Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6145/16.8T8ALM.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: FUNERAL
CADÁVER
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CONTRATO MISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA PARCIALMENTE
Sumário: I.– Saber se o contrato que integra a causa de pedir foi celebrado entre as partes na ação, como o autor alega, ou entre o réu e um terceiro, como o réu afirma, é questão de facto atinente ao mérito da causa, e não relativa à legitimidade processual.

II.– A atividade funerária está prevista e regulada no DL 10/2015, de 16 de janeiro, designado por regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração, alterado pelo DL 102/2017, de 23 de agosto.

III.– É aí descrita como consistindo na prestação de quaisquer dos serviços relativos à organização e à realização de funerais, de transporte, de inumação, de exumação, de cremação,de expatriação e de trasladação de cadáveres ou de restos mortais já inumados; complementarmente e entre outras, preveem-se as atividades conexas de remoção de cadáveres, transporte de cadáveres, preparação e conservação temporária de cadáveres, obtenção da documentação necessária à prestação dos serviços referidos, venda de artigos funerários e religiosos, aluguer ou cedência de veículos destinados à atividade e de artigos funerários e religiosos, ornamentação e decoração de atos fúnebres e gestão e exploração de capelas.

IV.– Um contrato celebrado entre uma agência funerária e um cliente com vista à realização de um funeral reconduz-se essencialmente ao modelo da prestação de serviço ou a um contrato misto que inclui transporte e compra e venda de urna e outros artigos, mas onde as notas predominantes são de prestação de serviço.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

I.Relatório:


FUNERÁRIA..., ré no processo indicado à margem em que são autores Paula... e Sérgio..., notificada da sentença que julgou a ação parcialmente procedente, proferida em 4 de setembro de 2017, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.

Os autores tinham intentado a presente ação contra a ré recorrente e dois sócios-gerentes desta pedindo que os réus fossem condenados solidariamente a pagar-lhes a quantia global de € 16.000 (dezasseis mil euros), sendo € 1.500 (mil e quinhentos euros) a título de danos patrimoniais e € 14.500 (catorze mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contabilizados à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento.

Para tanto alegaram, em síntese, que na qualidade de filhos de A..., falecida a 24 de Março de 2016, celebraram com a 1.ª Ré um contrato de prestação de serviços fúnebres, no âmbito do qual esta se obrigou a transportar o cadáver desde o Hospital Garcia de Orta até às suas instalações e, bem assim, a preparar, arranjar e vestir o corpo, tendo em vista a celebração das exéquias e posterior cremação.

Mais alegaram que a 1.ª Ré não cumpriu integralmente com as obrigações a que se vinculou, considerando que não preparou e vestiu o cadáver, mantendo-o num saco de plástico e impedindo os Autores de abrirem a urna durante o funeral, para tanto justificando que o cadáver continha perigo de infeção e risco para a saúde pública, circunstância que é refutada pelos Autores.

Regularmente citados, os réus contestaram conjuntamente a ação, excecionando a ilegitimidade passiva dos 2.º e 3.º réus, impugnando motivadamente os factos vertidos pelos autores na petição inicial e concluindo pela improcedência da ação.

Os Autores responderam à matéria de exceção, desistindo da instância quanto ao 2.º e 3.º réus, desistência que por estes foi aceite, tendo sido homologada.

Após a audiência final foi a ação julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar aos autores a quantia de € 260 (duzentos e sessenta euros), acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, calculados à taxa supletiva legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento do capital em dívida; e a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios vincendos, computados à taxa supletiva legal de 4% ao ano, desde a data da prolação da presente sentença (04.09.2017) até efetivo e integral pagamento; tendo sido absolvida do demais peticionado.

Com esta sentença não se conforma a ré, que dela interpõe o presente recurso.

A recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:
«Da ilegitimidade dos Autores
i. Do apurado em julgamento ressalta, essencialmente e cabalmente, que os Autores não lograram provar, conforme lhes competia, terem contratado e formalizado em seu nome os serviços funerários, facto que nunca foi aceite pela aqui Recorrente.
ii. Pelo que é clarividente que se encontra incorretamente apreciada e julgada a questão da legitimidade dos AA que a Ré submeteu expressamente à apreciação e foi levada a tema da prova.
iii. Já que sindicada a sentença e perscrutada a prova não têm os Autores – de facto ou de direito – legitimidade para invocar efeitos derivados de um contrato do qual não foram contraentes, cujo ónus da prova lhes caberia.
iv. Consequentemente deverá ser levado aos factos provados Nº 8 Que dia 24 de Março de 2016, a primeira autora contactou a Ré, na qualidade de filha e em representação do seu pai L..., cônjuge sobrevivo, solicitando a prestação de serviços àquele, relativos à organização e realização do velório de A..., incluindo a obtenção de documentação, remoção do cadáver do Hospital Garcia de Orta e transporte para as exéquias fúnebres, preparação do cadáver com o objetivo de ser limpo e vestido e encerrado em caixão de madeira e cremação do corpo.
Nº 9. Em consequência das indicações da primeira Autora, o contrato foi estabelecido entre L... e a Ré, que emitiu todos os documentos oficiais em nome do cliente e cônjuge sobrevivo L..., e recebeu deste em contrapartida dos serviços mencionados em 8) a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
v. Ora, sendo a ilegitimidade das partes, uma exceção dilatória, ou seja, uma deficiência do processo que obsta a que o tribunal conheça do mérito, deverá a sentença ser revogada e substituída por decisão que determine a absolvição da instância (art. 288º e 493º do CPC);

