Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
58/18.6PEPDL.1.L1-9
Relator: RENATA WHYTTON DA TERRA
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: IO conhecimento superveniente do concurso de vários crimes novos, sendo uns cometidos antes da anterior condenação e outros depois da anterior condenação, obedece a um regime diferenciado. O tribunal deve proceder a dois cúmulos distintos: um referente a todos os crimes cometidos antes da anterior condenação e outro referente a todos os crimes cometidos depois da anterior condenação. A pena conjunta de cada um destes cúmulos é executada separada e sucessivamente, porque não há lugar a cúmulo jurídico entre os crimes cometidos antes e os crimes cometidos depois da anterior condenação;

IIReformular um cúmulo implica desfazer um anterior e consequentemente adicionar e, ou retirar crimes e penas. Por se tratar de uma nova realidade não existe aqui qualquer violação do principio da non reformatio in pejus.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório:


No âmbito do Processo Comum com intervenção de Tribunal Colectivo n.° 58/18.6PEPDL a correr termos no Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada - Juiz 2, foi proferido, a 1.2.2022, despacho para a realização de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente das penas em que o arguido AA foi condenado, tendo-se designado data para a realização da audiência prevista no art. 472° do CPP, com vista à realização do cúmulo entre as penas parciais aplicadas no âmbito dos processos n.° 159/17.8JAPDL, 45/18.4PCCSC e 58/18.6PEPDL.
***

Deste despacho veio o arguido recorrer a fls.136 a 141 dos autos, alegando que a pena aplicada ao arguido no processo n.° 301/18.1JAPDL devia ser integrada no cúmulo a realizar, nos termos e com os fundamentos que se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:

Artigo 1º
O Recorrente foi condenado nos processos n°s 159/17.8JAPDL,
45/18.4PCCSC, 301/18.1JAPDL e 58/18.6PEPDL.

Artigo 2º
Os processos referidos no artigo 1° encontram-se todos em relação de concurso, nos termos dos artigos 77° e 78° do Código Penal, já que se reportam a factos praticados antes da sentença que primeiro transitou em julgado (processo nº 45/18.4PCCSC), em 04/05/2018.

Artigo 3º
Encontrando-se em relação de concurso os crimes pelos quais o Recorrente foi condenado, devem ser todos incluídos no novo cúmulo a realizar.

Artigo 4º
O processo nº 301/18.1JAPDL, agora excluído do novo cúmulo a realizar, pelo douto despacho de 01/02/2022, e que deu origem ao presente recurso, tem de ser incluído no cúmulo a realizar, como já o foi no anterior cúmulo realizado, pois que não se alteraram as circunstâncias e os factos que levaram a que fosse incluído e não há motivo para que não o seja se já o foi.

Artigo 5º
Os factos pelos quais o Recorrente foi condenado no âmbito do processo nº 301/18.1JAPDL foram fixados por sentença, em data não concretamente apurada, mas no início de 2018, portanto, antes do trânsito em julgado da sentença no processo 45/18.4PCCSC, em 04/05/2018.

Artigo 6º
O anterior cúmulo jurídico realizado no processo nº 301/18.1JAPDL.1, incluiu o processo nº 301/18.1JAPDL, pois que se encontrava em concurso com os outros crimes, conforme o douto acórdão proferido em 1ª Instância, pelo mesmo Tribunal que agora pretende excluir este processo. Tal decisão foi confirmada por douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

Artigo 7º
Os mesmos factos, no mesmo caso concreto, no mesmo processo, em relação ao mesmo arguido, o aqui Recorrente, não devem ser decididos, pelo mesmo Tribunal e pelo mesmo Juízo, de forma diferente.

Artigo 8º
O cúmulo jurídico tem sempre por base a ideia de beneficiar o arguido e não de prejudicá-lo como acontecerá se o processo nº 301/18.1JAPDL não for incluído no novo cúmulo, como o foi no primeiro cúmulo, resultando em manifesto prejuízo para o Recorrente, e consequentemente, negando-lhe Justiça!
Termos em que, deve ser revogado o douto despacho proferido nos autos, datado de 01/02/2022, que limita a realização do cúmulo jurídico às penas parcelares dos processos nºs 159/17.8JAPDL, 45/18.4PCCSC e 58/18.6PEPDL, substituindo-o por outro que inclua no novo cúmulo também a condenação sofrida no processo nº 301/18.1JAPDL.
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O recurso interposto não foi admitido por despacho proferido em acta a 16.2.2022.

