Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1452/17.5T8CSC.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: REGISTO DA HIPOTECA
ARRENDAMENTO
VENDA JUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: Sumário do Acordão (da exclusiva responsabilidade da relatora – art. 663, nº 7, do C.P.C.):

I– O arrendamento, registado ou não, constituído após o registo de hipoteca, arresto ou penhora, é inoponível ao comprador do imóvel em venda judicial na ação executiva, caducando automaticamente com a concretização dessa venda, nos termos do nº 2 do art. 824 do C.C.;

II– A tal não obsta a circunstância da hipoteca ter sido constituída sobre imóvel destinado ao arrendamento e do adquirente do imóvel ser o credor hipotecário, não podendo considerar-se que este age em abuso de direito ao invocar, nessas condições, a referida inoponibilidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


S. Empreendimentos Turísticos, S.A., veio propor, em 4.5.2017, contra o Banco C., ação declarativa comum pedindo que seja declarado que os dois arrendamentos das frações “A” e “L” do prédio urbano sito na Estrada da R..., freguesia de A..., concelho de C..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de C... sob o nº ..., freguesia de A..., são válidos e eficazes nos precisos termos em que foram celebrados, e obrigam a A. e o R., este a partir da aquisição dos dois andares. Invoca, para tanto e em síntese, que a sociedade de Construções J. Lda, vendeu a JD as aludidas frações, tendo esta recorrido a financiamento bancário, pelo que as escrituras públicas de compra e venda celebradas foram acompanhadas de contrato de mútuo com hipoteca a favor do ora R.. Mais ficou então acordado que as frações deveriam ficar arrendadas. Tendo estas sido arrendadas à A. em 2006, a mutuária, JD, deixou de pagar as prestações do empréstimo, pelo que o Banco R. executou as hipotecas e adquiriu a propriedade das frações. Assim, assumiu este a qualidade de senhorio, por força do art. 1057 do C.C., dada a obrigação de locar os imóveis hipotecados.

Contestou o Banco R., excecionando a caducidade do direito de ação da A., que não se defendeu, como devia, por embargos de terceiro nas ações executivas interpostas pelo Banco R., e a caducidade dos contratos de arrendamento com a venda judicial, nos termos do art. 824, nº 2, do C.C., dado que as hipotecas foram constituídas antes do arrendamento. Conclui pela improcedência da causa.

A A. respondeu, invocando o abuso de direito do R., visto que este impôs e autorizou o arrendamento dos imóveis, e concluindo pela improcedência das exceções.

Dispensada a audiência prévia, foi fixado o valor da causa em € 30.000,01 e, tendo sido julgada improcedente a exceção de caducidade do direito de ação da A., relegou-se para final a apreciação da exceção de caducidade do direito ao arrendamento com a venda em processo executivo. Proferiu-se ainda despacho saneador que conferiu, no mais, a validade formal da instância, identificando-se o objeto do litígio e enunciando-se os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi, em 22.10.2018, proferida sentença nos seguintes termos: “(...) o Tribunal julga a presente acção improcedente por não provada, e em consequência ABSOLVE a Ré do pedido.
Não verifiquei indícios de má-fé quanto a ambas as partes.
Custas pela Autora.”

Inconformada, recorreu a A., culminando as alegações por si apresentadas com as conclusões que a seguir se transcrevem:

1.– A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo douto juiz “a quo”, que decidiu que o contrato de arrendamento caducou em sede de venda executiva, na data em que se mostrou inscrita a aquisição das frações a favor do Banco Réu.
2.– A falta de registo do contrato de arrendamento nunca poderá ter uma consequência que recaia sobre a validade do contrato, pois tal omissão apenas se reflete sobre o prazo do contrato: ao invés de se entender que o contrato se mantém por tempo indeterminado, operará a redução do referido contrato, entendendo-se que o mesmo se mantém pelo prazo de 6 anos, naturalmente renovável.
3.– Dado a Recorrente ter permanecido na posse dos imóveis por mais de 6 anos, ter-se-á que concluir que o contrato foi reduzido para o prazo de 6 anos e, subsequentemente, renovado por igual período, no fim do prazo inicial, pelo que, a falta de registo nunca invalidaria o contrato de arrendamento, levando apenas à redução do respetivo prazo.
4.– Foi o banco Recorrido quem impôs à proprietária dos imóveis, JD., o arrendamento destes, através da inclusão da cláusula sexta nos documentos complementares dos contratos de mútuo, conforme nºs 3 e 6 dos factos provados da sentença recorrida. 
5.– Haveria incumprimento apenas no caso dos imóveis não terem sido arrendados pela proprietária, como de resto, o foram.
6.– Nos documentos complementares de onde resulta a obrigação de comunicação dos arrendamentos, por parte da proprietária (JD.) ao banco, nada ficou estipulado quanto à consequência da falta da mesma.
7.– A consequência da falta de comunicação destes contratos de arrendamento ao banco, não poderia ser a invalidade destes mas, antes, o vencimento antecipado do empréstimo que, nunca poderia afetar o arrendamento, nem os subarrendamentos.
8.– Pelo que, não procede a alegação de que o Recorrido não sabia que as duas frações se destinavam ao arrendamento: nem pode dizer que não aceita o que impôs que se fizesse e, tal alegação consubstancia claramente um abuso de direito, mais concretamente traduzido na figura do “venire contra factum proprium”.
9.– Nos termos do artº 334º do CC, atua-se com abuso de direito, quando “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
10.– O Recorrido violou claramente os princípios da boa fé e, como tal, deve ser condenado.”
Pede a revogação da sentença e a procedência da causa, bem como a condenação do “Recorrido por abuso de direito.”