Do incumprimento contratual
vi. Sem conceder, o presente recurso é igualmente interposto com impugnação da matéria de facto e reapreciação da prova gravada, por subsistirem contradições e ambiguidades que tornam a decisão ininteligível, na parte em que atento o acervo da factualidade dada como provada, julga que a Ré incorreu em incumprimento parcial, porquanto assumiu a obrigação de preparar o cadáver (na vertente de limpar e vestir) e não executou tal prestação, tendo a urna permanecida fechada durante as exéquias fúnebres, porquanto tout court se provou que o manuseamento e exposição aeróbica do cadáver em urna aberta durante a celebração das exéquias fúnebres não acarretava (na realidade) risco de contaminação para a coletividade e perigo para a saúde pública [cfr. facto E)] ainda que o cadáver tivesse sido entregue acompanhado de um cartão a indicar RISCO BIOLÓGICO: SIM X AGENTE: ESTAFILOCOS E PSEUDENOMAS INFECTADO [CFR facto 12)] e ainda que a Ré tenha informado que devido à informação do cartão, que o cadáver poderia ser vestido e manuseado, bem como a urna ser aberta durante a celebração das exéquias fúnebres, caso os Demandantes obtivessem junto do Hospital Garcia de Orta uma declaração médica a permitir expressamente a preparação do cadáver e a abertura da urna. [cfr. facto 19]

vii. Ora, devidamente reapreciada a prova, não pode deixar de se concluir que:
a)- o referido cartão não indicava o nível de risco ou grupo dos mencionados agentes biológicos;
b)- os agentes biológicos estafilococos (Staphylococcus) e pseudomonas são reconhecidamente infeciosos para o ser humano e constam da Lista dos agentes biológicos classificados nos grupos 2, 3 e 4 anexo à Portaria nº 1036/98 de 15 de Dezembro;
c)- os funcionários da ré receberam indicação do funcionário da casa mortuária para vestirem luvas, máscaras, e bata. (o que só acontece quando efetivamente há um risco biológico que impeça o manuseamento do cadáver);
d)- à data dos factos, os médicos do Hospital Garcia de Orta não faziam constar qualquer anexo às guias de transporte de cadáveres infetados e/ou com risco biológico;
e)- as Funerárias guiarem-se também em matéria de proteção e segurança pelas informações insertas nos cartões de óbito;
f)- não terem as funerárias acesso ao certificado de óbito eletrónico;

viii.– Concomitantemente levando-se aos factos provados: que os AA não contactaram nem se dirigiram ao Hospital Garcia de Orta por forma a obter esclarecimentos que apenas aos próprios seria facultada, a fim de obter um outro documento hospitalar que assegurasse que o corpo podia ser manuseado e exposto sem cautelas.
ix.– E consequentemente concluindo-se que recairia obviamente sobre os familiares, a obrigação de obterem declaração médica que expressamente clarificasse que o cadáver podia ser preparado e a urna aberta (derrogando o dever de zelo que no caso se fazia sentir) uma vez que se trataria de informação que só pelos mesmos poderia ser obtida.
Sem conceder,
x.– Atenta a matéria provada a sentença enferma de erros de julgamento já que é insofismável que 1) o cadáver foi entregue com indicação de risco biológico, 2) que a Ré não tem acesso a informações clínicas confidenciais, 3) e que solicitou a entrega de uma declaração médica (que
podia ter sido obtida em tempo útil) pelo que a conclusão retirada pelo Tribunal de que a Ré incorreu em incumprimento parcial é incompreensível e manifestamente errada.
xi.– Já que naquelas circunstâncias: entrega do corpo com um cartão de óbito a indicar risco biológico com agentes de grupo de risco 2, 3, e 4, fazendo apelo a critérios de boa-fé, de experiência e de razoabilidade, mostra-se legitimada a cautela da Ré em não manusear/vestir o cadáver, informando que a urna deveria permanecer fechada, não a fazendo, por isso, incorrer em incumprimento por não ter preparado o cadáver.
xii.– Relevando e não podendo de se deixar de ter em conta a inércia dos familiares na obtenção de esclarecimentos junto do Hospital Garcia de Orta, que devendo e podendo fazê-lo, contribuíram para a desconformidade contratual, provocada única e exclusivamente pela errada informação que o Hospital fez constar do dito cartão de óbito.
xiii.– E assim será porque nos presentes autos a Ré demonstrou que não vestiu o cadáver, porque o mesmo foi entregue com uma informação de risco biológico e se limitou a cumprir os procedimentos habituais.
xiv.– De facto, a Ré provou que esse incumprimento não derivou de culpa sua, que foi cautelosa e usou do devido zelo, em face das circunstâncias concretas do caso, tal como faria uma pessoa, normalmente, diligente.
xv.– Tendo indubitavelmente afastado a presunção de culpa quando demonstrou que o incumprimento da prestação não derivou de culpa sua, posto que foi devido a falta de terceiro (no caso ao Hospital Garcia de Orta) que fez constar uma informação errada/imprecisa no cartão de óbito.
xvi. Para cuja consequência concorreu igualmente a conduta omissiva dos familiares, que devidamente informados e interpelados, não obtiveram em tempo útil esclarecimentos ou declaração médica a derrogar as medidas cautelares que se impunham perante aquela informação de risco biológico.
xvii.– Não sendo despiciente convocar que ou há risco ou não há, e que um corpo pode estar infetado sem risco biológico. (como se veio a revelar ser o caso da mãe dos AA)
xviii.– Pelo que s.m.o. as circunstâncias e factos provados deveriam ter levado à conclusão de que a Ré afastou a presunção de culpa, e sem conceder que a omissão e falta de colaboração dos familiares justificariam a exclusão da indemnização.

Do dano e prejuízo indemnizável
xix.– Sem conceder, no caso dos autos verifica-se com suficiente clareza que os AA não tiveram qualquer repercussão negativa no seu património (já que nada pagaram), pelo que inexistindo dano específico, encontra-se prejudicada a obrigação de indemnizar no quadro da responsabilidade civil.
xx.– E assim será porquanto não só os AA claudicaram na prova que lhes incumbia, como os elementos documentais (Doc. 5 da PI, ofícios e cópias dos requerimentos juntos aos autos) [facto 24] demonstram e levariam à conclusão que o preço foi pago pelo cônjuge sobrevivo (que apenas podia receber o subsídio por morte por ter apresentado o recibo do funeral titulado em seu nome (conforme se expressamente se comina no nº 4 do artº 50 do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro);
xxi.– Consequentemente não tendo sido determinado a existência real de prejuízos e não sendo o dano patrimonial reflexo indemnizável, não podia o Tribunal a quo condenar a Recorrente no pagamento aos Recorridos de uma indemnização, fixada por redução de uma contraprestação que não contrataram nem pagaram.

Dos danos morais; Quantum
xxii. Sem conceder, ditou finalmente a sentença sub judicio que ficou demonstrado que os Autores visualizaram o cadáver nu da sua mãe com a cara coberta por gaze e a boca e o nariz cobertos por adesivos, colocado no saco de plástico no interior da urna, o que lhes causou enorme choque e tristeza e que, em consequência de a Ré não ter vestido e preparado o cadáver de A... e da urna ter permanecido fechada durante o velório, os Autores ficaram abalados, transtornados, tristes e angustiados [cfr. factos 20) e 21)], sendo forçoso concluir que os mesmos sofreram prejuízos, de cariz não patrimonial, em consequência direta das violações contratuais perpetradas pela Ré (dano e nexo de causalidade). Em face do exposto, extrai-se com clarividência que, no caso concreto, se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil contratual imputável à Ré, afigurando-se inequívoco que a mesma terá que responder diretamente perante os Autores pelos danos decorrentes das violações contratuais descritas.

xxiii. Ora conforme resulta dos factos provados: 20. Não obstante o facto mencionado em 18), os Autores solicitaram junto dos funcionários da Ré que abrissem a urna de sua mãe e visualizaram o cadáver nu de A...  com a cara coberta por gaze e a boca e o nariz cobertos por adesivo, colocado no saco de plástico no interior da urna e observaram que as roupas que tinham escolhido para vestir o cadáver de sua mãe se encontravam colocadas aos pés do corpo, o que lhes causou choque e tristeza. 21. Os Autores ficaram abalados, transtornados, tristes e angustiados, em consequência de a Ré não ter vestido e preparado o cadáver de A...  e da urna ter permanecido fechada durante o velório.
xxiv. Ora como é bom de ver foram os AA não obstante o facto mencionado em 18 que solicitaram expressamente aos funcionários da Ré para abrirem a urna, o que seria consabido provocar-lhes choque e tristeza, já que sabiam que a mãe não estava vestida nem preparada para as exéquias fúnebres.
xxv. Desta forma, deveria o Tribunal a quo ter dado por não verificado o nexo empírico entre a não preparação do corpo encerrado em urna fechada e a abertura e visualização do cadáver pelos familiares, pois não se poderia afirmar qualquer nexo de causalidade sob o ponto de vista jurídico, pois os AA sabiam que o corpo da sua mãe não se encontrava preparado para ser exibido, e no entanto, no livre exercício da sua vontade, ao darem ordem para abrir e visualizar o cadáver, colocaram tal causa no processo causal concreto que levou ao choque e tristeza na visualização do ente familiar.
xxvi. Deverá pois concluir-se, por conseguinte, pela inexistência do apontado nexo de causalidade, o que implica a revogação da sentença por decisão que determine a improcedência do pedido.
xxvii.– E sem conceder, tendo em conta todas as circunstâncias do caso e a existência de cônjuge sobrevivo cuja idealização da cerimónia é desconhecida, ser reduzido o quantum indemnizatório fixado em € 5000 (cinco mil euros) já que não se pode olvidar que a causa da tristeza, transtorno e angústia radicou na própria morte do ente querido.

Termos em que a)- Os elementos de prova juntos aos autos não justificam a decisão de condenação, que expressamente se impugna, ou seja a prova produzida e a reapreciar, impõe decisão diversa da ora recorrida.
b)- A decisão recorrida assenta em pressupostos, conclusões e argumentos errados, que da factualidade vertida eram necessários para se poder formular um juízo decisório.
c)- De acordo com um raciocínio lógico, conclui-se que a decisão do tribunal a quo não ficou de forma suficiente esclarecida, pois analisando os fundamentos indicados na motivação de facto da decisão e ponderando-os com as regras da lógica e experiência comum, afere-se a falta de razoabilidade do julgamento dos factos indiciados e não indiciados, feito pelo tribunal no exercício da sua livre convicção, demonstrando-se que o raciocínio que lhe subjaz não é lógico, não tendo, também procedido a uma correta valoração jurídica e julgamento de direito.

Cremos, assim, que a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo deverá merecer censura, pelo que, deve ser dado provimento ao recurso ora interposto, sendo
a)- A Sentença recorrida revogada e substituída por outra que leve aos factos provados:
Nº 8 Que dia 24 de Março de 2016, a primeira autora contactou a Ré, na qualidade de filha e em representação do seu pai L..., cônjuge sobrevivo, solicitando a prestação de serviços àquele, relativos à organização e realização do velório de A... , incluindo a obtenção de documentação, remoção do cadáver do Hospital Garcia de Orta e transporte para as exéquias fúnebres, preparação do cadáver com o objetivo de ser limpo e vestido e encerrado em caixão de madeira e cremação do corpo.
Nº 9. Em consequência das indicações da primeira Autora, o contrato foi estabelecido entre L... e a Ré, que emitiu todos os documentos oficiais em nome do cliente e cônjuge sobrevivo L..., e recebeu deste em contrapartida dos serviços mencionados em 8) a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
Concomitantemente determinando-se a absolvição da instância (art. 288º e 493º do CPC);
Sem conceder
b)- A Sentença recorrida revogada e substituída por outra que leve aos factos provados: que os AA não contactaram nem se dirigiram ao Hospital Garcia de Orta por forma a obter esclarecimentos que apenas aos próprios seria facultada, a fim de obter um outro documento hospitalar que assegurasse que o corpo podia ser manuseado e exposto sem cautelas.
E considerando que:
  • o referido cartão não indicava o nível de risco ou grupo dos mencionados agentes biológicos;
  • os agentes biológicos estafilococos (Staphylococcus) e pseudomonas são reconhecidamente infeciosos para o ser humano e constam da Lista dos agentes biológicos classificados nos grupos 2, 3 e 4 anexo à Portaria nº 1036/98 de 15 de Dezembro;
  • os funcionários da ré terem recebido indicação do funcionário da casa mortuária para vestirem luvas, máscaras, e bata. (o que só acontece quando efetivamente há um risco biológico que impeça o manuseamento do cadáver);
  • à data dos factos, o Hospital Garcia de Orta não fazer constar qualquer anexo às guias de transporte de cadáveres infetados e/ou com risco biológico e as funerárias terem de se guiar em matéria de proteção e segurança unicamente pelas informações insertas nos cartões de óbito;
  • não terem as funerárias acesso ao certificado de óbito eletrónico;
  • e no caso ter sido a Ré cautelosa e usado do devido zelo, em face das circunstâncias concretas, tal como faria uma pessoa, normalmente, diligente.
Julgando-se afastada a presunção de culpa da Ré, e sem conceder excluída a indemnização, por recair sobre os familiares, a obrigação de obterem declaração médica que expressamente autorizasse a preparação do cadáver e a abertura da urna (derrogando o dever de zelo que no caso se fazia sentir) uma vez que se trataria de informação que só pelos mesmos poderia ser obtida.

Sem conceder
c)- A Sentença recorrida revogada e substituída por outra que determine a improcedência do pedido, já que os AA claudicaram no ónus de provar que sofreram prejuízo patrimonial
Sem conceder
d)- A sentença recorrida revogada e substituída por outra que determine a redução do montante condenatório a título de danos morais
E assim, Vossas Excelências farão, como sempre, JUSTIÇA»

Os autores contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões: a)- deve ser reapreciada a prova e alterada a matéria de facto; b)- os autores não celebraram contrato com a ré; c)- não há fundamento para a redução do preço; d)- nem se verificam os pressupostos da responsabilidade por danos de natureza não patrimonial.

II.Fundamentação de facto.
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos, que mantemos (por não haver necessidade de a outros recorrer para que o recurso seja, no essencial, procedente):
1.- A Ré Funerária... é uma sociedade por quotas cujo objeto social é a prestação de serviços relativos à organização e realização de funerais, transporte de cadáveres para exéquias fúnebres, inumação, cremação ou expatriamento e transladação de restos mortais inumados, entre outras atividades permitidas às agências funerárias.
2.- A Ré teve como anteriores denominações sociais as firmas C, Lda. e C 2, Lda.
3.- Em 22 de Março de 1964, na freguesia da Cova da Piedade, concelho de Almada, nasceu Paula..., filha de L... e A... .
4.- Em 2 de Maio de 1976, na freguesia da Cova da Piedade, concelho de Almada, nasceu Sérgio..., filho de L... e A... .
5.- A...  faleceu em 24 de Março de 2016, na freguesia da Cova da Piedade, concelho de Almada, no estado de casada com L....
6.- As causas da morte de A...  foram síndrome coronário agudo, hipovolemia e anemia crónica.
7.- Durante o período que precedeu a sua morte, A...  esteve internada na enfermaria do serviço de Medicina I do Hospital Garcia de Orta, sem ser sujeita a qualquer medida de isolamento, tendo recebido visitas dos seus familiares sem qualquer restrição.
8.- No dia 24 de Março de 2016, os Autores acordaram com a Ré, no âmbito da sua atividade profissional, que esta prestaria os serviços relativos à organização e realização do velório de A... , incluindo a obtenção de documentação, remoção do cadáver do Hospital Garcia de Orta e transporte para as exéquias fúnebres, preparação do cadáver com o objetivo de ser limpo e vestido e encerrado em caixão de madeira e cremação do corpo.
9.- A Ré recebeu em contrapartida dos serviços mencionados em 8) a quantia de € 1.500 (mil e quinhentos euros).
10.- No dia 25 de Março de 2016, cerca das 15h00, os funcionários da Ré deslocaram-se à casa mortuária do Hospital Garcia da Orta e procederam à remoção do cadáver de A... , tendo para tanto obtido a documentação necessária incluindo o documento denominado de “guia de transporte”.
11.- Antes de proceder à remoção do cadáver de A...  da casa mortuária do Hospital Garcia de Orta, o funcionário da Ré assinou um escrito datado de 25 de Março de 2016, no qual declarou “Eu P., portador B.I. 1…, emitido em ___, funcionário da Agência funerária…, declaro que responsabilizo-me, por levantamento do corpo de A... ser vestido nas instalações da Casa Mortuária do Hospital Garcia de Orta, por motivos de preparação do corpo.”
12.- No cadáver de A...  encontrava-se colocado um cartão intitulado de “cartão de identificação - óbitos”, no qual se encontra escrito “nome – A…; idade 78; serviço Medicina I; cama 16; Prº 4…; faleceu a 24/03/2016; médico que confirmou o óbito Dr.ª Sara…; enfermeiro de serviço Enfª Cláudia…”, sendo que no seu verso se encontram manuscritas as seguintes expressões “Risco Biológico: Sim X; Agente: Estafilococos e pseudomonas Infetado”.
13.- Os funcionários da Ré só tomaram conhecimento da existência do cartão melhor identificado em 12) após a assinatura da declaração identificada em 11).
14.- Em momento anterior à remoção do cadáver, os funcionários da Ré foram informados pelo coordenador de serviço da Casa Mortuária do Hospital Garcia de Orta de que deveriam calçar luvas e colocar batas e máscaras.
15.- Posteriormente, pelas 17h00 do dia 25 de Março de 2016, a Ré, na pessoa do seu funcionário, entrou em contacto telefónico com os Autores e informou-os de que o cadáver de A...  comportava risco de infeção e risco biológico e que devido a tais circunstâncias e de acordo com o procedimento habitual neste tipo de situações não iria manusear nem vestir o cadáver, advertindo-os que a urna deveria estar fechada durante a realização do velório.
16.- Nesse mesmo dia 25 de Março de 2016, a Ré removeu o cadáver de A...  da casa mortuária do Hospital Garcia de Orta e transportou-o até à Igreja de Almada, não tendo procedido à preparação do cadáver, deixando o corpo nu no interior do saco de plástico.
17.- Por indicação da Ré, a urna que continha o cadáver de A... permaneceu fechada durante o velório.
18.- Durante a realização das exéquias fúnebres, a Ré, na pessoa do seu funcionário, reiterou perante os Autores e demais familiares da falecida que não preparou e vestiu o cadáver de A...  e ainda que a urna deveria permanecer fechada durante a realização do velório, em consequência do perigo de contaminação para terceiros devido à informação contida no cartão mencionado em 12).
19.- A Ré, na pessoa do seu funcionário, informou ainda os Autores de que o cadáver poderia ser vestido e manuseado, bem como a urna ser aberta durante a celebração das exéquias fúnebres, caso os Demandantes obtivessem junto do Hospital Garcia de Orta uma declaração médica a permitir expressamente a preparação do cadáver e a abertura da urna.
20.- Não obstante o facto mencionado em 18), os Autores solicitaram junto dos funcionários da Ré que abrissem a urna de sua mãe e visualizaram o cadáver nu de A...  com a cara coberta por gaze e a boca e o nariz cobertos por adesivo, colocado no saco de plástico no interior da urna e observaram que as roupas que tinham escolhido para vestir o cadáver de sua mãe se encontravam colocadas aos pés do corpo, o que lhes causou choque e tristeza.
21.- Os Autores ficaram abalados, transtornados, tristes e angustiados, em consequência de a Ré não ter vestido e preparado o cadáver de A...  e da urna ter permanecido fechada durante o velório.
22.- Apenas em 13 de Maio de 2016, mediante carta, os Autores, através do seu mandatário, solicitaram junto do Hospital Garcia de Orta que informasse se aquela entidade hospitalar entregou o cadáver de A...  à Ré com uma etiqueta indicando risco de infeção/contaminação e em caso afirmativo se tal indicação significava que o cadáver não podia ser manuseado e vestido, devendo permanecer no interior da urna fechada durante o velório.
23.- Em resposta, por carta datada de 31 de Maio de 2016 e recebida pelos Autores em 03 de Junho de 2016 o Hospital Garcia de Orta informou-os que “encontrava-se uma etiqueta a acompanhar o corpo da utente A... onde se podia ler o seguinte:
“Risco Biológico: Sim X Agente Estafilococos e Pseudomonas infetado” (…) sucede que na situação em apreço, o risco existente não impedia que o corpo da utente A... fosse vestido e que a urna se mantivesse aberta durante o velório/funeral. (…) pese embora a presença da etiqueta supra mencionada, importa informar que o corpo da utente A... reunia todas as condições para ser vestido nas instalações do Serviço da Casa Mortuária do HGO (…) concluindo que a urna da utente A... poderia efetivamente estar aberta nas cerimónias do velório e funeral.
24.- L... recebeu da Caixa Geral de Aposentações o montante de € 1.257,66 (mil duzentos e cinquenta e sete euros e sessenta e seis cêntimos), a título de subsídio por morte de A... .

III.Apreciação do mérito do recurso.

A.Da legitimidade dos autores
Relembramos que está em causa um contrato de prestação de serviços funerários celebrado entre os autores e a ré. Esta foi condenada por incumprimento contratual parcial, em redução do preço e indemnização por danos de natureza não patrimonial.

Nas suas alegações de recurso, a ré começa por suscitar a ilegitimidade ativa, dos autores; assim intitula as suas conclusões i. a v. Diz a ré (como já tinha afirmado na sua contestação) que o contrato não terá sido celebrado com os autores mas com o pai destes, cônjuge da falecida, ainda que representado pela autora.

Em rigor, esta alegação não corresponde a uma ilegitimidade processual ativa, pois esta exceção dilatória afere-se perante a relação material controvertida tal como alegada pelos autores (art. 30, n.º 3, do CPC). Na contestação a questão não foi, e aí bem, enquadrada como ilegitimidade processual e, consequentemente, não foi apreciada a agora dita ilegitimidade ativa em sede de despacho saneador.

O que a ré invoca constitui impugnação do facto essencial concernente aos sujeitos do contrato. Saber quem o celebrou é questão de fundo.

Provou-se em 1.ª instância (facto 8 acima listado) que, no dia 24 de março de 2016, os autores acordaram com a ré, no âmbito da sua atividade profissional, que esta prestaria os serviços relativos à organização e realização do velório de A... , incluindo a obtenção de documentação, remoção do cadáver do Hospital Garcia de Orta e transporte para as exéquias fúnebres, preparação do cadáver com o objetivo de ser limpo e vestido e encerrado em caixão de madeira e cremação do corpo. Em contrapartida dos serviços mencionados, a ré recebeu a quantia de € 1.500 (facto 9).
Defende a ré, como já havia feito na contestação, que, no facto 8, devia constar que a autora agiu em representação de seu pai e que, por isso, o contrato foi celebrado com este.

Porém, a ré não esclarece os concretos meios probatórios constantes do processo que imponham a decisão de facto que pretende, limitando-se a dizer, de forma evasiva e genérica, que «emitiu todos os documentos oficiais em nome do cliente e cônjuge sobrevivo L..., e recebeu deste em contrapartida dos serviços mencionados em 8) a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros)». Esta afirmação consiste numa alegação de factos, e não na concretização de meios de prova.
O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, caso em que deverá observar as regras contidas no art. 640 do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: a)- os pontos da matéria de facto de que discorda; b)- os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida; c)- a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Perante o exposto, não está cumprido o ónus de indicação dos meios probatórios que impõem decisão diversa sobre o facto 8, pelo que este se mantém.
Consequentemente, os autores são partes, não apenas na relação material controvertida tal como por eles gizada, mas efetivamente no contrato que se provou terem celebrado com a ré.

B.Do contrato estabelecido entre as partes e seu (in)cumprimento pela ré
Os autores, ora recorridos, tinham pedido a condenação da ré, ora recorrente, a pagar-lhes a quantia global de € 16.000 – sendo € 1.500 a título de danos patrimoniais e € 14.500 a título de danos não patrimoniais sofridos –, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contabilizados à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento.
O tribunal a quo condenou a ré a pagar aos autores a quantia de € 5.260 – sendo € 260 a título de danos patrimoniais (devolução, por redução, de parte do preço) e € 5.000 a título de indemnização por danos não patrimoniais –, acrescida de juros moratórios.
O fundamento dos pedidos e da condenação encontra-se num contrato de serviços próprios da atividade funerária. Com efeito, provou-se que os autores, em 24 de março de 2016, dia do falecimento de sua mãe, acordaram com a ré que esta, no âmbito da sua atividade profissional, prestaria os serviços relativos à organização e realização do velório de A... , incluindo a obtenção de documentação, remoção do cadáver do Hospital Garcia de Orta e transporte para as exéquias fúnebres, preparação do cadáver com o objetivo de ser limpo e vestido e encerrado em caixão de madeira e cremação do corpo. Para este conjunto de serviços foi acordada a quantia de € 1.500, que os autores pagaram. A ré fez quase tudo, apenas não limpou nem vestiu o corpo, por razões que adiante se referem. Por isso, o tribunal a quo reduziu o preço em € 260, quantia a que chegou por recurso à equidade, justificando-a com o seguinte raciocínio:
«Todavia, no caso dos autos não foi possível apurar qual o valor exato da retribuição que respeita à preparação do cadáver da mãe dos Autores, porquanto foi fixada uma retribuição global por conta de todos os serviços contratados.
De acordo com a jurisprudência abalizada pelos Tribunais Superiores de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 16-06-2011, relatado por Jorge Leal, proferido no âmbito do processo n.º 298370/09.7YIPRT.L1-2, disponível in www.dgsi.pt “tal como sucede quando não é possível averiguar o valor exato dos danos (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil), à falta de outros elementos a redução da prestação deverá fazer-se de acordo com a equidade (art. 4.º, alínea a) do Código Civil; neste sentido, v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 12.3.2009 e acórdão do STJ, de 19.06.2007, processo 07A1651).
Revertendo as considerações jurídicas para o caso dos autos, haverá que determinar o respectivo quantum da retribuição convencionada pelo serviço de preparação do cadáver, em conformidade com juízos de equidade e no âmbito do quadro económico do contrato.

Vejamos:
Os Autores e a Ré convencionaram o montante global de € 1.500,00, a título de retribuição pela prestação de serviços de remoção, transporte e preparação do cadáver, aquisição do caixão de madeira, despesas com a obtenção de documentação da falecida, cremação do corpo e despesas expendidas com as exéquias fúnebres.
Socorrendo-nos dos preços médios praticados no sector de atividade funerária, reputa-se adequado fixar os seguintes preços para os diversos serviços convencionados pelas partes, a saber:
[1]- o montante de € 40,00, referente aos serviços de remoção e transporte do cadáver [ponderando-se a distância concretamente percorrida desde o hospital Garcia de Orta até à Igreja de Almada, na Avenida Dom João I (cerca de 2,2 km)];
[2]- o montante de € 45,00, referente à obtenção de documentação da falecida;
[3]- o montante de € 900,00, referente à aquisição do caixão de madeira;
[4]- o montante de € 105, referente à taxa paga pela cremação do corpo, em conformidade com os montantes médios praticados nos cemitérios com forno de cremação;
[5]- o montante de € 150, referente a despesas com a ornamentação da igreja e com as exéquias fúnebres;
Ora, somando os montantes supra expostos, constata-se que os mesmos totalizam a quantia de € 1.240,00, obtendo-se o valor de € 260, após a subtração entre aquele primeiro montante e a retribuição convencionada pelas partes [€ 1.500,00 - € 1.240 = € 260].
Afigura-se, assim, equilibrado e equitativo fixar o montante de € 260, a título de retribuição pela prestação de serviços inerentes à preparação do cadáver, computando-se, deste modo, a redução da retribuição convencionada pelas partes em 17%.»

Concordamos com o raciocínio expendido e com a solução tomada.
A relação contratual estabelecida entre as partes está de alguma forma prevista no DL 10/2015, de 16 de janeiro, designado por regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração, de ora em diante RJACSR (art. 1.º, n.º 1, al. p) do DL 10/2015, de 16 de janeiro, com alterações pelo DL 102/2017, de 23 de agosto), especialmente os seus arts. 108 a 121, ao descrever a atividade funerária e ao destinar normas ao seu exercício. Lê-se no art. 108, n.º 1, do RJACSR que a atividade funerária consiste na prestação de quaisquer dos serviços relativos à organização e à realização de funerais, de transporte,de inumação,de exumação,de cremação,de expatriaçãoe trasladação de cadáveres ou de restos mortais já inumados. Complementarmente podem ser exercidas as seguintes atividades conexas: a) remoção de cadáveres; b) transporte de cadáveres; c) preparação e conservação temporária de cadáveres; d) obtenção da documentação necessária à prestação dos serviços referidos; e) venda de artigos funerários e religiosos; f) aluguer ou cedência de veículos destinados à atividade e de artigos funerários e religiosos; g) ornamentação e decoração de atos fúnebres; h) gestão e exploração de capelas, entre outras (art. 108, n.º 2, do RJACSR).
Podemos dizer que a relação contratual que se estabeleceu entre as partes se enquadra na figura ampla do contrato de prestação de serviço, que o artigo 1154 do Código Civil descreve como aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição. Esta noção permite acoplar contratos muito díspares. Desde logo, os que o artigo seguinte identifica como suas modalidades, mas também outros, quer estejam regulados fora do Código, quer sejam legalmente atípicos. Vendo bem, encontramos ali apenas uma característica: a obrigação de uma das partes propiciar à outra o resultado do seu trabalho. E a concretização desta obrigação permite um universo bastante diversificado de modelos contratuais regulados e não regulados.
O RJACSR descreve a atividade funerária, que integra a prestação contratual das agências funerárias aos seus clientes no âmbito dos contratos que com estes celebram, como uma prestação de serviço. Assim o menciona expressamente no art. 108, n.º 1. O n.º 2 do mesmo artigo lista várias atividades conexas, umas correspondentes a prestações de serviços de diversas espécies (transporte, gestão, decoração), outras reconduzíveis a outros tipos contratuais (compra e venda, locação). Pela sua natureza complementar cremos que o contrato entre a funerária e o cliente com vista à realização de um funeral se reconduz essencialmente ao modelo da prestação de serviço ou a um contrato misto onde as notas predominantes são de prestação de serviço.
No contrato dos autos, a prestação do serviço incluía, como é próprio da atividade em causa, não apenas serviços diferenciados (transporte, obtenção de documentos, preparação de cadáver, cremação), como ainda o fornecimento de bens (urna) e a disposição de um espaço durante certo tempo.
Todos os serviços foram efetivados, com exceção da preparação do cadáver de forma a poder ser exibido no ato fúnebre. A preparação do cadáver consiste nas operações realizadas sobre cadáveres tendentes à sua conservação, melhoria do seu aspeto exterior, nomeadamente, higienização, aplicação de material conservante, embalsamamento, restauração facial e tanatoestética através da aplicação de cosméticos e colocação em urna para realização do funeral (art. 108, n.º 3, al. f), do RJACSR).
A ré não realizou este serviço, apesar de ele estar contemplado no acordo e, consequentemente, incluído no preço acordado e pago.
É irrelevante saber se a não concretização desta parte do serviço é ou não imputável à ré, pelo que não reapreciaremos a prova com esse intuito; tal só teria relevância se a pudéssemos imputar aos credores, autores, ora recorridos, e não podemos.
Nos termos do disposto no art. 793 do CC, se a prestação se tornar parcialmente impossível (sem culpa do devedor), o devedor exonera-se mediante a prestação do que for possível, devendo, neste caso, ser proporcionalmente reduzida a contraprestação.
Havendo culpa do devedor, rege o art. 802 que conduz ao mesmo regime.
O não cumprimento parcial era no caso praticamente irrelevante uma vez que os credores mantinham total interesse na prestação sem essa parte; tanto assim que receberam a prestação. Nestas circunstâncias não lhes é permitida a resolução, sendo-lhes apenas devida a redução da contraprestação.
Bem andou, pois, o tribunal a quo nesta parte.

C.Dos danos não patrimoniais
A ré recorrente não se conformou com a condenação por danos de natureza não patrimonial. Impugnou a matéria de facto, pedindo que sejam consignados alguns outros no sentido de provar que não teve culpa na falta de preparação do cadáver. Sucede que assiste, nesta parte, razão à recorrente mesmo considerando apenas os factos adquiridos no julgamento em 1.ª instância, pelo que nos abstemos de reapreciar a prova.

Em regra, o mero incumprimento contratual, por si só, não gera prejuízos não patrimoniais indemnizáveis. Entendia-se que, de algum modo, várias normas do Código apontavam nesse sentido. Por um lado, a disposição sobre a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais encontra-se em sede de responsabilidade aquiliana, e não entre as disposições relativas ao incumprimento contratual (art. 496 do CC). Por outro lado, relativamente às prestações pecuniárias, o Código expressa que a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806, n.º 1, do CC). O n.º 3 deste último artigo prevê que o credor possa provar que a mora lhe causou danos superiores aos juros e exigir a indemnização suplementar correspondente, mas apenas «quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco».
Invocando o primeiro argumento, e, ainda, razões sociojurídicas, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, pp. 501-2.
Não obstante, a posição hoje dominante na doutrina e na jurisprudência é a da ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial, também em sede de responsabilidade contratual.
Seguem-se alguns trechos de posições doutrinárias neste sentido.
Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, pp. 385-6:
«E que dizer dos restantes setores da responsabilidade civil «lato sensu»? Nomeadamente, se se viola uma obrigação e em particular um contrato, poderá o lesado reclamar a reparação dos danos não patrimoniais?
Sem dúvida, em tais setores estes danos não se produzirão com a mesma frequência nem, em regra, com a mesma intensidade. Mas, se existirem e se forem suficientemente graves de modo a justificar a tutela legal da vítima, por que não há de esta poder exigir a sua reparação?
Não se vê que entre a responsabilidade extraobrigacional e a obrigacional haja diferença que justifique estender a primeira e não a segunda aos prejuízos não patrimoniais
Não sem antes reconhecer a infelicidade da inserção sistemática e da redação do artigo que consagra a ressarcibilidade dos danos morais, Almeida Costa (Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra, Almedina, p. 552) afirma:
«Estes devem atender-se em quaisquer outros casos, sempre que, dada a sua gravidade e relevância jurídica, caiba qualifica-los como indemnizáveis. (…)
Quanto à responsabilidade civil pelo risco, a solução logo decorre de se estenderem, na parte aplicável, as disposições respeitantes à responsabilidade por factos ilícitos (art. 499.º). Também se afigura justificada relativamente à responsabilidade que derive de intervenções lícitas. E nem se vê motivo para excluir a própria esfera da responsabilidade contratual.»
Já na década de 1950 Vaz Serra, «Reparação do dano não patrimonial», BMJ 83 (1959), 104:
«Desde que se aceite a satisfação do dano não patrimonial no campo da chamada responsabilidade extracontratual, ou delitual, o mesmo parece dever aceitar-se no domínio da chamada responsabilidade contratual.»
Na jurisprudência, leiam-se os Acórdãos do STJ de 17/11/1998, CJASTJ, VI, III, 124; de 14/12/2004, proc. n.º 05B1256; e de 23/01/2007, proc. n.º 06A4001; do TRL de 8/05/2003, proc. n.º 2611/2003-6; de 15/05/2003, proc. n.º 3081/2003-6; de 23/11/2010, proc. 2753/08.9TJLSB.L1-7; do TRE de 4/11/2004, proc. n.º 1873/04-2; e do TRP de 20/04/2009, proc. n.º 232/08.3TBVNG.P1, todos em www.dgsi.pt. No sumário do primeiro: «Também no domínio da responsabilidade civil contratual pode haver lugar a indemnização pelo dano moral ou não patrimonial.»

Presentemente, perante o direito vivido e aplicado, não se pode pôr de parte a ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial. E bem, pois apesar de a sistemática do Código não ser porventura a mais clara, os pressupostos das duas responsabilidades são idênticos (sobre este ponto v. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 4.ª ed. Coimbra, Almedina, pp. 329-30, com cuja análise concordamos), não havendo qualquer razão lógica ou ética que permita afastar aquela ressarcibilidade.

Aqui chegados importa saber se se verificam no caso os pressupostos da responsabilidade civil, desde logo o facto ilícito culposo que no caso seria o incumprimento imputável à ré.
A pergunta que se impõe e a que urge responder é a de saber se o facto de o cadáver não ter sido vestido e preparado para ser visto com a urna aberta foi, no caso, ilícito e culposo.
Ao contrário do tribunal a quo, entendemos que, com a matéria de facto adquirida em 1.ª instância e sem necessidade de a alterar no sentido pretendido pela recorrente, a resposta se impõe negativa.
No que diz respeito à atividade de conservação e preparação de cadáveres, as funerárias devem garantir que os profissionais e os locais de exercício dessa atividade cumprem os requisitos para a prática da tanatopraxia, previstos em portaria dos membros de Governo responsáveis pelas áreas da justiça, da economia e da saúde (art. 111, n.º 1, al. d), do RJACSR).

