Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
21818/20.2T8LSB.L1-4
Relator: CELINA NÓBREGA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
JUNTA MÉDICA
ANULAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: IO auto de tentativa de conciliação delimita a discussão da fase contenciosa.

IIEstando a questão das lesões e/ou sequelas sofridas pela Sinistrada definitivamente assentes na tentativa de conciliação, não podia a Junta Médica ter-se debruçado sobre a questão da existência de uma patologia prévia que nem tinha sido suscitada e, consequentemente, não podia a sentença aderir a esse parecer, como aderiu.


(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa


Relatório


Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho, a BBB com sede na …, veio participar acidente ocorrido no dia 14.10.2019, em que é Sinistrada AAA, residente na …, sendo sua empregadora CCC.

A 22.12.2020 realizou-se o exame médico do qual consta, além do mais:
“Exame objectivo:
A Examinanda refere ser dextra e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.
Não faz o movimento conjugado mãos-nuca; restantes movimentos possíveis, com dor.
-Ombros: abdução simétrica e limitada a 90º; flexão simétrica e limitada a 120º; rotação interna limitada principalmente à esquerda; rotação externa limitada principalmente à direita; mobilidades difíceis de avaliar por dor;
-Punho direito: flexão limitada a 45º; extensão completa, desvio radial e cubital mantidos;
-Punho esquerdo: Sem limitação da mobilidade, com dor nas amplitudes máximas;
-Anca direita: abdução limitada a 30º por dor; restantes mobilidades difíceis de avaliar por dor;
-Joelhos: mobilidade completa e simétrica, sem instabilidades; sem assimetria no perímetro das coxas;
-Tornozelos: mobilidade completa e simétrica com dor na face anterior do tornozelo esquerdo.
Discussão
1-Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano.
-Admite-se a existência de nexo parcial de causalidade médico-legal entre o evento em apreço e as queixas álgicas e limitações funcionais dos ombros, pois considera-se que, as mesmas, derivam das lesões resultantes do evento em apreço e das alterações degenerativas pré-existentes. No caso do ombro direito, que já tinha sido desvalorizado, por acidente de trabalho prévio, com uma incapacidade permanente de 0.04, mantém-se a desvalorização. De acordo com o artigo 9.º da Lei 100/97, de 13 de setembro, no caso de o sinistrado estar afetado de incapacidade permanente anterior ao acidente, a reparação será apenas a correspondente à diferença entre a incapacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente.
-Admite-se a existência de nexo de causalidade médico-legal entre o evento em apreço e contusão do punho e do pé (tornozelo) esquerdos, considerando-se de acordo com os exames complementares, e com a observação em exame pericial, não terem resultado sequelas.
-Não se admite a existência de nexo de causalidade médico-legal entre o evento em apreço e as queixas e limitações funcionais dos joelhos referidas, pois considera-se que, as mesmas decorrem de patologia degenerativa pré-existente.
2-A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 19.11.2020 tendo em conta a data da alta clínica da seguradora.

3- No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano os seguintes:
- Incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 15-10-2019 até 16.12.2019, desde 14-01-2020 até 02.03.2020, desde 28.10.2020 até 04.11.2020 (10%) fixável num período total de 282 dias.
4- A incapacidade permanente parcial resultante de acidente(s) anterior (s) é de 4% x 1,5 =6%.
5-A incapacidade permanente resultante do acidente atual tendo em conta as sequelas atrás descritas, e a consulta da Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Anexo I Dec.-Lei 352/2007, de 23 de Outubro), é de 8, 4684%. A taxa atribuída tem em conta os artigos da Tabela referidos no quadro abaixo indicado, multiplicado pelo fator de bonificação 1,5. [idade à data da consolidação maior ou igual a cinquenta anos].


