Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1654/15.9PBFUN.L2-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: ASSISTENTE
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário: I- O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 1654/15.9PBFUN, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Instância Local Criminal do Funchal – J2, foi submetida a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, a arguida AA, melhor id. nos autos, e condenada, pela prática do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 35 (trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, que foi substituída pela pena de admoestação, por sentença proferida e depositada em 7 de novembro de 2018, que, constante de fls. 353 a 365, aqui se dá por integralmente reproduzida.

2. Apenas o assistente BB, inconformado com a mencionada decisão – tão só quanto à escolha da pena aplicada à arguida e sem invocar um concreto e próprio interesse em agir – interpôs recurso nos termos constantes de fls. 389 a 395, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

3. O Mmº Juiz a quo não recebeu o recurso por, em síntese, considerar que ao recorrente carecia legitimidade para o efeito, porquanto no caso em apreço o mesmo limita-se a discordar da pena em que a arguida foi condenada, devendo, no seu entender, não ser substituída a pena de multa pela pena de admoestação, sem que tenha invocado e demonstrado uma concreta lesão de interesses pessoais relevantes, nos termos do despacho judicial de fls. 397 a 399, que, prolatado em 29 de novembro de 2018, aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. Reclamou então o recorrente para o Exmº Presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, em 28 de janeiro de 2019, obtido procedência. Decisão que, no entanto, por um lado, não nos vincula, como preceitua o art. 405.º, n.º 4, do Código de Processo Penal (doravante CPP) e na mesma se dá conta, e, por outro lado, como ali mais se reconhece a questão não é pacífica. Pela sua relevância transcrevemos, no que ora interessa, aquilo que então foi expendido pela Exmª Vice-presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa:
Dispõe o art. 69.°, do CPP, que:
1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.
2. Compete em especial aos assistentes:
(. . .)
c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça".
Por sua vez o art. 401.°, n.º 1, al. b), do CPP, estabelece que:
1 - Têm legitimidade para recorrer:
(...)
b) O arguido e o assistente, das decisões contra eles proferidas.
E
O n.º 2 preceitua que:
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.
Por seu turno o Assento n.º 8/99 (publicado no DR n.º 185, Iª série, de 10/8/89), fixou jurisprudência no sentido de que o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.
Subjacente a esta tese, está, como se refere no Ac. do STJ de 27/5/2015, proferido no âmbito do Proc. 118/08.1GBAND.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt "a rejeição de alguma forma de instrumentalização do processo penal em função da vindicta privada. A espécie e medida da pena correspondem ao exercício do ius punendi, ao núcleo punitivo próprio do Estado, cuja defesa cabe ao Ministério Público, e não aos particulares. Não pode dizer-se que o assistente seja, de algum modo, afetado, e salvas as situações em que demonstre um concreto interesse em agir, pelas opções do tribunal quanto à espécie e medida da pena. "
Embora sendo esta a posição, até agora, dominante ao nível da jurisprudência, quer do STJ (vejam-se, a título de exemplo, os acórdãos proferidos nos Proc. 1740/10.1JAPRT.P1.S1, 400/12.3JAAVR.S1 e 1960/14.0PAALM.L1.S1, todos eles disponíveis in www.dgsi.pt), quer das Relações (vejam-se, a título de exemplo, os acórdãos proferidos nos Proc. 178/06.0PTCSC.Ll-9, da RL, 187/11.7PDVNG.P1, da RP, 669/16.4 JABRG.G1, da RG, 1429/12.7TAFAR.E1, da RE e 310/13.7GBPMS.Cl, da RC, igualmente disponíveis in www.dgsi.pt), não é a mesma unívoca, conforme se pode constatar pela leitura do Acórdão do STJ de 22/1/2015, proferido no âmbito do Proc. 520/13.7PHLSB.Ll.S1, bem como do Acórdão da RE de 21/3/2017, proferido no âmbito do Proc. 519/09.8TASTB.El, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Assim, porque no caso, é no mínimo discutível que o assistente não tenha interesse em agir na decisão sob recurso, sendo certo que o indeferimento desta reclamação toma a decisão insusceptível de reapreciação, o que não acontece com o seu deferimento, que permitirá uma decisão mais aprofundada pelo colectivo a quem o recurso venha a ser distribuído, entende-se, por forma a não coarctar, desde já e de forma definitiva, o direito ao recurso do assistente, ser de deferir a presente reclamação.
Defere-se, pois, a reclamação devendo o recurso ser admitido.(fim de transcrição).

5. Perante tal decisão, foi, seguidamente, proferido, em primeira instância, despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 412. Decisão que igualmente não nos vincula, nos termos do art. 414.º, n.º 3, do CPP.

6. Respondeu apenas o Ministério Público na primeira instância, concluindo que ao mesmo deverá ser negado provimento, como consta de fls. 423 verso a 425 verso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

7. O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação apôs apenas o seu “Visto”, pelo que não careceu ser dado cumprimento ao disposto no art. 417.°, n.° 2, do CPP (cfr. fls. 432).

8. Foi efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

Como dissemos, recorre o assistente BB do facto da arguida AA ter sido condenada, pela prática do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 35 (trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, e ter sido esta substituída pela pena de admoestação.
Vejamos.
O Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que "o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir." (Assento n.º 8/99, de 30 de outubro de 1997, CJ/STJ V.III.21, CJ/STJ VII.II.26, BMJ 470-47 e 486-21e DR I-A, 10 de agosto de 1999).
A jurisprudência mais recente, de que é exemplo o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2011, de 9 de fevereiro de 2011, proferido no Proc.º n.° 148/07, tratando de questão diversa, não infirma a jurisprudência fixada naquele acórdão, continuando a entender-se que o interesse em agir do assistente depende da invocação pelo mesmo de um interesse concreto e próprio.
Posição que já havia sido reafirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, mormente no seu acórdão de 24 de outubro de 2002, proferido no processo 02P3183 e consultável em www.dgsi.pt ("O recurso é de rejeitar, na medida em que o assistente/recorrente não dispõe de [concreta] legitimidade para recorrer (pois que a decisão recorrida não a «afecta» nem foi «contra ela proferida» - art.s 69.2.c e 401.1.b do CPP) nem alegou - e, menos ainda, «demonstrou» - «um concreto e próprio interesse em agir»").
Sem esquecer a demais a jurisprudência dominante ao nível do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações mencionada pela Exmª Vice-presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa, Desembargadora Guilhermina Freitas, na decisão proferida em sede da reclamação a que supra aludimos em 4.
Sendo que sobre esta matéria também se pronunciou o Tribunal Constitucional, que, no seu acórdão 205/2001, de 9 de maio de 2001, proferido no processo 372/00, decidiu julgar conformes à Constituição, designadamente ao princípio do Estado de Direito e direito de intervenção do ofendido no processo penal, as normas constantes dos artigos 69.º, n.º 1, 69.º, n.º 2, alínea c), 401.º, n.º 1, alínea b), e 401.º, n.º 2, todos do CPP, na interpretação fixada pelo Assento n.º 8/99, que restringe a legitimidade do assistente para impugnar a decisão condenatória no que concerne à escolha e medida concreta da pena imposta ao arguido, condicionando-a à prova de específico interesse em agir.
Como se afirma no CPP Comentado de António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2014, p. 1286, no tocante ao segmento da decisão respeitante à espécie e medida da pena, "parece impor-se a conclusão de que o assistente, porque portador de interesses alheios àquelas "ideias e exigências transcendentes" que o Estado visa com a aplicação das penas, carece de legitimidade para atacar a sentença na parte em que esta fixa a espécie e medida da pena por não o afectar e não ser contra ele proferida".
Bem conhecemos as posições em sentido contrário, que não acolhemos, e a que, também com elas não concordando, é, contudo, feita referência pelo Mmº Juiz a quo no seu despacho de fls. 397 e seguintes, com que estamos em inteira consonância, e onde se exarou a dado-passo:
“Não se olvida que, na doutrina, existem posições divergentes, designadamente Cláudia Santos (in «Assistente, recurso e espécie e medida da pena», RPCC, 2008, p. 159-160), onde exara que "o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça.".
Defende esta autora que, se há um interesse da colectividade na resposta concreta ao crime, há também um interesse concreto do assistente numa resposta punitiva que considere adequada.
Não é este o entendimento deste Tribunal. É ao Ministério Público que compete defender a adequação das penas concretas às finalidades politico-criminais positivadas, nos ternos do seu estatuto impositivo da defesa da legalidade democrática. Não compete ao assistente exercer a vindicta privata, exigindo mais gravosa pena onde o representante do Estado nos Tribunais não vir essa necessidade. A necessidade de pena diferente ou mais gravosa como fundamento de recurso do assistente terá de assentar no pressuposto de um reflexo sério dessa alteração para a vida e interesses do assistente. Essa demonstração não está feita nem, sequer, ensaiada, no recurso apresentado. Logo, falta o pressuposto do interesse em agir, por parte do assistente, na interposição deste seu recurso (cfr. art° 401°, n° 2, a contrario, do C. P. Penal).” (fim de transcrição).
Nas conclusões da motivação do recurso o assistente BB, embora não nos pareça que se esteja a mover por mero desejo de vindicta privata, não invoca qualquer facto de que resulte a existência de um interesse concreto e próprio na escolha e determinação da medida da pena (in casu de admoestação, nos termos do artigo 60.º, do Código Penal) perante a condenação da arguida AA pela prática do crime injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal, na sua pessoa (do assistente), pelo que carece de legitimidade para recorrer.
Destarte, rejeita-se o recurso, de cujo do fundo e substância se não conhecerá.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em não conhecer do recurso, por, no caso e circunstâncias concretas, carecer o assistente BB de legitimidade para o interpor, rejeitando-o nessa conformidade.
Custas pelo recorrente, o assistente BB, fixando-se a taxa de justiça no mínimo
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por seis páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)

Lisboa, 16 de maio de 2019

Calheiros da Gama
Antero Luís