Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2306/09.4TMSNT-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: ALIMENTOS
EX-CÔNJUGE
EQUIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. O direito a alimentos do ex-cônjuge (que regra geral – artº 2016 CCiv – deve prover à sua subsistência) radica na ideia de um dever de solidariedade / dever assistencial imposto em função da vida em comum ocorrida no passado, que a lei assume verificar-se na generalidade dos casos.

II. Na enorme diversidade que a realidade nos oferece podem ocorrer, porém, situações em que esse dever de solidariedade / dever assistencial se encontra inibido, esvaziado de conteúdo ou completamente diluído em face das concretas circunstâncias do caso; situações em que a obrigação de prestação de alimentos surgiria aos olhos do sentir social, do bom pai de família, como algo irrazoável, injusto, iníquo.

III. A expressão ‘razões manifestas de equidade’ significa mais do que a mera culpa no divórcio, situação que na anterior redacção do artº 2016º excluía o direito a alimentos.

IV. O legislador ao abolir a necessidade de averiguar e imputar a culpa no divórcio com as alterações da Lei 61/2008 não quis obviamente ‘restaurar’ essa ideia redenominando a culpa em equidade (presumindo-se que o legislador é conhecedor da diversidade de tais conceitos).

V. As ´razões manifestas de equidade’ têm, pois, de consistir em circunstâncias de acentuada relevância que tornem imperioso o afastamento daquele dever de solidariedade / dever assistencial.

VI. Como situações em que tal deva ocorrer vislumbram-se: a) os comportamentos do requerente de alimentos que atentem gravemente contra a vida ou integridade física, psíquica ou sexual (v.g. homicídio tentado, maus tratos, coacção, violação) daquele a quem são pedidos alimentos; b) os comportamentos, intencionais ou de grosseira negligência, do requerente de alimentos tendentes a criar a necessidade de alimentos (v.g. dissipação do património, insolvência devido a negócios ruinosos ou actividades criminosas); c) mas também outros padrões comportamentais ligados a circunstâncias marcadamente aptas a produzir efeitos jurídicos, como seja o tempo (que determina importantes figuras jurídicas quanto à aquisição e extinção de direitos, como seja a prescrição, a caducidade, o não uso, a usucapião).

VII. Está entre essas situações a situação em que Autor e Ré se tenham separado, decorridos dois anos de casamento, nessa situação permanecendo durante mais de 48 anos (considerando a data da propositura da acção – 2009), completamente alheios um ao outro e tendo há muito refeito as suas vidas.

VIII. Os vínculos de solidariedade / assistência decorrentes da vida em comum, já de si ténues dada a exiguidade temporal desta, diluíram-se por completo com o decurso de tão extenso hiato temporal de separação, não se verificando agora qualquer justificação, qualquer razão de ser para a sua imposição.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório

NM intentou acção de divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges contra MM pedindo se decrete o divórcio e a consequente dissolução do casamento que celebraram em …, dado que se separaram decorridos dois anos de casamento, não tendo mantido qualquer contacto desde então, e não pretende restabelecer tal relação, até porque vive em união de facto com outra mulher há cerca de 28 anos.

A Ré contestou aceitando como verdadeiro o alegado pelo Autor, afirmando que também não pretende manter o casamento, mas que se encontra desprovida de meios para acorrer à sua subsistência pelo que em cumulação com o pedido de divórcio pede a condenação do Autor a pagar-lhe alimentos no montante mensal de € 850.

        O Autor impugnou a necessidade de alimentos e afirmou não só a impossibilidade de os prestar como a iniquidade do seu pedido. Mais pediu a retroacção dos efeitos do divórcio à data da separação.

        A final foi proferida sentença que condenou o Autor a pagar à Ré a quantia mensal de € 155 a título de alimentos e decretou o divórcio, retroagindo os seus efeitos a 17MAR1981.

        Inconformado, apelou o Autor concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto e não serem devidos alimentos.

        Não houve contra-alegação.


II – Questões a Resolver

        Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

        De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

  Em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, desde logo há que referir não ter sido impugnada a sentença recorrida na parte em que decretou o divórcio, pelo que tal decisão transitou em julgado.

Assim, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- se ocorre erro na decisão de facto (e suas consequências na decisão da causa, em particular na data da retroacção dois efeitos do divórcio);

- se há lugar à fixação de alimentos.


