Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1451/13.6TYLSB-G.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
NULIDADE DE SENTENÇA
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Ainda que na ausência de impugnações deva ser proferida sentença de verificação e graduação de créditos, graduando-os em atenção ao que conste da lista elaborada pelo Administrador de Insolvência, tal como resulta do disposto no artigo 130.º n.º 3 CIRE, tal não dispensa o juiz de aferir se as garantias/privilégios referidos pelo administrador se mostram correctas.
II- As nulidades da sentença constituem vícios intrínsecos da própria decisão, não confundíveis com o erro de julgamento.
III- Não é caso de nulidade da sentença recorrida quando a mesma restringe o privilégio imobiliário especial apenas a um dos imóveis da massa insolvente, por entender que nos autos não existem elementos que permitam estender aquele privilégio aos restantes imóveis apreendidos, em face do consignado na lista apresentada pelo AI, e uma vez que nada foi alegado de concreto pelos trabalhadores no que concerne à afectação daqueles imóveis à actividade produtiva da insolvente.
IV- O privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b), do CT, abrange os imóveis da entidade empregadora que integram a sua organização produtiva, à qual os trabalhadores pertencem; e nesse enquadramento, ficam fora desse privilégio aqueles imóveis que, ainda que pertencendo à mesma, não são por esta usados naquela actividade empresarial e produtiva, no âmbito do seu escopo social.
V- Pese embora esteja na certidão comercial da insolvente que a sua sede é em determinado imóvel, se resultar dos autos que esse imóvel foi arrendado a sociedade terceira, o mesmo não pode ser abrangido pelo privilégio creditório, pois que nele os trabalhadores não desempenham qualquer actividade laboral, não servindo tal imóvel de apoio à respectiva actividade empresarial, estando assim arredados daquela organização produtiva.
VI- E o mesmo raciocínio se impõe no respeita ao terreno contíguo ao imóvel onde a insolvente tinha as suas instalações fabris, pois que, ainda que os dois imóveis estejam intrinsecamente conexos, não foi demonstrado que o mesmo estivesse, por qualquer forma (que não a mera localização) ligado à actividade empresarial da Insolvente, sendo irrelevante que tais prédios, autónomos, tenham sido vendidos conjuntamente, tanto mais que foi apresentada diferente proposta para cada um deles.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
Nos presentes autos de reclamação de créditos, instaurados por apenso aos autos de insolvência n.º 1451/13.6TYLSB, da sociedade (…), SA, veio o Sr. Administrador da Insolvência juntar a lista definitiva de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do disposto no artigo 129.º do C.I.R.E.
Para a massa insolvente foram apreendidos os bens móveis e os bens imóveis melhor identificados no Apenso B.

No prazo de impugnação da lista de credores, nos termos do artigo 130.º n.º 1 do C.I.R.E., vieram os credores (…) S.A., o Ministério Público, em representação do trabalhador J(…), A(…) e (…) impugnar a lista de créditos apresentada.
Nenhum interessado respondeu às impugnações.

Foi proferida sentença de verificação e graduação dos créditos que assim decidiu:
«A.
Consideram-se reconhecidos:
- os créditos constantes da lista retificada apresentada pelo Sr. Administrador da insolvência, constante de fls. 7 a 87 dos presentes autos, a qual se dá por integralmente reproduzida, sendo que quanto aos trabalhadores constantes dos mapas de créditos juntos pelo FGS, reconhece-se o crédito correspondente ao remanescente, após dedução do valor pago pelo FGS ao valor reconhecido na lista de créditos;
- os créditos do Fundo de Garantia Salarial, no montante pago aos trabalhadores, no total de 272.729,79 euros.

B.
Julgam-se as impugnações deduzidas procedentes e consequentemente:
- consideram-se reconhecidos os créditos de (…), S.A. pelo valor total de 574,18 euros;
- consideram-se reconhecidos os créditos de J(…), referente a juros, no valor de 354,87 euros;
- consideram-se os créditos do Fundo Fechado de Investimento Imobiliário, como não sujeitos a condição;
- excluem-se os créditos reconhecidos a A(…)  e (…).

Consideram-se igualmente os créditos reconhecidos aos trabalhadores referentes às indemnizações por cessação do contrato de trabalho como não sujeitos a condição.

Excluem-se ainda os créditos reconhecidos a (…), Lda., uma vez que a mesma accionou a garantia bancária de que era beneficiária, tendo o seu crédito sido satisfeito pelo Banif, S.A.

C.
Graduam-se os créditos reconhecidos, da seguinte forma:
- Pelo produto da venda do bem imóvel apreendido sob a verba n.º 1:
1º. O crédito garantido reconhecido a Banco (…) S.A. no valor de 385.815,57 euros, garantido pelas hipotecas registadas sobre este imóvel;
2º. Os créditos comuns, rateadamente;
3º. Os créditos subordinados.

- Pelo produto da venda do bem imóvel apreendido sob a verba n.º 2:
1º. Os créditos privilegiados reconhecidos aos trabalhadores e ao Fundo de Garantia Salarial, em igualdade;
2º. O crédito garantido reconhecido a (…) S.A., no valor de 1.200.061,75 euros, garantido por hipoteca registada sobre este imóvel;
3. Os créditos comuns, rateadamente;
4º. Os créditos subordinados.

- Pelo produto da venda do bem imóvel apreendido sob a verba n.º 3:
1º. O crédito garantido reconhecido a (…) S.A., no valor de 1.200.061,75 euros, garantido por hipoteca registada sobre este imóvel;
2º. Os créditos comuns, rateadamente;
3º. Os créditos subordinados.

- Pelo produto da venda dos bens móveis apreendidos:
1º. Os créditos privilegiados reconhecidos aos trabalhadores e ao Fundo de Garantia Salarial, em igualdade;
2º. Os créditos comuns, rateadamente;
3º. Os créditos subordinados.

As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem (artigo 172º- 1 e 2 do CIRE)
Custas pela massa insolvente (artigo 304º do CIRE)
Registe e Notifique».

Não concordando com tal decisão, os credores/trabalhadores (…), interpuseram o presente recurso, que finalizaram com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
«1. O recurso interposto da douta sentença de verificação e graduação e créditos visa a revogação da decisão do tribunal a quo e a sua substituição por outra na parte que julgue os imóveis apreendidos e liquidados afetos à atividade empresarial da insolvente e, por isso, beneficiando os trabalhadores de privilégio imobiliário especial, a graduar antes dos créditos referidos no artigo 748.º 5 do Código Civil;
2. A douta sentença, sem fundamentar, deu como provado que "No caso, não se demonstrou que o local de trabalho fosse em algum dos imóveis apreendidos.";
3. E, em consequência, graduou os créditos dos trabalhadores quanto ao referido imóvel como créditos comuns, rateadamente;
4. A douta sentença de verificação e graduação de créditos, verificou os créditos laborais dos trabalhadores da insolvente,
5. mas graduou esses créditos não atribuindo qualquer privilégio imobiliário especial em relação a parte do imobiliário, porquanto entendeu que não se demonstrou que o local de trabalho fosse nos referidos imóveis apreendido;
6. A decisão do local de trabalho escapa ao controle e poder de decisão dos trabalhadores, e o entendimento da Meritíssima Juíza a quo desconsidera a empresa como um todo, complexo organizativo de meios visando a produção,
7. não se integrando na interpretação do artigo 333°, n° 1, al. b) do Código do Trabalho, preconizada pelo Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ n° 8/2016 (pugnando pela igualdade dos trabalhadores),
8. Assim, entende-se que os imóveis referidos como verbas 1 e 3 do rol faziam parte da estrutura organizativa da insolvente e, como tal, integram o privilégio imobiliário especial de que beneficiam os trabalhadores;
9. A sentença ora em crise não se alicerçou em nenhum facto para poder concluir que "No caso, não se demonstrou que o local de trabalho fosse em algum dos imóveis apreendidos", como fez;
10. Nem nada fundamentou que pudesse concluir nesse sentido;
11. Está, assim, a sentença ferida de nulidade pois não justifica os elementos de facto que fundamentam a decisão de não considerar que o local de trabalho fosse algum dos imóveis apreendidos, cfr. artigo 615º, nº 1, al. b) do CPC e em clara violação do artigo 333º do CT;
12. Ocorrendo, desta forma, uma clara violação ao princípio do contraditório, sendo que a omissão de tal formalidade influiu no exame e na decisão da causa;
13. Tal consubstancia uma nulidade por falta do cumprimento do princípio do contraditório, ao abrigo do artigo 3°, n.º 3 do Código de Processo Civil e artigo 195°, n.º 1 do Código de Processo Civil pois a irregularidade cometida pode influir no exame e na decisão da causa;
14. Pelo exposto, e considerando-se que a decisão violou ainda o disposto no artigo 333º, n° 1, al. b) do Código do Trabalho, na interpretação preconizada pelo Acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2016, deverá a mesma ser alterada de modo a determinar que os trabalhadores da insolvente, ora recorrentes, beneficiam de privilégio imobiliário especial relativo aos imóveis supra identificados apreendidos e liquidados da insolvente;
15. Assim decidindo se fará a habitual Justiça!».

Igualmente, (…), credora/trabalhadora reclamante não se conformando com a sentença proferida, dela interpôs recurso, que finalizou com as seguintes conclusões:
«1.ª A recorrente insurge-se contra a graduação realizada pelo Tribunal a quo quanto aos bens imóveis apreendidos sob as verbas n.ºs 1 e 3, já que foram graduados, em primeiro lugar, respectivamente, os créditos garantidos pelo Banco (…) (Portugal) S.A. e pela Sociedade (…).
2.ª Resulta expressamente do texto da douta Sentença recorrida que não foi reconhecido à recorrente e aos demais trabalhadores da Insolvente (…), SA, o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho, sobre os bens em apreço.
3.ª A douta Decisão proferida pelo Tribunal a quo restringiu o reconhecimento do privilégio imobiliário especial laboral à verba n.º 2, o que fez sem fundamento legal.
4.ª A recorrente não se conforma com a douta Decisão, já que todos os bens imóveis apreendidos à (…), SA, integravam a sua estrutura organizativa e estavam afectos ao seu escopo societário e à sua actividade empresarial.
5.ª Improcede a fundamentação da douta Sentença recorrida quando afirma que: Quanto aos demais imóveis apreendidos inexistem elementos nos autos que permitam concluir pela sua afectação à actividade da insolvente, sendo que os trabalhadores não exerciam neles as suas funções.
6.ª Na verdade, a douta Sentença recorrida está em flagrante contradição com a realidade material dos factos e com a prova documental contida no processo.
7.ª Resulta expressamente dos autos que a verba n.º 1 constitui a fracção autónoma designada pela letra B, destinada a comércio, correspondente ao ... esquerdo, sita na Rua ..., número ..., em Lisboa (cfr. escritura de compra e venda e hipoteca de 01.10.2021, realizada no âmbito do presente processo, relativamente à verba em causa, em que foi interveniente o Senhor Administrador de Insolvência (….).
8.ª A Insolvente tinha a sua sede e os seus escritórios no imóvel acima identificado nos quais desenvolvia de forma estável a sua actividade, conforme certificam os autos e ainda por via dos Docs. n.ºs 3 a 7 que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para os devidos efeitos legais.
9.ª Sendo inequívoco que a Insolvente se apresentava aos seus trabalhadores, assim como a clientes e terceiros, como tendo a sua sede no ... esquerdo do n.º .. da Rua ..., cidade de Lisboa (cfr. Docs. n.ºs 3, 4, 5 e 6).
10.ª A própria recorrente trabalhou durante muitos anos no imóvel acima indicado ao serviço da Insolvente (…), o que igualmente sucedeu com diversos ex-trabalhadores da Insolvente, tais como (….).
11.ª Pelo que dúvidas não sobram que o imóvel apreendido sob a verba n.º 1 integrava a estrutura organizativa da Insolvente e estava afecto ao seu escopo societário e à sua actividade empresarial.
12.ª Aliás, mal andaríamos e mal andaria a Insolvente, grande e importante empresa do seu sector de actividade, se um seu estabelecimento, sua propriedade, onde funcionava a sua Administração e serviços administrativos não fosse considerado como afecto à sua actividade empresarial.
13.ª Com o devido respeito, ao não aplicar o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho à mencionada verba n.º 1, o douto Tribunal recorrido incorreu em claro erro de apreciação.
14.ª O mesmo se diga no que tange à verba n.º 3, correspondente ao prédio urbano, sito em Estrada Nacional 10, (…), que era contigua à verba n.º 2, prédio urbano sito na mesma morada e no qual estavam localizadas as instalações fabris da Insolvente.
15.ª Sendo certo que ambos os imóveis integravam directamente e de forma estável o seu suporte organizacional e estavam afectas ao seu escopo societário e à sua actividade empresarial, conforme certificam os autos.
16.ª A própria Insolvente assumia a relação de complementaridade entre os referidos bens imóveis, detidos na sua esfera há muitos anos, conforme certifica o respectivo registo predial.
17.ª Ora, a douta Sentença recorrida enferma da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º Código de Processo Civil, já que não justifica os elementos de facto que fundamentam a decisão de considerar que os bens imóveis apreendidos sob as verbas n.ºs 1 e 3 não estavam afectos à actividade da insolvente e os trabalhadores não exerciam neles as suas funções.
18.ª Salvo o devido respeito, i na violação do princípio do contraditório, dado que não ouviu a recorrente e os demais trabalhadores da Insolvente sobre a afectação ou não das verbas n.ºs 1 e 3 à actividade da insolvente e quanto ao apuramento e abrangência do privilégio imobiliário especial, o qual constitui uma garantia legal.
19.ª O artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil proíbe as decisões surpresa.
20.ª A omissão a omissão da formalidade acima descrita influiu directamente no exame e na boa decisão da causa.
21.º Na verdade, caso os credores trabalhadores tivessem sido ouvidos sobre as matérias em apreço, a douta Sentença recorrida teria certamente uma diferente fundamentação de facto e de direito, com os inerentes efeitos em sede decisória, conforme acima afirmado e demonstrado.
22.ª A actuação do Tribunal a quo implica a nulidade da douta Sentença recorrida por falta do cumprimento do princípio do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, conforme estabelece o artigo 195.º, n.º 1, do mesmo Código.
23.ª a incorrecta graduação dos créditos tem graves consequências, já que o pagamento dos créditos reclamados pela recorrente e devidamente reconhecidos, nos presentes autos, no valor de 79.584,94, se encontra em risco face a
24.ª O atendimento e reconhecimento do privilégio imobiliário especial, previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho, é um imperativo de justiça material e moral, assumindo igualmente uma dimensão económico-social muito importante.
25.ª No âmbito dos privilégios imobiliários só se deve excluir o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, o que no presente caso não se verifica relativamente aos imóveis das verbas n.ºs 1 e 3, devidamente identificados nos autos, dado que estavam afectos à actividade industrial e empresarial da Insolvente (…), SA, constituindo o seu suporte organizacional.
26.ª Ora, a recorrente e os demais trabalhadores da Insolvente integram a organização empresarial da Insolvente e estão, todos eles, funcionalmente ligados aos imóveis que, constituindo património da empresa, servem de suporte físico a essa atividade.
27.ª Importa, assim, concluir que os créditos laborais reclamados beneficiam de privilégio imobiliário especial sobre todos os imóveis apreendidos nos autos (verbas n.ºs 1 a 3), nos termos do artigo 333.º n.º, n.º 1, alínea b) do Código de Trabalho.
28.ª Sendo certo que o privilégio em causa prefere à hipoteca, conforme o disposto no artigo 751.º do Código Civil.
29.ª Por tudo o que antecede, os créditos da recorrente e dos demais trabalhadores da Insolvente devem ser graduados em primeiro lugar sobre todos os imóveis apreendidos no processo.
30.ª A douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo julgou em desconformidade com o direito, para além de colidir com a realidade material dos factos e com os elementos constantes do processo.
31.ª Pelas razões expostas, a douta Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 333.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alíneas a) e b) do Código do Trabalho, 751.º do Código Civil e 140.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
32.ª direito à remuneração tutelado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa.
33.ª Violou ainda douta Decisão recorrida o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e, em consequência, incorreu na nulidade prevista no artigo 195.º, n.º 1, do mesmo Código, dado que foi preterida formalidade essencial que necessariamente influi na causa, constituindo, portanto, tal omissão nulidade processual.
34.ª Por fim, violou a douta Sentença recorrida o princípio da fundamentação das decisões judiciais consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso de Apelação e, consequentemente, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa revogar a douta Sentença proferida na parte em que não reconheceu à Recorrente o privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho sobre os bens imóveis apreendidos sob as verbas n.ºs 1 e 3, devendo os seus créditos ser graduados em primeiro lugar sobre todos os imóveis apreendidos no processo, com as legais consequências.
Deverá, assim, ficar sem efeito a graduação realizada pelo Tribunal recorrido quanto às verbas nºs 1 e 3, em que foram graduados, em primeiro lugar, respectivamente, os créditos garantidos pelo Banco … S.A. e pela Sociedade P….».

(…), credores reclamantes, ao abrigo do n.º 3 do artigo 634.º do CPC, aderiram aos recursos assim intentados, o que foi admitido.

As Credoras (…) contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e pela improcedência das apelações intentadas.

Foram admitidos os recursos interpostos, e, colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

*

II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, conforme decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, são então as seguintes as questões que cumprem apreciar neste recurso:

A/ Nulidades da sentença recorrida, por falta de fundamentação e por incumprimento do princípio do contraditório;
B/ E, na improcedência daquelas, ou na sua procedência, no caso de se revelar possível, à luz do n.º 1 do artigo 665.º, aferir se o crédito dos recorrentes beneficia de privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho nos termos e com o alcance defendido em recurso (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02, em vigor à data da declaração de insolvência).

***

III-/ Fundamentação de facto:
Na decisão da 1ª instância, no que interessa à decisão do presente recurso, para além dos factos constantes do relatório que antecede, foi considerado, na sentença recorrida, ao nível da graduação de créditos efectuada que:

1 - Segundo a informação prestada pelo AI na lista de créditos apresentada (anexo B), verifica-se que a maioria dos trabalhadores exercia funções no imóvel apreendido sob a verba n.º 2 e os demais em imóvel propriedade de terceiro.
2 - Quanto aos demais imóveis apreendidos foi considerado que «inexistem elementos nos autos que permitam concluir pela sua afectação à actividade da insolvente, sendo que os trabalhadores não exerciam neles as suas funções»;

Considerando os poderes desta instância à luz do n.º 1 do artigo 662.º do CPC, iremos também considerar, por resultar do processo principal e apensos, que:

3- Na sentença que declarou a insolvência da “(…), S.A.” pessoa colectiva nº (…), proferida em 16 de Setembro de 2013, ficou provado que a mesma é uma sociedade comercial anónima, com a sua constituição inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa e sede na (…) Lisboa.
4- Tem por objecto “exploração do comércio e indústria de produtos agroquímicos e das atividades deles derivados e com eles relacionados, incluindo equipamento ou produtos que contribuam para a melhoria da produção vegetal e da higiene humana e animal”.
5- Foram apreendidos para a massa insolvente três imóveis (apenso B), a saber:
Verba n.º 1 do Auto de Apreensão de Bens Imóveis – “Fracção autónoma designada pela letra B, destinada a habitação, com arrecadação ao nível do pavimento da cave - comércio, correspondente ao r/c esquerdo, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito em B, freguesia Lapa, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa com o n.º 3… freguesia de Lapa e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 7… da freguesia de Lapa”;
Verba n.º 2 do Auto de Apreensão de Bens Imóveis – “Prédio urbano destinado a armazéns e actividade industrial, composto por conjunto de edifícios que constituem unidade fabril, sito em E…, Nº … - Salgados da Póvoa ou Jardim, freguesia Vialonga, concelho de Vila Franca de Xira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira 2ª com o n.º 6… freguesia de Vialonga e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 2… da freguesia de Vialonga”;
Verba n.º 3 do Aditamento ao Auto de Apreensão de Bens Imóveis – “Prédio urbano, composto por terreno situado dentro de aglomerado urbano, onde não é permitido construir e sem afectação agrícola, com área total de 14.619,20m2, sito em E…, N.º …, Salgados da Póvoa ou Jardim, Vialonga, Vila Franca de Xira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n.º 5…/Vialonga e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 7… da freguesia de Vialonga”, tendo este imóvel resultado de um destaque efectuado sobre a Verba n.º 2 do Auto de Apreensão de Bens Imóveis, encontrando-se intrinsecamente conexo à referida verba.
6- Relativamente ao imóvel apreendido sob a verba n.º 1 (fração autónoma, designada pela letra B, sita na Rua …, n.º …, … Esq., Lapa, Lisboa), foi outorgado em 06/12/2010, entre a insolvente e a Q…, S.A., pelo prazo de 5 (cinco) anos, com início em 1 de Janeiro de 2011 e termo em 31 de Dezembro de 2015, um contrato de arrendamento urbano para fim não habitacional com prazo certo (contrato com cópia junta ao apenso de liquidação).
7- Por sentença já transitada em julgado, proferida em 04/11/2020, no apenso S (acção movida pela Massa Insolvente de (…) S.A., pedindo, entre outros, a condenação da ré a restituir à autora a fracção autónoma designada pela letra B, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio em regime de propriedade horizontal sito na rua …, nº .., freguesia da Estrela, concelho e distrito de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa) foi dado como provado o arrendamento referido em 6, e bem assim, entre outros, que:
«12) Os serviços administrativos e informáticos da Autora estiveram localizados num espaço arrendado pela mesma, sito na Rua (…)., em Lisboa.
13) O contrato de arrendamento referente a esse espaço foi celebrado em 13 de Janeiro de 1958 e revogado por mútuo acordo, em 17 de Junho de 2014, tendo Senhor Administrador de Insolvência da Autora assinado o acordo de revogação em representação da mesma.
E não provado que:
«a) A fracção em causa foi sempre apenas utilizada pela sua proprietária (…) para os seus serviços administrativos e informáticos.
b) É nessa fracção que estão os equipamentos informáticos, nomeadamente, servidores e computadores pertencentes a esta sociedade.
c) A (…) ao ter conhecimento da liquidação da sociedade e sabendo que estava obrigada a entregar as instalações forjou, em conluio com a Ré, o contrato de arrendamento com o único objectivo de dificultar a venda do imóvel.
d) O contrato de arrendamento datado de 6 de Dezembro de 2010 é um documento forjado (….)».
8- Na fundamentação da sobredita sentença consta que «A prova do facto 12) tem apoio na conjugação dos depoimentos de (…), ambos trabalhadores da insolvente, que declararam ter-se deslocado ao escritório da sociedade, sito na Rua … N.º .., onde funcionava a contabilidade e a informática da mesma. As testemunhas não conseguiram confirmar o número da porta, mas ambos referiram que subiram escadas/elevador para aceder ao escritório da insolvente.
A testemunha (…) explicou que a insolvente tinha fracções localizadas em 2 prédios, sendo um o n.º .. e o outro o n.º .. . Num deles tinha o 2º andar esquerdo onde era o escritório e no R/C estava o material. No outro tinha só o R/C e aí estava instalado o escritório do administrador, C… F….
Também os depoimentos das testemunhas (…), foram no mesmo sentido, ou seja, confirmando que a (…) tinha escritório no n.º .. (1º ou 2º andar).
(…)
a) e b) Estes factos foram contraditados pelas testemunhas da autora, (…), ambos trabalhadores da insolvente, que declararam ter-se deslocado ao escritório da sociedade, sito na Rua …, onde funcionava a contabilidade e a informática da mesma.
As testemunhas não conseguiram confirmar o número da porta, mas ambos referiram que o escritório da insolvente não era no R/C, porque subiram escadas/elevador.
A testemunha (…) explicou que a insolvente era dona de várias fracções localizadas em 2 prédios, sendo um o n.º .. e o outro o n.º .. . Num deles tinha o 2º andar esquerdo onde era o escritório e no R/C estava o material. No outro tinha só o R/C e aí estava instalado o escritório do administrador, (…).
Também os depoimentos das testemunhas (…), foram no mesmo sentido, ou seja, confirmando que a (…) tinha escritório no n.º .. (1º ou 2º andar) sendo que no n.º.. era a sede da Q…, onde também esteve instalada outra sociedade do grupo, a A…, de que a Q… seria accionista.
c) e d) Em face da prova produzida não podemos dizer que o contrato é falso ou que foi adulterado.
Com efeito, o escrito mostra-se assinado por quem, na data nele aposta, teria poderes para representar ambas as sociedades.
A factualidade invocada pela autora para demonstrar a falsidade do escrito não foi demonstrada, concretamente, que a autora tivesse no locado o seu escritório; que o local nunca esteve na posse da Ré; que nunca tivessem sido feitas obras pela Ré ou que nunca tenha sido paga renda.
Ora, a circunstância de o contrato ter sido assinado por (…) em representação de ambas as sociedades decorre do facto de o mesmo ser administrador de ambas e está conforme as regras de representação societária.
De resto, o contrato foi subscrito por administradores de ambas as sociedades e, por conseguinte, nenhuma conclusão podemos extrair desta constatação.
O único facto irregular a considerar é que o contrato, datado de 2010, apenas foi comunicado às finanças em 2013.
Porém apenas esta circunstância não nos permite dizer que o contrato foi forjado, mas apenas que não foram tempestivamente cumpridas as obrigações fiscais.
É certo que não foi apresentada uma justificação para o facto, mas ainda assim dele, ainda que conjugado com a coincidência do administrador que representou locadora e locatária naquele acordo, não podemos extrair o significado que a autora defende.
Cremos que, caso a Autora tivesse logrado demonstrar os vários factos indiciários que alegou, todos conjugados poderiam conduzir à conclusão sustentada. Contudo, essa prova não se logrou realizar. (…)».

9- Em face da conexão existente entre as verbas n.ºs 2 e 3, o Sr. AI procedeu às diligências de liquidação em conjunto das referidas verbas, em face da probabilidade de resultados de venda mais favoráveis, o que se logrou fazer, em 11/03/2022, pelo preço global de 977 mil euros, sendo 900 mil a verba n.º 2 e 77 mil a verba n.º 3, conforme escritura junta no apenso de liquidação.

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IV-/ Do mérito do recurso:

(i) Das invocadas nulidades da sentença recorrida
Em ambos os recursos em apreciação, defendem os recorrentes que a sentença em crise padece de nulidade, à luz do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, pois não justifica os elementos de facto que fundamentam a tomada de decisão, ocorrendo, desta forma, e também, uma clara violação ao princípio do contraditório, que influiu no exame e na decisão da causa, pois que os credores trabalhadores não foram ouvidos sobre a matéria em apreço (que, em suma, concluiu, que quanto aos imóveis que constituem as verbas nºs 1 e 3 dos bens apreendidos para a massa insolvente inexistem elementos nos autos que permitam concluir pela sua afectação à actividade da insolvente, sendo que os trabalhadores não exerciam neles as suas funções).
Nestes termos, terminam, deverá a decisão do tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que julgue que os créditos dos trabalhadores beneficiam de privilégio imobiliário especial, a graduar antes dos créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil, sobre os imóveis apreendidos sob os nºs. 1 e 3.

Vejamos então.
O dever de fundamentação das sentenças encontra-se regulado no artigo 607.º do CPC, que determina, em suma, que o juiz deve declarar na decisão quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, podendo ainda tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, os provados por documentos ou confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Neste contexto, dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), também do CPC, que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Não obstante, e conforme assinala Antunes Varela (no Manual de Processo Civil, 2ª edição, págs. 686 a 691), no que se refere à nulidade de que aqui cuidamos, para que a mesma ocorra «...não basta que a justificação seja deficiente, incompleta, não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito».

No presente caso, constata-se que na sentença recorrida, e em fundamentação da mesma, foi consignado que «No caso, segunda a informação prestada pelo AI na lista de créditos apresentada (anexo B), verifica-se que a maioria dos trabalhadores exercia funções no imóvel apreendido sob a verba n.º 2 e os demais em imóvel propriedade de terceiro.
Assim, conclui-se que este imóvel estava afecto à actividade da insolvente, pelo que, face à interpretação supra desenvolvida quanto ao conceito deste privilégio imobiliário especial, entendemos que tal privilégio se estende a todos os trabalhadores e não apenas aos que exerciam funções naquele local, sob pena de manifesta violação do principio da igualdade entre os trabalhadores.
Quanto aos demais imóveis apreendidos inexistem elementos nos autos que permitam concluir pela sua afectação à actividade da insolvente, sendo que os trabalhadores não exerciam neles as suas funções».

Ainda que a sentença não separe, como devia, no rigor dos princípios, matéria de facto e matéria de direito, não vemos, ainda assim, que tenha sido cometida a nulidade invocada, no que a esta questão concerne, pois que o tribunal recorrido tomou posição expressa sobre o destino dos imóveis apreendidos, considerando que, num deles (verba n. º 2), os trabalhadores exerciam funções e que nos outros (verbas nºs. 2 e 3), em face da “inexistência de elementos nos autos”, não poderia concluir pela sua afectação à actividade da insolvente, assim concluindo pela inexistência, nesta parte, de privilégio imobiliário especial. Assim, ainda que em moldes gerais e genéricos, e não devidamente autonomizados, resultam da sentença os factos, a motivação dos mesmos e o direito aplicável.
Acresce que, diremos também, ainda que na ausência de impugnações deva ser proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com homologação da lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência, tal como resulta do artigo 130.º n.º 3 do CIRE, certo é a própria natureza do processo de insolvência e o princípio da igualdade que o mesmo obriga, consagrado no artigo 194.º do CIRE, impõem uma decisão justa e equitativa, que obriga a que o juiz, neste enquadramento, exerça um efectivo controle judicial, analisando a lista apresentada pelo Administrador de Insolvência. Veja-se, no que concerne a esta matéria, o Acórdão desta Relação de Lisboa de 10/01/2012, relatado por Maria João Areias, disponível na dgsi, onde se pode ler que «I - A falta de impugnação da lista de credores reconhecidos importará, em princípio, um efeito cominatório em relação aos elementos que, ao abrigo do nº 2 do art.º 129º do CIRE, devem constar da lista a elaborar pelo administrador da insolvência, limitando-se o juiz a proceder à sua homologação e a graduar os créditos em função do que conste dessa lista. II- O efeito cominatório funcionará em pleno quanto à existência, montante e natureza dos créditos, limitando-se o juiz a proceder à sua homologação, salvo o caso de erro manifesto. III- Quanto às garantias e privilégios de que gozem, para que o efeito cominatório funcione relativamente a estas, será necessário que os elementos de facto dos quais emergem constem da lista, sendo que, no caso de a respectiva constituição se encontrar dependente da verificação de requisitos ad substantiam, se não constarem do processo os elementos que permitam constatá-los deverá o tribunal determinar a sua junção aos autos. IV - A decisão de graduação dos créditos é da exclusiva competência do juiz, no âmbito da qual lhe incumbirá proceder à qualificação jurídica dos direitos de crédito reconhecidos e aferir se as garantias referidas pelo administrador se mostram correctas» (sublinhado nosso).
Ora, tendo os créditos dos trabalhadores sido indicados na lista apresentada como gozando de “privilégio imobiliário especial sobre os imóveis da insolvente”, mas resultando depois do anexo à mesma apenas a que se destinava a verba n.º 2, nada impedia o tribunal recorrido, antes se lhe impunha que, em face da falta de elementos de facto quanto ao uso das verbas n.ºs 1 e 3, que não resultava da lista, indagar se as mesmas estavam afectas à actividade desenvolvida pela respectiva entidade patronal dos trabalhadores reclamantes. Com efeito, por força do princípio da aquisição processual plasmado no artigo 413.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE, o tribunal, na sentença de verificação e graduação de créditos, deverá tomar em consideração os factos que se encontrem provados, tenham ou não emanado da parte que os devia produzir, podendo fazer uso de todos os elementos que se encontram nos autos.
Entendendo o tribunal que nenhum elemento nos autos lhe permitia concluir pela afectação dos imóveis 1 e 3 à actividade da insolvente, assim o decidiu, não cometendo, pois, qualquer nulidade na estrutura da sentença nem violando qualquer contraditório. Se dos autos resulta coisa diferente, como defendem os recorrentes em alegações e as recorridas em contra-alegações, estamos então perante erro de julgamento.
Donde, e sem mais, concluímos, a sentença recorrida encontra-se fundamentada no que respeita às razões pelas quais o tribunal a quo entendeu que os créditos dos apelantes apenas beneficiavam de privilégio imobiliário especial sob a verba n.º 2 do auto de apreensão, em face da leitura que fez dos autos, no sentido de entender que neles não existiam elementos que pudessem demonstrar o contrário, pelo que, nestes termos, entende-se, a sentença não enferma de qualquer nulidade.

***

(ii) Do Direito:
Vejamos então se dos autos resultavam elementos que impunham decisão diversa que permitisse estender o privilégio imobiliário especial a todos os imóveis da insolvente.
É do conhecimento de todos que existem na doutrina e na jurisprudência duas diferentes teses sobre esta matéria: uma que considera que o privilégio incide apenas sobre o imóvel onde o trabalhador trabalhou ou trabalhava; uma segunda que abarca todos os imóveis que compõem o património do empregador, desde que ligados à sua actividade empresarial e a que os trabalhadores estão funcionalmente ligados, independentemente de aí desempenharem ou não a sua actividade laboral (ver, entre outros, acórdãos desta Relação e secção de  09/03/2021 e 11/05/2021, relatados por Fátima Reis Silva e Manuela Espadaneira Lopes e acórdão da Relação de Guimarães de 22/10/2020, relatado por Alexandra Viana Lopes).
Acompanhamos esta segunda tese que tem, de resto, obtido entendimento dominante na jurisprudência, e à luz da qual abordaremos então a questão objecto do presente recurso.

Assim, e no que concerne à verba n.º 1, resulta das informações dos autos, mormente da sentença proferida no “apenso S”, em que alguns dos trabalhadores foram ouvidos como testemunhas no julgamento ali realizado, que aquela verba estava arrendada a sociedade terceira, que pagava rendas, pertencendo a insolvente e essa sociedade a um grupo empresarial de cariz familiar, sendo administradas pelas mesmas pessoas, (…).
Não implicando o facto de tal imóvel ser propriedade da insolvente que o mesmo esteja ligado à sua actividade produtiva, também o facto de a mesma ter ali registada a sua sede não o implica, tanto mais que dos autos resulta que aquele imóvel estava arrendado a outrem, não tendo ali a insolvente os seus escritórios ou sede administrativa (que ali estava apenas “no papel”), nada ligando aquele imóvel à sua actividade produtiva, não estando no seu objecto o arrendamento de imóveis.
Ficando excluídos do privilégio os imóveis propriedade da entidade patronal que não estejam afectos ao seu escopo societário, à sua actividade empresarial, naturalmente que a verba n.º 1 do auto de apreensão também terá de ser excluída.
Contrariamente ao alegado pelos recorrentes, e nesta parte concreta apenas pela recorrente (…), em sede de recurso, não se encontravam instalados naquele imóvel quaisquer serviços da insolvente, encontrando-se o mesmo arrendado à (…) Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A., conforme resulta de sentença transitada em julgado proferida no apenso S, que a recorrente não pode ignorar ou dela querer fazer letra morta. O facto de a insolvente ali ter registada a sua sede e o facto de a mesma se apresentar a terceiros como ali tendo a sua sede não acompanha a realidade material, pois que, se assim o era “no papel”, na realidade assim não acontecia, pelo que não podemos acompanhar a argumentação dos recorrentes quando pretendem daqui concluir pela integração da verba n.º 1 na estrutura organizativa da Insolvente.
Não existindo qualquer ligação funcional entre a actividade operacional da empresa e este imóvel, nem qualquer nexo entre o mesmo e a prestação de trabalho dos credores (trabalhadores), exigido mesmo na interpretação mais lata do artigo 333.º n.º 1 al. b-) do CT, nada cumpre, pois, alterar no que concerne à graduação de créditos feita quanto a este imóvel.

No que concerne à verba n.º 3, também os recorrentes nada trazem que permita concluir pela afectação de tal verba à actividade da empresa e dos elementos dos autos tanto não resulta. O facto de se tratar de terreno situado dentro de aglomerado urbano, onde não é permitido construir e sem afectação agrícola, tendo resultado de um destaque efectuado sobre a verba n.º 2, onde funcionavam as instalações fabris da insolvente, encontrando-se intrinsecamente conexo à referida verba, tendo, até, sido alvo de venda conjunta, não significa, por si só, que se trate de um imóvel afecto à actividade empresarial da insolvente.
Ainda que se trate de terreno adjacente às instalações da Insolvente, certo é que nada nos autos nos diz que os trabalhadores da Insolvente exerciam qualquer actividade naquele terreno ou que este estava ligado à actividade empresarial da insolvente por qualquer forma. O facto de ser um imóvel contíguo, só por si, não permite que se possa concluir, sem mais, pela existência do privilégio imobiliário especial, pois que nenhuma prova foi feita pelos trabalhadores de que exerciam, ou exerceram alguma vez, actividade profissional naqueles prédios, ou que nele era realizada qualquer actividade da empresa, que ali eram guardados bens da empresa, o que fosse. Aliás, os próprios recorrentes nada trouxeram aos autos sobre esta questão. Se em sede de reclamação de créditos nada disseram, em recurso, (…) também nada dizem de concreto sobre este imóvel, qual o seu uso no âmbito da actividade da empresa, limitando-se a afirmar, em termos genéricos, que «todos os imóveis que constituem o património da empresa e servem de suporte físico a essa atividade não devem ver excluídos». Também (…) nada diz quanto ao uso desse imóvel, limitando-se a argumentar que tal verba, juntamente com a n.º 2, eram conexas, o que resultava do registo e assim foram vendidas no âmbito da liquidação.
 Ora, a ser assim, embora se trate de um terreno contíguo às instalações fabris da Insolvente, certo é que não foi demonstrado que o mesmo estivesse, por qualquer forma (que não a mera localização) ligado à actividade empresarial da Insolvente, sendo irrelevante que tais prédios tenham sido vendidos conjuntamente, tanto mais que foi apresentada proposta diferente para cada um deles (900 mil e 77 mil).
Neste enquadramento, não sendo demonstrado que o referido imóvel se encontrava, por qualquer forma de utilização, adstrito à actividade desenvolvida pela Insolvente em termos de se poder considerar que os seus trabalhadores tinham com ele uma conexão funcional - impendendo sobre o trabalhador/credor o ónus de demonstrar tal ligação funcional, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil - não pode o mesmo beneficiar do privilégio reclamado.
Ver, neste sentido, o Acórdão do STJ, de 05/04/2022, cujo entendimento aqui sufragamos, relatado por Graça Amaral, publicado na dgsi, e assim sumariado «I - O privilégio imobiliário especial previsto no art.º 333.º, n.º 1, al. b), do CT, abrange os imóveis da entidade patronal que integram a organização produtiva a que os trabalhadores pertencem em termos de ligação funcional, a qual não se reconduz à localização física onde é exercida a actividade laboral. II - A ligação funcional dos imóveis com os trabalhadores visada pelo preceito reporta-se à actividade produtiva da entidade patronal. Nesta perspectiva, ficam arredados do privilégio creditório imobiliário os imóveis pertencentes à entidade empregadora que não estejam, de qualquer forma, adstritos a essa actividade produtiva onde o trabalhador se encontra inserido. III - O destino visado pela insolvente para num seu terreno rústico serem construídas as novas instalações da empresa não assume relevância para a caracterização do referido elo funcional com os trabalhadores, se não for demonstrada a ligação do terreno à actividade da empresa, designadamente por nele terem sido apreendidos bens da insolvente, por ter ficado apurado que os seus trabalhadores tinham nele desempenhado qualquer actividade laboral (na construção das instalações) e/ou que servisse de apoio à respectiva actividade empresarial. IV - Fora do âmbito do art.º 333.º, n.º 1, al. b), do CT, encontram-se os prédios rústicos da insolvente onde, em tempos, funcionou a sua fundição, uma vez que, arredados da respectiva organização produtiva, foi quebrada a indispensável ligação funcional laboral. V - Encontra-se igualmente excluído da previsão do citado preceito o terreno rústico contíguo aos imóveis onde a insolvente tinha as suas instalações, por não ter sido demonstrado que o mesmo estava, por qualquer forma (que não a mera localização) ligado à actividade produtiva da empresa».

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IV-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
Sem custas na presente instância recursiva, dada a isenção prevista no artigo 4.º n.º 1, al. h) do RCP.
Registe notifique.

Lisboa, 24/01/2023
Paula Cardoso
Renata Linhares de castro
Nuno de Magalhães Teixeira