que à velocidade a que a arguida seguia nada de relevante se apurou." Só uma visão solipsística dos factos permite ao M.º Juiz, a quo, concluir, com tamanha ligeireza que nada se apurou quanto a velocidade. Danos superiores a € 4.000,00, queda do tubo de escape, o radiador, a projecção do Assistente "vários metros", não são elementos concludentes para impor decisão diversa? Cremos que sim. E ofensivo para regras da experiência comum que alguém com os danos descritos, as lesões apuradas, o local próximo de um entroncamento, junto a um centro comercial, num local que a Arguida bem conhecia, era imposta outra conduta, assim ultrapassou a Arguida o risco permitido.
42.Pelo que da factualidade que não se mostra suficientemente indiciada:
d) "Antes de iniciar a travessia da via, o Assistente assegurou-se que o podia fazer em segurança;"
Tal facto tem de ser levado á factualidade suficientemente indiciada pelo que supra se expôs, quer ligando o depoimento do Assistente, da Arguida (que esconde mais do que o que revela, revelando aquilo que esconde). Logo pelo que acima expusemos no que concerne ao inquérito, deveria ser dado este facto como suficientemente indiciado.
c) "No momento em que ocorreu o embate, a arguida conduzia o veículo sem prestar atenção ao que a rodeava.
Tal facto tem de ser levado á factualidade suficientemente indiciada pelo que supra se expôs. Vide depoimentos, do Assistente, da testemunha Ricardo, e a extensão dos danos e a projecção que nos dá um indício forte, suficientemente forte, diríamos para pronunciar a Arguida, logo deveria ser dado como um indício suficiente.
f) "A Arguida teve a possibilidade de se aperceber de que o Assistente havia iniciado a travessia da via."
Tal facto tem de ser levado á factualidade suficientemente indiciada tendo em conta desde logo, as declarações da própria Arguida, vide fls. 64, como acima transcrevemos.
43.Assim sendo, os únicos factos que o Tribunal não considerou suficientemente indiciados, deverão ser dados como suficientemente indiciados, pois não pode o Tribunal concluir, que não houve excesso de velocidade ou velocidade excessiva, tendo em conta, os danos sofridos na viatura, superiores a € 4.000,00, a projecção do peão, a ausência de travagem. O que demonstra um erro notório na apreciação da prova. Erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores; não se pode confundir este erro com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar. O apontado vício é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente, só podendo relevar, como foi dito no acórdão do STJ de 01-10-1997, processo n.º 243/97-3.", se for ostensivo, inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do "homem médio".
44.Na análise a efectuar para detecção do vício há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do CPP, encontrando-se este artigo claramente violado.
45.Os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem, por outro lado, ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo - artigo 127.º do CPP. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada por qualquer sujeito processual sobre os factos.
46.Ora só se pode concluir que os indícios recolhidos, quer no inquérito, quer na instrução, permitam considerar como altamente provável a futura condenação da arguida ou que, pelo menos é mais provável a sua condenação do que a não condenação. Encontrando-se reunidos os pressupostos de que depende a indiciação suficiente de molde a pronunciar a Arguida pela prática do crime. Circunstância de que o M.º Juiz de Instrução, injustificadamente, fez tábua rasa, para espanto do ora Assistente. E que todos os factos acima descritos e relacionados, caso sejam - como devem ser - ligados ao facto de só pode resultar que a Arguida não usou de toda a prudência que lhe era imposta.
Pelo Exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, proferindo-se despacho de pronuncia da Arguida, revogando-se o despacho anterior, fazendo-se a costumada Justiça.

3.Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

4.Igualmente a arguida respondeu à motivação de recurso, concluindo por não merecer provimento.

5.Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu “Visto”.

6.Colhidos os vistos, foram os autos à conferência

Cumpre apreciar e decidir.

IIFUNDAMENTAÇÃO.

1.Âmbito do Recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.

Existência de indícios suficientes da prática pela arguida do crime p. e p. pelo artigo 148º, do Código Penal.