III – Fundamentos de Facto

        O Autor impugna as respostas dadas aos quesitos 1, 18, 19, 20, 21 e 23.

A)
Quesito 1:
    Decorridos dois anos de casamento, A. e R. separaram-se, não tendo estabelecido qualquer contacto até à presente data?

Resposta: Provado que o Autor e a Ré estão separados e não fazem vida em comum há, pelo menos, 28 anos, o que ocorre ininterruptamente até à presente data.

Fundamentação: Para demonstrar a separação de facto entre o Autor e a Ré pelo menos há 28 anos (resposta ao quesito 1º), teve-se em conta os depoimentos de todas as testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, com excepção da testemunha AG, as quais depuseram de modo sincero no sentido de que as partes não fazem vida em comum há muitos anos, sendo a testemunha MC decisiva para afirmar que a separação de facto já dura há mais de 28 anos (na parte em que o seu depoimento foi prestado a instâncias da signatária).

Segundo o recorrente a prova prestada é convincente no sentido de que a separação ocorreu no anos sessenta, não havendo qualquer razão para a situar nos anos oitenta.

A testemunha IG conhece o A. desde que este entrou para a companhia de seguros, em 1961, onde foram colegas de trabalho durante 28 anos, vindo depois a saber que estava divorciado; só muito mais tarde veio a conhecer a actual mulher e o filho.

Se tivermos em conta que em 1961 ser divorciado (ou separado) era um estigma social, podemos deduzir que a notícia sobre o ‘estado civil’ do A. deve ter constado entre os seus colegas de trabalho pouco tempo depois da sua admissão; o que indicará que em 1961 já A. e R. haviam cessado a vida em comum.

  A testemunha AV declarou-se amigo do A. há 38/39 anos e que durante esse tempo nunca conheceu a Ré e só veio a conhecer companheira ao A. muito mais tarde quando o filho do A. (que nasceu em 1983) era pequeno.

A testemunha JC declarou-se amigo do A. há ‘trinta e qualquer coisa’ anos e que durante esse tempo nunca conheceu a Ré, apenas conhecendo como companheira do A. a sua actual mulher, com quem está há cerca de 30 anos.

Tais depoimentos são de pouca valia para fixar a data da separação, relevando apenas na parte em que indicam que ao A. não foi conhecida companheira durante largo período anterior ao que veio a estabelecer com a sua actual companheira.

A testemunha NM (filho do A. e da sua actual companheira, nascido em 1983) nada disse sobre a separação (nem podia dizer, atenta a própria natureza das coisas), pelo que não se vê como o mesmo possa servir para formar qualquer convicção.

        A testemunha MC declarou-se amiga da Ré há 60 anos, tendo assistido ao seu namoro e casamento com o A. e foi peremptória ao afirmar que a separação ocorreu quando a Ré começou a ter receios e foi para casa dos pais “eram as meninas bebés”, “há mais de 30 – 40 e tal p’ra aí” anos.

Esta testemunha mostra fundadas razões de ciência e contextualiza bem a data da separação, pelo que o seu depoimento reforça sobremaneira os anteriores, contribuindo para a criação de uma forte convicção de que a separação terá ocorrido no início dos anos sessenta, quando as meninas eram efectivamente bebés, atendendo a que a mais nova nasceu a 24JUN1960.

Convicção essa que se reforça com a posição que a própria Ré toma sobre o assunto (e quem melhor que ela para saber quando ocorreu a separação). Com efeito, perante a afirmação do A. de que se separam decorridos dois anos de casamento, a Ré veio afirmar na sua contestação aceitar como verdadeiro o conteúdo da petição inicial.

        Donde se conclui haver de alterar a resposta ao quesito para: “Provado”.

        B)
Quesito 18:
    O A. aufere uma pensão de reforma de cerca de € 1.000 (mil euros), que é o seu único rendimento?

Resposta: Provado que o Autor aufere uma pensão de reforma da Segurança Social no valor mensal de € 643,96 e aufere uma pensão de reforma da Companhia de Seguros Allianz Portugal SA no valor mensal de € 441,02.

Fundamentação: documentos de fls 52-53, 58-62.

