Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
494/10.6JDLSB.L1-5
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Iº Para que haja um só crime, (não sendo o mesmo permanente ou de execução continuada) é necessário que não exista mais do que uma resolução criminosa. E para que haja um só crime continuado, tem de existir uma linha de continuidade psicológica que induza à persistência da prática do tipo de crime referente, no quadro de um contexto exterior desculpabilizador, favorável a tal cometimento: uma única resolução criminosa equivale a um só crime, havendo pluralidade de resoluções mas no mesmo circunstancialismo fáctico e psicológico desculpabilizante, também haverá um só crime, mas continuado;
IIº A alteração legislativa ao Código Penal, introduzida pela Lei 59/2007, de 4Set., que aditou o nº3, ao art.30, segundo o qual o disposto no nº2 não abrangia os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa, é pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que se entendia na jurisprudência maioritária, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos;
IIIº No caso sub judice, existindo várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o arguido em dias e horas diferentes, ter accionado e renovado os mecanismos da sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo, foi praticado um crime em cada uma dessas resoluções;
IVº Não existindo uma situação exterior que permitisse concluir pela considerável diminuição da culpa do agente, não estamos perante um só crime continuado;
Vº À pena concreta deverá corresponder uma intervenção penal enformada pelos princípios político-criminais consagrados no art.40, do Código Penal: da prevenção geral positiva ou de integração; da culpa; da prevenção especial positiva ou de socialização; e da humanidade;
VIº Para uma avaliação da medida da pena importa não só considerar os factores relativos ao facto praticado, mas também a personalidade do agente;
VIIº Estando em causa crimes de abuso sexual de crianças, ponderando o bem jurídico violado, o alarme social e insegurança que estes crimes causam na comunidade, a elevada intensidade do dolo e da ilicitude, os danos traumáticos resultantes para as vítimas de 7 e 11 anos de idade, apresenta-se adequada a pena de cinco anos de prisão por cada um de dois crimes do art.171, nº2, do Código Penal e três anos de prisão, por um crime do nº1, do mesmo preceito incriminador, com pena única fixada em seis anos e seis meses de prisão;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
1- No âmbito do processo acima referenciado foi proferido acórdão em 26/10/2010 que decidiu:
a) Condenar o arguido M..., como autor material de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nºs 1 e 2 do Código Penal (CP), na pena de 5 anos de prisão por cada um desses crimes;

b) Operando a requalificação jurídica dos factos da acusação, condenar o arguido M..., como autor material de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1 do CP, na pena de 3 anos de prisão;
c) Em cúmulo jurídico das penas mencionadas de a) a b) condenar o arguido M... na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão (artigo 77º, nºs 1 e 2 do CP);
d) Ordenar a expulsão do território nacional do arguido M..., por um período de 7 anos (artigo 151º, nº 1 da Lei nº 23/2007, de 4-7);
e) Condenar o Arguido nas custas do Processo, (…);
f) Ordenar a oportuna remessa de boletim ao registo criminal [artigo 374º, nº 3, al. d), do Código de Processo Penal];
g) Ordenar que o arguido continue sujeito à medida de coacção de prisão preventiva até ao trânsito em julgado do presente Acórdão [artigos 213º, nº 1, al. b) e 214º, nº 1, al. e) do Código de Processo Penal];
h) Ordenar que se dê conhecimento do presente Acórdão ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras [artigo 191º, nº 1, al. a) da Lei nº 23/2007, de 4-7]; e
i) Declarar perdidos a favor do Estado e ordenar que se proceda à destruição dos três DVD’s que foram apreendidos ao Arguido (artigo 109º, nºs 1 e 3 do Código Penal).