2.A Decisão Recorrida
2.1A decisão recorrida, na parte que releva, tem o seguinte teor (transcrição):

IRELATÓRIO
Por despacho de fls. 141 a 148 (cf. ainda fls. 150), o Ministério Público, invocando o disposto no art. 277º, n.º 2, do Código de Processo Penal, procedeu ao arquivamento do inquérito.
Inconformado com o teor do aludido despacho de arquivamento, veio o assistente PS requerer a fls. 163 a 174 a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia da arguida A. (identificada a fls. 61/62) pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, n.º 1, do Código Penal.
No decurso da fase de instrução procedeu-se à inquirição de quatro testemunhas.
Realizou-se o debate instrutório.

O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.
Inexistem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.

IIFUNDAMENTAÇÃO
II.1O objecto da instrução.
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, n.º 1, do Código de Processo Penal), sendo certo que na decisão instrutória não se julga do mérito da causa, mas tão só dos pressupostos da fase de julgamento. Isto é, o juiz verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento pelos factos constantes da acusação.
Esta submissão a julgamento não exige a prova no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios da ocorrência do mesmo, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.[1]
Nos termos do que dispõe o art. 308 º, nº 1, do Código de Processo Penal, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
E, conforme decorre do disposto no art. 283º, n.º 2, do mesmo código, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Esta fórmula, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12-05-2004, acolheu a orientação da doutrina e jurisprudência seguidas no domínio do Código de Processo Penal de 1929 que não definia o que era indícios suficientes para a acusação. Acrescenta-se no mesmo aresto que considerava-se que eram bastantes os indícios quando existia um conjunto de elementos convincentes de que o arguido tinha praticado os factos incrimináveis que lhe eram imputados; por indícios suficientes entendem-se suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele. Refere-se ainda no acórdão em referência que, por outras palavras, para sustentar uma pronúncia, embora não seja preciso uma certeza da existência da infracção, é necessário, contudo, que os factos indiciários sejam suficientes, e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo, assim, um juízo de probabilidade do que lhe é imputado (Entre outros, Acs. da Relação de Coimbra de 31/3/93 in C.J. Ano XVIII, Tomo II, pág. 65; de 26/6/63 in JR. Ano 30, 777; de 29/3/66 in JR. 2, Ano 20 pág. 419; da Rel. Lisboa de 28/2/64 in JR. Ano 10 pág. 117)[2]
Para Figueiredo Dias, só se mostram suficientes os indícios quando em face deles, seja de considerar como altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável que a sua não condenação.[3] Relativamente à referida possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido, acrescenta Germano Marques da Silva que esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.[4]
É também nestes termos que a jurisprudência tem vindo a entender o conceito de indícios suficientes. Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-04-1985, só constituem indícios suficientes aqueles elementos que, logicamente relacionados e conjugados, formam um conjunto persuasivo, na pessoa que os examina, sobre a existência do facto punível, de quem foi o seu autor e da sua punibilidade.[5] Considerou-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-10-2008, que são suficientes os indícios, para efeitos de pronúncia, como de acusação, quando a probabilidade de condenação seja maior que a de absolvição, bem como que a probabilidade de condenação é maior que a de absolvição quando, num juízo de prognose antecipada, se possa afirmar que, se os elementos de prova existentes no inquérito ou na instrução se repetirem em julgamento e aí não forem abalados ou infirmados por outros aí produzidos, o arguido será seguramente condenado.[6] Explicita-se ainda no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-05-2010, que indícios suficientes serão referências factuais, sinais objectivos de suspeita, indicações de vestígios, elementos de facto trazidos pelos meios legais probatórios ao processo, que conjugados e relacionados criam a convicção de uma séria probabilidade da condução à condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído, a manter-se todo aquele acervo probatório em sede de julgamento.[7]
Em suma, nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução), não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão-só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, constituindo as provas reunidas nessas fases, pressuposto, não da decisão de mérito, mas da decisão processual da prossecução dos autos para julgamento, onde o julgador deverá ser mais exigente; então exige-se certeza, cimentada através de uma sã apreciação crítica da prova, enquanto que, para o acto provisório da acusação ou da pronúncia, se exige somente aquela convicção.