Segundo o recorrente o valor da pensão da companhia de seguros está mal calculado porquanto resulta da divisão do montante anual por 12 quando o devia ser por 14, pois tantas são as vezes em que é paga.

        A questão é praticamente irrelevante, sendo de lamentar que o recorrente a venha levantar perante um tribunal superior, A seu respeito apenas se dirá que o que releva para a decisão da causa é o rendimento do A. e não a sua especificação; mas já que nisso tanto empenho tem o recorrente haverá de ter estritamente em atenção o que consta dos documentos que provam esse rendimento.

Pelo que, alterando a resposta dada na 1ª instância, se responde ao quesito da seguinte forma: Provado que o Autor aufere uma pensão de reforma da Segurança Social, que no ano de 2009 ascendeu ao montante anual de € 8.905,40, e aufere uma pensão de reforma da Companhia de Seguros … SA, que no ano de 2009 ascendeu ao montante anual de € 5.292,28.

C)
Quesito 19:
    Mensalmente, o A. paga € 150 (cento e cinquenta euros) de renda de casa?

Resposta: Provado que o A. e a companheira pagam, a título de prestação bancária para a aquisição de casa própria, a quantia mensal de € 123,34, e a título de seguro pela mesma, a quantia mensal de € 14,02.

Fundamentação: documento de fls 54, 55.

        Alega o recorrente que a resposta omitiu considerar outras despesas relativas ao imóvel, documentadas nos autos, como seja a taxa de esgotos e o IMI.

        O tribunal responde ao que foi alegado e só a isso. E como se vê da formulação do quesito o A. não alegou o que agora pretende ver incluído na resposta. Se algum reparo haveria a fazer à resposta era de ter excedido o que se perguntava (no que diz respeito ao seguro) e de não ter atentado que do doc de fls 54 apenas resulta ser a companheira do A. (e não ambos) quem adquiriu casa própria.

        Improcede, pois, a pretensão do recorrente.

D)
Quesito 20:
    Mensalmente, o A. gasta € 200 (duzentos euros) em despesas médicas e medicamentosas?

Resposta: Provado que o Autor e a companheira gastam, pelo menos, € 78,5 em despesas médicas e medicamentosas.

Fundamentação: documentos de fls 58-62

Segundo o recorrente dos depoimentos prestados e da sua documentalmente provada condição clínica decorre uma despesa em medicamentos de € 200 mensais.

        A prova por excelência de despesas com medicamentos (bem como as despesas de saúde em geral) são os recibos de aquisição desses bens ou serviços; ou declarações que pressupõem a capacidade de comprovação dessa aquisição (como seja a declaração de IRS).

        Não deixa de ser incongruente que quem afirma gastar € 200 mensais em compra de medicamentos apenas declare como despesas de saúde do seu casal o montante anual de € 942,04 (a que corresponde a quantia mensal de € 78,5).

Dos depoimentos prestados ninguém quantificou o montante gasto com medicamentos, excepto o filho do A., mas limitando-se a elencar a soma total, sem especificar em que medicamentos, e muito menos em termos de ultrapassar aquela incongruência.

        Improcede, pois, a pretensão do recorrente.

Embora haja de corrigir a resposta no sentido de deixar expresso que a despesa referida é mensal (como, aliás, veio a ser expresso no elenco factual da sentença).

E)
Quesito 21:
    Mensalmente o A. gasta € 100 (cem euros) em contas de água, luz, gás e telefone?

Resposta: Provado que o Autor e a companheira gastam € 67,70 (€ 39,24+€ 28,46) mensais em contas de luz e gás.

Fundamentação: documentos de fls 64, 65

        Alega o recorrente que na resposta se omitiu considerar os gastos com água no montante de € 39,94 documentalmente provados.

O documento de fls 63 diz respeito aos serviços prestados pelos SMAS S a MS (que não é o A. nem a sua companheira) sendo o local do abastecimento o … da UC… (enquanto que o A reside no … da UC), pelo que, na falta de esclarecimentos adicionais, não é idóneo a demonstrar o facto cuja inclusão se pretende (sendo de lamentar, por constituir litigância inaceitável porque suportada em falta de diligência devida, que levante tal questão perante tribunal superior).

        Improcede, pois, a pretensão do recorrente.

F)
Quesito 23:
Mensalmente, o A. gasta € 200 (duzentos euros) em alimentação?

Resposta: Provado.

Fundamentação: Ao factos provados segundo os quais o Autor e a Ré despendem, a título de alimentação, a quantia mensal de € 200, assentaram em juízos de experiência comum.

Pretende o recorrente que se considere viver em união de facto e que as despesas com a alimentação cobrem as necessidades de ambos, ascendendo a € 400 mensais.

Se é certo que decorre da experiência comum de vida que a união de facto pressupõe a necessidade de alimentar ambos os membros dessa união isso não implica necessariamente que só um deles tenha de suportar essa despesa. E o que ocorre no caso concreto é que nada foi alegado no sentido de demonstrar a situação económica da companheira do A., designadamente que esta não tenha rendimentos vivendo na total dependência do Autor.

E sendo desconhecidas tais circunstâncias improcede, mais uma vez, a pretensão do recorrente.

Em face do exposto, fixa-se a seguinte factualidade (assinalando-se a negrito as alterações introduzidas):

1. O Autor e a Ré contraíram casamento civil no dia 1 de Setembro de 1958. (al. a) dos Factos Assentes)

2. Decorridos dois anos de casamento, A. e R. separaram-se, não tendo estabelecido qualquer contacto até à presente data (resposta ao quesito 1º)

3. O Autor vive com uma companheira, AB, há pelo menos 28 anos. (resposta aos quesitos 2º e 3º)

4. A Ré aufere uma pensão de reforma no valor de, pelo menos, € 230,00 mensais e o complemento solidário para idosos no valor mensal de, pelo menos, € 100,00. (resposta ao quesito 4º)

5. A Ré gasta em alimentação pelo menos a quantia mensal de € 200,00. (resposta ao quesito 13º)

6. À despesa com alimentação referida no ponto anterior acrescem despesas variáveis com vestuário e medicamentos. (resposta ao quesito 14º)

7. O Autor não trabalha há vários anos. (resposta ao quesito 15º)

8. O Autor é um doente polimedicado, que necessita de vigilância médica regular, é um doente de elevado risco Cardio-Vascular, que já foi submetido a várias intervenções nesse sentido, nomeadamente endarterectomia carotídea esquerda e triplo by pass coronário. (resposta ao quesito 16º)

9. O Autor encontra-se reformado. (resposta ao quesito 17º)

10. o Autor aufere uma pensão de reforma da Segurança Social, que no ano de 2009 ascendeu ao montante anual de € 8.905,40, e aufere uma pensão de reforma da Companhia de Seguros … SA, que no ano de 2009 ascendeu ao montante anual de € 5.292,28 (resposta ao quesito 18º)

11. O Autor e a companheira pagam, a título de prestação bancária para aquisição de casa própria, a quantia mensal de € 123,34, e a título de seguro pela mesma, a quantia

mensal de € 14,02. (resposta ao quesito 19º)

12. O Autor e a companheira gastam pelo menos € 78,5 mensais em despesas médicas e medicamentosas. (resposta ao quesito 20º)

13. O Autor e a companheira gastam € 67,70 (€39,24+€28,46) mensais em contas de luz e gás. (resposta ao quesito 21º)

14. Mensalmente, o Autor gasta € 200,00 em alimentação. (resposta ao quesito 23º)

15. Do casamento entre o Autor e a Ré nasceram duas filhas: MM, nascida em .., e MB, nascida em ...

16. Da união referida no facto provado nº 3 nasceu, em …, NM.

17. A Ré nasceu em 15 de Maio de ...

IV – Fundamentos de Direito

Tendo sido alterada a matéria de facto quanto á data da separação resulta óbvio que haverá de repercutir essa alteração na decisão quanto à de produção de efeitos patrimoniais do divórcio

Resulta do disposto nos artigos 2003º, 2004º, 2009º, nº 1, al.a) e 2016º, nºs 2 e 3, CCiv que são requisitos para atribuição de alimentos a ex-cônjuge: que tal atribuição não seja manifestamente iníqua, que o alimentado deles necessite para prover à sua subsistência e o alimentando tenha possibilidade de os prestar.

A equidade traduz-se na observância das regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida, dos parâmetros da justiça relativa e dos critérios de obtenção de resultados uniformes.