2- O arguido veio interpor recurso desta decisão apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem:
(…)
1. O arguido confessou o crime e mostrou arrependimento.
2. O recorrente não tem antecedentes criminais.
3. O recorrente não agiu em relação as vítimas E... e R..., por meio de violência, ameaça grave ou colocando as crianças inconscientes de forma a impossibilitar de as mesmas resistirem.
4. O recorrente deve ser condenado por um só crime de abuso sexual nos termos do 171 °, n°1 e 2 do C.P. em relação à vítima E..., por este crime ter sido praticado em dois dias seguidos, dias 17 e 18 de Março de 2010 numa pena mínima de três anos;
5. Os factos praticados contra a menor R..., não colocaram em causa o desenvolvimento harmonioso da personalidade por esta ter uma maior noção de censurabilidade dos factos pelo que em relação ao crime de abuso sexual, deverá ser condenado nos termos do artigo 171°. 1, na pena mínima de um ano.
Pelo que, a pena ajustada, mais legalmente correcta face a tudo o exposto e num enquadramento típico — legal, e mais correcto e tendo em atenção todo o circunstancialismo que rodeou a prática do crime, será numa pena de quatro anos de prisão.
(…)
3- O Ministério Público junto do tribunal de 1ª Instância na sua resposta veio dizer que o recurso não merece provimento, devendo ser mantido o acórdão recorrido.
4- O recurso foi devidamente admitido tendo sido fixado o efeito e regime de subida legal.
5- O Exmo. Procurador - Geral da República nesta Instância, no Parecer a que corresponde o art. 417º do CPP veio acompanhar a posição do Ministério Público na 1ª Instância.
6- Cumprido o art.417º do CPP, nada foi dito.
7- Efectuado exame preliminar foram os autos remetidos para conferência.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.
1- O acórdão recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
(…)
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto provada
Da relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. Em hora não apurada de 17-3-2010, E..., nascida em 27-12-2002, entrou na casa habitada pelo Arguido, em Rua …, Arguido que era seu vizinho e que ela já conhecia.
2. Foram para o quarto do Arguido, no qual este tinha uma televisão, que exibia um filme que mostrava homens e mulheres a manterem relações sexuais de cópula entre si, imagens que pelo menos E... viu.
3. O Arguido deitou E... na cama, de barriga para cima, tirou-lhe as calças e as cuecas, tirou o pénis para fora das calças, deitou-se em cima dela e, pelo menos, encostou-o, à vagina daquela.
4. Antes ou após isso o Arguido também meteu o pénis na boca de E.....
5. Em 18-3-2010, quando provinham do “ATL” que ambas frequentavam, E... convidou R…, nascida em 19-8-1998, para irem a casa do Arguido, o que esta aceitou.
6. Aí chegadas, o Arguido franqueou-lhes a porta, elas entraram e foram todos para o quarto dele.
7. O Arguido fechou a porta do quarto com a respectiva chave e ligou a televisão, colocando nela um filme que mostrava homens e mulheres a manterem relações sexuais entre si.
8. Após o Arguido sentou E... em cima da cama, tirou o pénis para fora das calças e meteu-o na boca desta, que ela foi chupando.
9. Seguidamente o Arguido tirou-lhe as calças e as cuecas, ela deitou-se na cama, ou o Arguido deitou-a, e ele pelo menos roçou o seu pénis, primeiro na região da vagina e depois, com E... já virada de costas, na região do ânus desta.
10. Terminadas essas práticas com E..., o Arguido virou-se para R..., que assistia às mesmas, sentada numa cadeira.
11. Disse-lhe para ela lhe chupar o pénis, ao que R... não acedeu.
12. Então o Arguido pegou-a ao colo, deitou-a na cama, de barriga para cima, puxou-lhe para baixo as calças e as cuecas e tentou deitar-se em cima dela.
13. Enquanto o Arguido assim procedeu R... debateu-se, esbracejando e empurrando-o, tendo ele desistido de prosseguir tais práticas, acabando por deixá-la, abrindo a porta do quarto, tendo-se as menores vestido e saído para a rua.
14. Com a sua conduta o Arguido quis manter com as menores E... e R... as citadas práticas de cariz sexual, sabendo que as mesmas tinham idades inferiores a 14 anos e que desse modo, pelas suas poucas idades, atentava contra o livre desenvolvimento das suas personalidades.
15. Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente puníveis.

(da determinação da sanção)
16. O Arguido, de nacionalidade guineense, encontra-se em Portugal desde o ano de 2006, onde entrou por via marítima, sem a respectiva autorização, bem como não tem, nem nunca teve, autorização de residência em Portugal.
17. Vivia em quarto arrendado, que repartia com outro indivíduo, mediante a renda mensal de 125,00 €, que igualmente repartiam.
18. Tem trabalhado indiferenciadamente na área da construção civil, embora não exercesse qualquer actividade à data dos factos.
19. Tem um filho, nascido no ano de 2004, que vive na Guiné, com uma avó.
20. Não tem registo de antecedentes criminais.

2.2. Matéria de facto não provada
De relevante para a discussão da causa não resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. As razões que levaram E... a entrar na casa do Arguido, em 17-3-2010.
2. Que o Arguido tivesse efectivamente metido o seu pénis no interior da vagina E....
3. Que o Arguido e E... ou/e R… tivessem ficado durante algum tempo especificamente a visionar o filme de conteúdo pornográfico que aquele colocou na televisão.
4. Que o Arguido tivesse agido com o propósito de penetrar R... com o seu pénis.

2.3. Motivação da decisão de facto

Além da prática de alguns dos actos que o próprio Arguido assumiu em sede de primeiro interrogatório judicial (a fls. 78, declarações que foram lidas em audiência), assentou o Tribunal nos depoimentos das duas menores, cujo teor, concatenado com a demais prova produzida e que infra se referirá, afigurou-se merecedor de credibilidade conforme a factualidade que se teve por provada.