Da não admissão do recurso reclamou o arguido a 28.2.2022 para a Ex.ma Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que a 11.3.2022 decidiu a reclamação, determinando que o recurso fosse admitido.

Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público com as seguintes conclusões:
1.–Ora sendo o trânsito em julgado da primeira condenação o momento a atender para a aferição do concurso de crimes de conhecimento superveniente, se todos eles tiverem sido praticados antes daquele, encontrar-se-ão também todos numa relação de concurso, a impor o cúmulo das respetivas penas.
2.–Porém, pode suceder que, de vários crimes supervenientemente conhecidos, uns tenham ocorrido antes da condenação primeiramente transitada em julgado e outros depois dela. Que é o que ocorre no caso em análise, não estando todos os crimes em relação de concurso, a solução não pode ser a realização de um único cúmulo jurídico, sob pena de se cair no sobredito cúmulo por arrastamento.
3.–Ao invés, no caso concreto impõe-se a realização de um cumulo fixando uma pena única e ganhando autonomia a pena em que foi condenado o recorrente no P. n.°301/18.1JAPDL, de execução sucessiva. Em cocncreto,
- No P. n.°301/18.1JAPDL a decisão transitou em 24.6.2019;
- No P. n.° 159/17.8JAPDL a decisão transitou em 26.9.2019;
- No P n.° 45/18.4PCCSC a decisão transitou em 4.5.2018; e
- No P n.° 58/18.6PEPDL a decisão transitou em 4.2.2021.
4.–Assim, a primeira delas a transitar foi a proferida no processo
n.° 45/18.4PCCSC, pelo que só serão cumuláveis as penas cominadas a crimes em momento anterior a 4.05.2018. Olhando para a datas em que os factos praticados pelo recorrente, dados como provados nos referidos processos, facilmente se conclui que ao contrário dos restantes processos, no processo n.° 301/18.1JAPDL se reporta a factos praticados em 28.6.2018, pois tratando-se de crime exaurido a data dele corresponde ao último ato, pelo que os factos ocorreram após 04.05.2018, a pena neste processo não pode incluir o cumulo, ganhando autonomia e deverá ser cumprida sucessivamente.
5.–No caso dos autos, embora exista uma proximidade temporal das imputações criminosas, contudo não tem arrimo legal a pretensão do recorrente de que o cúmulo jurídico tem sempre por base a ideia de beneficiar o arguido e não de prejudicá-lo como acontecerá se o processo n° 301/18.1JAPDL não for incluído no novo cúmulo.
6.–Como suprarreferido a pena do processo n° 301/18.1JAPDL não pode ser incluída caso contrário estávamos a integrar uma pena por arrastamento.
7.–Em conclusão, e como é dominantemente entendido, poderá dizer-se que o momento temporal decisivo para o estabelecimento de relação de concurso (ou a sua exclusão) é o trânsito em julgado de qualquer das decisões, sendo esse o momento em que surge, de modo definitivo e seguro, a solene advertência ao arguido.
8.–O trânsito em julgado estabelece a fronteira, o ponto de referência ad quem, o limite até onde se pode formar um conjunto de infrações em que seja possível unificar as respetivas penas.
9.–Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pela recorrente, pelo que o recurso não merece provimento.
***

Neste Tribunal da Relação o Digno Procurador-Geral Adjunto no
parecer que emitiu, e que se encontra nos autos a fls.171 a 175, pugna pela improcedência do recurso apresentado.

