Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
357/17.4JELSB-A.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
DADOS DE TRÁFEGO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – A conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes é regulada pela Lei nº 32/2008, de 17/07, de acordo com cujo art.º 9º, a transmissão desses dados pode ser requerida pelo MP, mas só pode ser autorizada pelo juiz de instrução, por despacho fundamentado, “se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.”

– O crime de tráfico de estupefacientes em causa integra-se na definição de crime grave, por força da definição que deste se faz no artigo 1º, alínea m), do CPP mas, conforme a alínea a), do nº 3, do referido artigo 9º, apenas pode ser autorizada a transmissão de dados relativos ao suspeito ou arguido.

– Se do teor da investigação se constata que, concretamente, das movimentações do suspeito se conclui existirem já aqueles indícios mínimos que se mostram necessários para afirmar que o cidadão visado é suspeito de estar a preparar a prática de factos integradores do crime que se pretende investigar, pois na fase inicial do processo de investigação não se pode exigir a existência de fortes indícios, mas apenas a verificação de alguns indícios e se, por outro lado, se indicia a preparação de um transporte intercontinental de produto estupefaciente, conhecida que é a extrema dificuldade de investigação deste tipo de actividade (precisamente por força do nível organizativo, a discrição e precauções adoptadas pelos intervenientes para iludir a vigilância dos serviços policiais e outros de repressão a essa actividade, a susceptibilidade de represálias sobre aqueles que prestem informações, a sofisticação dos meios utilizados e os elevados valores monetários envolvidos) haverá que concluir que as impetradas diligências se revelam indispensáveis para a descoberta da verdade, e sendo, de outra forma, a prova muito difícil ou mesmo impossível de obter no âmbito desta investigação, não pode, perante estas circunstâncias e a natureza do crime, considerar-se desnecessária, desadequada, desproporcionada ou excessiva a compressão dos direitos individuais resultantes da utilização dos meios de obtenção de prova em causa.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


1.– Nos autos de inquérito com o nº 357/17.4JELSB, a correr termos na 1ª Secção de Lisboa do DIAP, foi proferido despacho pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal, aos 21/11/2017, que indeferiu o requerimento do Ministério Público em que impetrava fosse autorizada a recolha de dados de telecomunicações do suspeito J.E., bem como a recolha de som e imagem do mesmo e daqueles que com ele se relacionam no âmbito da actividade delituosa de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, em investigação.


2.– O Ministério Público não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