A propósito da equidade, refere Antunes Varela[1]: “Se difere da justiça, e não se confunde com a moral, a equidade também se não identifica com os juízos de oportunidade que em larga medida intervêm na actividade política, nem sequer coincide com os critérios de conveniência, a que a lei adjectiva manda atender nos chamados processos de jurisdição voluntária. (…) A equidade começa por basear-se em considerações de justiça. No processo da sua formação interferem os mesmos ingredientes que alimentam a substância da justiça, como sejam os princípios da igualdade ou da simples proporcionalidade e, com mais frequência ainda, os juízos de razoabilidade na solução das pendências entre os homens.”.

No seu artigo publicado na Revista “O Direito”[2], Menezes Cordeiro – que opta pela “noção mais fraca” de equidade, como a que, “partindo da lei positiva, permitiria corrigir injustiças ocasionadas pela natureza rígida das normas abstractas, aquando da aplicação concreta” - explica que a equidade tem a ver com a vertente individualizadora da justiça” e que “o Código Civil, quando remete para a equidade, tem em vista situações dominadas pela vaguidade ou por certa indeterminação, numa situação que apenas in concreto pode ser superada”, todavia sem que “o julgador possa decidir como entender, sem observar bitolas prefixadas de decisão”.

O Prof. Castanheira Neves refere que[3], "quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. ... A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da juridicidade. ... A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto".

Por seu turno Rodrigues Bastos[4] afirma que a equidade deve ser tomada como “a realização da justiça abstracta no caso concreto o que, em regra, envolve uma atenuação do rigor da norma legal, por virtude da apreciação subjectiva do julgador”.

Num registo mais globalizado encontramos a equidade descrita da seguinte forma:

“Equidade consiste na adaptação da regra existente à situação concreta, observando-se os critérios de justiça e igualdade. Pode-se dizer, então, que a equidade adapta a regra a um caso específico, a fim de deixá-la mais justa. Ela é uma forma de se aplicar o Direito, mas sendo o mais próximo possível do justo para as duas partes.
Essa adaptação, contudo, não pode ser de livre-arbítrio e nem pode ser contrária ao conteúdo expresso da norma. Ela deve levar em conta a moral social vigente, o regime político Estatal e os princípios gerais do Direito. Além disso, a mesma "não corrige o que é justo na lei, mas completa o que a justiça não alcança" .
Sem a presença da equidade no ordenamento jurídico, a aplicação das leis criadas pelos legisladores e outorgadas pelo chefe do Executivo acabariam por se tornar muito rígidas, o que beneficiaria grande parte da população; mas ao mesmo tempo, prejudicaria alguns casos específicos aos quais a lei não teria como alcançar. Esta afirmação pode ser verificada na seguinte fala contida na obra "Estudios sobre el processo civil" de Piero Calamandrei: [...] o legislador permite ao juiz aplicar a norma com equidade, ou seja, temperar seu rigor naqueles casos em que a aplicação da mesma (no caso, "a mesma" seria "a lei") levaria ao sacrifício de interesses individuais que o legislador não pôde explicitamente proteger em sua norma.
É, portanto, uma aptidão presumida do magistrado.”[5]

Em jeito de conclusão podemos dizer, na esteira do pensamento de São Tomás de Aquino, que a equidade, sendo apanágio da virtude e da prudência é um ‘julgar mais justamente[6][7].

O que acaba de referir-se revela bem a dificuldade de que se reveste um julgamento segundo a figura diáfana da equidade.

Quais devem ser pois as razões manifestas de equidade referidas no artº 2016º CCiv que permitem (numa mais rigorosa exegese, impõem) a negação do direito a alimentos?

O direito a alimentos do ex-cônjuge (que regra geral – artº 2016 CCiv – deve prover à sua subsistência) radica na ideia de um dever de solidariedade / dever assistencial imposto em função da vida em comum ocorrida no passado, que a lei assume verificar-se na generalidade dos casos.

Na enorme diversidade que a realidade nos oferece podem ocorrer, porém, situações em que esse dever de solidariedade / dever assistencial se encontra inibido, esvaziado de conteúdo ou completamente diluído em face das concretas circunstâncias do caso; situações em que a obrigação de prestação de alimentos surgiria aos olhos do sentir social, do bom pai de família, como algo irrazoável, injusto, iníquo.

A expressão ‘razões manifestas de equidade’ significa, em nosso entender, mais do que a mera culpa no divórcio, situação que na anterior redacção do artº 2016º excluía o direito a alimentos. O legislador ao abolir a necessidade de averiguar e imputar a culpa no divórcio com as alterações da Lei 61/2008 não quis obviamente ‘restaurar’ essa ideia redenominando a culpa em equidade (presumindo-se que o legislador é conhecedor da diversidade de tais conceitos).

As ´razões manifestas de equidade’ têm, pois, de consistir em circunstâncias de acentuada relevância que tornem imperioso o afastamento daquele dever de solidariedade / dever assistencial.

Como situações em que tal deva ocorrer vislumbramos: a) os comportamentos do requerente de alimentos que atentem gravemente contra a vida ou integridade física, psíquica ou sexual (v.g. homicídio tentado, maus tratos, coacção, violação) daquele a quem são pedidos alimentos; b) os comportamentos, intencionais ou de grosseira negligência, do requerente de alimentos tendentes a criar a necessidade de alimentos (v.g. dissipação do património, insolvência devido a negócios ruinosos ou actividades criminosas); c) mas também outros padrões comportamentais ligados a circunstâncias marcadamente aptas a produzir efeitos jurídicos, como seja o tempo (que determina importantes figuras jurídicas quanto à aquisição e extinção de direitos, como seja a prescrição, a caducidade, o não uso, a usucapião).

No caso dos autos confrontamo-nos, precisamente, com uma destas últimas situações.

Autor e Ré separaram-se, decorridos dois anos de casamento, nessa situação permanecendo durante mais de 48 anos (considerando a data da propositura da acção – 2009), completamente alheios um ao outro e tendo há muito refeito as suas vidas. Os vínculos de solidariedade / assistência decorrentes da vida em comum, já de si ténues dada a exiguidade temporal desta, diluíram-se por completo com o decurso de tão extenso hiato temporal de separação, não se verificando agora qualquer justificação, qualquer razão de ser para a sua imposição.

Conclui-se, pois, ser de negar a pretensão alimentícia da Ré.

E desta conclusão resulta prejudicada a apreciação da necessidade e possibilidade de alimentos.

V – Decisão

       Termos em que, na procedência da apelação e quanto à parte ainda não transitada da sentença recorrida, se decide:

        - alterar a matéria de facto nos termos acima enunciados;

- determinar que os efeitos do divórcio retroajam a 1SET1960;

        - absolver o A. do pedido de alimentos formulado pela Ré.

        Valor da acção: 81.000,01 (30.000,01 + 51.000 [850x60])

        Custas, em ambas as instâncias, pela Ré.

Lisboa, 21 de Outubro de 2014

(Rijo Ferreira)

(Afonso Henrique)

(Rui Vouga)

_______________________________________________________
[1] - BMJ, 158, 21.
[2] - Ano 122 (II), pgs 261-281.
[3] - ‘Questão de Facto - Questão de Direito’, pag 351
[4] - ‘Das Leis, sua Interpretação e Aplicação’, 1967, pg 28.
[5] - http://pt.wikipedia.org/wiki/Equidade.
[6] - “La epiqueya es mejor que cierta justicia”; “En tales casos, aun el mismo legislador juzgaría de outra manera, y si lo hubiera previsto lo habría determinado en la ley” – Cf. ‘Summa Theologiae’, II-II, questões 120 e 60 (acessível, em tradução espanhola, em http://biblioteca.campusdominicano.org/4.pdf e http://biblioteca.campusdominicano.org/3.pdf
[7] - “Assim a lei determina que os depósitos sejam restituídos, porque tal é justo na maioria dos casos; mas, pode acontecer que seja nocivo, num dado caso. Por exemplo, se um louco, que deu em depósito uma espada, a exija no acesso da loucura, se alguém exija o depósito para lutar contra a pátria. Nesses casos, e em outros semelhantes, é mau observar a lei estabelecida: ao contrário, é bom, pondo de parte as suas palavras, seguir o que pedem a ideia da justiça e utilidade comum. E a isso se ordena a epieiqueia, a que chamamos de equidade” - Cf. ‘Summa Theologiae’, II-II, questão 120 (acessível, na tradução brasileira usada no texto, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Equidade e, em tradução espanhola, em http://biblioteca.campusdominicano.org/4.pdf.