Cumprido o preceituado no art.° 417.°, n.° 2 do Cód. Proc. Penal,
nada foi respondido.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os
autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II–Fundamentação:

É o seguinte o despacho em crise:

“Dos elementos que temos nos autos resulta, para o que aqui interessa, que AA foi condenado:
1.–No processo 159/17.8JAPDL, por sentença de 2.5.2018, transitada em 26.9.2019, pela autoria do crime de tráfico de estupefacientes, praticado durante o ano de 2016 e até 6.4.2017, na pena de 8 anos e 2 meses de prisão;
2.–No processo 301/18.1JAPDL, por sentença de 21.1.2019, transitada em 24.6.2019, pela autoria do crime de tráfico de estupefacientes, praticado em 28.6.2018, na pena de 7 anos e 4 meses de prisão;
3.–No processo 45/18.4PCCSC, por sentença de 4.4.2018, transitada em 4.5.2018, pela autoria do crime de condução de veículo em estado em embriaguez, praticado em 14.1.2018, na pena de 4 meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica; e
4.–No processo 58/18.6PEPDL, por sentença de 7.7.2020, transitada em 4.2.2021, pela autoria do crime de ofensa à integridade física qualificada, praticado em 14.4.2018, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão.
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No âmbito do processo 301/18.1JAPDL.1, por decisão de 4.5.2020, transitada em 3.12.2020, foi feito o cúmulo jurídico entre as penas parcelares aplicadas ao condenado no âmbito dos processos 1. - 159/17.8JAPDL, 2. - 301/18.1JAPDL e 3. - 45/18.4PCCSC, aí se alcançando a pena única de 12 anos e 2 meses de prisão.
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Na origem destes autos está o pedido formulado pelo arguido - fls.34 e ss. - no sentido de se levar por diante cúmulo jurídico que, anulando o que foi feito no processo 301/18.1JAPDL.1, chegue a nova pena única juntando as parciais que lhe foram aplicadas nos processos 159/17.8JAPDL, 301/18.1JAPDL, 45/18.4PCCSC e 58/18.6PEPDL.
Ora...segundo a lei - art°.78° do CP - “1-Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
2-O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.
3-As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.”

Do preceito acima resulta que:

. apenas são cumuláveis penas da mesma natureza e que estejam já transitadas em julgado;
. apenas são cumuláveis penas que se reportem a factos praticados antes do primeiro trânsito em julgado declarado nos processos em concurso; e
. o tempo e prisão que já tiver sido cumprido por conta de um dos processos em concurso é descontada na pena única.
Assim...ocorre concurso de crimes, determinativo de cúmulo de penas, quando as diversas infrações que estão na sua base foram cometidas antes do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer delas...ou seja, o trânsito em julgado da condenação imposta por uma dada infração obsta a que, com esse ilícito ou com outros cometidos até esse trânsito, se cumulem infrações que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito.
O trânsito em julgado de uma condenação penal é, pois, um limite temporal intransponível no âmbito do concurso de crimes à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois.

Pegando no que é vontade do arguido vemos que:
1.-a sentença proferida no processo 159/17.8JAPDL transitou em 26.9.2019;
2.-a sentença proferida no processo 301/18.1JAPDL transitou em 24.6.2019;
3.-a sentença proferida no processo 45/18.4PCCSC transitou em 4.5.2018; e
4.- a sentença proferida no processo 58/18.6PEPDL transitou em 4.2.2021.
Alinhando a lei com a realidade resultante das sentenças aqui em causa, vemos que a primeira delas a transitar foi a proferida no processo 3. - 45/18.4PCCSC - que se deu em 4.5.2018...sabendo nós que, por essa razão, apenas são cumuláveis as peças cominadas a crimes praticados em momento anterior a essa data.

Ora...olhando para tais sentenças vemos que:
i.-a sentença proferida no processo 1. - 159/17.8JAPDL se reporta a factos praticados praticado durante o ano de 2016 e até 6.4.2017;
ii.-a sentença proferida no processo 2. - 301/18.1JAPDL se reporta a factos praticados em 28.6.2018;
iii.-a sentença proferida no processo 3. - 45/18.4PCCSC se reporta a factos praticados em 14.1.2018; e
iv.-a sentença proferida no processo 4. - 58/18.6PEPDL se reporta a factos praticados em 14.4.2018.

Compaginando os dados expostos com o imperativo legal acima alinhado...concluímos que, se tivermos em conta o trânsito ocorrido no processo 3. - 45/18.4PCCSC -, ocorrido em 4.5.2018...vemos que, por reporte a ele, apenas se podem cumular as penas aplicadas nos processos 1. - 159/17.8JAPDL, 3. - 45/18.4PCCSC e 4. 58/18.6PEPDL...já que os factos julgados no âmbito do processo 2. - 301/18.1JAPDL - ocorridos em 28.6.2018, tiveram lugar em momento posterior ao trânsito verificado no processo 3., que se deu em 4.5.2018.

Face ao exposto e cumprindo o que foi decidido pelo TRL há que levar por diante, como nesse acórdão se refere: “...cúmulo jurídico das penas aplicadas a AA, que se encontram em relação de concurso...”...e essas pelo que acabou de se apontar são as que lhe foram aplicadas no âmbito dos processos 1. - 159/17.8JAPDL, 3. - 45/18.4PCCSC e 4. 58/18.6PEPDL...destruindo-se, naturalmente o cúmulo que foi preconizado no processo 301/18.1JAPDL.1...com a inevitabilidade de, dessa realidade, sobrevir a pena aplicada no processo 301/18.1JAPDL que, naturalmente, ganhará autonomia e será cumprida sucessivamente.
Esta operação, que sempre importaria a destruição do cúmulo levado por diante no âmbito do processo 301/18.1JAPDL.1 não importa qualquer ofensa ao princípio da non reformatio in pejus, pois o desenho do cúmulo que foi dinamizado pelo arguido sempre demandaria a destruição do cúmulo alcançado em tal processo e sempre imporia a aferição de todos os pressupostos legais que enformam o instituto aqui em causa.
Assim...para a audiência prevista no art°.472° do Código de Processo Penal com vista à realização do cúmulo entre as penas parciais aplicada a AA no âmbito dos processos 159/17.8JAPDL, 45/18.4PCCSC e 58/18.6PEPDL, designo o próximo dia 16 de fevereiro de 2022, pelas 14h00, neste tribunal.
Fica dispensada a presença do condenado.
Solicite à DGRS a elaboração de relatório social atualizado relativamente ao condenado.
Notifique, sendo o ilustre advogado nos termos e para os efeitos do n°.2 do art°.151° do Código de Processo Civil.
Obtenha a secretaria ficheiros word das sentenças proferidas nos processos em concurso e remeta-as para o meu mail.
D.N.”
*

Fundamentos do recurso:

Questões a decidir no recurso:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.° 412.° do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.° 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).

A questão que importa conhecer:
- se o despacho de 1.2.2022 devia incluir, para efeitos da audiência prevista no art. 472º do CPP e realização de cúmulo jurídico, o processo n.º 301/18.1JAPDL e respectiva pena.

Apreciando.

A decisão recorrida é o despacho de 1.2.2022 que agendou a audiência prevista no art. 472° do CPP com vista à realização de cúmulo jurídico de penas e indicou quais os crimes que se entendia estarem em concurso efectivo.

Desde já cumpre sublinhar o insólito da situação pois que, apesar de ter recorrido do despacho intercalar de 1.2.2022, o arguido não recorreu do acórdão cumulatório proferido a 16.2.2022, já transitado em julgado, que não incluiu o processo n.° 301/18.1JAPDL,pelo que não vemos efeito útil no presente recurso.