II.2A factualidade descrita que se mostra suficientemente indiciada

Com relevância para a decisão a proferir mostra-se suficientemente indiciado que:
1.No dia 12-11-2015, pelas 18h00, a arguida A. conduziu o veículo automóvel com a matrícula …RJ na Estrada de São Marcos, no Cacém;
2.Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o assistente PS iniciou o atravessamento da Estrada de São Marcos, da direita para a esquerda, atento o sentido em que a arguida seguia;
3.Quando o veículo conduzido pela arguida seguia junto do hipermercado Continente, situado do lado esquerdo, atento o sentido em que aquela transitava, a parte frontal da viatura embateu no assistente, em local não concretamente apurado da faixa de rodagem;
4.Na ocasião, era noite e havia iluminação pública no local onde ocorreu o embate;
5.No local onde teve lugar o embate, inexistiam obstáculos que impedissem a visão da berma a partir da via por onde a arguida transitava;
6.O piso da via por onde a arguida seguia estava seco e em bom estado;
7.O assistente calçava uns ténis brancos e transportava uma mochila da mesma cor;
8.Antes de o veículo conduzido pela arguida embater no assistente, aquela não accionou o mecanismo de travagem da viatura;
9.Em consequência do embate, o assistente foi projectado ao longo de número não concretamente apurado de metros e sofreu ferimentos.
II.3A factualidade que não se mostra suficientemente indiciada
Da factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução, não se considera suficientemente indiciado que:
a)-Antes de iniciar a travessia da via, o assistente assegurou-se de que o podia fazer em segurança;
b)-No momento em que ocorreu o embate, a arguida conduzia o veículo sem prestar atenção ao que a rodeava;
c)-A arguida teve possibilidade de se aperceber de que o assistente havia iniciado a travessia da via.