                   
E concluiu nos seguintes termos:
- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 19.11.2020.
-Incapacidade temporária absoluta fixável num período total de 120 dias;
- Incapacidade temporária parcial fixável num período total de 282 dias;
- Incapacidade permanente parcial fixável em 8,4684%”

No dia 8 de Abril de 2021 teve lugar a tentativa de conciliação constando do respectivo auto, o seguinte:
“ (…).
Apura-se dos autos que a sinistrada foi vítima no dia 14.10.2019, pelas 10:30, em Lisboa, de um acidente de trabalho.
Tal acidente verificou-se quando a sinistrada prestava a sua actividade de administradora hospitalar para a entidade empregadora CCC  em execução de contrato de trabalho com este celebrado.
O acidente consistiu em a sinistrada ter escorregado no piso húmido do parque de estacionamento, o que provocou uma extensão forçada da anca direita de que resultaram as lesões descritas no relatório de perícia médica.
À data do acidente a sinistrada auferia a retribuição de €2987,25 x 14 de salário mensal + €100 x 17 x 11 de subsídio de refeição + 311 x 21 x 12 de despesas de representação, a que corresponde a retribuição anual bruta de €46.657,89.
A entidade empregadora supra referida tinha a responsabilidade emergente do acidente de trabalho integralmente transferida para a seguradora aqui presente, em função da retribuição acima indicada.
Em exame médico realizado no INML -Instituto Nacional de Medicina Legal de Lisboa, o Perito médico atribuiu à sinistrada uma IPP de 8,4684%, com alta em 19.11.2020 atribuindo uma ITA num período de 120 dias e uma ITP num período total de 282 dias.
A sinistrada declara neste acto ignorar se se encontra paga de todas as indemnizações legais até à data da alta.
*
Com base nestes pressupostos de facto e no disposto na legislação em vigor, o Sr. Procurador da República propôs às partes o seguinte acordo:
A seguradora pagará à sinistrada a pensão anual e obrigatoriamente remível no montante de € 2.765, 82, devida desde 20.11.2020, acrescida de juros de mora à taxa legal.
*
Dada a palavra à sinistrada, por ela foi dito estar de acordo com a avaliação da incapacidade feita pelo perito médico do INML, pelo que aceita a conciliação nos termos propostos pelo Ministério Público.
*
Pelo Representante Legal da Seguradora foi então dito que reconhece o acidente dos autos como de trabalho, o nexo causal entre esse acidente e as lesões dele decorrentes, bem como a sua responsabilidade emergente do acidente em função da retribuição anual supra referida.
Relativamente ao montante total pago de indemnizações pelos períodos de incapacidade temporária, foi paga a quantia total de €14.211,68 e uma vez que o total a haver pelas mesmas seria de €14.146,93, pelo que existe um saldo a favor da seguradora no valor de € 64,75.
Disse ainda não estar de acordo com a avaliação da incapacidade feita pelo perito médico do INML pelo que não aceita a conciliação nos termos do acordo do Ministério Público.
 
Seguidamente, pelo Digno Magistrado do Ministério Público foi proferido o seguinte despacho:
Atenta a posição assumida pelas partes dão-se as mesmas por não conciliadas, aguardando os autos nos termos do artigo 117.º, n.º1 al.b) e 138.º n.º 2 ambos do C.P. de Trabalho.
Uma vez que a sinistrada referiu não saber que valores lhe foram pagos a título de indemnizações por incapacidades temporárias, notifique a seguradora para juntar aos autos comprovativos dos pagamentos realizados a esse título.
(…).”

A Seguradora juntou aos autos os recibos das indemnizações pagas à Sinistrada pelos períodos de incapacidade temporária.

A Sinistrada requereu que a Seguradora fosse notificada para informar o modo como chegou à quantia paga a título daquelas indemnizações.

A Seguradora requereu a realização de exame por Junta Médica e formulou os seguintes quesitos:
1.–Quais as lesões que o sinistrado apresenta e que são consequência do acidente dos autos?
2.–As lesões resultantes do acidente originam alguma incapacidade permanente?
3.Em caso afirmativo qual a I.P.P. a atribuir face à T.N.I?”