E... disse que foi a casa do Arguido, que este levou-a para o quarto, onde estava uma televisão acesa, com homens e mulheres a “mocar”, deitou-a na cama, despiu-lhe as calças e as cuecas e começou a “mocar”.
Questionada acerca do significado de “mocar”, disse que ele meteu a “pilinha” na sua “pipita”.
Que no dia a seguir, quinta-feira, foi a casa dele outra vez, com a R..., e que foi igual, que foram para o quarto, a televisão estava acesa ou ele acendeu-a, ele pô-la em cima da cama, despiu-lhe as calças e as cuecas e meteu-lhe a “pilinha” no “rabo” e na “pipita”.
Tendo-lhe sido perguntado, disse que na boca ele não meteu.
Disse ainda que a R... estava lá, a ver, e que depois o Arguido fez-lhe o mesmo a ela, despiu-lhe a roupa, menos a camisola, e começou a “mocar”, metendo-lhe a “pilinha” no “rabo” e na “pipita”.
Que ele depois parou, ela e a R... foram-se embora e ele ficou no quarto.

R... essencialmente disse que vinham do “ATL”, que a E... chamou-a e disse-lhe para irem a casa do “tio Du” (o Arguido), o que fizeram, entraram, ele fechou a porta do quarto, à chave, ligou a televisão, pegou na E... e pô-la em cima da cama, viu a “pilinha” do “Du” e a E... a chupá-la, que depois ele deitou-a na cama e começou a tirar-lhe as calças, altura em que ela disse à E... para não fazer isso, ao que esta lhe respondeu que ia fazer, que é bom, que a mãe dela já tinha feito com o “Du”. Que depois ele deitou a E... na cama, de barriga para cima, deitou-se em cima dela, “apanhou o coiso dele e pôs em cima da E...” e “depois ela também se virou para baixo”.
Que após isso o “Du” disse-lhe a ela para lhe chupar o pénis, o que ela recusou, tendo ele pegado nela, colocado em cima da cama, puxou-lhe as calças e as cuecas para baixo e tentou deitar-se em cima dela, mas, porque ela “não deixou” ele continuar, ele desistiu, abriu a porta, elas vestiram-se e vieram-se embora.

O conhecimento destes factos veio a ser despoletado na Escola por ambas frequentada, no dia seguinte (sexta-feira), em virtude de E... ali estar a chorar, por R... a ameaçar que ia contar à mãe dela o que ela tinha feito, factos que foram presenciados por uma empregada da Escola, que avisou a professora de E..., a qual veio a conversar com esta, que lhe disse que “tinha sido mocada pelo tio Du”, esclarecendo que ele lhe tinha despido a roupa e colocado a “pilinha” no “pipi” dela, no “rabo” e na boca.
Tal foi essencialmente o conteúdo do depoimento da professora em questão, ..., bem assim dizendo que após o conhecimento desses factos contactou a Comissão de Protecção de Menores.

Deste contexto probatório, entendendo-se que E... revelou alguma retracção em Tribunal (negou os factos relativos a sexo oral, que terá levado a cabo voluntariamente, o que se crê que tenha sucedido pela natural subsequente interiorização da enorme censura social deste tipo de factos que a publicidade entretanto gerada lhe terá incutido, não obstante a sua idade, e que a levou a que “só” tivesse admitido aqueles que o Arguido terá praticado eventualmente sem a sua vontade tão explícita, bem assim que tivesse referido a prática de alguns factos relativos a R... que crê-se que não tivessem chegado a suceder), o depoimento de R... (de idade superior à daquela e com maior noção da censurabilidade dos factos), não obstante a vergonha que demonstrou, tendo sido em boa parte coincidente com o de E... (essencialmente só o extravasando relativamente à factualidade que esta não quis admitir, concernente aos actos que praticou de sua “iniciativa”, que aliás se coadunam com a circunstância de ela própria se ter dirigido a casa do Arguido, no dia seguinte à prática de factos da mesma natureza), afigura-se que no essencial correspondeu à verdade, não se vendo também razões para o pôr em R..., sem prejuízo de se admitir que alguns factos pudessem ter ainda ficado por contar por parte de R..., face à sensibilidade da matéria e a natural defesa da sua intimidade por parte da criança ou da mulher vítima que depõe sobre este tipo de factos.
A mãe de E..., Ed..., essencialmente disse que conhece o “Du”, que são vizinhos, que aquela lhe disse que este a tinha “mocado”, mas que não lhe explicou o que é que isso significava, que lhe disse que isso sucedeu na casa dele, na quarta-feira, sozinha, e na quinta-feira, com a R....
Prestou um depoimento eventualmente defensivo, apenas útil em termos probatórios pelo reforço que do mesmo decorreu de que os factos ocorreram nesses dias, na mesma semana em que foram despoletados na Escola frequentada pela menor, tal como esta disse em Tribunal que sucederam, e que correspondem aos dias que se tiveram por provados.