i.O presente recurso circunscreve-se ao entendimento que dos autos constam elementos que permitem consistentes suspeitas que J.E. - cidadão português, identificado em investigação pelas autoridades policiais norte-americanas (D.E.A.) - terá plano para a introdução de cocaína proveniente da América do Sul na Europa, considerando-se que atenta a natureza de tais factos, dimensão internacional, e estando os suspeitos já alertados por anterior investigação que sobre si recaiu dos métodos de investigação, a captura de dados de telecomunicações e recolha de registos de som e imagem são os únicos meios de recolha de indícios viável, e imprescindível à presente investigação.
ii.Considera-se que a decisão recorrida, ao indeferir o promovido, violou os arts. 18.º da C.R.P.; 187º e 189º n.º 2 do C.P.P. e 6º da Lei 5/2002, de 11.01.
iii.Iniciaram os presentes autos com informação policial que dá conta de rede de tráfico internacional de estupefacientes, que tem como interveniente principal em Portugal indivíduo já identificado como J.E..
iv.Com base em informações veiculadas pela Drug Enforcement Administration, dos E.U.A. (traduzida a fls. 13 a 15), tal indivíduo estará a manter contactos com grupos de tráfico de estupefacientes na Colômbia, para obter fornecimento de centenas de quilogramas de cocaína, que serão transportados por via marítima para a Europa. J.E. manterá contactos para o efeito em Portugal, Espanha, Itália e Reino Unido e em execução desse projecto criminoso, J.E. teria já viajado para contactos com fornecedores de cocaína na Colômbia nos passados meses de Junho e Setembro.
v.De facto, confirmando a informação da D.E.A., foi possível apurar que em Junho de 2017 J.E. viajou para o Brasil, entre 01.06.2017 e 07.06.2017, suspeitando-se que do Brasil terá viajado para a Colômbia para os referidos contactos, e viajou novamente entre 09.09.2017 e 13.09.2017, para a Colômbia (Bogotá e Cartagena), via Amesterdão (fls. 28).
vi.Assim, não só a fonte e origem de tais informações é clara -autoridades policiais norte-americanas -- como a mesma se confirmou e mostrou fidedigna pelas movimentações do suspeito, documentadas nos registos de viagem apurados pela Polícia Judiciária (fls. 28).
vii.É investigado acervo fáctico susceptível de conformar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º n.º 1 do DL 15/93, de 22.01.
viii.A confirmação da intervenção deste suspeito na actividade delituosa denunciada, a articulação e colaboração com suspeitos ainda não identificados e bem assim, as respectivas movimentações e modus operandi só poderá ser concretizada com recurso ao meio de prova de captura de dados de telecomunicações, para identificação de aparelhos de telemóvel utilizados pelo suspeito J.E. e subsequente intercepção telefónica das comunicações efectuadas e recebidas por estes (bem como obtenção de dados de tráfego e de localização celular), e recolha de registos de som e imagem do suspeito.
ix.De facto, trata-se de suspeito que estará integrado em rede de tráfico de estupefacientes de dimensão internacional e por isso especialmente alertado para os métodos de investigação desenvolvidos neste tipo de ilícito, e conhecedor dos métodos de recolha de indícios utilizados na investigação deste crime.
x.Na situação em análise o interesse do Estado na administração da Justiça prevalece sobre o direito protegido pelo sigilo das telecomunicações justificando-se a compressão de direitos fundamentais, nomeadamente o direito à intimidade da vida privada, e o direito constitucional pelo que atento o disposto nos art. 9º, 135º, 182º, 187º nº 1 alínea a) do Código de Processo Penal, atendendo a impossibilidade prática de avançar com outros meios de investigação e porque estamos perante pessoa referida no art. 187º nº 4 do Código de Processo Penal - suspeito - afigura-se ser necessária a captura de dados de telecomunicações (e subsequente intercepção telefónica, recolha de dados de tráfego e localização celular), a par de recolha de registos de som e imagem.
xi.Sobressai deste modo que o único iter investigatório viável, nesta fase, é a captura de dados de telecomunicações, para identificação dos telemóveis utilizados pelo suspeito J.E. e a recolha de registos de som e imagem.
xii.É consabido que os indivíduos que se dedicam a esta actividade têm especiais cuidados nos contactos que mantêm, sejam presenciais, sejam mesmo telefónicos, tratando-se de alvos alertados, e de uma actividade com conexão internacional.
xiii.Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.11.2000, proferido no processo 23105, in www.dgsi.pt, "a intercepção e gravação de escutas telefónicas não devem nem podem ser autorizadas pelo Juiz de Instrução apenas e só quando existirem indícios suficientes da prática do crime, pois nessa situação nem seriam já necessárias atenta a danosidade à vida prática do cidadão A sua utilidade e necessidade visam, precisamente, preencher e reforçar aquele conceito de indícios suficientes, desde que se revelem proporcionais e adequados à natureza e gravidade do crime, como sucede, com frequência, no tráfico de droga onde, sem aquele meio de prova, não é fácil ultrapassar o estádio de forte suspeita dado o "modus operandi" dos traficantes'':
xiv.Pelo que apenas se poderá ultrapassar o formulado juízo de suspeita existente nos autos com o recurso às promovidas captura de dados de telecomunicações e recolha de registo de som e imagem,
xv.No confronto entre os sacrifícios que o tráfico de estupefacientes traz às vítimas (toxicodependentes e famílias, bem como vítimas de crimes contra o património e contra as pessoas perpetradas por tais indivíduos dependentes) e Estado e a devassa do sigilo das comunicações deve relevar, como valor digno de maior tutela, sem dúvida, os interesses da investigação criminal, e assim a captura de dados de telecomunicações e registo de som e imagem, que se revelam proporcionais e adequados à natureza e gravidade do crime de tráfico de estupefacientes, sendo, na conjuntura actual, os meios mais adequados à descoberta da rede de traficantes.
xvi.Por isso não se compreende, nem se aceita, que perante tão gravoso ilícito, não se haja deferido a captura de dados de telecomunicações e recolha de registo de som e imagem, até na medida em que tal diligência é sujeita a cautelas e a controlo efectivo, no interesse dos visados, por esta Secção de Instrução Criminal de Lisboa.
xvii.Pelo exposto, tendo em atenção a natureza e gravidade do crime denunciado, na impossibilidade de realizar qualquer outra diligência probatória em ordem à recolha de indícios, entendemos que a captura de dados de telecomunicações e recolha de registos de som e imagem promovidas e negadas pelo despacho judicial ora recorrido revelam primordial interesse quer para a descoberta da verdade, quer para a prova a recolher nos autos, sendo aliás a única forma de esta recolha ser viável.
xviii.Concluindo-se então que, decidindo como o fez, a decisão ora recorrida violou as normas legais dos arts. 18º da C.R.P.; 187º do C.P.P. e 6º da Lei 5/2002, de 11.01.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que autorize a captura de dados de telecomunicações ao suspeito J.E., bem como a recolha de registo de som e imagem deste suspeito e de indivíduos que com ele se relacionem no âmbito da actividade criminosa sob investigação, nos termos do disposto nos arts. 187º n.º 1 a) e b); 188º; 189º; 269º nº 1 e), todos do Código de Processo Penal; arts.1º e 6º n.º 1 da Lei 5/2002, de 11.01 e 18º; 32º e 34º da C.R.P.

3.– Inexiste resposta à motivação de recurso.

4.– Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento.

5.– Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II– FUNDAMENTAÇÃO.

1.– Âmbito do Recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se o despacho recorrido, ao indeferir a pretensão do Ministério Público vertida no seu requerimento de 20 de Novembro de 2017, violou o estabelecido nos artigos 187º, nº 1, alíneas a) e b), 188º, 189º e 269º, nº 1, alínea e), do CPP e artigos 1º, nº 1 e 6º, da Lei nº 5/2002, de 11/01 (quanto à recolha de som e imagem).

2.– Elementos relevantes para a decisão.

2.1– Aos 20/11/2017, requereu o Ministério Público ao Mmº Juiz de Instrução Criminal como se transcreve:

1- Da captura de dados de telecomunicações
Iniciaram os presentes autos com informação policial que dá conta de rede de tráfico internacional de estupefacientes, que tem como interveniente principal em Portugal indivíduo já identificado como J.E..
Com base em informações veiculadas pelo Drug Enforcement Administration, dos E.U.A. (traduzida a fls. 13 a 15), tal indivíduo estará a manter contactos com grupos de tráfico de estupefacientes na Colômbia, para obter fornecimento de centenas de quilogramas de cocaína, que serão transportados por via marítima para a Europa J.E. manterá contactos para o efeito em Portugal, Espanha, Itália e Reino Unido. Em execução desse projecto criminoso, J.E. teria já viajado para contactos com fornecedores de cocaína na Colômbia nos passados meses de Junho e Setembro.
De facto, confirmando a informação da D.E.A., foi possível apurar que em Junho de 2017 J.E. viajou para o Brasil, entre 01.06.2017 e 07.06.2017, suspeitando-se que do Brasil terá viajado para a Colômbia para os referidos contactos, e viajou novamente entre 09.09.2017 e 13.09.2017, para a Colômbia (Bogotá e Cartagena), via Amesterdão (fls. 28).
Importa pois ora apurar a actividade delituosa, dimensão da mesma e identificação cabal dos seus intervenientes.
É investigado acervo fáctico susceptível de conformar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º n.º 1 do DL 15/93, de 22.01, eventualmente agravado nos termos do art. 24º h) do mesmo diploma legal.
Neste momento, a confirmação da intervenção do suspeito já identificado na actividade delituosa denunciada, a articulação e colaboração com suspeitos ainda não identificados (designadamente colaboradores, compradores em larga escala e fornecedores de estupefacientes) e bem assim, as respectivas movimentações e modus operandi só poderá ser concretizada com recurso ao meio de prova de intercepções telefónicas, sobre os números de telemóveis utilizados por este suspeito.
De facto, trata-se de um tipo de crime e modus operandi que se desenrola com suspeitos especialmente alertados para os métodos de investigação desenvolvidos neste tipo de ilícito, em particular pela dimensão internacional que a actividade adquire.
O uso dos meios de prova ora solicitados mostra-se regulamentado nos termos constantes dos arts. 32º e 34º da Constituição da República Portuguesa; art. 187º, 188º e 189º do Código de Processo Penal com as alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto.
A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade, ou que a prova seria, de outro modo, impossível ou muito difícil de obter a requerimento do Ministério Público e mediante despacho fundamentado do Juiz de Instrução Criminal, o direito à palavra e os dados pessoais dos utilizadores de serviços constituem reserva de intimidade do cidadão e a sua violação contende com bens jurídicos pessoais que atingem a esfera da privacidade de cada utilizador dos serviços.
Tal diligência só pode ser ordenada ou autorizada, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no art. 187º, e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo. Sendo que no caso dos autos e porque se trata de tráfico de estupefacientes, encontram-se estes ilícitos previstos no mencionado art. 187º nº 1 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal,
As necessidades de perseguição criminal e de obtenção de provas justificam a compressão do direito individual à comunicação reservada, carecendo, embora, de ser avaliadas pelas autoridades judiciárias, segundo critérios de necessidade, de adequação e de proporcionalidade.
Termos em que, estas diligências só devem ser requeridas ou autorizadas nos casos em que seja indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova, seria de outra forma impossível ou muito difícil de obter, porquanto ao ordenar-se estas diligências há uma óbvia compressão de direitos fundamentais do arguido.
Na situação em análise o interesse do Estado na administração da Justiça prevalece sobre o direito protegido pelo sigilo das telecomunicações justificando-se a compressão de direitos fundamentais, nomeadamente o direito à intimidade da vida privada, e o direito constitucional pelo que atento o disposto nos art. 9º, 135º, 182º, 187º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, atendendo à impossibilidade prática de avançar com outros meios de investigação e porque estamos perante as pessoas referidas nos art. 187º nº 4 do Código de Processo Penal – suspeitos – afigura-se ser necessária a identificação e captura de dados de telecomunicações.
Sobressai deste modo que o único iter investigatório viável, nesta fase, é a intercepção de comunicações veiculadas através dos telemóveis que venham a ser identificados, do suspeito J.E..
É consabido que os indivíduos que se dedicam a esta actividade têm especiais cuidados nos contactos que mantêm, sejam presenciais, sejam mesmo telefónicos. Trata-se de alvos alertados, e de uma estrutura internacional bem organizada.
Vem a Polícia Judiciária solicitar autorização para captura de dados de telecomunicações que se encontrem em uso pelo suspeito, nomeadamente para identificação de aparelhos de telemóvel eventualmente em uso por este.
Visa-se, assim, obter "dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado", cfr. definição dos art. 1º, nº 1, 2º, nº 1, al. a) e 9º, nº 1 da Lei nº 32/2008, de 17/07.
A ponderação dos interesses e valores é idêntica à já efectuada a propósito da autorização para as intercepções telefónicas, valendo os princípios consagrados no art. 34º, nº 4 da CRP e 126º, nº 3 do CPP.
Assim, e nos termos dos art. 18º, nº 2, 3 e 4 da Lei nº 109/2009, de 15/09, e 189º, nº 2 do CPP, promove-se à Mmª Juiz de Instrução Criminal renove a autorização para captura de dados de telecomunicações do suspeito J.E., nomeadamente para identificação de aparelhos eventualmente em uso por este, até 24.12.2017 .

2 Da recolha de som e imagem
Mais se promove autorização para recolha de som e imagem de J.E., bem como daqueles que com ele se relacionam no âmbito da actividade delituosa.
O presente inquérito investiga a prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º n.º 1 da Lei 15/93, de 22.01.
De facto, denuncia-se nos autos a existência de uma actividade criminosa, cautelosa, de contornos internacionais, que mantém contactos muito discretos e com vários intervenientes, e que perspectiva e projecta, de forma especialmente sigilosa, a aquisição, transporte para a Europa e subsequente venda a terceiros de produto estupefaciente.
Revela-se assim indispensável para a investigação, determinação das interacções entre os agentes e papel de cada um na actividade criminosa que seja deferida a autorização para recolha de registo de som e imagem, do suspeito J.E. e seus colaboradores ou pessoas que com os mesmos contactem no âmbito da prática do ilícito em investigação, o que se promove nos termos do art. 1º n.º 1 e art. 6º da Lei 5/2002 de 11.01, até 24.12.2017.