II.4A discussão dos indícios
De acordo com a versão dos factos alegada pelo assistente no requerimento de abertura de instrução que apresentou, o embate ocorreu porque, não obstante a arguida ter tido oportunidade de ver aquele a atravessar a estrada, não evitou o acidente porque conduzia o veículo de forma distraída. No entanto, os meios de prova produzidos permitem ter por mais verosímil a versão dos factos perfilhada pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, nos termos da qual «a vítima PS atravessou de forma inopinada» a via por onde seguia a arguida. Em suma, os meios de prova produzidos, quer em sede de inquérito, quer na fase de instrução, não permitem concluir pela suficiente indiciação, de acordo com o critério supra exposto, da versão dos factos alegada pelo assistente.
Com relevância para o apuramento das concretas circunstâncias em que ocorreu o embate em apreço nos autos, na fase de inquérito procedeu-se ao interrogatório da arguida (fls. 63 a 65), à inquirição da testemunha R.S.L.(fls. 78 e 79) e à tomada de declarações ao assistente (fls. 80 e 81). Na mesma fase processual, foram ainda juntos aos autos os documentos de fls. 37 e 38. Por seu turno, com relevância para o esclarecimento das aludidas circunstâncias, na fase de instrução procedeu-se à inquirição das testemunhas MCS, AC e AV, bem como à reinquirição da testemunha RSL.
Nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou o embate. A arguida afirmou que «ao se aproximar da área onde existe o supermercado Continente vem a ser confrontada com a presença de um peão, o qual sem tomar qualquer precaução em relação ao trânsito de veículos, dá início à travessia da faixa de rodagem, da direita para a esquerda, em relação ao sentido de circulação do veículo» por si conduzido, que «o peão em causa terá dado um ou dois passos na faixa de rodagem antes de existir o contacto físico entre o mesmo e o pára-brisas do veículo», que «ao se aperceber da presença do peão e mesmo antes de ocorrer o conflito, a arguida guinou sobre o seu lado esquerdo, como manobra evasiva, a fim de evitar o contacto, não tendo sido esta suficiente e eficiente» e que «na sequência desse facto vem a ocorrer a colisão frontal oblíqua entre o veículo por si conduzido e o outro que procedia do espaço de estacionamento daquele espaço comercial».
Por seu turno, o assistente referiu que «transitando pela Estrada de São Marcos, (...) deteve-se junto do bordo separador do passeio e da faixa de rodagem, onde olhou para ambos os lados da faixa de rodagem, a fim de verificar se poderia efectuar a travessia daquela artéria em segurança», que «não tendo verificado a aproximação de qualquer veículo, deu início à travessia pretendida e, após ter dado alguns passos, vem a ser atingido pelo veículo que se apresentava pela sua esquerda».
Trata-se de duas versões do mesmo evento incompatíveis entre si, sendo que, conforme já se deixou expresso, nenhuma das referidas testemunhas o presenciou. A este propósito, cumpre explicitar que a testemunha MCS é agente da PSP e que, no exercício das suas funções, deslocou-se ao local onde o embate ocorreu, tendo afirmado que elaborou os documentos de fls. 37 e 38 com base no que ali lhe foi dito pela arguida. Assim, de acordo com esta versão dos factos, o veículo conduzido pela arguida embateu no assistente quando este se encontrava a cerca de 1,40 metros da berma (valor obtido tendo em conta a largura da faixa de rodagem referida a fls. 37 e o cruzamento dos eixos x e y relativamente ao "ponto fixo auxiliar" indicado a fls. 38, tendo ambos os documentos sido elaborados, conforme já se referiu, com base no que foi transmitido pela arguida). Por seu turno, a testemunha R.S.L. conduzia o veículo onde a viatura conduzida pela arguida veio a embater após ter atingido o assistente, sendo que apenas se apercebeu da situação quando este já estava a ser projectado. Por fim, as testemunhas AC e AV somente se deslocaram ao local do acidente depois de este ter tido lugar.
A circunstância de a arguida não ter accionado o mecanismo de travagem do veículo antes de embater no assistente, por si só, não permite concluir que aquela seguia distraída, pois tal omissão também é compatível com o atravessamento da via por parte do assistente sem que este se tenha assegurado de que o podia fazer em segurança e, portanto, com a distracção do mesmo.
Por fim, se, como o assistente alega, a arguida tinha possibilidade de o avistar, também aquele teria possibilidade de avistar a aproximação do veículo conduzido pela mesma. A versão dos factos apresentada pelo assistente só seria plausível se estivesse indiciado que a arguida surgiu no local de forma repentina, quando aquele já estava a atravessar a via e, portanto, em velocidade excessiva. No entanto, a este propósito, a testemunha Ricardo L... descreveu os danos causados na viatura por si conduzida na sequência do embate na mesma do veículo conduzido pela arguida, sendo que apenas fez referência a "amolgadelas" e à circunstância de a viatura ter ficado impedida de circular, não por causa de tais "amolgadelas", mas por força dos estragos causados no radiador. Termos em que, também no que à velocidade a que a arguida seguia nada de relevante se apurou.

II.5O enquadramento jurídico-penal
O assistente imputa à arguida a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, n.º 1, do Código Penal.
No entanto, a factualidade que se mostra suficientemente indiciada não integra o cometimento pela arguida do referido ilícito criminal, nomeadamente porque, desde logo ao nível do tipo objectivo, não se apurou que o resultado ofensa à integridade física do assistente tenha sido a concretização da violação de qualquer dever de cuidado por parte daquela.

II.6Conclusão
Em suma, os indícios recolhidos durante o inquérito e a instrução não permitem considerar como altamente provável a futura condenação da arguida ou que, pelo menos, é mais provável a condenação desta do que a sua não condenação.

IIIDecisão
Nos termos do disposto no art. 308º, n.º 1, 2ª parte, do Código de Processo Penal, não pronuncio a arguida A..

Apreciemos.

Verificação do vício de erro notório na apreciação da prova

Sustenta o recorrente que o despacho de não pronúncia em causa padece do vício de erro notório na apreciação da prova.

Ora, este vício, bem como os demais enunciados no nº 2, do artigo 410º, do CPP, são vícios relativos à sentença, não à decisão instrutória, como se assinala, entre outros, nos Acs. da Relação do Porto de 15/02/2012, Proc. nº 918/10.2TAPVZ.P1 e de 18/04/2012, Proc. nº 4454/10.9TAVNG.P1; Ac. R. de Évora de 03/07/2012, Proc. nº 4016/08.0TDLSB.E1, consultáveis em www.dgsi.pt.

E, assim é, porque dizem respeito à matéria de facto provada (e/ou não provada) o que inexiste numa decisão instrução, que apenas pode concluir pela existência de matéria de facto suficientemente indiciada ou não indiciada.

Acresce que esses vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, o que exclui o recurso a quaisquer elementos externos à decisão, ainda que constantes do processo, para a sua detecção e vero é que a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os presentes no inquérito como os produzidos já na fase de instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente, pelo que a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não é admissível pela invocação do vício de erro notório na apreciação da prova tal como no nosso ordenamento jurídico se encontra configurado, conforme anota Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 909.

E, que este é o entendimento consentâneo com a lei, extrai-se também de a verificação de qualquer dos vícios enunciados no artigo 410º ter como consequência (quando não for possível decidir da causa) o “reenvio do processo para novo julgamento”, nos termos dos artigos 426º e 426º-A, do Código de Processo Penal, o que pressupõe que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior e não de diligências realizadas em fase de instrução que culmina numa decisão instrutória que reveste a forma de um despacho.

Termos em que, improcede o recurso quanto a esta questão.

Existência de indícios suficientes da prática pela arguida do crime p. e p. pelo artigo 148º, do Código Penal

Nos termos do artigo 286º, nº 1, do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

E, estabelece o artigo 308º, nº1, que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” - nº 1.

Por seu turno, esclarece-se no artigo 283º, nº 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição a julgamento da arguida.

Nessa aferição o tribunal aprecia a prova (indiciária, obviamente) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP.

Figueiredo Dias afirma que “(...) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. E acrescenta ainda: “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” - Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pág. 133.

Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros” - Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pág. 189.

Assim, os indícios qualificam-se de “suficientes” quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função deles, for razoável.

No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo “indícios suficientes” de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a este conceito não pode alhear-se do mencionado princípio.

No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23 de Outubro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que “a interpretação normativa dos artigos citados (286º nº 1, 298º e 308º nº1, do CPP) que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº 2, da Constituição” – e no mesmo sentido da aplicação deste princípio em qualquer fase do processo, nomeadamente no inquérito e na instrução, se perfilam, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 04/01/2006, Proc. nº 0513975 e de 22/10/2008, Proc. nº 0814910, bem como os desta Relação e Secção de 02/05/2006, Proc. nº 849/2006-5 e 16/11/2010, Proc. nº 3555/09.TDLSB.L1-5, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Face ao que, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento.

Em todo o caso, o referente da condenação respeita ao crime que é imputado e em relação ao qual o juízo de indiciação suficiente se reporta.

Regressando à matéria dos autos, há que questionar se, com base nos elementos de prova indiciária recolhidos no inquérito e na instrução, é de formular um juízo de probabilidade elevada de que, em julgamento, a arguida venha a ser condenada pelos factos e incriminação legal imputados no requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente.

E, esse juízo, há-de atender para a sua formação não só à prova directa (em que o facto probatório - meio de prova - se refere imediatamente ao facto probando), como também à prova indirecta ou indiciária, que igualmente é admissível pelo nosso ordenamento jurídico – cfr. neste sentido, Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt – e reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o recurso às regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.

Vejamos então o caso concreto.

Os indícios suficientes terão de se reportar aos factos e à infracção criminal cujo cometimento se imputa à arguida, ou seja, o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal.

Importa analisar sumariamente os pressupostos desse crime, sobre os quais recaiu o despacho de não pronúncia, que o recorrente censura.

Nos termos do artigo 148º, do Código Penal, pratica o crime em causa, “quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa (…)”.

De acordo com o estabelecido no artigo 15º, deste diploma legal, age com negligência quem “não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz”.

De onde se extrai que a negligência se consubstancia numa omissão de um dever objectivo de cuidado, adequado, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a obviar à produção do facto ou resultado típico.

Mas, para que se apresente a negligência é necessário ainda que se esteja perante uma situação em que é objectivamente previsível que da violação do dever objectivo de cuidado resulte a produção desse resultado típico.

Com efeito, como se pode ler no Ac. R. de Coimbra de 21/11/2012, Proc. nº 123/09.0 GCTND.C1, consultável em www.dgsi.pt, “apenas a previsibilidade objectiva do perigo da acção ou da omissão pode criar no agente um determinado dever de agir ou de se abster.