Quanto às idades das menores o Tribunal assentou ainda no teor de fls. 166 a 169 e 171.
O conhecimento pelo Arguido que as mesmas tinham idades inferiores a 14 anos, além da relação de vizinhança e conhecimento que ele já tinha com E..., decorre das regras de experiência comum, face à compleição física de uma de outra, que o Tribunal pôde observar e que isso evidenciava.

Sendo certo que no exame médico-legal efectuado a E... não foi observada qualquer lesão traumática de cariz sexual (cfr. fls. 145 a 148), face à idade desta e à respectiva questão anatómica, além de R... não ter confirmado em Tribunal ter visto o Arguido introduzir o pénis na vagina de E..., o Tribunal teve por não provada essa factualidade (pese embora E... a tenha afirmado).
Também teve por não provado que o Arguido tivesse querido penetrar com o seu pénis a vagina de R..., pois não o fez relativamente a E..., não se afigurando admissível a inferência que, nesse contexto, os actos que praticou relativamente aquela tivessem esse objectivo, tudo sem prejuízo de ter desistido da respectiva continuação, face à negação da menor, conforme fez relativamente ao sexo oral que lhe propôs, que ela negou e que não se concluiu que ele tivesse insistido.

No que concerne à situação pessoal do Arguido, além das suas declarações, assentou o Tribunal no teor de fls. 49.
Quanto aos antecedentes criminais assentou no C.R.C., de fls. 68.

2.4. Aspecto jurídico da causa
2.4.1. Enquadramento jurídico-penal
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.

Pelo preenchimento dos respectivos elementos típicos, objectivos e subjectivos, no que concerne à factualidade provada relativa a E..., integra a mesma a prática pelo Arguido de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nºs 1 e 2 do Código Penal, tal como vem acusado.

Quanto aos factos praticados relativamente a R... o Arguido vem acusado da autoria material de um crime de abuso sexual de crianças na forma tentada, p. e p. pelos artigos 171º, nºs 1 e 2, 22º e 23º do Código Penal.
O crime de abuso sexual de crianças previsto no nº 2 do artigo 171º do Código Penal tem por fundamento que o acto sexual de relevo a que alude o nº 1 do mesmo artigo consista em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
Efectivamente o Arguido convidou R... para prática de factos subsumíveis a coito oral, que ela recusou e que não se provou que ele tivesse prosseguido.
Agarrou-a, deitou-a, despiu-a e tentou deitar-se em cima dela, o que poderia levar a supor que pretenderia concluir relação sexual de cópula [cfr. artigo 22º, nº 2, al. c) do Código Penal], o que, porém, não se provou, além de ter desistido dessa conduta, na sequência da oposição da menor, que, face à diferença de compleição física entre ambos, sempre constituiria desistência relevante, para os termos do que dispõe o artigo 24º, nº 1 do Código Penal.
Não se têm, pois, por verificados os pressupostos, objectivos e subjectivos, do tipo criminal de abuso sexual de crianças previsto no nº 2 do artigo 171º do Código Penal, ainda que na sua forma tentada.

Entende-se, porém, que a conduta do Arguido relativamente a R..., pela verificação dos respectivos elementos típicos, objectivos e subjectivos, integra a prática por aquele do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo nº 1 desse artigo 171º do Código Penal, requalificação jurídica dos factos da acusação que cumpre operar.

Com efeito, não suscitando dúvidas de que os actos praticados pelo Arguido relativamente a E..., em dois dias diferentes, integram o conceito de acto sexual de relevo referido na norma do nº 1 do artigo 171º, bem assim o de coito oral, que a norma do nº 2 do mesmo artigo contempla, sendo certo que aquela era à data dos factos menor de 14 anos, afigura-se que a sua conduta relativamente a R... igualmente se subsume ao conceito de acto sexual de relevo.
Definindo-se tal conceito como a acção de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in comentário do Código Penal, Ed. Universidade Católica, págs. 442 e 443), entende-se que não pode deixar de não se integrar no mesmo a acção do Arguido de, no seu quarto de dormir e exibindo o seu pénis, convidar R... a chupar-lho, bem assim na negativa desta, pegar-lhe ao colo, deitá-la na cama, despir-lhe as calças e as cuecas e deitar-se em cima dela, sendo certo que esta tinha, a esse tempo, a idade de 11 anos.
*
Assim, cometeu o Arguido, em autoria material, dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nºs 1 e 2 do Código Penal e um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1 do Código Penal.
*
Inexistindo qualquer causa de justificação ou de desculpa, a conduta do Arguido é punível, havendo de considerar o concurso de crimes e a prática dos factos com dolo directo (cfr. artigos 13º e 14º, nº 1, 26º e 30º, nº 1 do Código Penal).

2.4.2. Da medida concreta da pena
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do Arguido importa agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar (artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal).

O crime de abuso sexual de crianças previsto no artigo 172º, nº 1 do Código Penal é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos e o previsto no nº 2 do mesmo artigo é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do arguido e das exigência de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, conforme estabelece o artigo 71º do Código Penal.