A Sinistrada requereu que a Seguradora fosse condenada a pagar-lhe a quantia de €125,50 que gastou com consultas externas, exames e tratamentos, por aquela se ter recusado a suportá-las.

A Seguradora nada disse, tendo sido proferido despacho que determinou que esta comprovasse nos autos o pagamento da quantia reclamada pela Sinistrada.

No dia 18 de Maio de 2021 iniciou-se o exame médico por Junta Médica tendo os Peritos Médicos feito constar na respectiva acta, além do mais, o seguinte:
“Exame obejctivo: Ombros com limitação nos últimos graus de abdução e antepulsão à esquerda; à direita efetua 160ºde antepulsão e de abdução; Nos movimentos conjugados leva a direita à mão à face lateral do pescoço, ao ombro contra-lateral e à região glútea e à esquerda leva a mão à nuca, ao ombro oposto e à região lombar.
A nível dos punhos apresenta limitação álgica da mobilidade à direita efetuando 20º de dorsiflexão e 40º de palmar. Dor referida em todos os movimentos do punho direito.
Dor referida à palpação da coxa direita, junto à região inguinal, com agravamento na mobilização da anca, sobretudo no de abdução com resistência a este movimento.
Marcha autónoma e sem claudicação.
(…).”

Solicitaram, ainda, que lhes fossem presentes vários elementos clínicos, o que foi deferido.

No dia 15.2.2022 teve lugar a continuação do exame por Junta Médica constando do respectivo auto, além do mais, o seguinte:
“A Junta Médica reunida, consultados os autos e observada a sinistrada responde aos quesitos de fls. 107
1)–Na sequência do evento ocorrido em 14.10.2019, em que efetuou movimento de abdução forçada da anca direita, verificou-se em RM “alteração de hipersinal mínimo na zona de inserção do reto femoral podendo corresponder a tendinite ou sequela de micro distensão …em fase de resolução” em sinistrada com antecedentes de queixas e alterações degenerativas prévias. Não sendo possível excluir uma microrrotura, face às queixas admite-se que a mesma possa ter ocorrido em consequência do evento.
Durante os tratamentos de MFR foram registadas duas quedas uma em junho/2020 e outra em outubro de 2020, tendo na sequência da primeira referido queixas no ombro e punho direitos (mais tarde também no punho e ombro esquerdo este último mais de um mês após o evento). No evento de outubro são registadas queixas na mão esquerda, joelho direito e tornozelo esquerdo.
Destas quedas, na opinião das peritas médicas em representação da companhia de seguros e do Tribunal é referido que resultou agravamento sintomática de patologia prévia, sem lesão traumática de novo.
Pelo perito em representação da sinistrada é dito entender que resultaram traumatismos com lesões indubitavelmente identificadas como agudas, interessando o ombro esquerdo, o punho direito e anca/coxa direita, esta no episódio de 14.10.2019 e as restantes nos subsequentes, respectivamente: rotura parcial do supra espinhoso; rotura da inserção estilodeia da cartilagem triangular num contexto de traumatismo direto com entorse agudo; distensão/rotura interessando adutor da coxa direita, todas elas tratadas através dos serviços clínicos da seguradora, para além das outras referidas no texto.
2)– Sim, por unanimidade. 
3)– Por maioria (peritas em representação do Tribunal e da seguradora), ver quadro abaixo considerando-se que uma vez que do evento houve agravamento do estado anterior as sequelas são atribuídas como se tudo do evento resultasse e por analogia atendendo a limitação de abdução da coxa direita por resistência por queixas de dor referidas no movimento.
Pela perita da seguradora é dito ainda que a aplicação do fator 1,5 deve ficar a critério do Exmo. Juiz, uma vez que já foi anteriormente aplicado de acordo com a instrução geral 5 A).
Pelo perito médico em representação do sinistrado é dito que não apenas houve agravamento de queixas de patologia anterior degenerativa, mas também estamos perante lesões agudas identificadas clinicamente e nos exames subsidiários justificando limitação funcional de caráter permanente conforme descrito no exame objetivo: concorda com a valorização das sequelas a nível da anca/coxa direita, mesmo artigo e mesma IPP; rigidez grau I da cintura escapular esquerda a que corresponde Cap.I 3.2.7.3 a) coeficiente de 0,02 de IPP; rigidez do punho direito lado ativo (flexão limitada a 40% e extensão limitada a 20º), de acordo respetivamente com os capítulos I 7.2.2.2 b) 0,03 e Cap. I 7.2.2.1.b) 0,05. Efetuado o cálculo perfaz o total de 10, 80698% com aplicação posterior do fator 1,5 fica uma IPP de 16,21047%. Mais acrescenta que dada a especificidade e diferença na apreciação de lesões/patologia ortopédicas entende conveniente uma avaliação por junta médica desta especialidade.”