Torna-se, pois, necessário que uma pessoa de capacidade medianamente diligente, perante a mesma situação, pudesse prever o perigo de determinada acção ou omissão, ou seja, a chamada previsibilidade objectiva.”

Começa por sustentar o recorrente que aproximando-se a arguida de um entroncamento, muito movimentado, local de entrada e saída de peões e de viaturas, por ser acesso de um hipermercado, impunha-se um especial dever de cuidado, nomeadamente moderando a velocidade que imprimia ao veículo que tripulava.

Dos autos não constam quaisquer elementos que levem à conclusão por qual a velocidade a que a arguida circulava e, por isso, não se pode exigir uma maior moderação da mesma, quando se desconhece se era ou não ela já moderada, apropriada para o local (atendendo, designadamente, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais e à intensidade do trânsito) sendo certo que a via que junta àquela por onde seguia a arguida se encontra vários metros à frente do local onde ocorreu o embate entre a viatura e o peão/recorrente e se posiciona à sua esquerda, enquanto este se lhe apresentou pela direita, atento o sentido de marcha.

Afirma o recorrente que antes de proceder ao atravessamento da via observou para a sua direita e esquerda se se aproximava alguma viatura e só o iniciou depois de constatar que tal não acontecia.
Mas esta versão é precisamente a contrariada pela arguida, que relata, como se pode ler na decisão revidenda: “ao se aproximar da área onde existe o supermercado Continente vem a ser confrontada com a presença de um peão, o qual sem tomar qualquer precaução em relação ao trânsito de veículos, dá início à travessia da faixa de rodagem, da direita para a esquerda, em relação ao sentido de circulação do veículo» por si conduzido, que «o peão em causa terá dado um ou dois passos na faixa de rodagem antes de existir o contacto físico entre o mesmo e o pára-brisas do veículo», que «ao se aperceber da presença do peão e mesmo antes de ocorrer o conflito, a arguida guinou sobre o seu lado esquerdo, como manobra evasiva, a fim de evitar o contacto, não tendo sido esta suficiente e eficiente» e bem assim «na sequência desse facto vem a ocorrer a colisão frontal obliqua entre o veículo por si conduzido e o outro que procedia do espaço de estacionamento daquele espaço comercial”.

Pretende, porém, o recorrente, extrair a existência de uma velocidade excessiva das circunstâncias de ter sido colhido quando já se encontrava a meio da faixa de rodagem, não ter ocorrido o accionar do mecanismo de travagem da viatura, ter sido projectado vários metros e o veículo da arguida ter ido embater na parte frontal de uma outra viatura, provocando-lhe danos no montante de 4.000,00 euros, incluindo o tubo de escape que caiu.

Mas, na verdade, tal conclusão não pode, pelo menos sem margem para dúvida razoável, ser retirada.

Desde logo, porque não foi possível apurar o local exacto da faixa de rodagem em que ocorreu o atropelamento e, embora a testemunha Ricardo L... (condutor do veículo em que, após o atropelamento, a viatura da arguida foi embater) tenha referido, quando inquirido foi em fase de inquérito, que observou um peão a ser atingido, com projecção de vários metros, também se não logrou concretizar qual a distância desta (“vários metros” tanto podem ser 3 como 10 metros).

A ausência de travagem é susceptível de ter ocorrido precisamente por o recorrente ter procedido ao atravessamento de forma inopinada e distraída.

Quanto aos danos sofrido pelo veículo tripulado por RSL, trata-se de uma viatura da marca “Opel”, modelo “Corsa”, à data com 12 anos de idade, tendo o embate ocorrido frontalmente, em zona em que se localizam o motor e o radiador (elementos cuja reparação ou substituição, como é sabido, importa sempre em quantias elevadas) pelo que do valor daqueles não se pode inferir a velocidade a que seguia viatura (da arguida) que os provocou.

E, também tal não resulta da queda do tubo de escape, pois desconhece-se o estado em que se encontrava a sua fixação à estrutura do veículo.

Por outro lado, cumpre que se diga, as lesões sofridas pelo recorrente nem sequer são, segundo as regras da experiência comum, compatíveis com o embate de um peão por um veículo animado de velocidade não moderada, pois apenas sofreu “fractura/arrancamento troquiter a esq., pequeno fragmento (…) escoriação occipital do couro cabeludo. Escoriações da mão direita, do cotovelo esquerdo, dos joelhos e da perna direita com edema”, tendo sido admitido no Serviço de Urgência do Hospital São Francisco Xavier pelas 19:20 horas do dia 12/11/2015 e concedida alta às 00:26 horas do dia 13/11/2015, como resulta do documento hospitalar de fls. 75/76.

Acresce que, o atravessamento ocorreu fora de uma passadeira (pese embora existisse passadeira para peões a uma distância de 47,20 metros em relação ao local onde o recorrente procedeu à travessia da via), de noite, o recorrente trajava calças e casaco escuros (como referiu no seu depoimento em fase de inquérito), o que dificultaria a sua visualização pela condutora arguida e, embora o local fosse dotado de iluminação pública, a testemunha Ricardo L... afirmou que se tratava de local onde a iluminação pública é desprovida de eficiência.

Menciona o recorrente que as testemunhas por si indicadas A.C.e A.V. o socorreram logo após a ocorrência dos factos mas, a explicitação do que afirmaram nos depoimentos nos autos prestados é perfeitamente inócua quanto à forma como ocorreu o atropelamento e velocidade a que seguia a arguida.

Tudo visto e ponderado, não resulta suficientemente demonstrado, sem margem para dúvida razoável, que a arguida no exercício da condução tenha violado um dever objectivo de cuidado, por omissão de uma precaução reclamada pela prudência, cuja observância teria evitado o facto correspondente ao tipo de crime.

E, na verdade, o critério delimitador do tipo de ilícito negligente é integrado pelo princípio da confiança, que assume especial relevância nos crimes relacionados com a circulação rodoviária.

De acordo com este princípio, no dizer de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 109, “(...) quem se comporta no tráfico de acordo com as normas deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros, salvo se tiver razão concretamente fundada para pensar de outro modo.”

Ora, seguindo a arguida na sua mão de trânsito, a velocidade indiciariamente moderada (ou pelo menos demonstrado não está que assim não fosse) não podia, no caso concreto, representar que um peão iria proceder ao atravessamento da via fora da passadeira, quando estabelecido está no artigo 101º, nº 3, do Código da Estrada (versão da Lei nº 72/2013, de 03/09, aplicável à data dos factos) que “os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m (o que não era o caso, como se deixou expresso) perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem”, pelo que indiciariamente se não mostra presente conduta concreta alguma da arguida que tenha feito aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido, isto é, que tenha ultrapassado o limite do risco permitido.

Destarte, mantendo-se a matéria indiciária produzida em sede de inquérito e de instrução nos termos mencionados, não se pode efectivamente efectuar um juízo de prognose condenatório, antes predomina uma razoável, séria mesmo, possibilidade de a arguida vir a ser absolvida por esses factos e vestígios probatórios.

Não se mostram, pois, recolhidos nos autos indícios suficientes de que a arguida tivesse praticado conduta de onde possa resultar a sua responsabilização penal pelo crime p. e p. pelo artigo 148º, nº 1, do Código Penal, que lhe é imputado, pelo que se apresenta como improvável a sua condenação em julgamento pela prática de tal ilícito criminal.

Donde se conclui que a decisão instrutória fez um enfoque da questão que consideramos essencialmente correcto e, tendo decidido em conformidade, não merece censura, cumprindo negar provimento ao recurso.



IIIDISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso pelo assistente PS interposto e confirmar a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.


Lisboa, 31 de Outubro de 2017



(Artur Vargues) - (Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).

(Jorge Gonçalves)



[1]cf. SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, Editorial Verbo, pág. 183.
[2]in www.dgsi.pt (processo 0440605).
[3]in Direito Processual Penal, Vol. 1,1974, Coimbra Editora, pág. 133.
[4]in ob. cit., pág. 183.
[5]in CJ, Tomo II, pág. 81.
[6]in www.dgsi.pt (processo 0814910).
[7]in www.dgsi.pt (processo 5331/07.6TDLSB.L1-5).