Considerando as exigências de prevenção de futuros crimes, que relativamente aos dos autos merecem relevo, pela frequência com que ocorrem, há a ponderar essencialmente:
- A favor do agente – a ausência de antecedentes criminais.
- Em desfavor do agente – a prática dos factos com dolo necessariamente directo, de considerar intenso, a multiplicidade de condutas e as idades das vítimas, que à data dos factos tinham apenas 7 e 11 anos de idade.
Sendo que a prática de factos deste tipo com menores de 14 anos tem normalmente subjacente a lascívia sexual, sendo elevada a perigosidade do agente voltar a delinquir, é também de se considerar elevada a ilicitude da conduta, além de ser muito elevada a censura social que os factos merecem, sem prejuízo de se terem actualmente por indeterminadas as sequelas que a conduta do Arguido determinará no desenvolvimento futuro das crianças.

Ponderando o circunstancialismo supra-descrito para aferição da medida da pena, tem-se por adequado fixar esta um pouco abaixo dos limites médios da respectiva moldura abstracta, pelos 5 anos de prisão relativamente aos crimes de que foi vítima E... e pelos 3 anos de prisão no que concerne ao que foi vítima R....

2.4.3. Do concurso de crimes

Nos termos do que dispõem os artigos 30º, nº 1 e 77º, nº 1 do Código Penal os crimes praticados pelo Arguido estão entre si numa relação de concurso, importando proceder ao cúmulo das respectivas penas, conforme estabelece o nº 2 daquele último artigo.
A efectuação do cúmulo implica a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, tendo a pena única aplicável como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.
Sendo a pena parcelar mais elevada de 5 anos de prisão e totalizando a soma das penas 13 anos de prisão, nesses limites se situa a pena única.
Considerando em conjunto os factos, a gravidade, o impacto social deste tipo de crimes, o curto período temporal em que ocorreram e o número de crimes praticados, não obstante serem significativas as necessidades de prevenção geral, bem assim se terem igualmente por prementes as necessidades de prevenção especial, atenta a personalidade que normalmente é inerente a tal tipo de prática, nos termos supra expostos, tendo ainda em conta a homogeneidade da acção do arguido, entende-se aplicar-lhe pena únicas de prisão em medida claramente inferior ao ponto médio que resultaria entre os limites inferior e superior da pena abstracta relativa ao cúmulo em causa, pelos 6 anos e 6 meses de prisão.

2.4.4. Da pena acessória de expulsão
(…)

3. Dos bens aprendidos
(…)

2- De harmonia com o disposto no n°1, do art. 412°, do CPP, e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ - Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, D.R. 1 - A Série, de 28/12/1995).
São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – art. 403 °, nº 1 e 412°, n°1 e n°2, ambos do CPP. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", Vol. 1, 21 edição, 2000, fls. 335, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (arts. 403°, n.º 1 e 412°, n°1 do CPP), a questão que o recorrente pretende ver conhecida por este Tribunal é, em síntese, a seguinte:

- a medida concreta da pena aplicada:

- o arguido confessou os factos e mostrou arrependimento;
– o recorrente deve ser condenado por um só crime (continuado) de abuso sexual nos termos do 171°, n°1 e 2 do CP em relação à vítima E..., por este crime ter sido praticado em dois dias seguidos, não devendo ultrapassar uma pena de três anos, alterando, deste modo, a pena de 5 anos em que foi condenado;
- relativamente à menor R... deverá ser condenado nos termos do artigo 171°. 1, na pena mínima de um ano;
- em cúmulo, não deve a pena exceder 4 anos de prisão.

3- Apreciemos.

Diga-se, desde já, que o recorrente não tem razão na sua alegação.
Na base desta nossa afirmação está a concordância com a fundamentação da decisão recorrida que conclui que considerando em conjunto os factos, a gravidade, o impacto social deste tipo de crimes, o curto período temporal em que ocorreram e o número de crimes praticados, não obstante serem significativas as necessidades de prevenção geral, bem assim se terem igualmente por prementes as necessidades de prevenção especial, atenta a personalidade que normalmente é inerente a tal tipo de prática, nos termos supra expostos, tendo ainda em conta a homogeneidade da acção do arguido, entende-se aplicar-lhe pena únicas de prisão em medida claramente inferior ao ponto médio que resultaria entre os limites inferior e superior da pena abstracta relativa ao cúmulo em causa, pelos 6 anos e 6 meses de prisão.

Vejamos em 1º lugar o enquadramento em termos teóricos da questão da medida da pena, a que se seguirá a apreciação do caso em concreto com a apreciação das questões suscitadas sobre a questão de crime continuado (relativamente à menor E...) e do concurso de crimes (que passará pela apreciação da medida concreta aplicada a cada um dos crimes).

