Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
929/13.6TYLSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: RENÚNCIA
GERÊNCIA
COMUNICAÇÃO
ORGÃO SOCIAL
TERCEIRO
REGISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.– A renúncia à gerência é a declaração unilateral do gerente comunicando à sociedade que põe fim à relação de gerência e deve ser comunicada por escrito à sociedade, ou seja, a outro gerente, ou, se não houver outro gerente, ao órgão de fiscalização (fiscal único ou conselho fiscal), ou, se não houver órgão fiscalizador, a qualquer sócio.

2.– Tanto por natureza como força deste preceito, a renúncia é um ato recetício, que só pela receção se torna eficaz para com o destinatário.

3.– A cessação de funções, por qualquer motivo que não seja o decurso do tempo, dos membros dos órgãos de administração, está sujeita a registo e publicação obrigatórios, pelo que só produz efeitos contra terceiros após da data de publicação.

4.– A noção de terceiros para efeitos do art. 168º do CSC nada tem a ver a com a noção de terceiros em sentido técnico-registral (terceiros com interesses incompatíveis), respeitando a um conceito lato de terceiros que, com exceção das partes, seus herdeiros e representantes, se aplica a quaisquer pessoas, incluindo interessados com interesses incompatíveis

5.– A falsidade do título com base no qual foi efetuado o registo da renúncia à gerência de uma sociedade, é a regulada pelas normas de direito substantivo (v.g., art. 372º do CC).

(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663º, nº 7, do CPC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


1–RELATÓRIO:


RP intentou a presente ação declarativa contra N. Dias e I..., Lda., alegando, em síntese, que a 13 de Fevereiro de 2013 foi registada a cessação das funções da 1ª ré, como gerente da 2ª ré, constando do registo como causa de tal cessação de funções, a renúncia datada de 20 de Dezembro de 2012.

O registo teve por base um documento em que a 1ª ré renuncia à gerência da 2ª ré, assim como um registo dos CTT – Correios de Portugal e o respetivo aviso de receção.

Porém, tal documento nunca foi remetido e rececionado pela 2ª ré ou pela autora, antes tendo sido recebido na sociedade um documento que não se encontrava assinado pela 1ª ré.

O registo da renúncia de N. Dias é nulo por ter sido feito com base em título falso, sendo também, por si só, insuficiente para a prova legal do facto registado.

A autora conclui assim a petição inicial:
Nestes termos, e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada procedente e, em consequência:
a)- ser o registo declarado nulo, e consequentemente ser ordenado o seu cancelamento, nos termos do artigo 22º, n.º 1, alínea a) do Código do Registo Comercial; ou, caso assim não se entenda,
b)- ser o registo declarado nulo, e consequentemente ser ordenado o seu cancelamento, nos termos do artigo 22º, n.º 1, alínea b) do Código do Registo Comercial.
*

Regularmente citadas as rés, apenas a 1ª ré contestou, pugnando para que a ação seja julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido.
Pede ainda a condenação da autora a indemnizá-la por litigância de má-fé.
*

Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que:
- julgou a ação improcedente, por não provada e, em consequência, não declarou a nulidade do registo da cessação de funções da gerente da sociedade I..., Lda. – Em Liquidação, por parte de N. Dias, a que corresponde a inscrição Av. 3 – Ap. 6...;
- julgou improcedente, por não provado, o pedido de condenação da autora a indemnizar a ré por litigância de má fé.
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Inconformada com o assim decidido, veio a autora interpor o presente recurso de apelação, concluindo assim a respetiva alegação:
1. - (…);
2. - (…);
3. - Entende a A./Recorrente terem sido incorretamente julgados os pontos de facto identificados nas al. a), b), c), d), e e) dos factos não provados (…), os quais, deveriam, isso sim, ter sido considerado como provados; decisão que se impunha pela análise da prova existente nos autos, mormente a prova documental junta com a petição inicial, em especial, os documentos nº 2 e 3 a ela anexos e a prova produzida em sede de audiência de julgamento, concretamente as declarações de parte da A./Recorrente – que foram prestadas no dia 02.05.2017 e ficaram gravadas entre as 14:20:05 e as 14:41:08, na Plataforma Citius – e as declarações da testemunha Cátia... – que foram prestadas no dia 02.05.2017 e ficaram gravadas entre as 14:41:53 e as 14:50:58, na Plataforma Citius –.
4.– O que a Recorrente procurou - e, no seu entender logrou, - demonstrar no âmbito dos presentes autos foi que o documento que foi apresentado para efeito de registo não foi o que foi rececionado pela sociedade, e, assim sendo, o documento que foi usado para prova de que a renúncia foi dirigida à sociedade e que foi recebida é falso e, por conseguinte, nulo o registo que o teve na base.
5.– De acordo com o entendimento do tribunal a quo os factos a), b), c), d), e e) foram tidos por não provados na medida em que a autora não logrou fazer prova que a ré N. Dias não remeteu à sociedade uma carta de igual teor à que serviu de base ao registo da sua renúncia às funções de gerentes, essencialmente porque a prova foi parca e insuficiente, sendo que a prova apresentada foi constituída pelos documentos juntos com a pi., pelas declarações de parte da autora e pelo depoimento da testemunha Cátia...
Pois bem, sobre a prova documental:
6.– A Recorrente apresentou ao douto tribunal dois documentos, a saber: (i) o documento que consta do dossier registal da Recorrida I..., junto aos autos como documento nº 2, aquando da apresentação da petição inicial e (ii) documento rececionado nas instalações da Recorrida I..., a que respeitava o código de registo CTT RD 71951273PT, que não se encontrava assinado pela Recorrida N. Dias, junto aos autos como documento nº 3.
7.– A respeito destes documentos pode ler-se, em síntese, na douta sentença recorrida, que “os dois documentos apresentados e juntos aos autos (…), se é certo que são diferentes, nos termos alegados pela autora, não bastam para comprovar, sem margem para dúvida, que nas instalações foi recebido o segundo e não o original do que serviu de base ao registo posto em crise nos autos. Esta prova apenas poderia ter sido realizada pela apresentação do original do documento recepcionado, por forma a permitir ao tribunal confirmar do seu efectivo teor. (...) dúvida que facilmente a autora poderia ter afastado exibindo o original, prova que estava ao seu alcance e que não procurou produzir.” (…).
8.– (…).
9.– O artigo 411º do CPC, referente ao princípio do inquisitório, uma vez associado à ratio do artigo 6º, do mesmo diploma, reforça os poderes do tribunal no domínio da produção da prova, autorizando, ao mesmo tempo que impõe, que o tribunal realize todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
10.– O artigo 132º do CPC determina a obrigatoriedade da tramitação eletrónica do processo e, por sua vez, o artigo 144º do mesmo diploma obriga a que os atos praticados por escrito, pelas partes, sejam apresentados, em juízo, por transmissão eletrónica de dados nos termos definidos em Portaria.
11.– Mais referem, o nº 2 e o nº 4 daquele artigo 144º do CPC que A parte que pratique o ato processual nos termos do número anterior deve apresentar por transmissão eletrónica de dados a peça processual e os documentos que a devam acompanhar, ficando dispensada de remeter os originais sendo que os documentos [nestes termos] apresentados têm a força probatória dos originais.
12.– Acrescenta,ainda, o nº 5 daquele artigo que o disposto no nº 2
não prejudica o dever de exibição dos originais dos documentos juntos pelas partes por meio de transmissão eletrónica de dados, sempre que o juiz o determine.