Cumpre sublinhar que o cúmulo jurídico de penas é uma decisão colegial, feita por um colectivo de três juízes, pelo que a decisão singular de 1.2.2022, proferida pelo Juiz Presidente do colectivo nunca vincularia por si só os restantes colegas e o sentido da decisão.
Além disso, ainda que o arguido tivesse recorrido do acórdão cumulatório, esse recurso, atenta a pena em causa, seria sempre para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que o recurso interlocutório nunca teria qualquer efeito relevante.
Com efeito, a ser interposto recurso do acórdão cumulatório, tratando-se de acórdão final de colectivo (no sentido de que o acórdão que procede ao cúmulo jurídico é um acórdão final veja-se, entre outros, Ac. STJ de 6.10.2008, processo n.° 2822/08-3ª), visando a possibilidade de integração ou não de um dos processos, o que constitui matéria de direito, e atenta a medida da pena aplicada, seria competente o STJ - art. 432°, n.° 1, al.c) do CPP.
Ainda assim, vamos analisar perfunctoriamente a posição do recorrente.
Gostaríamos apenas de ressalvar que as alegações do M°P° na 1° instância reproduzem quase integralmente acórdãos do STJ relativos ao concurso de crimes, nomeadamente o Acórdão de 27.2.2008 (processo n.° 4825/07), publicado na CJSTJ 2008, tomo I, pag. 236 a 241, sem que lhes atribua a devida autoria, o que manifestamente não constitui a melhor das práticas.
Alega o recorrente que a pena do processo n.° 301/18.1JAPDL, pena de 7 anos e 4 meses de prisão, deveria ser integrada no cúmulo jurídico por os crimes se encontrarem todos numa relação de concurso porque praticados todos antes da primeira decisão transitada em julgado, a do processo n.° 45/18.4PCCSC, transitada a 4.5.2018.

Vejamos se assim é.

Por sentença de 4.4.2018, transitada a 4.5.2018 e proferida no processo n.° 45/18.4PCCSC foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 4 meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, por factos praticados a 14.1.2018.

Por sentença de 2.5.2018, transitada a 26.9.2019 e proferida no processo n.° 159/17.8JAPDL foi o arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 8 anos e 2 meses de prisão, por factos praticados até 6.4.2017.

Por sentença de 21.1.2019, transitada a 24.6.2019 e proferida no processo n.° 301/18.1JAPDL foi o arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 7 anos e 4 meses de prisão, por factos praticados até 28.6.2018.

Por sentença de 7.7.2020, transitada a 4.2.2021 e proferida no processo n.° 58/18.6PEPDL foi o arguido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, por factos praticados até 14.4.2018.

Resulta claro que a sentença que primeiro transitou em julgado foi a do processo n.° 45/18.4PCCSC, que transitou a 4.5.2018. Assim, de acordo com o disposto nos arts. 78° e, n.° 1 e 77°, n.° 1 do CPenal há que ter em conta todos os processos com decisão já transitada em julgado em que os factos praticados sejam anteriores a 4.5.2018. Facilmente se retira que os factos dos processos n.° 58/18.6PEPDL e 159/17.8JAPDL foram praticados em data anterior, bem como evidentemente, os do processo n.° 45/18.4PCCSC.

Já no que respeita ao processo n.° 301/18.1JAPDL e ao contrário do que o recorrente alega, os factos são posteriores a 4.5.2018, vão até 28.6.2018. Diz o recorrente que só interveio no início de 2018, pelo que deve ser desconsiderada a data final de 28.6.2018. Não lhe assiste razão pois tratando-se de um crime continuado ter-se-á em conta a data da prática do último facto que integra o crime continuado, ou seja, 28.6.2018 (sendo que além disso o arguido também participou nos factos de 28.6.2018, como resulta da matéria de facto provada).

Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, 2010, pág. 288, o conhecimento superveniente do concurso de vários crimes novos, sendo uns cometidos antes da anterior condenação e outros depois da anterior condenação, obedece a um regime diferenciado. “O tribunal deve proceder então a dois cúmulos distintos: um referente a todos os crimes cometidos antes da anterior condenação e outro referente a todos os crimes cometidos depois da anterior condenação(...) A pena conjunta de cada um destes cúmulos é executada separada e sucessivamente, porque não há lugar a cúmulo jurídico entre os crimes cometidos antes e os crimes cometidos depois da anterior condenação”.

Também Paulo Dá Mesquita, em Concurso de Penas, pág. 45 defende que o trânsito em julgado da primeira condenação é o momento determinante em que se fixa a data a partir da qual os crimes não estão em concurso com os anteriores para efeitos de cúmulo jurídico; só se podem cumular juridicamente penas relativas a infracções que estejam em concurso e tenham sido praticadas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, só sendo cumuláveis penas em concurso, pois o art. 78° não pode ser interpretado cindindo do art. 77° do Código Penal. Defende ainda que o sistema de cúmulo jurídico das penas deve ser aplicado apenas nos casos de concurso de penas e já não nos de sucessão de penas, já que a generalização de tal sistema em todos os casos de pluralidade de penas traduzir-se-ia num perverter do sistema penal no seu todo, dando-se carta branca a determinados agentes para a prática de novos crimes. Conclui, a fls. 68, que a designada teoria do cúmulo por arrastamento parte de postulados errados revela-se teleologicamente infundada, pois ignora a relevância da condenação transitada em julgado como solene advertência ao arguido.

Aliás, é esta a posição claramente dominante.

Alega, ainda, o arguido recorrente que tendo sido incluída a pena do processo n.°301/18.1JAPDL no primeiro cúmulo realizado não se pode prejudicar o arguido e violar o principio da proibição da reformatio in pejus ao não se incluir a pena daquele processo.

Como doutamente se escreve no Acórdão do STJ de 25.10.2017 (processo n.° 163/10.7GALNH.S1) “A essência da formulação da pena conjunta, nos termos do art. 78° do Código penal, é a ultrapassagem do trânsito em julgado por razões de justiça substancial. O tribunal que reformula o cúmulo não está sujeito a quaisquer limitações derivadas da pena anteriormente aplicada, e muito menos por critérios que tenham presidido à determinação daquela pena em termos que não colhem fundamento legal.

Como referimos no acórdão de 26.11.2008, por nós proferido no processo n.° 3377/08 “nesses casos, à medida que se vai tomando conhecimento posterior dos factos coevos, impõe-se a realização de julgamentos parcelares, a imporem a realização de novos cúmulos, de forma a atingir-se uma panorâmica conjunta dos factos e da personalidade do agente, pois só assim se conseguirá cumprir os ditames específicos a observar na medida da pena do concurso.

Em cada julgamento decide-se em função da realidade conhecida trazida a juízo, que pode não corresponder a toda a actividade do arguido, à dimensão real e amplitude plena de toda a actividade; em cada julgamento, decide-se sobre o facto conhecido no momento, não sobre o facto global existente.”

Também no Acórdão do STJ, de 14.4.2009 (processo n.° 606/09.3), diz-se “não pode considerar-se que tenham transitado em julgado as decisões que apliquem, de modo necessariamente sic stantibus, penas únicas, enquanto não for proferida a decisão que englobe a última das condenações que integre um cúmulo de conhecimento superveniente. Por outro lado, não havendo definitividade das decisões anteriores, não podem existir expectativas legitimas do  arguido. Enquanto não for proferida decisão que considere todas as penas aplicadas, não existem expectativas sobre a fixação da pena única”.

O caso julgado relativo à formação do cúmulo jurídico entre as penas de um processo vale rebus sic stantibus, ou seja, nas circunstâncias que estiverem na base da sua formação. Se as circunstâncias se alterarem por, afinal, do concurso fazer parte outro crime e outra pena, há uma modificação que altera a substância do concurso e a respectiva moldura penal, com a consequente alteração da pena conjunta. Daí que, não subsistindo as mesmas circunstâncias ou elementos que presidiram à formação da primitiva pena única, o caso julgado em que esta se traduziu tenha de ficar sem efeito, adquirindo as penas parcelares nela contidas toda a sua autonomia para a determinação da nova moldura penal do concurso - Acórdão do STJ de 8.10.2014 (processo n.° 471/09.0TBLSD.S1).

Com efeito, reformular um cúmulo implica desfazer um anterior e consequentemente adicionar e/ou retirar crimes e penas. Por se tratar de uma nova realidade não há violação do principio da non reformatio in pejus, pelo que também nesta questão não assiste razão ao recorrente.

Improcede, pois o recurso interposto.
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IV–DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 9ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça - arts. 513.° e 514.°, ambos do Código de Processo Penal, e arts. 1.°, 2.°, 3.° e 8.°, n.° 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal).



Lisboa, 30 de Junho de 2022


Lídia Renata Goulart Whytton da Terra - (relatora)
(assinatura digital)
Paula Cristina Jorge Pires - (adjunta)
(assinatura digital)