3.1- Enquadremos em termos teóricos a questão da medida da pena.
A aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente; e, em caso algum apenas pode ultrapassar a medida da culpa -cfr. art. 40º, nºs. 1 e 2 do CP. Com efeito, a aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente; e, em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa -cfr. art. 40º, nºs. 1 e 2 do CP.
A defesa da ordem jurídico-penal tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se persegue no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicáveis com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na realidade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal.
Acolhendo a tese de Figueiredo Dias, dir-se-á que o programa político-criminal assumido pelo legislador penal nos n.º 1 e 2 do citado art.40.º do CP traduz-se no seguinte:

1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais”, in Temas Básicos da Doutrina Penal – Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal Sobre A Doutrina Geral Do Crime, Coimbra Editora, 2001; págs. 110-111.

Deste modo, à pena concreta deverá corresponder uma intervenção penal enformada pelos princípios político-criminais consagrados naquele normativo, nomeadamente: da prevenção geral positiva ou de integração; da culpa; da prevenção especial positiva ou de socialização; e da humanidade.

O princípio da prevenção geral de integração consiste, na formulação de Gunther Jakobs, na estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, na ideia de que a finalidade visada pela pena há-de ser, primordialmente, a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto.
Tutela essa com significado e sentido prospectivo, face a um crime já verificado, traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada, ou, dizer ainda, do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.

No que concerne às exigências de prevenção especial, esta surge em duas vertentes: a positiva ou de socialização, em que se privilegia o propósito da reinserção social, a ressocialização e/ou a socialização de um des -socializado e a negativa ou de inocuização, quando por pura exigência de defesa social se privilegie e procure a neutralização da perigosidade social do delinquente através da sua separação ou segregação.

Por seu turno, na determinação da medida concreta da pena infere-se da leitura dos arts. 71° e 72°, ambos do CP, que:
O seu conteúdo supõe que tenha de ser tido em consideração a perspectiva ético-retributiva, as eventuais circunstâncias agravantes e atenuantes (não incluídas no tipo de crime) tendo em vista as necessidades de prevenção.
Assim, para uma avaliação da medida da pena importa não só considerar os factores relativos ao facto praticado, mas também a personalidade do agente.
Tendo como suporte o facto típico praticado, existem elementos que fornecem a medida da sua gravidade – os respeitantes ao ilícito (típico) e à culpa do facto.
Estes elementos permitem avaliar da censurabilidade, ligam-se ao juízo de culpa e assim relevam directamente para a medida da pena da culpa.
Por outro lado, importa ainda salientar que, no que diz respeito à medida da pena, atende-se também à gravidade da falta de que para ser mantida uma conduta lícita, é manifestada na prática do acto.
A pena contém em si a afirmação de uma necessidade preventiva, pelo que devem ser chamados à colação, os factores que têm a ver com a gravidade do facto e a personalidade do agente, a fim de ser encontrada a medida de prevenção.
Importa também considerar a avaliação das circunstâncias extra típicas, cujo fundamento é relevante para a medida da pena da prevenção por poderem ligar-se à necessidade da pena, com vista à satisfação das exigências da prevenção geral e especial.

3.2- O caso em concreto.

Da leitura da decisão posta em cR... conclui-se que o tribunal teve em conta todos estes considerandos.

Enquadremos e apreciemos as questões suscitadas em recurso.

Em 1º lugar, o recorrente vem suscitar a questão do concurso entre crimes, a que se refere o art.30º do CP, no que tange à vitima E..., entendendo que deve ser condenado por um só crime (continuado) de abuso sexual nos termos do 171°, n°1 e 2 do CP, por este crime ter sido praticado em dois dias seguidos.

Relativamente a esta questão, dir-se-á que um possível concurso real de crimes se pode transformar num só crime ou num só crime continuado, punível com uma pena de graduação mais baixa nos termos do art.79° do CP.
No entanto, para que haja um só crime, (não sendo o mesmo permanente ou de execução continuada) é necessário que não exista mais do que uma resolução criminosa. E, por outro lado, para que haja um só crime continuado, tem de existir uma linha de continuidade psicológica que induza à persistência da prática do tipo de crime referente, no quadro de um contexto exterior desculpabilizador, favorável a tal cometimento: uma única resolução criminosa equivale a um só crime, havendo pluralidade de resoluções mas no mesmo circunstancialismo fáctico e psicológico desculpabilizante, também haverá um só crime, mas continuado. O que não aconteceu no presente caso.
Com efeito, como regra, o número de crimes afere-se pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal (concurso real) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso ideal) – art. 30º, n.º 1, do CP –, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa, ou seja, tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica for posta em cR..., em que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente. Nos termos do disposto no art. 30º, n.º 2, do CP, são pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal, a homogeneidade na forma de execução, e a lesão do mesmo bem jurídico, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa. Por sua vez, esta só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição; isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso. Diga-se ainda que são circunstâncias exteriores (cf. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, págs. 246-250) que apontam para aquela redução de culpa: a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; o facto de voltar a registar-se uma oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; e o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa.
Por último, na análise a fazer há que ter uma visão integral do facto, atender ao pleno das circunstâncias que enformaram os factos, sendo que a emissão de uma declaração de arrependimento por parte do arguido tem de ser entendida com a verdadeira amplitude e o alcance que tem, pois uma coisa é declarar arrependimento no que pode ser uma declaração de circunstância determinada pelas circunstâncias, outra a corresponder a uma interiorização do mal da conduta.

Recorde-se ainda uma última questão que não foi suscitada pelo recorrente, mas que interessa referir e que tem a ver com a reforma do CP introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09 (aplicável à data da prática dos factos) que introduziu no art. 30º, o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrangia os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa.
No entanto, esta alteração legislativa é pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que se entendia na jurisprudência maioritária, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.
Este aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real (cf. Ac. do STJ de 08-11-2007, Proc. n.º 3296/07 - 5.ª, acessível in www.dgsi.pt); apenas significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
Mais se diga que uma interpretação em sentido contrário poderia eventualmente ser atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se entendesse que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.
Pelo que nada há a dizer quanto à aplicação pelo acórdão recorrido da actual redacção do CP, introduzida pela Lei nº40/2010 de 03/09, e que eliminou tal alteração.

Ora, no caso sub judice, concatenando o que atrás ficou dito com a matéria de facto assente verifica-se que existem várias resoluções criminosas, que se traduzem no facto de o arguido em dias e horas diferentes, ter accionado e renovado os mecanismos da sua vontade para praticar o crime sexual e repeti-lo, o que faz com que a cada uma dessas resoluções corresponda um crime.
Por outro lado, também não estamos perante um só crime continuado, porque para que tal acontecesse, era necessário que se verificasse uma situação exterior que permitisse concluir pela considerável diminuição da culpa do agente, o que face ao que ficou provado não se verifica.
Deste modo, carece de razão o recorrente, concluindo-se que cometeu tantos crimes quantas as resoluções criminosas que tomou para a prática do crime, improcedendo, nesta parte a sua pretensão.

Em 2º lugar, vem o recorrente alegar que a pena aplicada é desadequada – entende que deve ser condenado em relação à vítima E..., na pena de três anos, e relativamente à menor R... na pena mínima de um ano.

Como atrás dissemos, as ideias base que se devem ter presentes na determinação da medida concreta da pena, são, de que as finalidades da aplicação de uma pena residem, primordialmente, na tutela dos bens jurídicos, na reinserção do arguido na comunidade e na compreensão de que a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.

Alega o recorrente que confessou os factos e que mostrou arrependimento e não tem antecedentes criminais.
Recorde-se no que a estas questões diz respeito porque bem fundamentado o acórdão recorrido:

(…) O crime de abuso sexual de crianças previsto no artigo 172º, nº 1 do Código Penal é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos e o previsto no nº 2 do mesmo artigo é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do arguido e das exigência de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, conforme estabelece o artigo 71º do Código Penal.

Considerando as exigências de prevenção de futuros crimes, que relativamente aos dos autos merecem relevo, pela frequência com que ocorrem, há a ponderar essencialmente:
- A favor do agente – a ausência de antecedentes criminais.
-Em desfavor do agente – a prática dos factos com dolo necessariamente directo, de considerar intenso, a multiplicidade de condutas e as idades das vítimas, que à data dos factos tinham apenas 7 e 11 anos de idade.
Sendo que a prática de factos deste tipo com menores de 14 anos tem normalmente subjacente a lascívia sexual, sendo elevada a perigosidade do agente voltar a delinquir, é também de se considerar elevada a ilicitude da conduta, além de ser muito elevada a censura social que os factos merecem, sem prejuízo de se terem actualmente por indeterminadas as sequelas que a conduta do Arguido determinará no desenvolvimento futuro das crianças.

Ponderando o circunstancialismo supra-descrito para aferição da medida da pena, tem-se por adequado fixar esta um pouco abaixo dos limites médios da respectiva moldura abstracta, pelos 5 anos de prisão relativamente aos crimes de que foi vítima E... e pelos 3 anos de prisão no que concerne ao que foi vítima R.... (negrito nosso).