Nos termos do n.º 2 do art. 111, do RJACSR, para o exercício das atividades funerárias, as agências funerárias devem igualmente:
a)- Garantir as condições adequadas à observação, por parte dos trabalhadores, das precauções universais aplicáveis na utilização e na manipulação de agentes biológicos, nomeadamente no que respeita à disponibilização e à utilização de equipamentos de proteção individual, quando não for possível adotar medidas de proteção coletiva;
b)- Fazer cumprir as regras de segurança na utilização de produtos químicos e garantir o cumprimento das indicações do fabricante;
c)- Garantir as medidas de primeiros socorros apropriadas em caso de acidente com exposição a agentes químicos ou biológicos;
d)- Garantir as medidas adequadas de prevenção dos riscos ambientais para a saúde pública decorrentes das atividades funerárias.

Na Portaria 162-A/2015, de 1 de junho, estabelecem-se as condições de acesso e de exercício da atividade de reconstrução, conservação e preparação de cadáveres, a tanatopraxia. No art. 3.º desta Portaria encontra-se a noção de tanatopraxia: atividade exercida, em complemento da atividade funerária, que compreende a reconstrução e conservação temporária de cadáveres, nomeadamente o seu acondicionamento em condições que permitam a sua conservação até ao momento da realização das exéquias fúnebres, e a preparação de cadáveres, que inclui as operações realizadas sobre os cadáveres tendentes à sua reconstrução, conservação e melhoria do seu aspeto exterior, nomeadamente a higienização do cadáver, a aplicação de material conservante, o embalsamento, a restauração facial e a tanatoestética, para embelezamento, através da aplicação de cosméticos.

O exercício da atividade está sujeita a certificação e registo.

Nos termos do disposto no art. 14 da mesma Portaria, os cadáveres que apresentem causa de risco para a saúde pública, designadamente por agente biológico do grupo de risco 4, não podem ser objeto de qualquer atividade de tanatopraxia.

Deste pequeno percurso resulta que a atividade é de elevada responsabilidade, nomeadamente pelos riscos para a saúde que o manuseamento de cadáveres pode comportar, e, por isso, altamente regulada.

No n.º 3 do mesmo art. 14 lê-se que, sempre que exista doença infeciosa, ou outra circunstância suscetível de transmissão por manipulação de cadáver, o médico que regista o certificado de óbito ou a autoridade de saúde deverão fazer constar tal informação no certificado de óbito eletrónico ou em documento a definir por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde, incluindo-se a mesma informação na guia que é entregue ao agente funerário que efetua o primeiro transporte do cadáver.

Foi valendo-se desta disposição que o tribunal a quo entendeu que a ré agiu ilicitamente. O raciocínio em 1.ª instância foi o seguinte: não constava do certificado do óbito nem da guia de transporte a existência de doença infeciosa, ou outra circunstância suscetível de transmissão por manipulação de cadáver, pelo que a ré tinha a obrigação de preparar o cadáver.

Entendemos que esta argumentação não procede.

O facto de não constar do certificado do óbito nem da guia de transporte a existência de doença infeciosa, ou outra circunstância suscetível de transmissão por manipulação de cadáver (menções que devem ser apostas pelo médico que regista o certificado de óbito ou a autoridade de saúde) não significa que tal doença ou circunstância não se verifique. Pode ela existir e o médico que registou o certificado de óbito ou a autoridade de saúde terem infringido o seu dever de menção.

No caso dos autos, a agência funerária tinha fortes razões para pensar que o cadáver era perigoso para a saúde pública pois encontrava-se no mesmo colocado um cartão intitulado de “cartão de identificação - óbitos”, no qual se encontrava escrito “nome – A...; idade 78; serviço Medicina I; cama 16; Prº 4…; faleceu a 24/03/2016; médico que confirmou o óbito Dr.ª Sara…; enfermeiro de serviço Enfª Cláudia…”, sendo que no seu verso se encontram manuscritas as seguintes expressões “Risco Biológico: Sim X; Agente: Estafilococos e pseudomonas Infetado” (facto 12).

Nessa altura, antes de removerem o cadáver, os funcionários da Ré foram informados pelo coordenador de serviço da Casa Mortuária do Hospital Garcia de Orta de que deveriam calçar luvas e colocar batas e máscaras (facto 14).

Quando funcionário da Ré assinou um escrito declarando que se responsabilizava pelo levantamento do corpo de A... ser vestido nas instalações da Casa Mortuária do Hospital Garcia de Orta, por motivos de preparação do corpo, ainda não tinha conhecimento da etiqueta acima aludida com a indicação de infeção e de risco biológico (factos 11 e 13).

Do exposto resulta que a ré agiu com as cautelas que as normas lhe impõem. Se dúvidas havia sobre os riscos de manuseamento do cadáver, considerando os interesses a sopesar, boa foi a opção de não o manusear e de evitar o risco de causar danos na saúde de pessoas, determinadas ou indeterminadas.

Oportunamente, a ré entrou em contacto telefónico com os autores e informou-os de que o cadáver de A... comportava risco de infeção e risco biológico e que devido a tais circunstâncias e de acordo com o procedimento habitual neste tipo de situações não iria manusear nem vestir o cadáver, advertindo-os que a urna deveria estar fechada durante a realização do velório; disse-lhes ainda que o cadáver poderia ser vestido e manuseado, bem como a urna ser aberta durante a celebração das exéquias fúnebres, caso os autores obtivessem junto do Hospital Garcia de Orta uma declaração médica a permitir expressamente a preparação do cadáver e a abertura da urna (factos 15 a 19).

Os autores não o fizeram (cfr. facto 22).

Nas descritas circunstâncias afigura-se-nos que não se pode considerar ilícita a não preparação do corpo pela ré.

IV.Decisão.
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, mantendo a condenação da ré a pagar aos autores a quantia de € 260 (duzentos e sessenta euros), acrescida de juros moratórios, mas revogando a sentença no que respeita à condenação na quantia de € 5.000 (cinco mil euros), acrescida de juros de mora, absolvendo a ré nesta parte.

Custas por autores e ré na proporção dos respetivos decaimentos.



Lisboa, 17/04/2018


Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira