Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
420/10.2TBTVD-A.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: CHEQUE
TÍTULO EXECUTIVO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/04/2014
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Pretendendo o recorrente que o tribunal ad quem proceda à alteração da decisão do tribunal de 1 ª instância sobre a matéria de facto, tem de indicar, de acordo com o disposto no artigo 685º-B, nº1, do CPC, além dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, quais os concretos meios de prova que impunham decisão sobre os apontados pontos de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que o incumprimento do ónus assinalado do nº 2 do citado normativo, conjugado com o nº 2 do artigo 522º-C do mesmo diploma legal, implica a rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto.
2. O documento particular que contem o reconhecimento de uma dívida, assumida pelo devedor, pode ser dado à execução, mesmo que dele não conste a causa da obrigação, devendo, neste caso, o exequente alegar no requerimento executivo essa causa da obrigação.
3. Se a relação obrigacional subjacente respeitar a um contrato de mútuo, nulo por vício de forma, o cheque sem valor cartular pode constituir título executivo da restituição da quantia mutuada, não em execução do mútuo, mas como consequência legal da nulidade, com base no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil e Assento nº 4/95, de 28.03.1995.
4. O artigo 292º do Código Civil, consagra o princípio do favor negotii, privilegiando a manutenção da parte sã do negócio, fazendo apelo à vontade conjectural dos contraentes, no sentido de fazer valer o que elas teriam querido se se tivessem apercebido de que o negócio era parcialmente inválido.
5. Mas, por definição, o instituto da redução do negócio jurídico só opera nos casos de invalidade parcial, estando afastada a possibilidade de redução do contrato de mútuo, cuja nulidade decorrente de vício de forma afecta todo o contrato.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.    RELATÓRIO

MANUEL -------    e MARIA -------- , residentes na Rua -----, vieram deduzir oposição, em 17.05.2010, contra ALBERTO -----, residente na Avenida ------, em Lisboa, e ARTUR ------ , residente em ------, por apenso ao processo executivo para pagamento de quantia certa, que estes deduziram contra aqueles, tendente a obter a respectiva extinção do pedido executivo.

Fundamentaram os opoentes, no essencial, a sua pretensão, da seguinte forma:

§ Os exequentes, na qualidade de herdeiros de Antero ----, falecido em 27.02.2007, deram à execução como título executivo, um cheque

emitido pelos executados, no valor de € 206.215,00, alegando que tal quantia corresponde à restituição do capital que lhes foi emprestado por Antero ---- através dum contrato de mútuo que é inválido por vício de forma.

§ Os executados nunca assinaram o aludido contrato de mútuo, que o mesmo é uma montagem com assinatura retirada doutro contrato, que o contrato sempre seria nulo por vício de forma, que o cheque dado à execução foi entregue a Antero ---- para garantia de pagamento de futuros empréstimos e que nunca recebeu o empréstimo em causa, inexistindo qualquer relação subjacente que motivasse a emissão do cheque, o qual não pode assim constituir título executivo.

Por despacho de 16.06.2010, foi rejeitada a oposição, no que respeita à opoente, por extemporânea e ordenada a notificação dos exequentes.

Notificados, vieram os exequentes deduzir contestação, pugnando pela veracidade do contrato e que o cheque foi emitido para restituição do capital efectivamente emprestado, reiterando assim a exposição de factos efectuada no requerimento executivo.

Foi proferido o despacho saneador, abstendo-se o Exmo. Juiz a quo de fixar, quer a matéria assente, quer a base instrutória.

Apresentados os meios de prova, veio o opoente requerer a realização de perícia à letra e assinatura do cheque dado à execução, pretensão que foi rejeitada, por despacho de 09.02.2011, por se entender que: (…) os executados assumem que assinaram o cheque junto aos autor, sendo que o cheque foi passado em branco, não se vislumbra a pertinência da perícia requerida. Por outro lado foi rejeitada a oposição à execução no que respeita à executada Maria ----- e atento o cheque junto aos autos verificamos que o mesmo é emitido sobre uma conta solidária, desta forma é totalmente desnecessária a perícia requerida relativamente ao cheque. Nestes termos, indefiro o requerido.

   Iniciada a audiência de discussão e julgamento, em 02.03.2011, foi, no decurso da mesma, ordenada a junção do original do contrato, conforme já havia sido determinado no despacho de 09.02.2011, o que os executados cumpriram, juntando o aludido original, conforme requerimento de 11.03.2011.

Notificado o executado, veio este, por requerimento de 30.03.2011, invocar a falsificação da assinatura constante do contrato, nunca tendo aposto a sua assinatura do aludido documento, insistindo na realização da perícia à assinatura constante do contrato.

                        Na sessão de julgamento, realizada em 6 de Abril de 2011, o Exmo. Juiz do Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

"Na sequência do anterior despacho e nada mais tendo sido requerido quanto ao

objecto da perícia determino se proceda à realização da perícia à assinatura que consta do contrato junto aos autos a fls. 99 tendo a mesma por objecto avaliar o grau de probabilidade da assinatura que aí consta em nome do executado Manuel ------, ter sido efectuado pelo seu próprio punho, sendo a perícia solicitada ao Núcleo de Ciências Forenses.

Para a realização da perícia além do original do cheque que consta a fls. 40 dos autos na qual consta a assinatura do executado reconhecido pelo próprio na oposição, deverá o executado juntar aos autos o original da procuração que consta a fls. 10 dos autos emitida em 13 de Maio de 2010, bem como o original do contrato que junta como documento nº 1 da oposição constante a fls. 11 dos autos, documento esse que foi junto pelo próprio e onde também consta a sua assinatura.

Mais se determina, aproveitando a presença do executado a imediata recolha de autógrafos ao mesmo.

Em 09.06.2011, foi junto aos autos o relatório pericial remetido pelo Núcleo de Ciências Forenses, no qual se concluiu como provável, a verificação da hipótese de a escrita da assinatura contestada aposta no documento em causa ser do punho de Manuel ------.

Foi dada prossecução à audiência de julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, constando do Dispositivo da Sentença o seguinte:

Pelo exposto julgo a oposição improcedente, porque não provada, e, em consequência, determino o prosseguimento da execução.

Inconformado com o assim decidido, o opoente interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

                        São as seguintes as CONCLUSÕES do recorrente:


i. Deverá ser atribuído efeito suspensivo ao presente Recurso.


ii. A matéria de facto relativa às alíneas A); B); C) e D) foram incorrectamente julgadas, porquanto os elementos de prova existentes nos autos impunham que os mesmos fossem julgados Não Provados.


iii. A análise do cheque indicia que o mesmo foi entregue assinado em branco e posteriormente preenchido abusivamente.


iv. Confrontando a experiencia comum, os usos e costumes e os restantes contratos juntos aos autos é absolutamente inverosímil que o falecido pai dos Exequentes tivesse celebrado um contrato sem cobrar quaisquer juros porquanto nos anteriores sempre cobrou juros usurários.


v. É inverosímil e contrario aos empréstimos anteriores o valor do empréstimo de 206.215,00 Euros, ainda mais sem a cobrança de quaisquer juros, ou seja os valores dos empréstimos serão sempre arredondados ao algarismo do milhares de euros e não como pretendem os exequentes à unidade de euros.


vi. O cheque dado à execução foi entregue apenas como garantia dos anteriores e para eventuais futuros empréstimos.


 vii. A perícia realizada à assinatura do Executado não indicou um grau de certeza conclusiva que permita ao Tribunal "a quo" basear a decisão da matéria de facto no seu resultado. Devendo ser renovada este meio de prova por forma a permitir obter outro grau de certeza.


viii. O Tribunal "a quo" não atendeu a todos os meios de prova que tinha aos eu dispor, nomeadamente aos contratos anteriormente celebrados entre o falecido pai dos Exequentes e o Executado, e concretamente quanto à forma de escrita dos mesmos.


ix. O Tribunal "a Quo" decidiu incorrectamente a matéria de direito aplicável ao tipo de título executivo dado à execução, quando decidiu que o cheque poderia valer como documento particular mesmo que a obrigação alegadamente subjacente ao mesmo não estivesse vencida e portanto não fosse exigível.

x. A execução deveria ter sido indeferida por falta de título executivo

Pede o apelante que a sentença recorrida seja revogada, e se ordene a renovação do meio de prova produzido quanto à autenticidade da assinatura do executado no contrato dado à execução, nomeadamente a perícia a realizar preferencialmente pelo Laboratório de Policia Científica e que o recurso de apelação seja julgado procedente e, em consequência, alterada a decisão da matéria de facto julgando-se como não provada a matéria de factos das alíneas A); B); C); e D) e consequentemente julgar procedente a Oposição do Executado e Indeferir a Execução.

Pede ainda, o recorrente, subsidiariamente, que a execução seja indeferida por falta de título executivo em virtude de não estar vencida e não ser exigível a obrigação subjacente ao documento particular — cheque – dado à Execução.

                        Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

   Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

***

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

 Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (artigo 635º, nº 4 do NCPC), é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

 Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

i. DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA E DOS ESPECÍFICOS ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO IMPOSTOS AO RECORRENTE.

ii. A VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS.

III . FUNDAMENTAÇÃO


A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provados na sentença recorrida o seguinte:


1. Os exequentes, na qualidade de herdeiros de Antero -----, falecido em 27.02.2007, deram à execução como título executivo, um cheque do Banco Millennium BCP, com o n.° ----521, datado de 30.04.2007, no valor de € 206.215,00, com assinaturas apostas pelos executados — cujo original consta de fls. 40 destes autos;

2. Antero -----, na qualidade de primeiro outorgante, celebrou com os aqui executados — na qualidade de segundos outorgantes - um contrato escrito, datado de 15.04.2006, no qual fixaram as seguintes cláusulas:
1ª
O primeiro outorgante empresta aos segundos outorgantes a quantia de € 206.215,00 (duzentos e seis mil duzentos e quinze euros);

Os segundos outorgantes declaram ter recebido do primeiro outorgante, por empréstimo, a quantia supra referida e dela se confessam, solidariamente entre si devedores.

O empréstimo é feito pelo prazo de 12 meses, com início em 15 de Abril de 2006, renovando-se por sucessivos períodos de igual prazo, salvo se os segundos outorgantes forem interpelados, por qualquer meio, pelo primeiro outorgante para que a dívida seja paga no termo do prazo.
Parágrafo único: A interpelação para pagamento terá de ser feita com pelo menos seis meses de antecedência.

Se e quando interpelados os segundos outorgantes não pagarem pontualmente a quantia em dívida, este documento serve como título

executivo para todos os efeitos legais.

3. O cheque referido em 1. destina-se ao pagamento da quantia mencionada no contrato referido em 2.;

4. Os executados assinaram com o falecido Antero ---- contratos de mútuo remunerados em que o valor do empréstimo, os juros e o prazo eram manuscritos;

5. O contrato referido em 2. não foi celebrado por escritura pública;

***

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i.     DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA E DOS ESPECÍFICOS ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO IMPOSTOS AO RECORRENTE.

À regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1ª instância, contrapõe-se a excepção decorrente do artigo 712º do CPC que permite a alteração da matéria de facto nos seguintes casos:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravações dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 685º-B, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

Sempre que haja sido gravada a prova produzida em audiência, o Tribunal da Relação dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.

Considerando que no caso vertente a prova produzida em audiência foi gravada, sempre poderá este Tribunal da Relação proceder à reapreciação da prova.

E será que o recorrente deu observância aos específicos ónus de impugnação legalmente exigidos ?

Preceitua o artigo 685º-B, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo DL n.º 303/2007, de 24-8, que:

1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto considera que incorrectamente julgados; 

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe ao recorrido, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
E, decorre do nº 2 do artigo 522º-C do CPC que: Quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento.
Como esclarecem LEBRE DE FREITAS-ARMINDO RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, 53, o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da adoptada pela decisão recorrida.
Explicitava-se desde logo no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 que a consagração do duplo grau de jurisdição em matéria de facto implica a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita a delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação. O especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre dos princípios da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, e visa assegurar a seriedade do recurso, obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos do Tribunal da Relação e a consequente ampliação das decisões proferidas em 1ª instância possam ser utilizados para fins meramente dilatórios, com o fim de protelar o trânsito em julgado de uma decisão.

Para CARLOS F. O. LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 465 o ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se do seguinte modo:

a) Na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito de recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento – o ponto ou pontos da matéria de facto – da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;

b) No ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios (constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente.

A exigência legal implica, consequentemente, a indicação, pelo recorrente, de forma precisa, clara e determinada, dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal de 1ª instância. E, implica ainda a fundamentação dessa sua divergência com expressa referência às provas produzidas, i.e., indicando os pontos concretos de prova eventualmente desconsiderados, bem como a indicação dos pontos da gravação com referência ao que ficou expresso na acta da audiência de discussão e julgamento.

                        E, compreende-se esta rigorosa exigência legal visto que, como acima ficou dito, e que é claramente evidenciado no preâmbulo do diploma que veio regular a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, que a intenção do legislador ao permitir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não foi consagrar a simples repetição das audiências no Tribunal da Relação, mas detectar e corrigir concretos, apontados e fundamentados erros de julgamento.

Como se defende no Ac. STJ de 02.12.2008 (Pº 08A3489), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt., (…) o que o legislador quis foi proibir a impugnação genérica da decisão da matéria de facto, mediante simples manifestação de discordância.

  A não satisfação por parte do recorrente dos rigorosos ónus previstos no artigo 685º-B do CPC implica a rejeição imediata do recurso.
  A exigência da especificação pelo recorrente dos pontos concretos que considera incorrectamente julgados impõem-se para que o recorrido e o tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer nitidamente o objecto da impugnação, os factos sobre que esta incide. A parte contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe incumbe, na resposta ao recurso, indicar os depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente; o Tribunal ad quem carece de o saber para poder reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna.

   O recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deve procurar demonstrar o erro de julgamento dessa matéria, demonstração que implica a produção de razões ou fundamentos que, no seu ponto de vista, tornam patente um tal erro. Tem, por isso, o recorrente de explicar e desenvolver os fundamentos que mostram que a decisão de 1ª instância está incorrecta quanto ao julgamento da matéria de facto, explicação que deve consistir na apreciação dos meios de prova que justificam decisão diversa da impugnada, o que implica, necessariamente, a indicação do conteúdo dos meios de prova invocados, a sua relevância e valoração.
Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com todo o rigor, sendo certo que o ónus de indicar claramente os pontos determinados da matéria de facto que o recorrente reputa de mal julgados e de fundamentar a imputação do erro de julgamento da decisão de facto, indicando claramente os concretos meios probatórios, constitui uma simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, a própria seriedade do recurso.

                        No caso em apreço, o apelante pretende impugnar a matéria de facto dada como provada, mas a verdade é que não elucida de forma precisa, clara e determinada, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que foram mal apreciados, desvalorizados ou deficientemente analisados pelo tribunal de 1ª instância, com relação a tais concretos pontos de facto que impunham decisão diversa da adoptada pela decisão recorrida.

Invoca o recorrente o que terá sido alegado e confirmado, pelo menos por uma testemunha, sem que a identifique, dizendo que o Tribunal ignorou a forma de elaboração dos contratos pelo pai do exequente, sem que identifique que prova foi efectuada nesse sentido. Alega que da simples análise a olho nu se conclui que a caligrafia e a caneta utilizada na assinatura são divergentes e aborda as regras da experiência e os usos e costumes para defender que o teor do documento é inverosímil.

Contesta, por fim, o apelante, o exame pericial levado a efeito e requer a renovação deste meio de prova, ao abrigo do nº 3 do artigo 712º do CPC.

 Verifica-se, in casu, que a motivação da decisão sobre a matéria de facto se mostra apreciada de forma correcta. Analisou o julgador de 1ª instância a prova produzida, explanou coerentemente as razões que levaram a considerar provada a factualidade que o apelante visa impugnar, e analisou ainda, de forma crítica, os motivos que o levaram a considerar não provado que:
a. Os executados nunca assinaram o contrato referido na al. B) dos factos provados;
b. O valor do empréstimo, os juros e o prazo eram manuscritos em todos os contratos de mútuo que os executados assinaram com o falecido Antero ------;
c. O contrato referido na al. B) dos factos provados é uma montagem com outro contrato eventualmente assinado pelos executados;
d. Os exequentes forjaram o contrato referido na al. B) dos factos provados para justificar a emissão do cheque junto como título executivo;
e. O cheque referido em A) dos factos provados foi entregue pelo oponente ao falecido Antero ---- em branco para garantia de cumprimento de um dos empréstimos que lhe foi realizado e que acabou por ser liquidado, mantendo-se o cheque na posse do Antero ------  para futuros empréstimos;
f. O falecido Antero ----- nunca emprestou aos executados a quantia de € 206.215,00.

Ora, não tendo sido observada a mencionada exigência legal, estamos perante uma impugnação genérica da decisão da matéria de facto, mediante simples manifestação de discordância, o que o legislador rejeitou ao impor, a cargo do apelante, os concretos ónus previstos no citado artigo 685º-B do CPC.

Pretendendo a lei, ao impor ao recorrente os citados ónus, desmotivar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto, a sua não observância acarreta a rejeição do recurso – cfr. a este propósito, JOSÉ LEBRE DE FREITAS E ARMINDO RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, 55 e FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 170.

Assim, e muito embora o apelante indique qual a matéria de facto que visa impugnar, a verdade é que não elucida – nem mesmo no corpo das alegações - os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada que, em sua opinião, impunham decisão diversa da adoptada pela decisão recorrida, ou seja, quais os concretos meios probatórios que o recorrente entende não terem sido devidamente considerados, omitindo igualmente qualquer indicação das passagens da gravação em que se funda, nem tão pouco procedeu à respectiva transcrição, por forma a ter em conta, no reexame das provas, os concretos meios probatórios que o recorrente entende não terem sido devidamente considerados.

  Não tendo sido, em suma, observada a mencionada exigência legal, fica-se sem saber que específicas e relevantes provas foram apresentadas e que não foram tidas em consideração, por forma a se poder concluir pela eventual verificação de erro de julgamento.

De resto, mesmo a invocação dos demais contratos que foram apresentados pelos opoentes, que são documentos particulares, os quais conjugados com a restante prova produzida, mormente a testemunhal e pericial, não lograram convencer o tribunal a quo, por forma a proferir uma decisão diferente com relação à factualidade apurada, como se mostra da fundamentação da matéria de facto exarada na sentença recorrida.

Ademais, e como acima ficou dito, na motivação da decisão de facto que os autos patenteiam, não se refugiou o julgador de 1ª instância em afirmações genéricas, justificou adequadamente a sua convicção, por referência às provas produzidas – documental, testemunhal e pericial - ponderando e analisando, criticamente, tal prova e conferindo nesse balanceamento um valor positivo e esperado à prova pericial realizada nos autos, fazendo uso do poder que lhe está conferido pelo artigo 655º do Código de Processo Civil.

Impedido está, portanto, este Tribunal da Relação de reponderar a prova produzida em que assentou a decisão recorrida, com relação à matéria alegada, não tendo aqui qualquer aplicação o disposto no nº 3 do artigo 712º do CPC, ordenando-se a realização de uma nova prova pericial.

Aliás, a realização de uma segunda perícia justifica-se quando há inexactidão dos resultados da primeira, como se conclui da parte final do n.º 3 do artigo 589.º do CPC, isto é, quando houver razões para crer que a peritagem inicialmente realizada não merece credibilidade, que foram emitidos sobre os factos em análise juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem, o que manifestamente não se verifica no caso em apreço.

Assim sendo, entende-se que permanecerá inalterável a prova fixada pelo Tribunal a quo, e tanto mais que inexiste motivo para alteração oficiosa da decisão sobre a matéria de facto.

Importa então proceder à subsunção jurídica face à matéria de facto dada como provada, por forma a ponderar se assiste razão ao recorrente quando defende que a sentença recorrida relativamente a ele, apelante, jamais poderia ser condenatória, devendo a mesma ser alterada conduzindo à absolvição do recorrente.

***

ii)     DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA ADUZIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS

Insurge-se o executado/apelante contra a sentença recorrida, por considerar - se bem se entende a argumentação aduzida - que, após ter sido julgado nulo o contrato de mútuo, não se poderia ter ordenado o prosseguimento da execução, devendo esta, ao invés, ser indeferida por falta de título executivo.

Vejamos,

Como resulta do nº 1 do artigo 45º do Código de Processo Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da execução.

O título executivo pode ser definido como o documento donde resulta a exequibilidade de uma pretensão e, por conseguinte, a possibilidade da realização coactiva da correspondente prestação através de uma acção executiva. Tem, por isso, uma função constitutiva, na medida em que atribui exequibilidade a uma pretensão, possibilitando que a correspondente prestação seja realizada coactivamente.

            O título executivo, para além de uma função delimitadora e uma função probatória, exerce também uma função constitutiva, dado que atribui exequibilidade a uma pretensão, permitindo que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal.

            A acção executiva visa, pois, a realização coactiva de uma prestação ou de um seu equivalente pecuniário.

  A exequibilidade da pretensão, na qual se contém a faculdade de exigir a prestação, e, portanto, a possibilidade de realização coactiva desta prestação, deve resultar do título, devendo esta incorporar o direito do credor de obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação.

Nos casos em que o documento que serve de suporte ao accionamento executivo não incorpora a faculdade de exigir o cumprimento de uma prestação, o título correspondente é extrinsecamente inexequível.

Por outro lado, a exequibilidade intrínseca diz respeito à obrigação exequenda e às suas características materiais. Esta obrigação tem, desde logo, de subsistir no momento da execução: se tiver sido atingida por qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo que possa ser alegado pelo executado, a sua exequibilidade intrínseca tem-se por excluída.

A inexequibilidade extrínseca - do título - e intrínseca - da obrigação exequenda - constituem idóneo fundamento de oposição à execução. 

                        Mas, como é sabido, na acção executiva, a causa de pedir consiste no facto jurídico fonte da obrigação accionada, não sendo o título (executivo) ou documento mais do que especial condição (probatória, necessária e suficiente) da possibilidade de recurso imediato a esta espécie de acção, enquanto base da presunção da existência do correspondente direito – v. a este propósito Ac. STJ de 27.09.2001 (Pº 01B2089), acessível em www.dgsi.pt.

A causa de pedir não é, assim, o documento que corporiza o título executivo, mas antes a relação substantiva que está na base da sua emissão.

Estabelece o artigo 46º do Código Civil a regra da tipicidade, ao dispor que à execução apenas podem servir de base os títulos ali enumerados.

De entre os vários títulos previstos no citado normativo, interessa para o caso em análise o mencionado na alínea c), ou seja, os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constante, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.

In casu, o cheque dado à execução, no valor de € 206.215,00, e do qual consta como data de emissão, 30.04.2007, por não ter sido apresentado a pagamento na entidade bancária, perdeu e sua natureza cambiária.

Ainda que não valendo o cheque como título cambiário, o mesmo pode consubstanciar um documento particular previsto na alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil.

A jurisprudência nem sempre foi pacífica quanto à questão de saber se, extinta a obrigação cambiária, o título cambiário dado à execução, nomeadamente um cheque, funciona como título executivo, enquanto documento particular.

                        Para uma corrente jurisprudencial, letra, livrança ou cheque que não reúnam condições para valer como título de crédito, não podem ser constitutivos ou certificativos de uma obrigação, logo, não podem servir de título executivo, defendendo-se que o propósito do legislador da reforma processual de 1995/1996 não visou alterar o regime consagrado na LULL nem modificar os requisitos de exequibilidade desses títulos, razão pela qual não se pode defender que deles decorra a declaração de constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias – cfr. a título meramente exemplificativo, Acs. STJ de 29.02.00, CJ/STJ 2000, I, 124, de 16.10.01, CJ/STJ 2001, III, 89, de 20.11.03, CJ/STJ 2003, III, 154; Ac. R.P. 25.01.2001, CJ 2001, I, 192 e Ac. R.L. de 26.02.2004 (Pº 1090/2004-8), este acessível na Internet no sítio www.dgsi.pt.

                        Outra corrente jurisprudencial tem propugnado que, tendo em consideração a ampliação dos títulos executivos resultante da redacção do artigo 46º, alínea c) do CPC (anterior ao CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6), extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, estes mantêm a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo – cfr., também a título meramente exemplificativo, Acs. do STJ de 18.01.01, CJ/STJ 2001, I, 71, de 29.01.02, CJ/STJ 2002, I, 64, de 16.12.04, CJ/STJ 2004, III, 153, e ainda Acs. STJ de 30.10.03 (Pº P03B3056) e de 19.01.2004 (Pº 03ª3881), e Ac. R.L. de 14.04.2005 (Pº 2070/2005-6); Acs. R.P. de 26.10.2004 (Pº JTRP 00037288) e de 13.02.2007 (Pº JTRP00040049) e Ac. R. C. de 26.06.2007 (Pº 2432/05.9TBPMS.C1), estes últimos acessíveis no citado sítio da Internet e mais recentemente, e a título meramente exemplificativo, Ac. STJ 27.05.2014 (Pº 268/12.0TBMGD-A.P1.S1).

Esta jurisprudência tem seguido a posição de LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª ed., 61-62, que considera que “ (…) Quando o título executivo mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente. Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reporta emerja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221-2 Código Civil e 223-1 Código Civil) No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida (artigo 458º do Código Civil) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada na petição executiva e poder ser impugnada pelo executado (…)”.

                                    Com efeito, decorre no nº 1 do artigo 458º do Código Civil que “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.

Resulta, pois, do aludido normativo, a presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.

                                    Salienta a este propósito ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 6ª ed., 387, que “a lei consente que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e validade da relação fundamental. É consagrada, todavia, uma simples presunção, pelo que a prova em contrário produzirá as consequências próprias da falta, ilicitude ou imoralidade da causa dos negócios jurídicos”.

                        Assim, face a uma declaração de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento da dívida, presume a lei a existência da respectiva causa, estando o credor exonerado do respectivo ónus de prova, de harmonia com o disposto no artigo 344º, nº 1 do Código Civil.

Como se refere no Ac. STJ de 04.02.2014 (Pº 2390/11.0TBPRD-A.P1.S1) “o nº 1 do artº 458º do C.Civil prevendo uma presunção, nos termos do artº 350º do C.Civil dispensa o credor de prova da referida causa, mas não dispensa a sua alegação”.

Finalmente, uma outra corrente jurisprudencial considera que as letras, livranças ou cheques, ainda que não reúnam condições para valerem como títulos de crédito, podem servir de título executivo, já que esse título cambiário implica o reconhecimento unilateral de uma dívida e, ao convocarem o disposto no artigo 458º do CC, defendem que nem sequer é necessária a invocação da relação subjacente, sendo precisamente neste aspecto que esta corrente jurisprudencial difere da anterior – v. Ac. STJ de 11.05.1999, CJ/STJ 1999, II, 88, Ac. R.L. de 27.06.2002, CJ 2002, III, 121 e Ac. R.C. de 12.06.2007 (Pº 22/06.8TBSVV.A.C1), acessíveis no mesmo sítio da Internet.

Neste mesmo sentido se pronunciou ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Títulos Executivos, Revista “Themis”, ano IV – Nº 7 (2003), 60-65, salientando “(…) encarados os documentos (impressos de letra, livrança ou cheque) sem a valoração consentida pela sua sujeição ao regime jurídico das respectivas Leis Uniformes, facilmente se pode visionar em cada um deles uma promessa de cumprimento ou o reconhecimento de uma dívida: na livrança a promessa de pagamento da quantia, por parte daquele que a subscreve, a favor de quem nela é indicado; na letra, a promessa (do aceitante) de que pagará a quantia àquele que figura na qualidade de sacador; mesmo num cheque (nominativo),  com  relativa   facilidade   se  antolha   por   detrás  da ordem  de pagamento dada pelo sacador ao banco sacado, o reconhecimento, ainda que por interposta pessoa, de uma dívida.

 Em qualquer destas situações, abstraindo da génese de cada um dos referidos documentos, jorra deles uma declaração de dívida que, independentemente da sua causa, vincula o respectivo subscritor ao pagamento de uma determinada quantia, sem prejuízo da invocação, no âmbito da defesa, de facto impeditivos dos efeitos pretendidos (…)”.

Sufraga-se a segunda das identificadas correntes, posição que é, aliás, dominante na jurisprudência.

                        Decorre, de resto, do preceituado no artigo 810º, nº 3 alínea e) do CPC, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20/11 que, no requerimento executivo deverá constar a exposição sucinta dos factos que constituem o pedido, quando os mesmos não constem do título executivo, o que sucede, em regra, nos títulos de crédito.

  Ora, no caso vertente, os exequentes, no seu requerimento executivo, desde logo referem:

Os executados vêm executar o cheque nº 7130625521 do Banco Millennium BCP emitido pelos executados, com data de 30/04/2007, a favor do Senhor Antero Leal, no montante de € 206.215,00 (duzentos e seis mil e duzentos e quinze euros), que ora se junta como Doc. 1, acrescido dos juros legais vencidos, desde a data do cheque, e vincendos até ao integral pagamento.

O Senhor Antero Leal faleceu em 21 de Fevereiro de 2007, na freguesia do Lumiar do Concelho de Lisboa, conforme Assento de Óbito datada de 1 de Março de 2007, que ora se junta como Doc. 2. Os exequentes são os únicos e universais herdeiros de Antero Leal e, deste modo, titulares do direito de executar a quantia em dívida, conforme fotocópia certificada de Habilitação de Herdeiros que ora também se junta como Doc. 3.

O Senhor Antero Leal, pai dos exequentes, celebrou um contrato de mútuo com forma escrita no montante acima indicado no primeiro parágrafo a favor dos executados, em 15 de Abril de 2006, que ora se junta como Doc. 4. Todavia, o conselho jurídico das partes verificou a falta de validade jurídica do contrato e acordaram emitir cheque para 30 de Abril de 2007 para restituição sem juros do dinheiro recebido. Entretanto, antes do vencimento do cheque, o Senhor Antero Leal faleceu, e, por decurso do tempo e vicissitudes da herança, o cheque não foi apresentado ao banco e por os executados terem sempre prometido pagar”.

Identificaram, portanto, os exequentes, o negócio subjacente ao título e juntaram aos autos documento comprovativo do alegado.

E, ficou provado nos autos que o cheque que serve de título executivo foi assinado pelos executados e que o mesmo se destinava ao pagamento da quantia mencionada no contrato de mútuo celebrado entre o falecido Antero Leal, na qualidade de mutuante (do qual os exequentes são herdeiros) e os executados, na qualidade de mutuários - v. Nºs 1 a 3 da Fundamentação de Facto.

Verifica-se assim que, não obstante estar em causa um cheque que perdeu a sua natureza cambiária, o que está na base da emissão daquele e do invocado crédito exequendo é o aludido contrato de mútuo.

  A relação causal respeita, pois, a um contrato de mútuo, nulo por vício de forma, nos termos do artigo 220º do Código Civil, porquanto, celebrado em 15.04.2006, pelo valor de € 206.215,00, teria de ser formalizado por escritura pública, conforme decorre do artigo 1143º do CC, na redacção resultante do Decreto-Lei nº 343/98, de 6/11.

  Defende, é certo, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva depois da Reforma da Reforma, 5ª ed., 72 que "no plano da validade formal, é óbvio que, quando a lei substantiva exija certo tipo de documento para a sua constituição ou prova, não se pode admitir execução fundada em documento de menor valor probatório para o efeito de cumprimento de obrigações correspondentes ao tipo de negócio em causa. Não pode, por exemplo, ser admitida execução para entrega de um andar com base em documento particular de compra e venda".

Também MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Acção Executiva Singular, 70, alinha no mesmo diapasão, quando refere que "a invalidade formal do negócio jurídico afecta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respectivo documento como título executivo. Essa invalidade formal atinge não só a exequibilidade da pretensão, como também a exequibilidade do título",

  A questão que se coloca consiste em saber se o cheque dado à execução, sem valor cartular, mas enquanto documento particular, pode constituir título executivo da restituição da referida quantia, não por força do mútuo, mas por imposição legal, com base no artigo 289º, nº 1 do CC.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores, designadamente do STJ, tem respondido, em geral, afirmativamente a esta questão, mormente nos casos em que o título executivo é constituído por declaração ou reconhecimento de dívida proveniente de contrato de mútuo nulo por vício de forma – v. a título meramente exemplificativo e com referência aos arestos mais recentes, Acs. STJ de 19.02.2009 (Pº 07B4427),

de 13.07.2010 (Pº 6357/04.7TBMTS-B.P1.S1) e de 27.05.2014 (Pº 268/12.0TBMGD-A.P1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Concorre para esse entendimento a jurisprudência firmada pelo STJ, no Assento nº 4/95, de 28.03.95, publicado na I Série do DR de 17.05.1995 -  hoje com valor de acórdão de uniformização – que decidiu: “Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado como pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do art. 289º do Cód. Civil.”

                        E, conforme resulta do artigo 289º, nº 1 do C.Civil, a declaração da nulidade de um negócio tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo aquilo que tenha sido prestado.

Como se decidiu no supra citado Ac. STJ de 27.05.2014 (Pº 268/12.0TBMGD-A.P1.S1). “No requerimento executivo mostram-se alegados os factos que configuram a relação causal, que no caso consiste na celebração de dois contratos de mútuo, que do ponto de vista substantivo, podem ser declarados nulos por vício de forma, se o respectivo regime estiver subordinado ao regime do direito civil, já que atendendo à data em que foram celebrados e respectivos montantes estavam sujeitos a escritura pública. Assim, apesar de prescrita a obrigação cambiária, o título, mero documento particular preenche os requisitos intrínsecos de exequibilidade na medida em que o exequente visa a restituição das quantias mutuadas efeito que também decorre da nulidade do contrato e que resulta da lei, nos termos do art. 289º CC “.

                        Entende-se, portanto, que a nulidade do contrato de mútuo, por inobservância da forma legal em face do seu valor, determinante da emissão do título e que constitui a efectiva causa de pedir que serve de fundamento à execução, não determina a inexequibilidade do título executivo, à luz do que dispõe o artigo 46º, nº 1 al. c) do C.P.C. anterior ao CPC aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de Junho.

  É que, ainda assim existe um crédito do mutuante que se dirige à restituição daquilo que prestou, o que decorre da nulidade do contrato e da lei, pelo que sempre podem os exequentes, enquanto herdeiros do mutuante, reaver o montante mutuado, de acordo com o disposto no artigo 289º, nº 1 do C.Civil, sem necessidade de previamente intentarem uma acção declarativa, pois não faria sentido remeter os exequentes para uma nova acção declarativa, com vista ao reconhecimento de um direito, cujo reconhecimento pelo devedor está comprovado no documento apresentado como título executivo, negando qualquer força executiva ao mesmo, tanto mais que são distintas a força executiva do documento e a sua força probatória legal – cfr., neste mesmo sentido, entre muitos, Acs. R.C. de 17.06.2004  (Pº 6322/11.8TBLRA-A.C1), de 05.05.2009  (Pº 605/08.1TBCBR-B.C1),   de  24.04.2012  (Pº 169/10.6TBCSC-B.C1)   e   de 17.06.2014 (Pº 6322/11.8TBLRA-A.C1); Acs. R.L. de 08.05.2012 (Pº 5188/09.2TBCSC-A.L1-1), e de 06.06.2013 (Pº 22577/09.5YYLSB-A.L1-6); Ac. R.P. de 22.04.2013 (Pº 733/12.9TBPFR.P1); Acs. R.G. de 15.03.2011 (Pº 341/08.9TBGMR-A.G1) e de 13.03.2014 (Pº 7097/12.9TBBRG-A.G1), e para além da citada jurisprudência do STJ, cfr. também, Acs. STJ de 01.02.2011 (Pº 7273/07.6TBMAI-A.P1.S1) e de 13.07.2010 (Pº 6357/04.7TBMTS-B.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

                        Nestes termos, forçoso é concluir que o cheque dado à execução pelos exequentes, apesar de não valer como título cambiário, subsiste como título executivo, enquanto documento particular, dotado de força executiva, por se traduzir no reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado, derivada de um contrato de mútuo, nulo por falta de forma, sendo susceptível de basear a acção executiva intentada contra os executados/opoentes, tal como é consentido pelo artigo 289º, nº 1 do C.C., pelo que improcede, o que a tal propósito se infere da apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

*

Invocam também os apelantes a violação do disposto no artigo 292º do Código Civil, por entenderem que deveriam prevalecer as cláusulas do contrato de mútuo, nulo por falta de forma, designadamente o que decorre da cláusula 3ª.

Muito embora o opoente/recorrente nunca antes tenha formulado qualquer pretensão no sentido da redução do negócio, só invocando o disposto no artigo 292º do Código Civil no recurso de apelação, o que sempre se poderia entender que se trataria de uma questão nova, cujo conhecimento estaria vedado ao tribunal de recurso, sempre se dirá que o preceituado no aludido normativo não tem qualquer aplicação ao caso em análise.

É certo que a lei consagra abertamente o princípio do favor negotii, privilegiando a manutenção da parte sã do negócio, fazendo apelo à vontade conjectural dos contraentes, no sentido de fazer valer o que eles teriam querido se se tivessem apercebido de que o negócio era parcialmente inválido, não podendo manter-se integralmente.

Mas, não obstante no contrato de mútuo, nulo por falta de forma, se mencionar que o empréstimo seria efectuado pelo prazo de 12 meses, com início em 15 de Abril de 2006, renovando-se por sucessivos períodos de igual prazo, salvo se os executados (ali 2ºs outorgantes) forem interpelados para que a dívida seja paga no termo prazo, com a antecedência de pelo menos seis meses, a verdade é que nunca se poderia concluir da prova produzida que seria essa a vontade das partes.

Com efeito, o que resultou apurado foi que os executados apuseram as respectivas assinaturas no cheque apresentado como título executivo, datado de 30.04.2007, precisamente destinado ao pagamento do aludido empréstimo que teve o seu início em 15.04.2006, logo, a pretensão do recorrente vertida na apelação nunca faria qualquer sentido.

Ademais, dispõe o artigo 292º C. Civil que a nulidade parcial do negócio não determina a sua invalidade total, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada, o que significa que a redução só não deve operar-se, se e quando, se deva ter por demonstrado que as partes não teriam celebrado o contrato sem a parte inválida.

                 

                        Sucede que, por definição, o instituto da redução do negócio jurídico só opera nos casos de invalidade parcial, pelo que no caso dos autos sempre estaria afastada a possibilidade de redução do contrato de mútuo, cuja nulidade, decorrente de vício de forma, afecta todo o contrato.

Destarte, julga-se totalmente improcedente a apelação, confirmando-se in totum a sentença recorrida.

*

  Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelas custas respectivas - artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (artigo 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).

***

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida e em condenar os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2014

Ondina Carmo Alves - Relatora

Eduardo José Oliveira Azevedo

Olindo dos Santos Geraldes  (vencido nos termos da

                                                            declaração junta)

DECLARAÇÃO DE VOTO

Admitindo que o cheque, como mero documento particular, possa constituir título executivo, é, no entanto, exigível que o reconhecimento da obrigação pecuniária conste do cheque.

Não exibindo o cheque mais do que uma mera ordem de pagamento do valor nele inscrito, não pode concluir-se, sem mais, que a assinatura aposta no cheque importe o reconhecimento de obrigação pecuniária.

Faltando o reconhecimento da obrigação pecuniária, deixa o cheque de poder revestir a natureza de título executivo.

Reconhecendo embora uma grande controvérsia na jurisprudência, cita-se, no sentido para o qual se propende, designadamente, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de outubro de 2010 (172/08.6TBGRD-A.S1), 27 de novembro de 2007 (07B3685) e 18 de outubro de 2007 (07B3616), todos acessíveis em www.dzsi.pt., assim como o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de fevereiro de 2003 (487/03-6), subscrito pelo próprio como relator.

Assim, surpreendida a falta de título executivo, votei no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Lisboa, 4 de dezembro de 2014

(Olindo dos Santos Geraldes)