A maioria dos Peritos Médicos (da Seguradora e do Tribunal) integraram as lesões da Sinistrada no Cap.I 10.2.2.4 b) com coeficientes de incapacidade de 0,01 a 0,06 e consideraram que a Sinistrada está afectada de um coeficiente global de incapacidade de 2,82%, considerando a aplicação do factor 1,5, conforme quadro que segue:


Foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:

“Destarte, fixa-se a IPP de que padece a Sinistrada em consequência do acidente dos autos em 2,82%, a partir de 19-11-2020 e, em consequência, condena-se a BBB a pagar à Sinistrada:
a)- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 921,03 (novecentos e vinte e um euros e três cêntimos), devida desde 20-11-2020, acrescido de juros de mora sobre o capital de remição, taxa legal de 4%, desde aquela data e até efectivo pagamento;
b)- a quantia de € 131,73 (cento e trinta e um euros e setenta e três cêntimos), a título de remanescente de indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros, à taxa legal de 4%, desde a data do vencimento de cada uma das prestações e até efectivo pagamento.
c)- a quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros).
Custas a cargo da Seguradora.
Valor da acção: € 10.063,16.
Registe e notifique.
Oportunamente, proceda-se ao cálculo do capital de remição e demais D.N. (cfr. artigo 149.º do CPT).”

Inconformada com a sentença a Sinistrada recorreu e formulou as seguintes conclusões:
(…)
A Ré Seguradora contra-alegou e concluiu as alegações nos seguintes termos:
“A ora apelada conforma-se com a douta decisão do Tribunal de 1ª Instância.
Pelo exposto,
Não deve ser dado provimento ao presente recurso mantendo-se a decisão recorrida,
Conforme é de J U S T I Ç A.”

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser declarada a nulidade da sentença e de ser dado provimento ao recurso.

A Ré Seguradora respondeu concluindo que a sentença não se encontra ferida de nulidade, devendo o recurso ser julgado improcedente.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso

Sendo pacífico que o âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º nº 4 e 639º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), nos presentes autos importa decidir as seguintes questões:
- Se a sentença enferma de nulidade.
- Se deverá ser determinado que a Junta Médica proceda à avaliação das desvalorizações correspondentes às limitações verificadas no exame objetivo realizado em 18/05/21 ou se deverá ser nomeada nova junta médica da especialidade de ortopedia, proferindo-se, após, nova decisão. 