Ora, o acórdão recorrido ponderou o facto de o recorrente não ter antecedentes criminais. E quanto às alegadas confissão e arrependimento recorde-se o que atrás se disse sobre este assunto, ou seja, que da análise a fazer há que ter uma visão integral do facto, atender ao pleno das circunstâncias que enformaram os factos, sendo que a emissão de uma declaração de arrependimento por parte do arguido tem de ser entendida com a verdadeira amplitude e o alcance que tem, pois uma coisa é declarar arrependimento no que pode ser uma declaração de circunstância determinada pelas circunstâncias, outra a corresponder a uma interiorização do mal da conduta, que se poderia traduzir nomeadamente numa reparação como, por exemplo, por um pedido de desculpas, o que não se registou no caso em apreço. Com efeito, o tribunal considerou, no exercício do princípio da livre apreciação da prova, que…Além da prática de alguns dos actos que o próprio Arguido assumiu em sede de primeiro interrogatório judicial (a fls. 78, declarações que foram lidas em audiência), assentou o Tribunal nos depoimentos das duas menores, cujo teor, concatenado com a demais prova produzida e que infra se referirá, afigurou-se merecedor de credibilidade conforme a factualidade que se teve por provada. (e que atrás se transcreveu).
Por outro lado, no caso sub judice, a natureza dos crimes praticados - abuso sexual de menores e o bem jurídico violado no crime em questão (a autodeterminação sexual de crianças) – e a frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade e que constitui um factor de desestabilização social pela insegurança que projecta nas famílias, pelos traumas que gera e pelos valores culturais que ofende em grau elevadíssimo, concedendo prioridade às necessidades de prevenção geral sobre a prevenção especial, justifica-se uma resposta punitiva firme, pelo que não há razões para alterar as medidas das penas parcelares fixadas na decisão de 1.ª instância.

Como já se referiu, são intensos o dolo e a ilicitude, uma vez que as menores tinham 7 e 11 anos de idade à data dos factos os quais, o que ao contrário do que diz no seu recurso, lhes pode causar danos traumáticos que prejudiquem o seu desenvolvimento psico-emocional, pelo que entendemos que a culpa do arguido é muito elevada.

Dest’arte, face a este quadro factológico associado aos princípios de prevenção geral positiva ou de integração, da culpa; da prevenção especial positiva ou de socialização e da humanidade que norteam o espírito do legislador e que os tribunais devem aplicar, uma redução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, não seria adequada a proteger os bens jurídicos por ele ofendidos e seguramente que defraudaria a confiança comunitária nas leis.

Pelo que bem andou o tribunal recorrido ao condenar o ora recorrente como autor material de dois crimes de abuso sexual de crianças (sendo vítima a menor E...), p. e p. pelo art.171º, nºs 1 e 2 do CP, na pena de 5 anos de prisão por cada um desses crimes; e, ainda, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças (sendo a vítima R...), p. e p. pelo art.171º, nº 1 do CP, na pena de 3 anos de prisão.

Quanto ao concurso de crimes, recorde-se a decisão recorrida:

(…) Nos termos do que dispõem os artigos 30º, nº 1 e 77º, nº 1 do Código Penal os crimes praticados pelo Arguido estão entre si numa relação de concurso, importando proceder ao cúmulo das respectivas penas, conforme estabelece o nº 2 daquele último artigo.
A efectuação do cúmulo implica a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, tendo a pena única aplicável como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.
Sendo a pena parcelar mais elevada de 5 anos de prisão e totalizando a soma das penas 13 anos de prisão, nesses limites se situa a pena única.
Considerando em conjunto os factos, a gravidade, o impacto social deste tipo de crimes, o curto período temporal em que ocorreram e o número de crimes praticados, não obstante serem significativas as necessidades de prevenção geral, bem assim se terem igualmente por prementes as necessidades de prevenção especial, atenta a personalidade que normalmente é inerente a tal tipo de prática, nos termos supra expostos, tendo ainda em conta a homogeneidade da acção do arguido, entende-se aplicar-lhe pena únicas de prisão em medida claramente inferior ao ponto médio que resultaria entre os limites inferior e superior da pena abstracta relativa ao cúmulo em causa, pelos 6 anos e 6 meses de prisão.(…)

Deste modo, e confirmando o sentido da decisão recorrida, entendemos que a pena aplicada de 6 anos e 6 meses de prisão efectiva, é a adequada, justa e proporcional face aos factos assentes e ao direito aplicável, pelo que se mantém.
Com efeito, e repete-se: face ao quadro fáctico e legal aplicável, uma redução da pena de prisão em que o ora recorrente foi condenado, não seria adequada a proteger os bens jurídicos por ele ofendidos e seguramente que defraudaria a confiança comunitária nas leis.
Por outro lado, no caso concreto, a moldura abstracta do concurso situa-se entre 5 e 13 anos de prisão; valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, é de concluir, face à natureza e gravidade dos crimes cometidos, tendo sido respeitados os ditames legais, não se justificar outro grau de compressão, sendo de manter a pena única aplicada 6 anos e 6 meses de prisão efectiva.

Pelo que se julga improcedente o recurso também nesta parte, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido.

III.

Por tudo o exposto acordam os Juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso interposto por M..., mantendo na íntegra o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente que se fixam em 3 UC’s.

O presente Acórdão foi elaborado em processador de texto e revisto pela Relatora que rubricou.

Lisboa, 29 de Março de 2011

Relatora: Desembargadora Margarida Blasco
Adjunta: Desembargadora Filomena Lima