2.2– Em 21/11/2017, foi proferida a decisão recorrida, que apresenta o seguinte teor (transcrição):

II.Recolha de imagem, som e captura de dados
De fls. 30 a 33 consta uma promoção no sentido da autorização de recolha de imagem e som de suspeito, bem como da captura de dados de telecomunicações ali referidos.
A razão de tal requerimento encontra-se em informações de serviço, estrangeira e nacional, cujo fundamento em absoluto se desconhece, sobre a participação criminosa do suspeito em actividade de tráfico de estupefacientes.
Na realidade, nada se refere sobre a forma como foi colhida a informação supostamente sobre a actividade do arguido e, portanto, sobre a sua credibilidade e validade, quer a referida a fls. 21 e 22, quer a proveniente das autoridades norte americanas.
Em face desses elementos não é possível sustentar a existência de indícios validamente recolhidos em processo penal e, designadamente, indícios qualificados que suportem a ideia de estar o suspeito agora identificado a praticar qualquer facto criminoso.
A captura de dados e intercepção de telecomunicações, bem como a recolha de imagem e som de suspeitos, porque constituem excepções ao princípio constitucional de reserva da vida privada e da inviolabilidade das comunicações (art. 34.º da CRP) e se encontram limitadas pelo princípio constitucional da proporcionalidade (art. 18.º da CRP), apenas devem ser autorizadas quando houver razões para crer que as mesmas se revelam de grande interesse para a descoberta da verdade material ou para a prova (pressuposto que se refere à indiciação da actividade criminosa), para além de as mesmas apenas deverem ser autorizadas quando não existe outra razoável possibilidade investigatória (artº 187, nº 1 do Código de Processo Penal e art. 6º da Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro).
A questão que se coloca consiste em saber se no presente caso e com os elementos referidos existem razões sérias para crer que o promovido reveste de grande interesse para a descoberta da verdade material e revelam uma proporcionalidade entre os direitos eventualmente afectados e os interesses da investigação. Atento o já referido, julgamos que não.
As referidas diligências promovidas apenas poderiam criar os indícios que agora inexistem; como também poderiam não o permitir.
Face à inexistência de indícios não existem razões sérias para crer que o promovido reveste de grande interesse para a descoberta da verdade material.
Pelo exposto indefiro tudo o promovido de fls. 30 a 33 (pontos 1 e 2).

Apreciemos.

Nos presentes autos de inquérito investiga-se a prática de factos eventualmente integradores de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, cominado com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Tiveram eles início com uma comunicação da Polícia Judiciária, segundo a qual a Drug Enforcement Administration dos E.U.A. veiculou informação no sentido de que o cidadão português J.E. se deslocou à Colômbia e manteve contactos com indivíduos integrantes de grupos que se dedicam ao tráfico de cocaína, com vista ao fornecimento de centenas de quilogramas deste produto e seu transporte por via marítima para a Europa, com entrega em Portugal ou Espanha.

Mais informou a D.E.A. que o referenciado indivíduo viajou para o Brasil entre 01/06/2017 e 07/06/2017, suspeitando-se que daquele país se terá deslocado para a Colômbia e viajou igualmente entre 09/09/2017 e 13/09/2017 para a Colômbia via Amesterdão.

Foram realizadas diligências pela Polícia Judiciária, de onde resulta que J.E. viajou de Lisboa para São Paulo no dia 01/06/2017 e regressou no dia 07/06/2017, não tendo sido possível comprovar os voos do Brasil para Colômbia e regresso.

Apurou-se ainda que, no dia 09/09/2017 viajou ele de Lisboa para Amesterdão – Amesterdão para Bogotá – Bogotá para Cartagena (Colômbia), tendo regressado no dia 13/09/2017, efectuando o percurso inverso e que no dia 07/11/2017 se deslocou a Sanlucar La Mayor (zona de Sevilha- Espanha).

Como se alcança do transcrito requerimento do Ministério Público e das conclusões VIII, X e XI da motivação de recurso, pretende-se “a captura de dados de telecomunicações, para identificação dos telemóveis utilizados pelo suspeito J.E. e a recolha de registos de som e imagem”.

De acordo com a alínea b), do nº 1, do artigo 187º, do CPP, trazida à colação pelo recorrente, “a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes (…) Relativos ao tráfico de estupefacientes”, sendo que tais intercepções e gravação só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra suspeito ou arguido – alínea a), do nº 4; pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido – alínea b), do mesmo; ou vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido – alínea c).

E, o crime de tráfico de estupefacientes em causa nos autos integra também o catálogo do nº 1, do artigo 1º, da Lei nº 5/2002, de 11/01, concretamente a sua alínea a), sendo que, de acordo com o nº 1, do artigo 6º, da mesma, “é admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.”

Porém, a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes é regulada pela Lei nº 32/2008, de 17/07.

E, de acordo com o artigo 9º desta Lei, a transmissão desses dados pode ser requerida pelo MP, mas só pode ser autorizada pelo juiz de instrução, por despacho fundamentado, “se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.”

O que se tem de entender por “crime grave”, para efeitos da aplicação desta Lei, elucida-nos o artigo 2º, nº 1, alínea g), a saber: crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

O crime de tráfico de estupefacientes em causa integra-se na definição de crime grave, por força da definição que deste se faz no artigo 1º, alínea m), do CPP.

Mas, conforme a alínea a), do nº 3, do referido artigo 9º, apenas pode ser autorizada a transmissão de dados relativos ao suspeito ou arguido, sendo certo que nestes autos não foi J.E. constituído arguido.

Pois bem, suspeito é, conforme a definição vertida no artigo 1º, alínea e), do CPP, “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar.”

Ora, conjugando o teor da informação da D.E.A. com os elementos apurados pela Polícia Judiciária, concretamente as movimentações de J.E., temos de concluir que existem já aqueles indícios mínimos que se mostram necessários para afirmar que o cidadão visado é suspeito de estar a preparar a prática de factos integradores do crime que se pretende investigar, pois vero é que na fase inicial do processo de investigação não se pode exigir a existência de fortes indícios, mas apenas a verificação de alguns indícios.

Por outro lado, tendo em atenção que se indicia a preparação de um transporte intercontinental de produto estupefaciente, conhecida que é a extrema dificuldade de investigação deste tipo de actividade (precisamente por força do nível organizativo, a discrição e precauções adoptadas pelos intervenientes para iludir a vigilância dos serviços policiais e outros de repressão a essa actividade, a susceptibilidade de represálias sobre aqueles que prestem informações, a sofisticação dos meios utilizados e os elevados valores monetários envolvidos) entendemos que as impetradas diligências se revelam indispensáveis para a descoberta da verdade, sendo também, de outra forma, a prova muito difícil ou mesmo impossível de obter no âmbito desta investigação.

O artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, consagra que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e resultando do nº 3 que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto, não podendo ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

No artigo 26º, nº 1, mostra-se tutelado o direito fundamental da reserva da intimidade da vida privada.

Por seu turno, o artigo 34º, da Lei Fundamental, acolhe a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, estabelecendo-se no nº 1 que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, sendo, de acordo com o nº 4, proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

Para além do que ficou expresso, importa também atender a que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime de grande danosidade social, cujos interesses chegam a penetrar mesmo no coração dos sistemas económicos e políticos de alguns Estados.

Assim, o pretendido pelo Ministério Público tem pleno cabimento nas restrições ao direito fundamental da reserva da intimidade da vida privada assegurada, entre o mais, pela inviolabilidade dos meios de comunicação privada, com ressalva precisamente dos casos previstos na lei em matéria de processo criminal, tal como as normas de processo penal e das Leis nº 5/2002 e 32/2008 as delimitam, não podendo considerar-se desnecessária, desadequada, desproporcionada ou excessiva a compressão dos direitos individuais resultantes da utilização dos meios de obtenção de prova em causa.

Pelo exposto, cumpre conceder provimento ao recurso e revogar a decisão revidenda.

III–DISPOSITIVO.

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto, revogar a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que, conforme expressamente impetrado nas conclusões de recurso, autorize a captura de dados de telecomunicações ao suspeito J.E., bem como a recolha de registo de som e imagem deste e de indivíduos que com ele se relacionem no âmbito da actividade criminosa sob investigação.

Sem tributação.


Lisboa, 9 de Janeiro de 2018.


(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).


(Artur Vargues)
(Jorge Gonçalves)