Fundamentação de facto

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
i)-no dia 14-10-2019, em Lisboa, a sinistrada sofreu um acidente que consistiu em ter escorregado no piso do parque de estacionamento, o que provocou uma extensão forçada da anca direita, e cuja qualificação como acidente de trabalho se tem por inquestionável;
ii)-na referida data a sinistrada auferia a retribuição anual de € 2.987,25 x 14 (salário base) + € 100,17 x 11 (subsídio de refeição) + € 311,21 x 12 (despesas de representação);
iii)-a sinistrada esteve em ITA entre 15-10-2019 e 16-12-2019, entre 14-01-2020 e 02-03- 2020 e entre 28-10-2020 e 04-11-2020, num total de 120 dias, e em ITP (25%) de 17-12-2019 a 13-01- 2020, em ITP (20%) de 03-03-2020 a 28-04-2020, em ITP (10%) de 29-04-2020 e 27-10-2020 e de 05- 11-2020 a 19-11-2020, data da alta, tendo recebido a título de indemnizações por incapacidades temporárias o total de € 14.211,68;
iv)-a sinistrada deslocou-se ao tribunal e ao INML, para diligências e exames médicos, nos dias 22-10-2020, 09-03-2021, 08-04-2021, 18-05-2021 e 07-12-2021;
v)-à data, a responsabilidade emergente de acidente de trabalho encontrava-se transferida para a BBB.

Fundamentação de direito

Comecemos por apreciar se a sentença enferma de nulidade.

Nesta sede invoca a Recorrente, em síntese, que: a sinistrada sofreu uma queda no dia 14/10/19 que deu origem ao acidente de trabalho constante dos presentes autos e que, no decurso e a caminho dos tratamentos prescritos pela seguradora, teve novas quedas em Junho e Outubro de 2020, consideradas pela seguradora como novas lesões, integradas e tratadas no âmbito do mesmo acidente de trabalho; e conforme consta da sentença recorrida “a única questão controvertida nestes autos respeita ao grau de incapacidade que a sinistrada ficou afetada e consequentemente o montante da pensão a que tem direito”, pois já tinham sido admitidas e assentes, na tentativa de conciliação, as lesões e o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente constantes da perícia médico-legal de 22/12/2020, pelo que a existência de lesões e o nexo de causalidade não constitui questão controvertida, mas, tão só, o grau de incapacidade decorrente do exame objetivo. Assim, acrescenta, a sentença recorrida ao integrar e reproduzir o auto de perícia médica que se pronuncia sobre questões que já estavam assentes, as lesões e o seu nexo de causalidade, contraria o disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.
Defende a Recorrida que deve ser mantida a sentença recorrida.

Vejamos:

Nos termos do artigo 615.º n.º 1 al.d) do CPC), a sentença é nula quando “O juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

E sobre esta causa de nulidade da sentença escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3ª Edição, Almedina,  pag.737: “ Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.608-2), é nula a sentença em que o faça.”

Também sobre a pronúncia indevida, já ensinava o Professor Alberto dos Reis, na pag. 143 do “Código de Processo Civil anotado”, Volume V, Coimbra Editora, LIM:”O juiz conheceu na sentença, de questão, de que não podia tomar conhecimento. Quando isso suceder, a sentença é nula.
É evidente que esta nulidade está em correlação com o 2º período da 2ª alínea do art.660º. Proíbe-se aqui ao juiz que se ocupe de questões que as partes não tenham suscitado, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso. Portanto a nulidade prevista na 2ª parte do nº 4 do artigo 668º desenha-se assim: A sentença conheceu de questões que nenhuma das partes submeteu à apreciação do juiz. Mas não existe nulidade, se por lei o juiz tinha o poder ou o dever de conhecer ex officio da questão respectiva.”

Na sentença recorrida escreve-se o seguinte:
“A única questão controvertida nestes autos respeita ao grau de incapacidade de que a sinistrada ficou afectada e, consequentemente, o montante de pensão a que tem direito.
Ponderado o teor do auto de exame por Junta Médica de 15-02-2022 (fls. 241 a 243v.) – que aqui se dá por reproduzido –, inexistindo nos autos quaisquer elementos susceptíveis de colocar em causa o juízo pericial maioritariamente formulado pelos Senhores Peritos médicos (mormente quanto à caracterização dos eventos ocorridos durante os tratamentos de MFR e avaliação das respectivas consequências, e bem assim quanto ao enquadramento das sequelas na TNI e respectiva valorização, assim como a ponderação do princípio da capacidade restante), julga-se correcto o coeficiente arbitrado, considerando-se assente que a sinistrada ficou afectada de uma IPP de 2,82% a partir de 19-11-2020.
(…).”

Ou seja, o Tribunal a quo aderiu ao parecer da maioria dos Srs. Peritos Médicos (Perito do Tribunal e da Seguradora) que consideraram que, das quedas sofridas pela Sinistrada durante os tratamentos decorrentes do acidente destes autos, resultou agravamento sintomático de patologia prévia, sem lesão traumática de novo e que, considerando que do evento houve agravamento do estado anterior, as sequelas são atribuídas como se tudo do evento resultasse e por analogia atendendo a limitação de abdução da coxa direita. E nessa sequência, integraram as lesões da Sinistrada no Cap. I 10.2.2.4 b) da TNI e consideraram que esta está afectada de um coeficiente global de incapacidade de 2,82%, considerando a aplicação do factor 1,5.

A este juízo contrapôs o Perito Médico da Sinistrada que apenas não houve agravamento de queixas de patologia anterior degenerativa, mas que também estamos perante lesões agudas identificadas clinicamente e nos exames subsidiários justificando limitação funcional de caráter permanente conforme descrito no exame objetivo. Concordou com a valorização das sequelas a nível da anca/coxa direita, mesmo artigo e mesma IPP e ainda apontou rigidez grau I da cintura escapular esquerda a que corresponde Cap.I 3.2.7.3 a) coeficiente de 0,02 de IPP; rigidez do punho direito lado ativo (flexão limitada a 40% e extensão limitada a 20º) de acordo, respetivamente com os capítulos I 7.2.2.2 b) 0,03 e Cap. I 7.2.2.1.b) 0,05, o que perfaz o total de 10,80698% e com a aplicação posterior do factor 1,5 obteve uma IPP de 16,21047%.

Ora, estatui o artigo 109.º do CPT que “Na tentativa de conciliação, o Ministério Público promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo, designadamente o resultado da perícia médica e as circunstâncias que possam influir na capacidade geral de ganho do sinistrado.”

Realizado o acordo, é imediatamente submetido ao juiz, que o homologa por simples despacho exarado no próprio auto e seus duplicados, se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais (art.114º nº 1 do CPT).

O acordo produz efeitos desde a data da sua realização (art.115º do CPT).

E de acordo com o artigo 111.º do CPT, “Dos autos de acordo constam, além da identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.”

Mas se se frustrar a tentativa de conciliação, como sucedeu no caso, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau de incapacidade atribuída. (art.112º nº 1).

E não havendo acordo na fase conciliatória, nos termos do artigo 117º, inicia-se a fase contenciosa que corre nos autos em que se processou a fase conciliatória e tem por base:
a)-petição inicial, em que o sinistrado, doente ou respectivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos;
b)-Requerimento, a que se refere o nº 2 do artigo 138º, do interessado por se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho.

Nesta fase do processo, se estiverem em discussão outras questões, para além da incapacidade do sinistrado, como a natureza do acidente, a entidade responsável, o nexo causal entre o acidente e as lesões, a responsabilidade agravada do empregador, então, o juiz determina o desdobramento do processo, determinando a abertura de um apenso onde se apreciará a incapacidade do sinistrado, conhecendo-se das restantes questões no processo principal (arts.126º e 132º).

Da leitura do auto de tentativa de conciliação decorre que o acidente consistiu em a Sinistrada ter escorregado no piso húmido do parque de estacionamento, o que provocou uma extensão forçada da anca direita do que resultaram as lesões descritas no relatório de perícia médica realizada no INML e no qual foi atribuída à Sinistrada uma IPP de 8,4684%, com alta em 19.11.2020, uma ITA durante o período de 120 dias e uma ITP num período total de 282 dias.