Em contra-alegações, o Banco apelado reclama a manutenção do julgado, enunciando as seguintes conclusões:

1–A fundamentação principal da sentença recorrida consiste na aplicação analógica do nº2 do artº. 824º do C.C.;
2–Uma vez que o presente recurso não contempla a aplicação do artº 824º nº2 do CC, o recurso não pode proceder;
3–Ainda que o contrato de arrendamento por tempo indeterminado e sem ter sido registado pudesse, por mera hipótese de raciocínio, ser oponível ao Recorrido, para além do período de seis anos, o arrendamento cessaria com a venda do imóvel em sede de execução, por ter sido celebrado em data posterior à constituição da hipoteca, conforme resulta da aplicação do artº. 824º nº2 do C.C.;
4–A segunda questão abrangida pelo Recurso – consequências do clausulado na clª 6ª do documento complementar ao contrato de mútuo – também não tem a virtude de afastar o fundamento principal da sentença;
5–Mesmo que fosse adoptada a posição preconizada pela Recorrente a respeito das obrigações emergentes da cláusula 6ª, o que só por mera hipótese de raciocínio se pode considerar, manter-se-ia válida a aplicação analógica do nº2 do artº. 824º CC;
6–A consequência da ausência de registo nos termos da alínea m) do nº1 do artº. do Código do Registo Predial está prevista na lei (artº 5º  nº1 do mesmo Código), como tal, não é passível de ser ignorada e substituída por outra diferente como faz a Recorrente;
7–A consequência legal prevista no nº1 do artº 5º Código do Registo Predial em nada contende com o facto de a Recorrente, alegadamente, se ter mantido na posse do imóvel, porquanto o contrato produz efeitos inter partes para além do período de seis anos, contrariamente ao que sucede relativamente a terceiros;
8–A Recorrente não tem legitimidade para invocar perante o Banco o teor do contrato de financiamento (clª 6ª) de que não é parte, por forma a poder beneficiar dos seus efeitos;
9–A Recorrente defende a manutenção em vigor de alguns efeitos do contrato de mútuo de que não é parte, mesmo após a sua resolução por motivo não imputáveis ao Banco, por tais efeitos lhe trazerem vantagens patrimoniais importantes e serem, pelo contrário, muito penalizadores para o Recorrido;
10–A cláusula 6ª estipula apenas a finalidade a que se destina o imóvel durante a vigência do contrato de financiamento e resultou do livre acordo das partes, nos termos do artº. 405º do C.C.;
11–A sentença não refere que o Recorrido impôs o arrendamento das fracções à mutuária, contrariamente ao que alega a Recorrente;
12–O Recorrido nunca negou a existência da obrigação de arrendamento das fracções mas entende que essa condição deixa de estar e vigor e de produzir efeitos após a resolução do contrato por incumprimento da mutuária;
13–A mutuária não procedeu à sua apresentação ao Banco, nem domiciliou na conta alocada ao financiamento o depósito das rendas, contrariamente ao que se encontrava estipulado no contrato, como a própria Recorrente reconhece;
14–O Banco nunca afirmou desconhecer que os imóveis se destinavam ao arrendamento durante a vigência do contrato de financiamento, pelo que não actuou com abuso de direito.”

O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***

II–Fundamentos de Facto:

A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:

Da petição inicial:
1)–Por escritura pública de 26.09.2005, a Sociedade de Construções J, Lda, declarou vender a JD., a fracção autónoma, designada pela letra “A”, correspondente ao bloco A, do rés-do-chão esquerdo (segundo piso) destinada a habitação, com uma arrecadação n.º 8 e dois estacionamentos com os números vinte e nove e trinta na cave (primeiro piso), que faz parte do prédio urbano sito na Estrada da …, concelho de C..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de C..., sob o n.º …, freguesia de A…, afecto ao regime de propriedade horizontal, e inscrito na matriz sob o art. 1…, da referida freguesia, com o valor patrimonial de € 116.379,00 euros, cf. cópia de escritura pública junta como Doc.1 (fls.5-v) que aqui se dá por reproduzida.
2)–No âmbito da escritura aludida em 1) a JD., declarou que a fracção adquirida se destina a arrendamento, e declarou comprar a mesma pelo preço de € 165.000,00 euros, do qual se confessa devedora ao Banco C., que lho deu de empréstimo, e que vai aplicado na presente aquisição, constituindo ainda hipoteca a favor deste, nos termos e condições acordadas no documento complementar, cf. cópia de escritura pública (fls.5-v) que aqui se dá por reproduzida.
3)–No âmbito do documento complementar anexo à escritura pública aludida em 1) cf. cópia de fls. 9, que aqui se dá por reproduzida, na parte relevante para o caso concreto, a JD. acordou com o Banco C.:
Sexta:
1.- Os mutuários obrigam-se a manter o imóvel acima identificado arrendado, por renda compatível com as praticadas no mercado de novos arrendamentos e a afectar as rendas provenientes dos arrendamentos que venham a efectuar ao pagamento da quantia mutuada, respectivos juros e outros montantes devidos em virtude do presente empréstimo, obrigando-se a fornecer ao Banco cópia dos contratos de arrendamento.
2.- Os mutuários obrigam-se a receber as rendas dos arrendamentos previstos no número anterior por crédito na sua conta de depósitos à ordem aberta no Banco C. com o n.º (…)”.
3.- Sempre que o imóvel acima identificado não se encontrar arrendado, os pagamentos a efectuar pelos mutuários para liquidação do capital mutuado e respectivos juros ou outros encargos estipulados devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efectuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada na cláusula primeira (…)”.
4)–Por escritura pública de 26.09.2005, a sociedade de construções J., Lda, declarou vender a JD., a fracção autónoma designada pela letra “L” correspondente ao bloco B, rés-do-chão direito (segundo piso), destinada a habitação, com uma arrecadação n.º 18, e dois estacionamentos com o n.º 42 e 43 na cave (primeiro piso), que faz parte do prédio urbano sito na Estrada da …, concelho de C..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de C..., sob o n.º …, freguesia de A…, e inscrito na matriz sob o art. 1… da referida freguesia e com o valor patrimonial correspondente à fracção de € 116.379,00 euros, cf. cópia da escritura pública junta como Doc.2 (fls.15 e segs) que aqui se dá por reproduzido.
5)–No âmbito da escritura aludida em 4) JD. declarou que a fracção adquirida se destina a arrendamento, e declarou comprar a mesma pelo preço de € 165.000,00 euros, do qual se confessa devedora ao Banco C., que lho deu de empréstimo, e que vai aplicado na presente aquisição, constituindo ainda hipoteca a favor deste, nos termos e condições acordadas no documento complementar, cf. cópia de escritura pública (fls.16-v) que aqui se dá por reproduzida.
6)–No âmbito do documento complementar anexo à escritura pública aludida em 4) cf. cópia de fls.18-v, que aqui se dá por reproduzida, na parte relevante para o caso concreto, a JD. acordou com o Banco C.:
Sexta:
1.- Os mutuários obrigam-se a manter o imóvel acima identificado arrendado, por renda compatível com as praticadas no mercado de novos arrendamentos e a afectar as rendas provenientes dos arrendamentos que venham a efectuar ao pagamento da quantia mutuada, respectivos juros e outros montantes devidos em virtude do presente empréstimo, obrigando-se a fornecer ao Banco cópia dos contratos de arrendamento.
2.- Os mutuários obrigam-se a receber as rendas dos arrendamentos previstos no número anterior por crédito na sua conta de depósitos à ordem aberta no Banco C. com o n.º (…)”.
3.- Sempre que o imóvel acima identificado não se encontrar arrendado, os pagamentos a efectuar pelos mutuários para liquidação do capital mutuado e respectivos juros ou outros encargos estipulados devidos por força do estipulado no presente contrato, serão efectuados por débito na conta de depósitos à ordem mencionada na cláusula primeira (…)”.
7)–Em 01.08.2006, por documento particular denominado “Contrato de Arrendamento para Habitação Sem Prazo e Por Tempo Indeterminado” JD., na qualidade de Senhoria, e S. Empreendimentos Turísticos, Lda., na qualidade de inquilina, acordaram celebrar entre si contrato de arrendamento para habitação, sem prazo de tempo, referente a dois apartamentos sitos na Estrada da …, correspondentes às fracções A e L, cf. cópia de contrato de arrendamento junta como Doc.3 (fls.22) que aqui se dá por reproduzida, na parte relevante para o caso concreto, que:
“1.- O senhorio autoriza a empresa inquilina a subarrendar o imóvel a quem quiser e condições que entender”.
2.- A renda anual dos primeiros doze meses é de € 3.600,00 (três mil e seiscentos euros). (…)
4.- As rendas serão pagas mensalmente em duodécimos, ao senhorio no primeiro dia útil do mês anterior a que respeitar, sendo o valor de cada duodécimo, no primeiro ano, de € 100,00 (cem euros), cada fracção, em local a indicar pelo senhorio.”.
8)–Em 15.02.2011, o contrato aludido em 7) foi declarado às Finanças, para efeitos de pagamentos de imposto de selo, cf. Doc.3 (fls.23) que aqui se dá por reproduzido.

Da contestação:
9)–Em 24.03.2017, a JD. requereu no Proc. n.º 6728/10.0TBCSC a suspensão da entrega efectiva dos imóveis, invocando a sua alegada condição de arrendatária.
10)–Em 21.04.2017, a JD. requereu no Proc. n.º 6727/10.1TBCSC a suspensão da entrega efectiva dos imóveis, invocando a sua alegada condição de arrendatária.
11)–A Autora não deduziu embargos de terceiro em nenhuma das execuções.
12)–A JD. não forneceu uma cópia do contrato de arrendamento celebrado com a Autora ao Banco Réu.
13)–A JD. não recebeu as rendas por conta do contrato de arrendamento celebrado na conta aberta no Banco Réu.
14)–Mostra-se inscrita pela ap. 32 de 15.04.2005, a hipoteca voluntária a favor do Banco C, pelo capital de € 165.000,00 euros e até ao montante máximo assegurado de € 205.309,50 euros, para garantia de empréstimo, à taxa de juro anual de 2,81%, acrescido de 4% de mora a título de cláusula penal e despesas até € 6.600,00 euros, incidente sobre a fracção L, sita no Bloco B, Rés-do-chão Direito, 2.º piso, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de C..., sob o n.º …, freguesia de A…, e inscrito na matriz sob o art. 1… da referida freguesia, cf. certidão permanente do registo predial (fls.47) que aqui se dá por reproduzida.
15)–Mostra-se inscrita pela ap. 1468 de 29.11.2011, a penhora a favor do Banco C., no âmbito do Proc. n.º 6727/10.1TBCSC do 2.º Juízo Cível do Tribunal de Família, Menores e Comarca de Cascais, para pagamento da quantia exequenda de € 174.216,89 euros, sobre a fracção L, cf. certidão permanente do registo predial (fls.47) que aqui se dá por reproduzida.
16)–Mostra-se inscrita pela 1136 de 05.04.2017 aquisição da fracção L em processo de execução, a favor do Banco C., SA. cf. certidão permanente do registo predial (fls.50) que aqui se dá por reproduzida.
17)–Mostra-se inscrita pela ap. 30 de 15.04.2005, a hipoteca voluntária a favor do Banco C, pelo capital de € 165.000,00 euros e até ao montante máximo assegurado de € 205.309,50 euros, para garantia de empréstimo, à taxa de juro anual de 2,81%, acrescido de 4% de mora a título de cláusula penal e despesas até € 6.600,00 euros, incidente sobre a fracção A, sita no Bloco A, Rés-do-chão Esquerdo, 2.º piso, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de C..., sob o n.º …, freguesia de A…, e inscrito na matriz sob o art. 1… da referida freguesia, cf. certidão permanente do registo predial (fls.48-v) que aqui se dá por reproduzida.
18)–Mostra-se inscrita pela ap. 1532 de 29.11.2011, a penhora a favor do Banco C., no âmbito do Proc. n.º 6728/10.0TBCSC do 4.º Juízo Cível do Tribunal de Família, Menores e Comarca de Cascais, para pagamento da quantia exequenda de € 182.542,96 euros, sobre a fracção A, cf. certidão permanente do registo predial (fls.49) que aqui se dá por reproduzida.
19)–Mostra-se inscrita pela ap. 3230 de 25.11.2016, a aquisição da fracção A em processo de execução, a favor do Banco C., SA, cf. certidão permanente do registo predial (fls.50-v) que aqui se dá por reproduzida.
                                                                        ***
III–Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

Compulsadas as conclusões da apelação, verificamos que cumpre apreciar:
– Da subsistência do contrato de arrendamento após a venda em ação executiva;
– Do abuso de direito do Banco R..

A)– Da subsistência do contrato de arrendamento após a venda em ação executiva:
Na sentença concluiu-se pela improcedência da causa, entendendo-se, no que respeita à subsistência do arrendamento após a venda judicial: “(…) a presente problemática deve ser solucionada do seguinte modo:
Se o contrato de arrendamento foi anterior ao registo de qualquer inscrição de hipoteca ou penhora, o mesmo não caduca no caso de venda executiva, sendo aplicável a transmissão da posição do senhorio, nos termos do art. 1057.º do Cód.Civil, sem prejuízo das regras do registo.
Tal significa que se o arrendamento não tiver sido registado quanto obrigatoriamente o devesse ter sido (art. art. 2.º, n.º 1, alínea m) e art. 5.º do Cód.Reg.Predial), não é oponível ao terceiro adquirente a duração superior a seis anos desse arrendamento.
Por outro lado, se o contrato de arrendamento for posterior ao registo de qualquer inscrição de hipoteca ou penhora, o mesmo caduca no caso de venda executiva, nos termos do art. 819.º e 824.º, n.º 2 do Cód.Civil, este último aplicável por analogia, dado que se trata de um direito obrigacional, neste sentido, v.g. Ac.TRC de 01.06.2010 relatado por Manuel Capelo e Ac.TRC de 21.10.2008 relatado por Hélder Roque (arrendamentos posteriores à hipoteca) e Ac.TRL de 20.01.2001 relatado por Ezaguy Martins (arrendamento anterior à hipoteca), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
(…) No caso vertente, o contrato de arrendamento dos autos sobre ambas as fracções foi celebrado em 01.08.2006, por tempo indeterminado, e sem ser objecto de registo (que neste caso era obrigatório) ainda que participado às finanças apenas em 15.02.2011, o que constitui um aspecto com incidência meramente fiscal.
Por sua vez, as inscrições de hipoteca no âmbito do contrato de mútuo tiveram lugar em 15.04.2005, isto é, em data temporal anterior ao da celebração do contrato de arrendamento.
Logo, sendo a data do registo da hipoteca anterior à data do contrato de arrendamento, tem lugar aplicação analógica do art. 824.º, n.º 2 do Cód.Civil ao caso vertente, pelo que não pode deixar de entender-se que o contrato de arrendamento caducou em sede de venda executiva, mas concretamente, na data em que se mostrou inscrita a aquisição das fracções a favor do Banco Réu. (…).”
Como assinala o recorrido, a apelante não discute no recurso o critério seguido em 1ª instância.
Defende, no entanto, que a falta de registo do contrato de arrendamento nunca poderia ter como consequência a invalidade do contrato, refletindo-se apenas sobre o prazo do mesmo que passa a ter a duração de 6 anos, renovável.
Salvo o devido respeito, não se entende o argumento.
Na sentença recorrida assinalou-se, precisamente, que se o arrendamento não tiver sido registado quanto obrigatoriamente o devesse ter sido, nos termos do art. 2, nº 1, al. m), do Código do Registo Predial, não é oponível ao terceiro adquirente a sua duração superior a seis anos, por força do art. 5, nº 5, do mesmo Código.
Ou seja, não se concluiu pela invalidade do contrato de arrendamento sub judice por falta de registo.
O que se entendeu na sentença foi que o contrato de arrendamento caducou com a venda executiva, uma vez que foi celebrado depois da constituição da hipoteca, não tendo, por isso, aplicação ao caso o art. 1057 mas sim o art. 824, nº 2, ambos do C.C..
Uma coisa não tem, como é evidente, a ver com a outra.
A circunstância do contrato de arrendamento em apreço, relativo às frações “A” e “L” do prédio sito na Estrada da …, em A…, C..., celebrado por tempo indeterminado e não sujeito a registo, ser inoponível a terceiros com duração superior a seis anos, não releva para o efeito da aplicação do art. 824, nº 2, do C.C..
O que verdadeiramente importa nos autos é a data do arrendamento, com ou sem registo, no confronto com a data do registo da hipoteca.
Apreciemos brevemente a questão, apesar de não ser posta em causa no recurso a tese que foi seguida na sentença quanto à caducidade do arrendamento.
O art. 1057 do C.C. estabelece que: “O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo.”
De acordo com esta regra, o arrendatário pode opor o seu direito a quem adquirir o direito com base no qual foi celebrado o contrato.
Dispõe, no entanto, o art. 824 do C.C., sob a epígrafe “Venda em execução”, que: “1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. 2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo. 3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens.”
No que respeita à interpretação deste último normativo, defende parte da doutrina e da jurisprudência que o nº 2 do art. 824 do C.C. não pode aplicar-se ao arrendamento, invocando, além do mais, que este corresponde a um direito obrigacional e não real, bem como o carácter taxativo da enumeração dos casos de caducidade do contrato de locação constante do art. 1051 do C.C.([1]).
Em sentido oposto, porém, e constituindo posição largamente maioritária junto do STJ, defendem outros que, mesmo entendendo que o arrendamento tem natureza obrigacional, o nº 2 do art. 824 do C.C. aplica-se ao arrendamento, enquanto ónus que incide sobre o imóvel, pelo que qualquer situação locatícia, registada ou não, constituída após o registo de hipoteca, arresto ou penhora, é inoponível ao comprador do imóvel em sede de venda judicial, caducando automaticamente com a concretização dessa venda([2]).
Acompanhamos este segundo entendimento e revemo-nos na argumentação constante do Ac. do STJ de 18.10.2018, citado em rodapé, na defesa da tese maioritária, que, por manifesta comodidade, aqui reproduzimos: “(…) rebatendo os argumentos em que se alicerça a primeira das teses enunciadas, parte esta segunda orientação - que, desde o ano de 2007, se vem sedimentando de forma praticamente unânime no nosso panorama jurisprudencial - , da defesa de que a circunstância de o arrendamento não ser um direito real, revestindo-se, antes, de a natureza obrigacional, não é de per si excludente da sua subsunção  na previsão do nº 2 do art. 824º do C. Civil  e de que o art. 1051º do C. Civil também não coloca  nenhuma proposição adverbial excludente de outras causas de caducidade do contrato de locação, sendo que, como se refere o citado Acórdão do STJ de 06.07.2000 […], «o carácter taxativo nunca é de presumir» e não falta, na doutrina, quem, como Cunha e Sá[…] e Oliveira Ascensão[…], considere  a enumeração das causas de caducidade vertidas no citado art. 1051º como meramente exemplificativa.
E se é certo que a hipoteca não impede, nos termos do art. 695º do C. Civil, o poder de disposição dos bens hipotecados por parte do respetivo dono, mediante alienação ou oneração, não menos certo é que, como resulta do disposto nos arts. 686, 695º, 700º e 701º, todos do C. Civil e refere Maria Isabel Menéres Campos[…], ela não deixa de produzir limitações de  vária ordem ao direito de propriedade do hipotecador, a quem fica vedado praticar livremente atos que ponham em causa o valor da coisa hipotecada estando limitado aos atos que caibam nos poderes de administração ordinária.  
Por outro lado e vistas as coisas pelo prisma do credor hipotecário, é consabida a repercussão negativa, em termos de valor-preço, que a celebração de um contrato de arrendamento provoca no imóvel.
O valor de um prédio arrendado é, em regra, inferior ao valor de um prédio devoluto.
Por isso, como escreve Maria Isabel Menéres Campos[…], citando A. Luís Gonçalves[…] e Henrique Mesquita […], o contrato de arrendamento «na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do proprietário devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, deve estar sujeito  à extinção por força da venda executiva. O arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo é um ónus, não podendo sobrepor-se à hipoteca, porquanto origina a degradação do valor dado em garantia».
Daí afirmar também o Acórdão deste Supremo Tribunal de 31.10. 2006 (processo 06A3241)[…], que « À luz do artº 824º do CC, o contrato de arrendamento é considerado como um verdadeiro ónus em relação ao prédio. Daí que, vendido o prédio em sede executiva, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de hipoteca e penhora caduque automaticamente».
É que, como salienta o citado Acórdão do STJ de 03.12.1998 (processo nº 98B863)[…], «Apesar de um manifesto intuito de proteger o bem da estabilidade da habitação, não pode entender-se que o legislador houvesse querido deixar sem protecção os direitos dos credores titulares de garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia (…) » , sustentando, por isso, que « (..) só por esta via  interpretativa se obviará a que a oneração de prédio urbano através da celebração posterior de contrato de arrendamento, impossibilite ou pelo menos dificulte o ressarcimento completo do credor com garantia real».
Ou seja, segundo afirma o citado Acórdão do STJ de 27.05.2010 (processo nº 5425/03.7TBSLX.S1) […], estribado nos ensinamentos de Romano Martinez[..], Mota Pinto[…] e Dias Marques[…], impõe-se, por via de uma interpretação teleológica e com base em argumentos de analogia ou semelhança das situações de facto e consequências práticas (que não se confunde com a integração de uma lacuna legal, no sentido técnico-jurídico do art. 10º do C. Civil), designadamente de natureza sócio-económica, entender-se que «a referida norma  do art. 824º se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real, quer pessoal, de que a coisa vendida seja objecto e que produzam efeitos em relação a terceiros. É que o arrendamento, dada a sua eficácia em relação a terceiros, deve ser para este efeito, equiparado a um direito real. De outra forma, pôr-se-ia em causa o escopo da lei, de que a venda em execução se faça pelo melhor preço possível».

Dito de outro modo e nas palavras do citado Acórdão 16.09.2014[…] «não se trata, portanto, de estender, por via analógica, o efeito extintivo previsto no art. 824º, nº 2 a direitos de crédito, naturalmente de eficácia relativa e, nessa medida, inoponíveis a terceiros, mas apenas de considerar aplicável esse efeito a direitos não reais relativamente aos quais, pela sua especificidade» e, no dizer de Ana Carolina S. Sequeira[…], “possam proceder as mesmas razões justificativas da extinção” (…).”

Cremos, de facto, que, não obstante as recentes alterações legislativas no regime do arrendamento urbano e as limitações introduzidas quanto à sua duração, o mesmo continua a constituir ainda assim, pela sua natureza, um verdadeiro ónus sobre o imóvel, condicionante do seu valor.

Note-se, ainda, que, de acordo com o art. 819 do C.C., respeitante à “Disposição ou oneração dos bens penhorados”, “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.”

Por conseguinte, concordamos que constitui elemento determinante para aferir da caducidade do arrendamento a data da sua celebração por referência, seja à data da constituição e registo da hipoteca, seja à data da realização da penhora.

Assim, e em tese, na ponderação dos interesses do credor hipotecário e do arrendatário, devem prevalecer os primeiros, na medida em que o arrendatário pode saber da situação do imóvel hipotecado, atenta a obrigatoriedade do respetivo registo.

No caso sub judice, tendo o contrato de arrendamento sido celebrado em 1.8.2006 relativamente às duas frações, após o registo das respetivas hipotecas, realizado em 15.4.2005, há que entender que, com ou sem registo, teria caducado o referido arrendamento por força da venda em execução das respetivas frações autónomas (pontos 16 e 19 supra), nos termos do nº 2 do art. 824 do C.C..

Questão é saber se, destinando-se as concretas frações ao arrendamento, como resulta dos pontos 1 a 6 supra, e tendo estas sido adquiridas em ação executiva pelo credor hipotecário/mutuante que conhecia o fim a que as mesmas se destinavam – cfr. clásula 6ª do documento complementar anexo a cada uma das escrituras públicas de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança” – estaria o referido Banco impedido, de acordo com as regras da boa-fé, de opor-se à validade/subsistência do arrendamento contratado pela A. com a mutuária e de invocar a sua caducidade à luz do mencionado art. 824, nº 2, do C.C..
É o que apreciaremos de seguida.

B)–Do abuso de direito do Banco R.:
Tendo o Banco R. sustentado na contestação a caducidade do contrato de arrendamento com a venda judicial, nos termos do art. 824, nº 2, do C.C., em virtude das hipotecas terem sido constituídas e registadas antes do arrendamento, respondeu a A. que o R. atua em abuso de direito, uma vez que impôs e autorizou o arrendamento dos imóveis.

Na sentença, discorreu-se a este propósito nos seguintes termos: “(…) cumpre salientar que o contrato de mútuo em questão se destina ao fomento de aquisição de habitação para arrendamento, é um instrumento financeiro, ou na gíria bancária, um produto que visa estimular a colocação de fogos no mercado imobiliário, com vista à sua rentabilização e não com vista à sua habitação própria e permanente.

Logo, o escopo lucrativo do produto financeiro em questão, impõe que o mutuário procure efectivamente disponibilizar o imóvel no mercado, sob pena de incumprimento contratual. 

Contudo, tal incumprimento contratual não se sobrepõe ao incumprimento derivado da falta de pagamento das prestações de amortização contratadas, pelo que falhado este, ocorre a resolução total do programa contratual acordado (art. 405.º do Cód.Civil).

A resolução por incumprimento e os subsequentes passos tomados pela Ré Banco, não são contrárias ao fim social do contrato de mútuo, qualquer que seja o fim a que o mesmo se destine, sendo antes uma característica típica dos contratos (art. 817.º do Cód.Civil).

Deste modo, não podemos afirmar que a resolução do contrato de mútuo para aquisição de fracção destinada ao arrendamento, com a subsequente venda da fracção em processo executivo, seja contrário à finalidade jurídica e social do contrato de mútuo e do contrato de arrendamento, sendo a compatibilização entre ambos, efectuada nos termos acima explanados. 

Por conseguinte, não ocorre abuso de direito (art. 334.º do Cód.Civil) da Ré em qualquer das suas modalidades, não podendo o contrato de arrendamento dos autos, ser considerado como subsistente após a realização da venda executiva. (…).”

No recurso, a A./apelante insiste que o arrendamento foi imposto pelo Banco R., pelo que este não pode invocar que desconhecia que tais frações se destinavam ao arrendamento, constituindo tal alegação abuso de direito.

Já o recorrido assinala, em contra-alegações, que não impôs o arrendamento das frações à mutuária, que nunca negou nos autos a obrigação de arrendamento das mesmas, nem afirmou desconhecer que estas se destinavam ao arrendamento.

Vejamos.

Efetivamente, o Banco R. afirma expressamente na contestação que as frações se destinavam ao arrendamento e não à habitação, própria e permanente, da mutuária, e que, estando esta obrigada a fornecer cópia do contrato de arrendamento ao Banco mutuante, tal como a receber as rendas respetivas por crédito em conta aberta no mesmo Banco, não cumpriu tais estipulações.

Sendo esta a posição do R. – e não a referida pela apelante – ou seja, sabendo o Banco que as frações adquiridas pela mutuária se destinavam ao arrendamento, estaria o mesmo impedido de invocar, de acordo com as regras da boa-fé, a caducidade do arrendamento celebrado pela A. nos moldes acima analisados?
Cremos que não.

Dispõe o art. 334 do C.C. que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

A ilegitimidade em que se traduz o abuso de direito não resulta da violação formal de qualquer preceito legal em concreto mas da utilização manifestamente anormal, excessiva, do direito, independentemente do animus ou da consciência que o seu titular tenha do carácter abusivo da sua conduta([3]).

“(…) Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.

É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, «em termos clamorosamente ofensivos da justiça» (…)”([4]).

O abuso de direito surge, assim, como a exceção oposta ao direito, cuja existência em si não é questionada, mas cujo exercício, por circunstâncias concretas, se torna inadmissível. Daí que a verificação em concreto do abuso legitime a oposição ao seu exercício e paralise a respetiva execução.

Uma das modalidades desse abuso é a chamada conduta contraditória (venire contra factum proprio) em combinação com o princípio da tutela da confiança.

Revertendo para o caso em análise, afigura-se que o fim do arrendamento, conhecido pelo Banco R., a que se destinavam as frações adquiridas pela mutuária, não afeta a lógica acima expendida sobre a prioridade da hipoteca.

O que se retira da cláusula 6ª do documento complementar anexo a cada uma das escrituras públicas de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança” não será exatamente uma obrigatoriedade da mutuária em manter as frações arrendadas – esse era o fim a que, à partida, se destinava a aquisição – mas sim de estas o serem “por renda compatível com as praticadas no mercado de novos arrendamentos” e da adquirente/mutuária “afectar as rendas provenientes dos arrendamentos que venham a efectuar ao pagamento da quantia mutuada, respectivos juros e outros montantes devidos em virtude do presente empréstimo, obrigando-se a fornecer ao Banco cópia dos contratos de arrendamento” (cfr. pontos 3 e 6 supra). Ou seja, o que se pretendia era que, destinando-se as frações ao arrendamento, conforme expressamente declarado pela compradora nas respetivas escrituras públicas, os proventos assim obtidos por esta, enquanto senhoria, fossem o mais elevado possível e garantissem, ao Banco mutuante, a amortização do empréstimo.

De resto, prevê-se na mesma cláusula 6ª que os imóveis poderiam não se encontrar arrendados, devendo então os pagamentos a efetuar para liquidação do capital mutuado, respetivos juros ou outros encargos, ser realizados por débito numa outra conta de depósitos à ordem (nº 3 da dita cláusula 6ª).

É evidente que uma coisa é o fim a que, de acordo com a respetiva escritura de aquisição, se destina um certo imóvel, e outra a existência de um concreto contrato de arrendamento, quando foi celebrado e em que condições.

Ora, na situação em análise, como vimos, o contrato de arrendamento invocado pela A. foi celebrado em 1.8.2006 relativamente a ambas as frações, logo, após o registo das respetivas hipotecas, realizado em 15.4.2005.

Por sua vez, como se provou, e contra o que ficara estipulado, a mutuária não forneceu ao Banco R. cópia do contrato de arrendamento celebrado com a A., nem recebeu as rendas respetivas na conta aberta no Banco R.. Tal como manifestamente não celebrou, em 2006, tal contrato por “renda compatível com as praticadas no mercado de novos arrendamentos”, tendo em vista o valor de € 3.600,00 fixado como renda anual dos primeiros doze meses para as duas frações (cfr. ponto 7 supra).

Ademais, e sem prejuízo do disposto no nº 5 do art. 5 do Código do Registo Predial, nem o referido contrato de arrendamento foi sujeito a registo, como se impunha face ao disposto no art. 2, nº 1, al. m), do mesmo Código, visto ter sido celebrado sem prazo e por tempo indeterminado.

Logo, nem sequer pode invocar a A. que o Banco R. conhecesse, ou devesse conhecer, o contrato de arrendamento em apreço, o ónus que concretamente impendia sobre o imóvel.

Por outras palavras, não pode retirar-se da circunstância da aquisição das frações se destinar ao arrendamento, como era do conhecimento do R., que tal obstasse, de per si, à aplicação do disposto no art. 824, nº 2, do C.C., sendo a específica situação locatícia (registada ou não) constituída após o registo de hipoteca.
De resto, se a mutuária tivesse adquirido as frações já oneradas com arrendamentos pré-existentes é evidente que tal levaria a que se tivesse operado para si a transmissão da posição da locadora, por força do estatuído no art. 1057 do C.C., posição que haveria, por seu turno, de se transmitir também ao Banco R. em consequência da venda judicial, caso o registo da hipoteca fosse posterior a esses ditos arrendamentos, não operando, então, o art. 824, nº 2, do C.C..

Em suma, não se vislumbra que o Banco R. atue em abuso de direito ao invocar a caducidade do arrendamento por força da venda executiva.

Donde, inevitável é concluir que, nos termos do art. 824, nº 2, do C.C., o direito de arrendamento da recorrente caducou com a venda judicial das frações sobre que versava a locação, como acima desenvolvemos.

Improcede o recurso.
***

IV–Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
***

Lisboa, 10.9.2019


Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho                                                                   
Luís Filipe Pires de Sousa                                                                                     

[1]Neste sentido ver, nomeadamente, o Ac. do STJ de 27.11.2018, Proc. 1268/16.6T8FAR.E1.S2, e o Ac. da RL de 30.4.2019, Proc. 1357/17.0T8LSB-C.L1-1, ambos em www.dgsi.pt, bem como as extensas referências doutrinárias constantes deste último quanto às duas posições em confronto.
[2]Neste sentido, e apenas para citar os mais recentes, ver os Acs. do STJ de 9.7.2015, Proc. 430/11.2TBEVR-Q.E1.S1, de 22.10.2015, Proc. 896/07.5TBSTS.P1.S1, de 9.1.2018, Proc. 732/11.8TBPDL-A.L1.S1, de 15.2.2018, Proc. 851/10.8TBLSA-D.S1, e de 18.10.2018, Proc. 12/14.7TBEPS-A.G1.S2, e o Ac. da RL de 15.5.2018, Proc. 7734/10.0YYLSB-C-7, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Na doutrina, vejam-se, para além das referências exaustivas já indicadas, as constantes destes mesmos arestos.
[3]Cfr. “Dicionário Jurídico”, Ana Prata, 3ª ed., pág. 7, e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 5ª ed., pág. 498.
[4]Ainda Antunes Varela, ob. cit., págs. 498/499.