13.– Ora, face às normas vindas de referir, não pode a Recorrente conformar-se com a posição sufragada na douta sentença recorrida, a propósito da necessidade de junção do original do documento rececionado nas instalações da Recorrida I....
14.– Face ao teor da lei, os documentos juntos pela A/Recorrente deveriam ser considerados, pelo douto Tribunal, como se de originais se tratassem!
15.– Houvera, por parte do decisor, dúvidas a esse respeito, deveria o mesmo, em rigoroso cumprimento dos seus deveres e em honra ao vertido no artigo 6º, 411º e 144º /4/5 do Código de Processo Civil, ter notificado a A./Recorrente para vir juntar aos autos os documentos que acompanhavam a petição inicial em suporte papel, mormente aquele que juntou como documento nº 3.
16.– Todavia, dado que assim não foi, i.e., dado que a omissão não foi da parte, mas, ao invés, do próprio Tribunal, não pode a A./Recorrente ser prejudicada por um ato nulo do próprio tribunal. Sobre a prova por declarações de parte:
17.– Mais se diz, na decisão recorrida que “o tribunal considera não ter sido demonstrado que a sociedade não recepcionou o documento (com a parte manuscrita) levado ao registo”, “o tribunal não logrou concluir que o escrito que serviu de base ao registo da renúncia não foi o que foi remetido à sociedade através da carta registada com o número RD071951273PT” e “Nesta medida entendemos ter ficado por apurar qual o efectivo teor da carta remetida por N. Dias à sociedade I..., Lda.”.
18.– Como é do conhecimento público, é à gerência das sociedades por quotas que cabe, de acordo com a lei, providenciar pelo normal funcionamento da sociedade, enquanto pessoa coletiva, determinando o modo como funciona no dia-a-dia e tomando as inerentes decisões. Significa isto, por conseguinte, que há informações referentes ao dia-a-dia da sociedade que são do conhecimento, em exclusivo, das pessoas singulares que ocupam o cargo de gerente.
19.– Também do conhecimento público é o facto de as sociedades por quotas terem um órgão deliberativo, composto pelos seus sócios, a quem incumbe tomar, entre outras, as decisões constantes do artigo 246º do Código das Sociedades Comerciais. Significa isto, por conseguinte, que há informações e decisões referentes ao dia-a-dia da sociedade que são do conhecimento, em exclusivo, dos titulares de participações sociais dessas mesmas sociedades.
20.– De acordo com a factualidade dada como provada, a Recorrente RP e a Recorrida N. Dias eram as únicas sócias e gerentes da Recorrida I..., sendo, por conseguinte, as únicas pessoas que tinham acesso a certo tipo de informações referentes à Recorrida I....
21.– Quer isto dizer que, em dezembro de 2012, aspetos havia, referentes à Recorrida I..., que eram do exclusivo conhecimento das aqui Rccorrente e Recorrida.
22.– Em sede de declarações de parte da Recorrente, a mesma afirmou, tal qual referido pelo douto tribunal, que “foi recepcionada na sociedade uma carta registada remetida por N. Dias contendo o segundo escrito (ou seja, o que não contém a parte manuscrita), a qual chegou à sua posse pela funcionária Cátia, que a tinha recebido”.
23.– Na sétima página da sentença recorrida pode ler-se o seguinte: “ Ora, no que ao valor das declarações de parte se refere (em abstracto), entendemos não poder relevá-las como meio de prova de um facto desacompanhado de outros elementos que as confirmem atento o evidente e natural interesse do declarante na sorte da decisão e a norma (e até desejável) coerência entre o vertido na pá. e o declarado em audiência. Sucede que os mais elementos a conjugar com aquelas declarações não confirmam as mesmas.”
24.– Sucede que, também, aqui, não pode a Recorrente concordar e, assim, a aceitar a valoração que o tribunal a quo faz das declarações de parte da Recorrente.
25.– Sem que tal importe uma violação do direito probatório material e formal, não se poderá, no entender da Recorrente, declarar que as declarações de parte não podem ser relevadas como meio de prova quando desacompanhadas de outros elementos de prova que as confirmem, justamente porque, foi, particularmente por isto, ie, para os casos de prova única, que as referidas declarações de parte foram reconhecidas na lei processual civil, por via da Lei nº 41/2013.
26.– A temática da admissibilidade e valoração da tomada de declarações da parte, no âmbito do processo civil, não se ficou a dever, em exclusivo, às alterações introduzidas pela Lei nº 41/2013; na verdade, há muito que se discutia a pertinência de um tal meio probatório, ponderando-se a sua valência nas situações em que, para lá das partes, nada mais há que permita ao tribunal tomar conhecimento e convencer-se da realidade sob análise no processo e os riscos inerentes à utilização das palavras da própria parte como meio de prova.
27.– Sucede que, não obstante as várias vozes que se levantavam contra a consideração das declarações de parte como verdadeiro meio de prova, vieram, estas, a merecer, consagração legal com o artigo 466º do CPC.
28.– E, não obstante fossem sobejamente conhecidas as reservas de um tal meio probatório, do ponto de vista da independência de quem as presta, certo é que o legislador escolheu consagrá-lo, não lhe determinado, ademais, qualquer redução ou condicionamento no seu papel de meio de prova.
29.– Assim, partindo do pressuposto que o legislador soube exprimir de forma adequada o seu pensamento, não existindo, na lei, qualquer espécie de limitação à valoração das declarações de parte enquanto meio probatório, não poderá o aplicar da lei, substituindo-se ao legislador, cunhar as declarações de parte como um meio probatório inferior ou de carácter acessório, tal qual resulta do artigo 9º do Código Civil.
30.– Neste sentido, aliás, vão igualmente os Princípios de Processo Civil Transnacional, mormente o seu ponto 16.6.
31.– Refira-se, ademais, que a plena valoração das declarações de alguém que é parte no processo não é caso único no domínio do processo civil, já que a lei processual penal permite-as e sujeita-as ao princípio da livre apreciação da prova.
32.– Não se nos afigura, assim, conforme ao direito a interpretação que o douto tribunal efetuou do disposto no artigo 466º do CPC e na desconsideração das palavras produzidas em sede de audiência pela Recorrente, apenas pelo simples facto de esta assumir as vestes de parte na ação.
33.– Não se pretende defender que as declarações das partes devem ser sempre valoradas e tidas como prova plena. O que, ora, se pugna é que este meio de prova esteja sujeito às mesmas regras que os demais meios de prova.
34.– Assim, incumbe ao tribunal ouvir a parte e, depois, em honra ao principio da oralidade, da imediação e da livre convicção explicar em que medida é que atribui credibilidade às declarações dessa parte, ora porque lhe pareceram sinceras e nada houve nos autos que negasse tal visão dos acontecimentos, ora porque, pelo contrário, as declarações se apresentaram omissas, pouco claras, enviesadas e, genericamente, pouco credíveis.
35.– Para lá de proceder à assentada, em momento algum o douto tribunal a quo refere quais as concretas circunstâncias que lhe fizeram concluir pela pouco ou nenhuma credibilidade das declarações da Recorrente.
36.– Assim e tendo o douto tribunal promovido, nos termos do artigo 463º do CPC aplicável ex vi artigo 466º do CPC, pela elaboração de assentada, forçoso seria este ter dado como provados os factos vertidos em a) a e) dos factos não provados.
37.– Decidir nos termos da decisão recorrida corresponde, em suma, à coartação do direito à prova e ao princípio da igualdade de armas das partes do processo, elementos basilares do processo judicial justo e equitativo próprio do estado de direito, sentido em que é a Recorrente da opinião que a decisão recorrida não é legal, por violadora do artigo 1º, 2º, 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 4º, 6º, 411º, 466º e 607º do Código de Processo Civil. Ora, porque assim é,
38.– Haverá, então, que rever as declarações da Recorrente – prestadas no dia 02.05.2017, entre as 14:20:05 e as 14:41:08 e gravadas na Plataforma Citius – e verificar o que a mesma disse a respeito do objeto do litígio. E aí, a instância do douto tribunal, a Recorrente, ao minuto 10:35 declarou que a funcionária Cátia lhe ligou a referir que havia chegado uma carta, sendo que, sobre essa carta entre o minuto 10:48 a 11:20, das suas declarações, esclareceu que não havia dúvida que a carta que recebeu não se encontrava assinada e, entre o minuto 13:49 a 14:36, e, novamente, ao minuto 16:20, das suas declarações refere que o documento nº 3 junto com a petição inicial é o que recebeu e abriu, reafirmando, ao minuto 15:57 que o documento que recebeu não tinha qualquer identificação no final. Novamente, aquando da redação da assentada, constante a partir do minuto 20:50 da suas declarações, a Recorrente foi perentória a esclarecer que a carta que recebeu foi a que não estava assinada.
39.– Por seu lado, a testemunha Cátia... esclareceu - entre o
minuto 04:20 a 05:24 das declarações constantes da Plataforma Citius, no dia 02.05.2017, entre as 14:41:53 e as 14:50:58 - de forma isenta e credível referindo, que se limitou a identificar a Recorrida N. Dias por ser a informação que constava do registo da carta que foi rececionada na sociedade.

40.– Não houve, ademais, no entender da Recorrente qualquer contradição, já que nada impede que não tendo sido esta a assinar o aviso de receção não tenha sido esta a proceder à entrega do subscrito à Recorrente.
41.– Acresce que a impossibilidade de a testemunha referir, com segurança, que o aviso de receção que lhe foi mostrado é ou não o que viu e estava associado à carta recebida, conforme o fez entre os minutos 06:50 a 08:00 do seu depoimento, é, aliás, bem demonstrativo da insuficiência, arguida pela Recorrente, do titulo que serviu de base ao registo de cessação de funções da Recorrida N. Dias.
Consequentemente,
42.– Dando-se por provado que: (a)) o documento em que a Recorrida N. Dias transmite a renúncia à gerência, e que serviu de base ao respetivo registo, nunca foi remetido e recepcionado pela sociedade I..., Lda., ou pela Autora, a outra gerente em exercício à data de 20 de dezembro de 2012; ( b)) o registo dos CTT com o número RD071951273PT, e o respetivo aviso de recepção respeitam a um outro documento que não o que foi apresentado na Conservatória para ser lavrado o registo de renúncia da Recorrida N. Dias; (c)) o documento que foi enviado através da carta registada com o número RD071951273PT é o junto fls. 22 dos autos; (d)) o documento recebido na sociedade I..., Lda. não se encontrava assinado pela N. Dias e (e)) a 20 de dezembro de 2012 RP não rececionou o título que foi submetido ao registo de renúncia de N. Dias, deve a douta sentença proferida ser substituída por outra que, tal qual peticionado pela Recorrente, determine a declaração de nulidade e, consequente, cancelamento do registo de cessação das funções de membro de órgão social, enquanto gerente, da 1ª R./Recorrida.
Pois que,
43.– Se, de acordo com a douta decisão recorrida, a razão pela qual não se concluiu pela nulidade do ato registal se deveu à falta de demonstração da falsidade do título que lhe serviu de base, uma vez concluído, como supra, que os documentos usados, pela Recorrida N. Dias, para comprovar, junto dos serviços registais, a notificação da sua renúncia à Recorrida I... não foram, afinal aqueles que lhe foram enviados, forçoso será concluir, então, pela falsidade do título e, consequentemente, pela nulidade do ato registal.
44.– O documento que justificou a renúncia à gerência da Recorrida I... é um documento sem data, destinatário e sem qualquer menção à sociedade a cuja gerência, sequer se pretende renunciar! Paralelemente, tão pouco, da análise do documento em si se pode retirar a segurança de o mesmo ter sido remetido à gerência da sociedade, posto que o documento é – como se demonstra face ao vindo de dizer – perfeitamente dissociável do registo dos CTT e do aviso de recepção.
45.– S.m.o., do que os presentes autos tratam é da supremacia da verdade registal e da absoluta necessidade de, em cada caso, se fazer verificar o cumprimento das regras registrais.
46.– Assim, na medida em que os artigos 258º e 260º do Código das Sociedades Comerciais visam que o requerente do registo ateste, para o efeito, que a renúncia foi comunicada e chegou ao conhecimento da sociedade, tanto assim que é a partir dessa data que se inicia o prazo de contagem de produção de efeitos da renuncia, não se poderá, tal qual resulta da douta decisão recorrida, baixar as regras que resultam da lei com base na máxima de que, afinal, tudo acabou por correr bem,
47.– É que a questão é a de que é falso que “tudo tenha acabado por correr bem”! É, aliás, infundada a consideração que a renúncia chegou ao conhecimento e dela tomou, efetiva, consciência a outra gerente da sociedade. Ouçam-se, aliás, neste sentido as declarações da Recorrente, quando ao minuto 15:08 do seu depoimento referiu que apenas quando o advogado a alertou para o facto se apercebeu da verdadeira pertinência da declaração.
48.– Não pode, ademais, a Recorrente aceitar a decisão que os documentos levados ao registo devem ter-se por bastantes para assegurar que a sociedade recebeu a carta renuncia enviada pela gerente N. Dias, na medida em que foi, aliás, realizada uma assembleia universal em que foi, por acordo de ambas as sócias e gerentes deliberaram alterar a forma de vinculação da sociedade, que passou a bastar-se com a assinatura da autora, o que é consequente em face da renúncia de N. Dias às funções de gerente.
49.– O tribunal não pode considerar que não ficou provado que após a receção do documento de fls. 19, a Recorrente diligenciou, no sentido de se realizar uma assembleia geral da sociedade comercial I..., Lda. [alínea h) dos factos não provados] para, de seguida, tomando como verdadeiro esse facto inferir compatibilidades e concluir que, porque assim foi, não pode deixar de se considerar que houve conhecimento e consciência da renúncia nos moldes pretendidos pela Recorrida N. Dias.
50.– É falso que, na dita assembleia, se tenha alterado as regras de vinculação da sociedade de modo tal que permita concluir que, na génese dessa alteração esteve a renúncia da Recorrida N. Dias!
51.– De acordo com o constante dos pontos 12) e 13) dos factos provados, o que foi deliberado foi que, daí em diante a sociedade se obrigaria com a intervenção conjunta de 2 gerentes ou através da assinatura da gerente RP.
52.– Ora, se assim foi – tanto mais que se considerou provado – e na medida em que, de acordo com a douta decisão recorrida, a documentação remetida pela Recorrida N. Dias à sociedade constitui verdadeira renúncia, qual a razão que levaria as sócias a manter a regra da vinculação conjunta da sociedade, com a intervenção de dois gerentes, se, nesse momento, já não havia pluralidade de gerente, nem, sequer, foi nomeada outra pessoa em substituição da Recorrida N. Dias?!
53.– Acresce que este tipo de considerações, em que o douto tribunal a quo se estriba para determinar, afinal, a suficiência do título que serviu de base ao registo da renúncia não se coaduna com as regras e os princípios próprios do direito registal.
54.– O legislador jamais pretendeu, com o estatuído nos artigos 258º e 260º do Código das Sociedades Comerciais, onerar os senhores conservadores com considerações sobre compatibilidades.
55.– O raciocínio lógico que o douto tribunal levou a cabo para concluir pela suficiência dos documentos que serviram de base ao registo são prova gritante da insuficiência dos mesmos... fossem os documentos suficientes, o douto tribunal recorrido não teria sentido a necessidade de justificar a sua decisão com mais considerações para lá das que constam dos documentos apresentados.
56.– Assim, na medida em que os documentos não foram suficientes para, por si só, sustentarem a decisão do tribunal, claramente, também não o eram no momento da sua apresentação, razão pela qual se deverá concluir, também, sobre a sua insuficiência.
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A ré N. Dias contra-alegou, pugnando, no que agora interessa, para que o recurso da autora seja julgado improcedente e, em consequência, mantida a decisão recorrida.
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2–ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, é pelas conclusões da recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, neste recurso importa decidir se deve ser declarado nulo o registo da renúncia da ré N. Dias, à gerência da sociedade I.... Lda- - Em Liquidação, por falsidade ou insuficiência do título com base no qual foi feito.
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3–FUNDAMENTAÇÃO.

3.1–Fundamentação de facto.

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1.– I..., Lda. – em Liquidação, pessoa colectiva nº 5..., com sede na Avenida..., em Cascais, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais.
2.–Tem por objecto social centro de terapias na área da psicologia comportamental, psicologia clínica, psicologia educacional, terapia da fala, psicomotrocidade, terapia ocupacional, terapia familiar, pesquisa científica, criação e produção de material didáctico, formação e cursos profissionais na área do objecto.
3.– A sociedade tem o capital social de €5.001,00, dividido em duas quotas no valor de €2.500,50 cada uma, pertencentes a N. Dias e RP.
4.– N. Dias foi nomeada gerente da sociedade I..., Lda. aquando da respectiva constituição, em 31 de Julho de 2008.
5.–A sociedade obriga-se actualmente e desde 3.1.2013, com a assinatura conjunta de dois gerentes ou através da assinatura da gerente RP.
6.–Por Ap. 2... mostra-se registada a cessação de funções de gerente por parte de RP, por renúncia de 31.1.2013.
7.–Por Ap. 6... mostra-se registada a cessação de funções de gerente por parte de N. Dias, por renúncia recebida pela sociedade em 20.12.2012.
8.– Serviu como título subjacente a tal registo carta, cuja cópia se mostra junta a fls. 19, com o seguinte teor:
“Assunto: Renúncia à gerência
Tendo em conta que havia uma reunião entre as sócias gerentes agenda para as 21H00 de domingo, dia 16 de Dezembro de 2012, a qual não se veio a concretizar por decisão da sócia RP por SMS;
Tendo em conta que com esta postura se veio a inviabilizar qualquer forma de resolução dos problemas e indefinições que se têm arrastado e agravado nos últimos meses;
Venho pela presente comunicar a minha renúncia à gerência com efeitos imediatos, ou seja, dia 17 de Dezembro de 2012.
Mais informo que continuarei a assegurar as minhas funções de supervisora de casos clínicos até dia 31 de Dezembro de 2012.
Sem outro assunto subscrevo-me
N. Dias
Cartão de Cidadão nº ...
NIF nº ...”
9.–N. Dias foi a apresentante do respectivo registo.
10.–Os documentos que serviram de base ao registo são constituídos por um documento em que N. Dias renuncia à gerência, assim como por um registo dos CTT – Correios de Portugal com o número RD 07195127 3 PT, e o respectivo aviso de recepção.
11.–Uma carta registada com A/R remetida por N. Dias e dirigida à sociedade I..., Lda., contendo um documento com, pelo menos, o seguinte teor, foi recebida nas respectivas instalações e entregue a RP, que a abriu, em data não concretamente apurada mas situada em Dezembro de 2012:
“Tendo em conta que havia uma reunião entre as sócias gerentes agenda para as 21H00 de domingo, dia 16 de Dezembro de 2012, a qual não se veio a concretizar por decisão da sócia RP por SMS;
Tendo em conta que com esta postura se veio a inviabilizar qualquer forma de resolução dos problemas e indefinições que se têm arrastado e agravado nos últimos meses;
Venho pela presente comunicar a minha renúncia à gerência com efeitos imediatos, ou seja, dia 17 de Dezembro de 2012.
Mais informo que continuarei a assegurar as minhas funções de supervisora de casos clínicos até dia 31 de Dezembro de 2012.
Sem outro assunto subscrevo-me”.
12.–No dia 3 de Janeiro de 2013, pelas quinze horas, na sede social da sociedade por quotas I..., Lda., com sede na Avenida de Sintra, Lote 2, reuniram as sócias N. Dias e RP, em assembleia geral universal, tendo sido lavrada acta da qual, além do mais, resulta que:
“Presidiu à mesa da Assembleia Geral a sócia RP que propôs a seguinte ordem de trabalhos, sobre a qual ambas as sócias aceitaram deliberar:
a)-Ponto Um – Alteração do número 2 do art. 8º do Contrato de Sociedade, propondo-se a seguinte redacção: “A sociedade obriga-se com a intervenção conjunta de 2 gerentes ou através da assinatura da gerente RP”;
b)-Dissolução da sociedade.”
13.–As propostas apresentadas na Assembleia Geral da sociedade I..., Lda., realizada no dia 3 de Janeiro de 2013, foram ambas votadas e aprovadas por unanimidade.

A sentença recorrida considerou não provados os seguintes enunciados de facto:
a)-O documento em que N. Dias transmite a renúncia à gerência, e que serviu de base ao respectivo registo, nunca foi remetido e recepcionado pela sociedade I..., Lda., ou pela Autora, a outra gerente em exercício à data de 20 de Dezembro de 2012.
b)-O registo dos CTT com o número RD 07195127 3 PT, e o respectivo aviso recepção, respeitam a um outro documento que não o que foi apresentado na Conservatória para ser lavrado o registo de renúncia da N. Dias.
c)-O documento que foi enviado através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT é o junto a fls. 22 dos autos.
d)-O documento recebido na sociedade I..., Lda. não se encontrava assinado pela N. Dias.
e)-A 20 de Dezembro de 2012 RP não recepcionou o título que foi submetido ao registo de renúncia de N. Dias.
f)-Nunca foi por N. Dias lavrado o documento de fls. 22, nem tão-pouco, foi por N. Dias remetido aquele documento, com aquele conteúdo, à Autora ou à sociedade.
g)-RP recebeu o documento de fls. 19 no dia 20 de Dezembro de 2012.
h)-Após a recepção do documento de fls. 19, diligenciou a Autora RP, no sentido de se realizar uma Assembleia Geral da sociedade comercial I..., Lda.
i)-A sociedade recepcionou o documento de fls. 19.
j)-Tal documento foi analisado e recepcionado pela gerente e Autora.
*

3.2–Fundamentação de direito
Tal como a apelante estruturou a petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação, o objeto do litígio que lhe está subjacente, constituído, como se sabe, pelo pedido e pela causa de pedir que o suporta, reside na nulidade do registo de renúncia da apelada N. Dias como gerente da sociedade I..., Lda., com fundamento na falsidade, ou, subsidiariamente, na insuficiência do título com base no qual foi feito.
É isto, e só isto, que constitui o objeto do presente litígio!
Vejamos, então, se merece provimento a apelação.
A renúncia é a declaração unilateral do gerente comunicando à sociedade que põe fim à relação de gerência e deve ser comunicada por escrito à sociedade (nº 1 do art. 258º do CSC), isto é, a outro gerente, ou, se não houver outro gerente, ao órgão de fiscalização (fiscal único ou conselho fiscal), ou, se não houver órgão fiscalizador, a qualquer sócio (art. 260º, nº 5, do CSC).
No entanto, a comunicação de renúncia poderá ser feita oralmente em assembleia geral dos sócios. Se uma assembleia geral é convocada para tomar conhecimento de renúncia de gerente e substituí-lo, ou se todos os sócios se reúnem e manifestam a vontade de que se constitua assembleia para deliberar sobre esses assuntos (assembleia universal), é válida a renúncia do gerente que aí a comunica oralmente (e é eficaz a partir do momento em que também aí seja designado outro gerente). Na verdade, pretende a lei que a declaração do renunciante chegue a órgão social (ou seu membro) competente para substituir ou solicitar a substituição de quem renuncia. Esta ratio legis é respeitada se a declaração chega, apesar de por meio não indicado na lei, à assembleia geral e aí se decide a substituição.
Entretanto, a renúncia comunicada por escrito à sociedade só se torna efetiva ou eficaz perante a sociedade, oito dias depois de recebida a comunicação (parte final do nº 1 do art. 258º do CSC).
A eficácia da renúncia perante terceiros depende de registo e, em princípio, de publicação (arts. 14º, nºs 1 e 2, do CRC, e 168º, nºs 2 e 3, do CSC). A renúncia está sujeita a registo (art. 3º, nº 1, al. m), do CRC) e a publicação (art. 70º, nº 1, al. a), do CRC).
Tem legitimidade para pedir o registo não apenas a sociedade, mas qualquer pessoa que nele tenha interesse (art. 29º, nº 1, do CRC), nomeadamente o gerente que renuncia[1].
Raúl Ventura esclarece que «o termo «renúncia» é usado no art. 258º CSC (bem como no art. 404º) para indicar o acto do gerente pelo qual ele, só por si, põe termo à relação de gerência criada por qualquer dos meios de designação permitidos pela lei, exceptuada a nomeação judicial. Como essa relação não está criada antes de o interessado ter aceitado a designação, a recusa de aceitação não configura uma renúncia.
Tecnicamente (…), a renúncia é o acto do gerente que unilateralmente resolve o contrato de gerência. Contrapõe-se, portanto, pelo seu autor, à destituição tratada no art. 257º.
Começa o art. 258º, nº 1, por dizer que renúncia deve ser comunicada por escrito à sociedade, parecendo assim abrir uma distinção entre o acto de renúncia, que não necessitaria de forma especial, e a comunicação, que deve revestir forma escrita. Tanto por natureza como força deste preceito, a renúncia é um acto receptício, que só pela recepção se torna eficaz para com o destinatário. Pode suceder que o gerente exteriorize por qualquer forma e perante quaisquer entidades a sua vontade de renunciar ao cargo e só posteriormente a comunique à sociedade, mas também pode acontecer que essa vontade seja expressa pela primeira vez na comunicação à sociedade, na qual se cumulam renúncia e comunicação dela.
A comunicação deve ser feita por escrito. (…) Segundo os princípios gerais, que não se vê motivo para não aplicar neste caso, a inobservância da forma legal produz nulidade do acto e, portanto, a renúncia comunicada por outra forma continuará ineficaz até ser comunicada por escrito. A cautela do legislador é justificada para se evitarem situações equívocas, como o simples abandono de funções pelo gerente.
A comunicação deve ser dirigida à sociedade, norma a integrar pelo disposto no art. 260º, nº 5; a comunicação deve ser dirigida a outro gerente, ou, se não houver outro gerente, ao órgão de fiscalização, ou, não o havendo, a qualquer sócio. Não tem cabimento a doutrina alemã que exige a comunicação a todos os sócios, ou entende que a comunicação a um sócio é lícita desde que o gerente esteja convencido, de boa fé, de que esse sócio a transmitirá aos outros.»[2].
Segundo Menezes Cordeiro, «a renúncia é um acto unilateral, praticado pelo gerente e pelo qual ele põe termo à situação jurídica de administração ou de gerência.
A renúncia é possível a todo o tempo: de outro modo, estaríamos a admitir algo de semelhante a trabalhos forçados. (…).
A renúncia deve ser comunicada por escrito à sociedade (art. 258º/1). Trata-se de um acto recipiendo. Esta norma deve ser completada com a do art. 260º/5: ela deve ser dirigida a outro gerente; não o havendo, ao órgão de fiscalização; não o havendo, a qualquer sócio.
Se não o for: não é eficaz. (…).
Sendo comunicada, a renúncia torna-se efectiva em oito dias depois de realizada a comunicação (…).
A renúncia torna-se eficaz nos referidos oito dias, perante a sociedade: isto sem prejuízo da necessidade do registo, para poder tornar-se plenamente oponível, perante terceiros.»[3].
A apelante alega na petição inicial que a apelada N. Dias enviou à sociedade I..., Lda., que a recebeu, sob o registo dos CTT com o nº 07195127 3 PT, e com aviso de receção, conforme documentos que se encontram a fls. 20-21, uma carta contendo o documento que consta de fls. 22, não assinado pela ré, com o seguinte teor:
“Tendo em conta que havia uma reunião entre as sócias gerentes agenda para as 21H00 de domingo, dia 16 de Dezembro de 2012, a qual não se veio a concretizar por decisão da sócia RP por SMS;
Tendo em conta que com esta postura se veio a inviabilizar qualquer forma de resolução dos problemas e indefinições que se têm arrastado e agravado nos últimos meses;
Venho pela presente comunicar a minha renúncia à gerência com efeitos imediatos, ou seja, dia 17 de Dezembro de 2012.
Mais informo que continuarei a assegurar as minhas funções de supervisora de casos clínicos até dia 31 de Dezembro de 2012.
Sem outro assunto subscrevo-me”.
Está provado, a este propósito, sob o ponto de facto 11, que «uma carta registada com A/R remetida por N. Dias e dirigida à sociedade I..., Lda., contendo um documento com, pelo menos, o seguinte teor, foi recebida nas respectivas instalações e entregue a RP, que a abriu, em data não concretamente apurada mas situada em Dezembro de 2012.»
O teor desse documento está vertido nesse mesmo ponto de facto, e é o que atrás se deixou transcrito.
A apelante não impugnou a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de vertida no ponto de facto 11.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo não assume, segundo afirma por falta de prova, se sob o registo dos CTT com o nº 07195127 3 PT, a apelante enviou à I..., Lda.:
a)- o transcrito documento que consta de fls. 19, como defende a apelante; ou,
b)- o também transcrito documento que consta de fls. 22, como defende a apelada N. Dias, documento este que, como se viu, contém os mesmos dizeres datilografados daquele, a que acrescem, conforme também já referido, o seguintes dizeres manuscritos:
«N. Dias
Cartão de Cidadão nº ...
IF nº ...»
A apelante impugnou a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto, pugnando para sejam considerados provados os enunciados de facto descritos sob as als. a), b), c) d) e e), dos «Factos não provados».
Suponhamos que assistia razão à apelante e, na (eventual) procedência da impugnação da decisão de facto, este tribunal de recurso considerava provados os enunciados de facto descritos sob aquelas alíneas.

Nesse caso, a outra conclusão não seria possível chegar, desde logo, que não fosse a de que:
a)- o documento que foi enviado pela apelada N. Dias à I..., Lda., através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, por esta rececionado e do qual apelante, a outra gerente da sociedade, tomou conhecimento, tudo em dezembro de 2012, foi o supra transcrito documento que consta de fls. 22 dos autos;
b)- esse documento não se encontra assinado pela apelada.

No entanto, e a ser assim, não poderia deixar de se concluir, de igual modo, que a apelante em momento põe em causa:
a)- que o documento enviado à sociedade I..., Lda., através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, por esta rececionado e do qual a outra gerente da sociedade, a aqui apelante, tomou conhecimento, tudo em dezembro de 2012, é da autoria da apelante;
b)- que esse documento configura uma comunicação à I..., Lda., de renúncia da apelada N. Dias à gerência da sociedade, da qual a outra gerente da sociedade, a aqui apelante tomou conhecimento.
Nada disso, aliás, é posto em causa pela apelante.

O que a apelante afirma, neste contexto, é que:
a)- tal documento não se mostra assinado pela apelada N. Dias;
b)- essa ausência de assinatura inviabilizou o registo da renúncia à gerência; consequentemente,
c)- a apelada N. Dias «não comunicou de forma correta qualquer renúncia à gerência da 2ª Ré I...»
Como já se referiu, face ao modo como a apelante estrutura a petição inicial, não se discute nesta ação a eficácia ou ineficácia da renúncia da apelada à gerência da I..., Lda..
A apelante, não obstante afirmar que a apelada N. Dias «não comunicou de forma correta qualquer renúncia à gerência da 2ª Ré I...», não pede que seja declarado ineficaz em relação à sociedade, ou até em relação a si, o ato unilateral, praticado pela recorrida, pelo qual, mediante a comunicação operada, segundo a recorrente, através do documento que consta de fls. 22, colocou termo à relação de gerência que a ligava à I..., Lda.
E a verdade é que, face ao excurso que antecede e aos elementos constantes dos autos, mesmo a admitir-se, como afirma a apelante, que o documento enviado pela apelada N. Dias à I..., Lda., através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, foi aquele que se encontra junto a fls. 22, não assinado pela recorrida, não poderia deixar de considerar-se eficaz a sua renúncia à gerência da sociedade.

É que, à luz das regras da experiência da vida, da lógica, daquilo que é normal, sob pena de as coisas não fazerem sentido:
a)- não pondo a apelante em causa que foi a apelada N. Dias quem enviou à I..., Lda., a carta registada com o número RD 07195127 3 PT;
b)- resultando até da petição inicial apresentada pela apelante que foi a apelada N. Dias quem enviou à I..., Lda., tal carta (cfr. arts. 12º, 15º, 16º, 26º da petição inicial);
c)- estando provado, sob o ponto de facto 11, que «uma carta registada com A/R remetida por N. Dias e dirigida à sociedade I..., Lda., contendo um documento com, pelo menos, o seguinte teor, foi recebida nas respectivas instalações e entregue a RP, que a abriu, em data não concretamente apurada mas situada em Dezembro de 2012;

d)- estando assente que o teor do documento reproduzido no ponto de facto 11 é igual ao teor:
- quer do documento de fls. 22;
- quer do documento de fls. 19, neste caso com exceção dos dizeres manuscritos «N. Dias; Cartão de Cidadão nº 12260925; IF nº 233416889»;
a outra conclusão não é possível chegar que não seja a de que, mesmo admitindo que o documento enviado pela apelada N. Dias à sociedade, através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, é o que consta de fls. 22:
a)- tal documento, ainda que não assinado, é da autoria da apelada N. Dias;
b)- configura uma comunicação escrita da apelada N. Dias à I..., Lda., a colocar termo à relação de gerência que a ambas unia;
c)- comunicação essa que foi rececionada pela I..., Lda.;
d)- da qual a outra gerente da sociedade, a aqui apelante, tomou imediato conhecimento.

Em suma, pois:
- apenas para a comunicação, e não para o próprio ato de renúncia, é exigida forma especial (a escrita), pois aquele ato pode ser verbalmente manifestado, desde que em seguida comunicado por escrito à sociedade;
- no caso concreto, mesmo admitindo que o documento enviado pela apelada N. Dias à sociedade através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, é o que consta de fls. 22, a renúncia daquela à gerência da I..., Lda., não pode deixar de ser tida como devidamente comunicada à sociedade através daquela missiva;
- renúncia essa da qual a outra gerente, a aqui apelante, teve conhecimento,
tudo isto, não obstante o referido documento não se mostrar assinado pela apelada N. Dias.
É que, conforme afirmado, não se suscitam dúvidas quanto à autoria daquele documento.
Por outras palavras: ainda que tal não constitua o objeto do litígio subjacente à presente ação, mesmo admitindo que o documento enviado pela apelada N. Dias à sociedade através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, foi aquele que se encontra junto a fls. 22, sempre se dirá que não oferece dúvidas:
- quer quanto à sociedade;
- quer quanto à própria apelante,
a eficácia da renúncia da apelada N. Dias, à gerência da I..., Lda.
Decorre das disposições conjugadas dos arts. 3º, nº 1, al. m)[4], 15º, nº 1[5] e 70º, nº 1, al. a)[6], todos do CRC, que a cessação de funções, por qualquer motivo que não seja o decurso do tempo, dos membros dos órgãos de administração, está sujeita a registo e publicação obrigatórios, pelo que, como resulta do n° 2 do artigo 14° do CRC[7], só produz efeitos contra terceiros após da data de publicação.
Conforme refere Menezes Cordeiro, «os atos sujeitos a registo não produzem efeitos, enquanto não tiverem registados, contra terceiros de boa fé, ou seja, terceiros que, sem culpa, os ignorassem. Em suma, ficciona-se que aquilo que não consta do registo não existe.»[8].
A noção de terceiros para efeitos do art. 168º do CSC[9], nada tem a ver a com a noção de terceiros em sentido técnico-registral (terceiros com interesses incompatíveis), respeitando a um conceito lato de terceiros que, com exceção das partes, seus herdeiros e representantes, se aplica a quaisquer pessoas, incluindo interessados com interesses incompatíveis[10].
Conforme afirma Alexandre de Soveral Martins, «em regra, a publicidade conferida pelo registo tem como consequência a eficácia em relação a terceiros. Essa eficácia divide-se num aspeto positivo (a eficácia em relação a terceiros do que foi publicitado) e num aspeto negativo (eficácia limitada ou nula dos factos sujeitos a registo mas que não foram inscritos).
No que às sociedades comerciais diz respeito, há que distinguir, por um lado, os atos sujeitos a registo mas que não devem ser obrigatoriamente publicados e, por outro, os aros sujeitos a registo e a publicação obrigatória.
Os primeiros são oponíveis pela sociedade a terceiros depois de o registo estar efetuado (art. 168º, 4, CSC, e art. 14º, 1, CRCom.). Identifica-se, aqui, o chamado efeito central do registo 10. Com o registo, os actos tornam-se oponíveis a terceiros. Sem o registo, os atos não podem ser opostos a terceiros!'. No art. 168º, 4, do CSC, está em causa a oponibilidade pela sociedade a terceiros dos atos, mas no art. 14º, 2, CRCom., são usados os termos "efeitos contra terceiros". Evidentemente, a oponibilidade a terceiros interessa à sociedade, normalmente, quando tem lugar contra esses mesmos terceiros. Bom seria que não houvesse tais flutuações. Também não é claro se os atos sujeitos a registo por depósito (cuja publicação não seja obrigatória) são oponíveis a terceiros com o registo.
Os atos sujeitos a registo e a publicação obrigatória tornam-se oponíveis pela sociedade a terceiros depois da data da publicação ou, se a sociedade prova que o registo teve lugar e que o terceiro conhecia o ato em causa'", depois da data do registo (art. 168º, 2). Assim, a sociedade não pode opor a terceiros os atos sujeitos a registo e publicação obrigatória se a publicação ainda não teve lugar. Se não teve ainda lugar o registo, aqueles atos também não serão oponíveis pela sociedade a terceiros. Se os referidos atos já foram registados mas ainda não foram publicados, a sociedade só os poderá opor a terceiros se fizer a prova exigida pelo art. 168º, 2. Neste último caso, trata-se de uma solução que não resulta do disposto no art. 14º do CRCom. Com efeito, de acordo com o art. 14º, 2, do CRCom., "os facto sujeitos a registo e publicação obrigatória nos termos do nº 2 do artigo 70º só produzem efeitos contra terceiros depois da data da publicação". Não há aqui qualquer referência ao relevo que terá a prova, feita pela sociedade, de que o ato está registado e de que o terceiro tem conhecimento dele. O efeito negativo da publicidade impede que a sociedade oponha a terceiros um ato cuja publicação seja obrigatória sem que esta tenha sido efetuada, a não ser que prove que o ato está registado e que o terceiro tem conhecimento dele. Não basta o registo para que tal ato seja oponível a terceiros, como não basta o registo e a prova de que o terceiro devia conhecer o ato registado. Além disso, se ainda não se tinha realizado o registo, não é suficiente que se prove o efetivo conhecimento do ato por parte do terceiro. Quanto ao art. 168º, 2, pode assim falar-se de uma presunção iuris tantum de desconhecimento dos factos registados ainda não publicados. Os factos sujeitos a registo e publicação só são oponíveis pela sociedade a terceiros depois de aquela publicação ter lugar e, nessa altura, são oponíveis mesmo que os terceiros provem que não conheciam aqueles factos. Antes da publicação, presume-se que os terceiros desconhecem os factos em causa. Mas essa presunção admite prova em contrário a partir do momento em que ocorreu o registo. Veja-se que mesmo o art. 168º, 3, exige a prova de que o terceiro esteve impossibilitado de tomar conhecimento da publicação e não apenas a prova de que não conhecia os factos.
Ora, de acordo com a primeira parte do art. 3º, 5, da Primeira Diretiva, "os atos e indicações não são oponíveis a terceiros pela sociedade antes de efectuada a publicação referida no nº 4, excepto se a sociedade provar que esses terceiros tinham conhecimento deles" (na versão francesa: "les actes et indications ne sont opposables aux tiers par la société qu' apres la publication visée au paragraphe 4, sauf si la société prouve que ces tiers en avaient connaissance").
Como se vê, para que o ato ou indicação não publicados sejam oponíveis pela sociedade a terceiros, a Primeira Diretiva exigia que a sociedade provasse que os terceiros tinham conhecimento deles: atas e indicações. E assim deve ser interpretado o art. 168º, 2, que além disso torna necessário que a sociedade prove que o ato está registado. Veja-se, aliás, que neste último preceito o que surge escrito é que a sociedade terá que provar "que o ato está registado e que o terceiro tem conhecimento dele": "dele" diz respeito a "ato" e não a "registado"»[11].
Mais adiante escreve o mesmo Autor: «O registo comercial não se traduz apenas num registo de transmissões ou de constituições de direitos reais sobre bens, pelo que o terceiro referido no art. 168º do CSC (e no art. 14º do Crcom.) Não é necessariamente o mesmo terceiro que é convocado quando se trata do registo de aquisição de direitos relativos a prédios, automóveis, navios ou aeronaves.
O Crcom. sujeita a registo certas transmissões ou constituições de direitos.
(…).
Mas também estão sujeitos a registo comercial, como diz Ferreira de Almeida, "outros factos jurídicos, geradores de capacidades ou incapacidades, qualidades especiais, direitos ou deveres". A dificuldade reside, pois, em saber se o conceito de terceiro utilizado no art. 168º do CSC ou no art. 14º do Crcom. é diferente consoante o facto em causa. Parece ser útil lembrar o que escrevia Ferreira de Almeida, para quem o conceito chamado restrito ou técnico de terceiro não nasce de disposição da lei nem dele resulta um alargamento das pessoas a quem os factos podem ser opostos, mesmo sem registo, isto é, uma restrição do alcance da publicidade declarativa, que seria aliás impossível sem apoio nas normas jurídicas. O conceito técnico de terceiro deriva da observação da vida jurídica real, que mostra que só em relação a um número limitado de pessoas se pode pôr o problema da inoponibilidade”.

Deve ser tido aqui em conta o próprio objetivo primordial do registo comercial. O que se pretende é assegurar a tutela do comércio em geral. Mais concretamente, e pegando na finalidade indicada no art. 1º, 1, do CRCom., "destina-se a dar publicidade à situação [ ... ] das sociedades comerciais [ ... ], tendo em vista a segurança do comércio jurídico". Por isso, parece adequado afirmar que o terceiro de que se fala no art. 14º do CRCom. e no art. 168º do CSC será aquele que é estranho ao facto sujeito a registo.»[12].

Como certeiramente se afirma no Ac. desta Relação, datado de 30.06.2009, Proc. nº 8763/2008-1 (Afonso Henrique), in www.dgsi.pt, as regras do CRC e do CSC a que vimos fazendo referência, «têm a ver com a necessidade de proteger os muitos intervenientes no comércio jurídico, os quais, pelas notórias razões que presidem ao comércio em geral, não podem conhecer como interlocutores comerciais senão aqueles que estão publicitados através do respetivo registo.»

José Mouteira Guerreiro afirma «o registo comercial visa publicitar a situação dos comerciantes, sociedades comerciais e demais sociedades a eles sujeitas, com vista à segurança do comércio jurídico. Trata-se de uma publicidade registral, visto que não se limita a tornar público, ou seja, a dar notícia do facto registado, mas ainda indissoluvelmente lhe acrescenta a produção de efeitos legalmente previstos.»[13].

Manuel Henrique Mesquita escreve, a propósito, que «quer no campo dos direitos sobre imóveis, quer no campo da actividade comercial, a lei estabelece que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”. É a chamada regra da inoponibilidade a terceiros de factos não registados.

Em muitos casos, nenhuma outra consequência decorre da falta do registo. Para o legislador, é indiferente que o registo se realize ou não. Mas, se não se realizar, o facto não registado fica com uma eficácia limitada, não podendo ser oposto a terceiros.

Equivale isto a dizer que o registo, quando a consequência da sua omissão seja apenas a inoponibilidade do facto a terceiros, se traduz num simples ónus - e não num dever jurídico, em cujo cumprimento o legislador esteja verdadeiramente empenhado. O legislador sujeita determinados factos jurídicos a registo, como condição ou pressuposto da sua eficácia contra terceiros, mas deixa aos interessados plena liberdade para requererem ou não, conforme lhes aprouver, a inscrição registal. Se a não requererem, não ficam sujeitos a qualquer sanção; apenas não beneficiam da vantagem (a oponibilidade a terceiros) que o registo proporciona.
Mas nem sempre a lei adopta esta atitude de neutralidade ou indiferença quanto à realização do registo.

Há casos, com efeito, em que o registo se destina a satisfazer não só o interesse particular de quem tem de requerê-lo, mas também interesses gerais do tráfico jurídico - interesses estes que reclamam um meio fácil e seguro de conhecimento, por terceiros, de determinados factos ou situações jurídicas que podem afectá-los.

Quando o registo tem esta finalidade mais ampla, em que intervêm já interesses de ordem pública, a sua realização, embora continue confiada aos particulares, é-lhes imposta pelo legislador como um dever jurídico cujo incumprimento, além de ter igualmente como consequência a inoponibilidade do facto não registado a terceiros, sujeita o infractor à aplicação de determinadas sanções. Mais do que punir a violação do dever de registar, as normas que estabelecem estas sanções têm por finalidade conseguir o cumprimento tempestivo de tal dever, confiando o legislador em que os particulares, sabendo que a sua inércia desencadeia efeitos de carácter punitivo, se apresentarão sem demora a requerer os actos de registo.

Ambos os regimes que acabamos de descrever sumariamente vigoram entre nós - o primeiro no campo do registo predial e o segundo no campo do registo comercial.

Pelo que respeita ao registo predial, o respectivo Código não fala no dever de registar e limita-se a estabelecer, no nº 1 do artigo 5º, que «os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo». As normas que sujeitam determinados factos a registo mais não fazem, portanto, do que criar um simples ónus jurídico.

Relativamente, porém, ao registo comercial, a lei não só fixa os prazos em que o registo deve ser requerido, como sanciona com uma coima a sua inobservância.

Por outro lado, no concernente às sociedades comerciais, o artigo 168º do respectivo Código estabelece, no seu nº 1, quanto aos actos que a lei sujeite a registo e publicação, o seguinte:
“1.– Os terceiros podem prevalecer-se dos actos cujo registo e publicação não tenham sido efectuados, salvo se a lei privar esses actos de todos os efeitos ou especificar para que efeitos podem os terceiros prevalecer-se deles.»[14].
Postos estes considerandos doutrinários e jurisprudenciais, sendo eficaz a renúncia da apelada N. Dias à gerência da I..., Lda., quer em relação à sociedade, quer em relação à apelante, mesmo admitindo que o documento por aquela enviado através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, foi aquele que se encontra junto a fls. 22, torna-se, desde logo, de difícil perceção o efetivo interesse da apelante na instauração da presente ação, tanto mais que era à sociedade, através dela, apelante, enquanto gerente subsistente, que cabia, em primeira linha, promover o registo daquela renúncia.
Não era, com efeito, à apelada N. Dias que incumbia, prima facie, a obrigação de promover, junto da competente Conservatória do Registo Comercial, o ato da sua renúncia à gerência da I..., Lda: tal incumbência recaia sobre a própria sociedade, na pessoa da apelante, uma vez que continuou a exercer a gerência.
No entanto, isso não era fator impeditivo de a apelada N. Dias, enquanto gerente renunciante, promover, ela própria, tal registo, uma vez que o 29º, nº 1, do CRC[15], lhe concede legitimidade para o efeito.
Foi o que a apelada N. Dias fez!
Considera a apelante que o registo da renuncia da apelada N. à gerência da I..., Lda., é nulo por ter sido feito com base em título falso.
Para o efeito alega que «serviu como título subjacente a tal registo o documento 2[16] que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
Tendo sido a 1ª Ré a apresentante do respectivo registo.
Os documentos que serviram de base ao registo requerido pela 1ª Ré são constituídos por um documento em que a 1ª Ré renuncia à gerência, assim como por um registo dos CTT – Correios de Portugal com o número RD 07195127 3 PT, e o respectivo aviso de recepção.
Sucede que,
O documento em que a 1ª Ré transmite a suposta renúncia à gerência, e que serviu de base ao respectivo registo, nunca foi remetido e recepcionado pela 2ª Ré I..., ou pela aqui Autora, a outra gerente em exercício à data de 20 de Dezembro de 2012.
O registo dos CTT com o número RD 07195127 3 PT, e o respectivo aviso recepção, respeitam a um outro documento que não o que foi apresentado na Conservatória para ser lavrado o registo de renúncia da 1ª Ré.
O documento que foi enviado através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT é o que ora se junta sob a designação de documento 3.
Tal documento foi efectivamente recebido na I..., mas não se encontrava assinado pela 1ª Ré, o que inviabilizou a realização do registo da gerência.
Assim, a 1ª Ré não comunicou de forma correcta qualquer renúncia à gerência da 2ª Ré I....
O título que a 1ª Ré submeteu ao registo de renúncia não corresponde, por isso, à cópia fiel daquele que foi efectivamente remetido à I..., com o registo número RD 07195127 3 PT.
O registo da renúncia da 1ª Ré - Averbamento 3 – AP.60/20130213 – é, pois, nulo, porquanto é falso e foi feito com base em título falso, nos termos do artigo 22º, n.º 1, al. b) do Código do Registo Comercial.»
Continuemos a admitir que o documento enviado pela recorrida através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, foi aquele que se encontra junto a fls. 22.
Tal documento contém os seguintes dizeres dactilografados:
“Tendo em conta que havia uma reunião entre as sócias gerentes agenda para as 21H00 de domingo, dia 16 de Dezembro de 2012, a qual não se veio a concretizar por decisão da sócia RP por SMS;
Tendo em conta que com esta postura se veio a inviabilizar qualquer forma de resolução dos problemas e indefinições que se têm arrastado e agravado nos últimos meses;
Venho pela presente comunicar a minha renúncia à gerência com efeitos imediatos, ou seja, dia 17 de Dezembro de 2012.
Mais informo que continuarei a assegurar as minhas funções de supervisora de casos clínicos até dia 31 de Dezembro de 2012.
Sem outro assunto subscrevo-me”.

Não subsistem dúvidas que, a ter sido esse o documento pelo qual a apelada N. Dias efetuou a comunicação por escrito à I..., Lda., da sua renúncia à gerência:
a)- o mesmo foi remetido pela apelada N. à sociedade através de carta com o registo dos CTT nº RD 07195127 3 PT, datado de 17.12.2012 – cfr. documento de fls. 21 (trata-se de um dos documentos que serviu de base ao registo da renúncia da gerência);
b)- (…) e com aviso de receção – cfr. documento de fls. 20, do qual resulta que a carta com o registo dos CTT nº RD 07195127 3 PT, datado de 17.12.2012, foi rececionada a 20.12.2017 (trata-se de um dos documentos que serviu de base ao registo da renúncia da gerência).
O outro documento, além dos referidos em a) e b) supra, que a Conservatória do Registo Predial do Porto atesta como tendo servido de base ao registo da renuncia da apelada N. Dias à gerência da sociedade, é o constante de fls. 19.

Como já se enfatizou:
- o documento de fls. 19 contém exatamente os mesmos dizeres datilografados que o documento de fls. 22, o tal que a apelante diz que a apelada N. Dias enviou à sociedade através da carta com o registo dos CTT nº RD 07195127 3 PT;
- o documento de fls. 19 contém a mais que o documento de fls. 22, os seguintes dizeres manuscritos:
«N. Dias
Cartão de Cidadão nº ...
IF nº ...»
A falsidade em causa na al. a) do nº 1 do art. 22º do CRC, tal como sucede em relação à al. a) do art. 16º do Cód. Registo Predial, é a regulada pelas normas de direito substantivo (v. g., art. 372º do CC)[17].

Ora, e continuamos sempre a admitir que o documento enviado pela apelada N. Dias através da carta registada com o número RD 07195127 3 PT, foi aquele que se encontra junto a fls. 22, temos que:
a)- não está em causa que tanto este documento, como o de fls. 19, são da autoria da apelada N. Dias;
b)- os dizeres datilografados que constam de ambos os documentos são exatamente os mesmos;
c)- esses dizeres traduzem exatamente a declaração em que consistiu a comunicação escrita de renúncia da apelada N. Dias à gerência da I..., Lda., em dezembro de 2012;
d)- a outra gerente da sociedade, a apelante, tomou conhecimento dessa comunicação;
e)- apenas está em causa o facto de o documento de fls. 19, um dos documentos que serviu de base ao registo da renúncia da apelada à gerência da sociedade, conter os dizeres manuscritos acima transcritos, e o documento de fls. 22 não conter tais dizeres.

Não pode deixar de ser dada razão à sentença recorrida quando afirma:
«No caso, se é certo que a carta em que a gerente N. Dias declarou renunciar à gerência não foi dirigida à outra gerente, RP, aqui autora, a verdade é que tudo se passou como se o tivesse sido, pois a carta, recebida nas instalações da sociedade, foi entregue à outra gerente que a abriu e tomou conhecimento do seu teor, não se lhe suscitando dúvidas quer relativamente ao remetente (em termos óbvios, pois a sociedade tinha apenas duas gerentes) quer no que respeita ao significado da comunicação. Portanto, a comunicação chegou efectivamente ao conhecimento da sociedade, na pessoa da gerente RP.
Com efeito, aos gerentes pertence a plenitude dos poderes de administração e de representação da sociedade, com respeito pelas deliberações dos sócios. Donde decorre que, à partida, qualquer notificação ou declaração que chegue à sociedade, sem indicação do órgão a que se dirige, naturalmente pertence à esfera da administração. Se aí não chegar, não será pelo facto de não indicar o órgão, mas por deficiências internas de funcionamento, cujas consequências não devem recair sobre a outra parte.
Entender, com apoio no mero elemento literal (mas sem atender ao espírito da lei e à normalidade da vida), que a comunicação em análise foi insuficiente, por não ter sido dirigida à outra gerente, afigura-se-nos claramente desadequado, por não corresponder ao que a lei pretendeu e absolutamente formal, sem atender aos interesses envolvidos, sobrepondo a forma ao conteúdo, em manifesto desrespeito pelos princípios normativos que norteiam o nosso sistema jurídico.
Concluímos, assim, que aquela posição não é aceitável, pois tem implícito o envio e a recepção em sentido naturalístico. Ora, a aplicabilidade do n.º 6 da norma em análise[18] deve, em nosso entender, colocar-se noutra perspectiva, que é a de saber se a sociedade recebeu ou não a declaração por não ter sido formalmente endereçada ao outro gerente. E, no caso, dúvidas não subsistem que ocorreu o conhecimento efectivo por parte da sociedade, na pessoa da sua gerente, da renúncia da outra gerente.
Aliás, este conhecimento e consciência é compatível com a realização de uma assembleia universal em que ambas as sócias e gerentes deliberaram alterar a forma de vinculação da sociedade, que passou a bastar-se com a assinatura da autora, o que é consequente em face da renúncia de N. Dias às funções de gerente.»
Não há, pelo exposto, lugar à declaração de nulidade do registo da renúncia da apelada N. Dias à gerência da I..., Lda., por falsidade do título com base no qual o registo foi feito.
Subsidiariamente, a apelante pede que tal registo seja declarado nulo por ter sido feito com base em título insuficiente para a prova legal do facto registado.
Alega para o efeito que «no que respeita ao documento que justificou a renúncia à gerência da 2ª Ré I..., o mesmo é um documento sem data e sem qualquer destinatário (…).
Ademais, não é referido sequer nesse documento a sociedade à qual a 1ª Ré renuncia à gerência (…).
Também o dito documento é dissociável do registo dos CTT e do aviso de recepção, pelo que não pode, por si só, atestar que a 2ª Ré I... o recepcionou.
A 1ª Ré declarou, aquando da feitura do pedido do registo, que a sociedade comercial recepcionou a sua “renúncia” a 20 de Dezembro de 2012.
Nessa data, exercia funções de gerente a aqui Autora (…).
Cargo esse que veio a exercer até 31 de Janeiro de 2013 (…).
A 20 de Dezembro de 2012, a aqui Autora não recepcionou o título que foi submetido ao registo de renúncia da 1ª Ré.
Por conseguinte, não é suficiente, para ser registada uma renúncia à gerência, o envio de uma carta para a sede da sociedade comercial.
É, pois, necessária a comunicação efectiva dessa renúncia à sociedade.
(…)
No caso sub judice, a “comunicação” devia ter sido dirigida à gerência da 2ª Ré, o que não aconteceu.
Devia igualmente ser atestado, no título que serviu de registo, a recepção pela então gerente, a aqui Autora, da comunicação de renúncia.
Seria, pois necessário, para que se pudesse registar a renúncia à gerência, um título que atestasse que a então gerente, a aqui Autora, recepcionou a comunicação de renúncia da 1ª Ré.
E só assim é que a comunicação seria devidamente realizada à sociedade, neste caso, através da pessoa da gerente não renunciante.»
Dá-se por integralmente reproduzido tudo quanto acima se expendeu quanto à nulidade do registo de renúncia da apelada N. Dias à gerência da I..., Lda.

Apenas se acrescenta que, tal como já referido e se mostra certificado pela Conservatória do Registo Comercial do Porto, «serviram de base ao Av. 3 de 13/02/2013, cessação[19] de funções de membro(s) do(s) órgão(s) social(s) (ONLINE), respeitante à/ao sociedade por quotas I..., LDA. – EM LIQUIDAÇÃO matriculada sob o número 5...» (documento de fls. 18) não apenas o transcrito documento de fls. 19, mas ainda:
- o registo dos CTT, com o nº RD 07195127 3 PT, datado de 17 de dezembro de 2012, no qual figura como destinatária «I..., Lda. – Gerência, Av... Cascais», e como remetente «N. Dias» (documento de fls. 21);
- o aviso de receção correspondente ao mesmo registo (RD 07195127 3 PT), no qual igualmente figura com destinatária «I..., Lda. – Gerência, Av..., Cascais», e como remetente «N. Dias», do qual resulta que aquele registo foi rececionado na sociedade no dia 20 de dezembro de 2012 (documento de fls. 20).
Tal é o que resulta de fls. 18 a 21, que constituem o denominado documento nº 2, junto pela própria apelante com a petição inicial com que introduziu em juízo esta ação.
Perante isto, contrariamente ao alegado pela apelante, a CRC do Porto dispunha de todos os elementos necessários para proceder ao registo da renúncia da apelada à gerência da sociedade I..., Lda.

Perante todo o excurso que antecede, ainda que:
- viesse a ser julgada procedente a impugnação da matéria de facto;
- este tribunal de recurso viesse a considerar provados os enunciados de factos descritos em a) a e) dos «Factos não Provados»,
mesmo assim, a presente apelação não deixaria de ser julgada improcedente.

O direito à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não subsiste a se, antes assumindo um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito.

Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processuais, o tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação forem insuscetíveis de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, não assumirem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente[20].

Dito de outra forma: o princípio da limitação dos atos, consagrado no art. 130º do CPC, deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir[21].

Por todo o exposto, há que julgar improcedente a apelação e, ainda que com diferentes fundamentos, manter a decisão recorrida.
*

4–DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante – art. 527, nºs 1 e 2, do CPC.



Lisboa, 20 de fevereiro de 2018



(José Capacete)
(Carlos Oliveira)
(Maria Amélia Ribeiro)



[1]Cfr. Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, sob coordenação do próprio, Vol. IV, 2ª Ed., Almedina, 2017, pp. 140-141.
[2]Sociedades por Quotas, Vol. III, Almedina, 1991, pp. 122-123.
[3]Direito das Sociedade, II, Das Sociedades em Especial, Almedina, 2017, pp. 442-443.
[4]«Estão sujeitos a registo os seguintes factos relativos às sociedades comerciais e sociedades civis sob forma comercial (…) a designação e cessação de funções, por qualquer causa que não seja o decurso do tempo, dos membros dos órgãos de administração e de fiscalização das sociedades, bem como do secretário da sociedade.»
[5]«O registo dos factos referidos nas alíneas a) a c) e e) a z) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 3.º, no artigo 4.º, nas alíneas a), e) e f) do artigo 5.º, nos artigos 6.º, 7.º e 8.º e nas alíneas c) e d) do artigo 10.º é obrigatório.»
[6]«É obrigatória a publicação dos seguintes atos de registo: a) Os previstos no artigo 3.º, quando respeitem a sociedades por quotas, anónimas ou em comandita por ações, desde que sujeitas a registo obrigatório, salvo os das alíneas c), e), f) e i) do n.º 1.».
[7]Dispõem assim os nºs 1 a 3 do art. 14º do CRC:
«1- Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.
2- Os factos sujeitos a registo e publicação obrigatória nos termos do n.º 2 do artigo 70.º só produzem efeitos contra terceiros depois da data da publicação.
3- A falta de registo não pode ser oposta aos interessados pelos seus representantes legais, a quem incumbe a obrigação de o promover, nem pelos herdeiros destes.»
[8]Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, 2012, pp. 568-569.
[9]Dispõe o art. 168º do CSC:
«1- Os terceiros podem prevalecer-se de atos cujo registo e publicação não tenham sido efetuados, salvo se a lei privar esses atos de todos os efeitos ou especificar para que efeitos podem os terceiros prevalecer-se deles.
2- A sociedade não pode opor a terceiros atos cuja publicação seja obrigatória sem que esta esteja efetuada, salvo se a sociedade provar que o ato está registado e que o terceiro tem conhecimento dele.
3- Relativamente a operações efetuadas antes de terem decorrido dezasseis dias sobre a publicação, os atos não são oponíveis pela sociedade a terceiros que provem ter estado, durante esse período, impossibilitados de tomar conhecimento da publicação.
4- Os atos sujeitos a registo, mas que não devam ser obrigatoriamente publicados, não podem ser opostos pela sociedade a terceiros enquanto o registo não for efetuado.
5- As ações de declaração de nulidade ou de anulação de deliberações sociais não podem prosseguir, enquanto não for feita prova de ter sido requerido o registo; nas ações de suspensão das referidas deliberações a decisão não será proferida enquanto aquela prova não for feita.
[10]Cfr. Joaquim Seara Lopes, Direito dos Registos e do Notariado, 5ª Ed., 2009, p. 205.
[11]Soveral Martins, em anotação ao art. 168º do CSC, in Código das Sociedade Comerciais em Comentário, sob Coordenação de Jorge Coutinho de Abreu, Vol. II, 2ª Ed., 2015, pp. 786-789.
[12]Ob. it., pp. 791-792.
[13]Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), 2ª Ed., Coimbra Editora, 1994, p.  
[14]Henrique Mesquita, em anotação ao Ac. do STJ de 18.05.1999 (Cons. Torres Paulo), in RLJ, Ano 133º, nºs 3919 e 3920, pp. 314-315.
[15]«Para pedir os atos de registo respeitantes a comerciantes individuais, salvo o referido no n.º 2, e a pessoas coletivas sujeitas a registo têm legitimidade os próprios ou seus representantes e todas as demais pessoas que neles tenham interesse.»
[16]Trata-se do documento que a autora juntou sob o nº 2 com a petição inicial e que constitui fls. 18 a 21 dos autos.
[17]Cfr. Isabel Pereira Mendes, Código do Registo Predial, Anotado e Comentado, 12ª Ed., Almedina, 2002, p. 134; na jurisprudência, cfr. Acs. da R.L. de 04.06.2009, Proc. nº 8339/2008-6 (Márcia Portela), e da R.C. de 21.11.2017, Proc. nº 3447/16.7T8LRA.C1 (Fonte Ramos), in www.dgsi.pt.
[18]A sentença recorrida pretende referir-se ao nº 5 do art. 260º do CSC.
[19]E não «cessão», conforme por lapso consta da certidão emitida pela CRC do Porto (fls. 18).
[20]Cf. Ac. da R.C. de 27.05.2014, Proc. nº. 104/12.0T2AVR.C1 (Moreira do Carmo), in www.dgsi.pt.
No Acórdão da mesma Relação de 24.04.2012, Proc. nº. 219/10.6T2VGS.C1 (Beça Pereira), in www.dgsi.pt, escreveu-se a este propósito:
«A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º».
No acórdão da mesma Relação de 14.01.2014, Proc. nº 6628/10.3TBLRA.C1 (Henrique Antunes) in www.dgsi.pt, a mesma ideia é assim expressa:
«De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a ação, ou pelo réu, com a contestação.
Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objeto da ação.».
[21]Cfr. Ac. do S.T.J. de 17.05.2017, Proc. nº 4111/13.4TBBRG (Cons. Isabel Pereira), in www.dgsi.pt.