Na tentativa de conciliação a Sinistrada declarou estar de acordo com a avaliação da incapacidade feita pelo perito médico e aceitou a conciliação nos termos propostos pelo Ministério Público.

O Representante Legal da Seguradora reconheceu o acidente dos autos como de trabalho, o nexo causal entre esse acidente e as lesões dele decorrentes.

Mais declarou não estar de acordo com a avaliação da incapacidade feita pelo perito médico do INML e por isso não aceitou conciliar-se.

Ora, uma vez que a discordância apenas se centrou na avaliação da incapacidade feita pelo perito médico do INML, os autos ficaram a aguardar nos termos do artigo 117.º n.º 1 al.b) e 138.º n.º 2 do CPT.

Nos termos dos artigos 117.º n.º 1 al.b) do CPT, na redacção vigente à data do sinistro (Dec.-Lei n.º 295/2009 de 13.10.),  “A fase contenciosa tem por base:
a)- (…).
b)- Requerimento, a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º, do interessado que se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho.”

Por seu turno, refere o n.º 2 do artigo 138.º do CPC que “Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 119.º; se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º.”

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10.09.2020, in www.dgsi.pt 1- A fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho inicia-se mediante a apresentação de requerimento, com pedido de junta médica, apenas nos casos em que a única questão controvertida que resultou da tentativa de conciliação diz respeito à fixação da incapacidade para o trabalho (n.º 2 do artigo 138.º do CPT) em todas as restantes situações a fase contenciosa inicia-se mediante a apresentação de petição inicial, e caso esta não seja apresentada no prazo de 20 dias, que poderá ser prorrogado, suspende-se a instância (n.º 1 e 4 do artigo 119.ºdo CPT.).

Assim, no caso em análise, os autos ficaram a aguardar nos termos das referidas disposições legais, posto que, na tentativa de conciliação, apenas houve discordância quanto à questão da incapacidade da Sinistrada, tendo, assim, as demais questões resultado assentes.

E conforme se escreve na sentença recorrida “realizou-se tentativa de conciliação – conforme exarado no respectivo auto de 08-04-2021 – que viria a frustrar-se unicamente por desacordo da seguradora acerca do grau de desvalorização sofrido pela sinistrada.”

Repare-se que, no caso dos autos, a Sinistrada, durante o tratamento das lesões sofridas em consequência do acidente, sofreu duas quedas que, segundo o relatório do exame médico do INML, lhe determinaram lesões.

Não consta do auto de tentativa de conciliação que a Sinistrada ou a Seguradora discordaram quanto à existência dessas lesões e nexo de causalidade com o acidente. O que consta é que a Seguradora não concordou com a avaliação da incapacidade efectuada no exame médico singular. Ou seja, a Seguradora não aceitou que, em consequência do conjunto das lesões sofridas pela Sinistrada e que foram pormenorizadamente relatadas no exame médico singular, a Sinistrada tivesse ficado afectada com uma IPP de 8,4684%.

Assim, considerando o teor do auto de conciliação, estava vedado aos Srs. Peritos Médicos trazer à discussão, como fez a maioria dos Srs. Peritos Médicos, a existência de uma patologia prévia que não foi discutida na tentativa de conciliação e que, no fim de contas, determinou que não fossem consideradas todas as lesões descritas no exame médico do INML e que tinham sido aceites sem ressalvas.

Com efeito, como elucida o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.10.2019, in www.dgsi.pt “(…).
VIII.É no auto de conciliação que globalmente se equacionam todos os pontos decisivos à determinação dos direitos do sinistrado, conforme resulta dos artigos 111º e 112º do CPT, seja no caso de acordo, seja na falta dele.
XIX. Do confronto dos artigos 111º e 112º do CPT podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto.
X.Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.”

E que consequências retirar da pronúncia dos Srs. Peritos Médicos que constituíram o colégio maioritário e a cujo parecer aderiu a sentença recorrida?

A este propósito esclarece o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.10.2017, in www.dgsi.pt  “I– A tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público na acção emergente de acidente de trabalho destina-se a obter um acordo das partes que ponha termo ao processo;
II– Não sendo possível o acordo total, destina-se a delimitar o objecto do litígio, a dirimir na fase contenciosa;
III– Por isso, no auto de não conciliação devem constar os factos elencados no artigo 112.º do Código de Processo do Trabalho sobre os quais tenha havido ou não acordo;
IV– Se na tentativa de conciliação ter havido discordância dos intervenientes apenas quanto à questão da incapacidade para o trabalho, a fase contenciosa deve incidir apenas sobre essa matéria, e não também sobre outras, como o nexo causal entre o acidente e as lesões e/ou sequelas que o sinistrado apresenta.
V– Não tendo a junta médica assim procedido, pronunciando-se sobre o nexo causal entre o acidente e as lesões e/ou sequelas que o sinistrado apresenta, para concluir que do acidente não resultam sequelas, deve, em observância ao disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, ser anulada a mesma, bem como a subsequente sentença recorrida que nela se baseou.”

E de acordo com o mesmo aresto, “As partes ao tomarem posição concreta e definida sobre cada um destes factos circunscrevem o litígio na fase contenciosa às questões acerca das quais não foi possível obter acordo, o mesmo é dizer que é essa posição assumida sobre cada um dos factos que delimita o princípio da vinculação temática.”

No caso, uma vez que a questão das lesões ou sequelas e nexo de causalidade com o acidente já tinha sido aceite e, por isso, já tinha sido decidida definitivamente na fase conciliatória do processo, não podia a Junta Médica ter-se debruçado sobre essa questão nem, muito menos, sobre a alegada patologia prévia que não fora suscitada na tentativa de conciliação, o que também estava vedado à sentença recorrida.

E a sentença recorrida, ao aderir ao parecer maioritário da Junta Médica que conheceu de questões definitivamente assentes e não suscitadas no lugar próprio, tal repercutiu-se na matéria de facto que foi fixada pelo Tribunal a quo no ponto i) determinando a sua insuficiência.

Ou seja, estamos perante um vício da matéria de facto assente e não perante a arguida nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

Em suma, acompanhando-se o entendimento do citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, impõe-se a anulação da Junta Médica de 15.02.2022 e, consequentemente, a anulação da sentença recorrida, devendo proceder-se a nova Junta Médica que tenha em consideração a matéria assente no auto de tentativa de conciliação quanto às lesões/sequelas sofridas pela Sinistrada (limitação da mobilidade do ombro esquerdo em ombro com patologia degenerativa concomitante, limitação da flexão palmar do punho direito e limitação da abdução da anca à direita)  que também já estavam referidas no exame objectivo constante do auto da Junta médica iniciada no dia 18.5.2021, e que na tentativa de conciliação não foi suscitada a questão da existência de patologia prévia da Sinistrada e proceda à fixação da incapacidade de que esta padece, sem prejuízo do disposto no artigo 139.º n.º 7 do CPT, proferindo-se, após, a sentença.

Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

Decisão

Face ao exposto, acorda-se em anular a Junta Médica realizada no dia 15.02.2022 e a sentença recorrida, devendo realizar-se nova Junta Médica que fixe a incapacidade da Sinistrada e que tenha em consideração que a questão das lesões ou sequelas resultantes do acidente já ficou definitivamente assente na tentativa de conciliação, e que nesta não foi suscitada a questão da existência de patologia prévia  da Sinistrada, após o que deverá ser proferida nova sentença, sem prejuízo do disposto no artigo 139.º, n.º 7 do CPT.
Custas pela parte vencida a final.
Registe e notifique.



Lisboa, 7 de Julho de 2022



Maria Celina de Jesus de Nóbrega          
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Albertina Pereira

           

 
Decisão Texto Integral: