Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
987/17.4SDLSB.L1-5
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
ESPECIAL CENSURABILIDADE OU PERVERSIDADE
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CÔNJUGES
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMUNICAÇÃO
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I. Ninguém põe em causa que uma agressão física como a dos autos ( tendo o  arguido puxado os cabelos à então companheira], verificando-se o preenchimento do elemento subjetivo, como é o caso, seja facto punível pela lei penal.
II. Não se descortinando que o arguido padeça de qualquer incapacidade ou anomalia de compreensão das regras sociais e jurídicas em vigor, tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, com o intuito de ofender o corpo da vítima, o que é demonstrativo da sua capacidade de decisão e de autodeterminação, cumpre concluir, face às regras da experiência comum,  que sabia que a sua conduta era proibida e sancionada por lei penal.
III. Não basta o facto de a vítima ser cônjuge ou de ter vivido com o agente em condições análogas às do cônjuge para que o crime de ofensa à integridade física seja qualificado, sendo necessário conjugar as demais circunstâncias do ato e verificar se, dessa conjugação, resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
IV. Quando os factos suscetíveis de integrar um crime de ofensa à integridade física simples tenham sido alegados em sede de acusação por crime de violência doméstica [sendo aquele um minus em relação a este] e, por isso, sobre os mesmos o arguido já teve oportunidade de se defender, não cumpre proceder a qualquer comunicação ao arguido da referida alteração da qualificação jurídica, designadamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, que sempre se afiguraria inútil, não se verificando, com tal omissão, qualquer postergação das garantias de defesa do arguido.
V. Não resultando da factualidade provada qualquer facto que permita ao Tribunal ad quem proceder à determinação da pena concreta a aplicar ao arguido, cumpre remeter os autos à 1.ª instância a fim de o Tribunal a quo, ao abrigo dos artigos 340.º, 369.º, n.ºs 1 e 2 e 371.º, todos do Código de Processo Penal, proceder às diligências necessárias com a inerente ou subsequente reabertura da audiência para a determinação da sanção a aplicar ao arguido.
[sumário elaborado pela relatora]
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 987/17.4SDLSB que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 29-06-2022, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“3 - DECISÃO
Nos termos de facto e de Direito expostos, o Tribunal decide julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público improcedente por não provada e, em consequência:
a) absolver o Arguido da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, al. b), e n.º2, do C. Penal, pela qual vinha acusado.”
I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“ IV. CONCLUSÕES:
A. O presente recurso é interposto da sentença proferida nestes autos, a qual absolveu o Arguido  da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b), e nº 2, do CP, pela qual vinha acusado, dado que o MP, junto deste Tribunal, não concorda com esta decisão proferida pelo Tribunal a quo.
B. Não obstante o Tribunal a quo ter dado como provados os factos constantes da alínea d) da sentença recorrida, considerou como não provado “que, de seguida, o Arguido tenha empurrado a Ofendida para o solo, tendo a mesma pisado uma tábua e inserindo um prego no pé direito” (cfr. fls. 3 da sentença recorrida).
C. Acontece que a testemunha em causa, F…, referiu que, na sequência, o Arguido “arrastou-a para o chão” (cfr. sessão de julgamento do dia 9/6/2022, ficheiro nº 20220609150748_2009801_2871126, a partir do minuto 19:41).
D. Deste modo, impunha dar-se como provado, sob a alínea e) (renumerando-se, consequentemente, as alíneas seguintes) que “de seguida, o Arguido arrastou a Ofendida para o solo”, dando como não provado, do nº 14 da acusação, apenas que, nesta sequência, a Ofendida tenha pisado uma tábua e inserido um prego no pé direito.
E. Consequentemente, de acordo com o critério da experiência comum, considerando a matéria de facto que deve ser dada como assente, mais se devia ter dado como provado que “Arguido sabia que o que as descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal” (em termos semelhantes ao que consta do ponto 23 da acusação), impugnando-se que tal factualidade não tenha sido dada como provada.
F. Admite-se que a factualidade provada é insuficiente para integrar o tipo legal do crime de violência doméstica pelo qual o Arguido vinha acusado.
G. No entanto, e mesmo atendendo apenas à matéria de facto dada como provada na sentença, considerando, designadamente os factos constantes das alíneas d), e e) da sentença recorrida, uma vez que que na al. e) se deu expressamente como provado que “o Arguido, na situação descrita, agiu deliberada, livre e conscientemente, com o intuito concretizado de ofender o corpo da Ofendida”, entendemos que tais factos consubstanciam a prática pelo Arguido de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. b), todos do CP, já que a conduta do Arguido, considerando a qualidade da vítima, com quem o Arguido viveu como marido e mulher (cfr. als. a) a c) da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida), e no contexto descrito, revela uma especial censurabilidade.
H. Ademais, considerando a factualidade sobre a qual deve ser deferida a impugnação matéria de facto, o tipo legal do crime fica preenchido de forma ainda mais intensa, uma vez que o Arguido não só puxou os cabelos à Ofendida, como ainda a arrastou para o chão.
I. Todavia, para que a condenação do Arguido em conformidade pudesse ter lugar, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse procedido à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública (dado que o Arguido vinha acusado pela prática de um crime de violência doméstica) e tivesse comunicado tal alteração ao Arguido, nos termos do disposto no nº 1 do art. 358º do CPP, ex vi do nº 3 do mesmo artigo.
J. Mesmo que se considerasse estar apenas preenchido o tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples, o qual reveste natureza semi-pública, refira-se, ainda, que, a fls. 118 a 130, a Ofendida referiu expressamente que desejava procedimento criminal contra o Arguido pelos factos então relatados, em 20/12/2017, aí se fazendo menção concreta aos factos ocorridos no dia 30/10/2017.
K. Pelo exposto, entende-se que a sentença recorrida violou o disposto no art. 358º, nºs 1 e 3 do CPP, assim como o disposto nos arts. 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. b), todos do CP, devendo a mesma ser revogada, e o Arguido condenado pela prática de um crime ofensa à integridade física qualificada, entendendo-se adequada e necessária à satisfação das necessidades da punição que in casu se fazem sentir (considerando os antecedentes criminais do Arguido) a aplicação de uma pena de prisão não inferior a de 2 anos, a qual ainda poderá ser substituída por uma pena não privativa da liberdade, designadamente suspender-se a sua execução por igual período, dando-se previamente cumprimento ao disposto no art. 424º, nº 3, do CPP.
Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser alterada a decisão recorrida nos termos referidos, fazendo-se, desta forma, JUSTIÇA.”
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Foi admitido o recurso nos termos do despacho proferido a 03-08-2022.
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I.3 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, o arguido não apresentou resposta.
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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, mais acrescentando que, a seu ver, a impugnação da matéria de facto deve ser julgada procedente, uma vez que foram indicados os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados e foi indicada prova concreta que impõe decisão diversa da recorrida.
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I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.
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I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do respetivo recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
1. Se deve ser dado como provado que, na sequência do facto vertido em d) da factualidade provada:
- “o arguido arrastou a ofendida para o solo”; e
- “sabia que as descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal” [impugnação, portanto, da matéria de facto];
2. Da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública, designadamente se a factualidade provada é suscetível de integral um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, nº 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. b), todos do Código Penal, ou, pelo menos, de um crime de ofensa à integridade física simples, com a consequente comunicação legal, ao abrigo do artigo 358.º, n.º1, ex vi n.º3 e 424.º, n.º3, ambos do Código de Processo Penal;
3. Determinar a pena concreta a aplicar ao arguido.
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II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. - Matéria de facto provada
a) A Ofendida  viveu em comunhão de mesa, cama e habitação com o Arguido, como se de mulher e marido se tratasse, tendo o referido relacionamento tido início em data não apurada de 2012.
b) Em Outubro de 2017, os intervenientes residiam no quarto n°4 da Pensão …, sita na …, em Lisboa.
c) Tal relacionamento amoroso perdurou até finais de 2017, data em que M decidiu terminar tal relação, o que não foi aceite pelo Arguido.
d) No dia 30.10.2017, pelas 20 horas, quando a Ofendida se encontrava no estabelecimento de restauração e bebidas "O ...”, sito na Rua de …, em Lisboa, o Arguido dirigiu à mesma, puxando-lhe os cabelos.
e) O Arguido, na situação descrita, agiu deliberada, livre e conscientemente, com o intuito concretizado de ofender o corpo da Ofendida.
f) Do seu certificado de registo criminal constam condenações por crimes de falsas declarações, furto qualificado, e coacção na forma tentada.
2.2. - Matéria de facto não provada
Com efectivo interesse para a decisão, não resultou provado:
 Da Acusação pública:
(…)
- que, após, quando a Ofendida se encontrava no estabelecimento de restauração e bebidas 'O ...', sito na Rua de …, em Lisboa, o Arguido lhe tenha desferido três bofetadas na face;
- que, de seguida, o Arguido tenha empurrado a Ofendida para o solo, tendo a mesma pisado uma tábua e inserindo um prego no pé direito;
(…)"
- que o arguido soubesse que todas estas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal ”. 
(…)
2.3. – Motivação
(…)
Atendeu o Tribunal ao depoimento de P, desempregado, o qual recordou que, antes, trabalhava num restaurante, e conhecia quer a Ofendida, quer o Arguido. O depoente esclareceu que os mesmos andavam sempre "às turras». Num dia, o depoente viu o Arguido puxar os cabelos da Ofendida, esta conseguiu fugir, e o depoente separou-os. Também o viu tentar dar uma palmada no ombro da mesma, mas a Ofendida conseguiu esquivar-se. O depoente crê que Arguido e Ofendida não exerciam qualquer profissão. A testemunha prestou um depoimento claro, denotando recordar-se do que lhe foi dado conhecer, um depoimento sem obscuridades ou contradições, objectivo e isento; pelo que mereceu todo o crédito ao Tribunal.
(…)
Atendeu o Tribunal- à prova pericial- e documental junta aos autos, mormente: - Auto de notícia de fls. 23 a 31; - Aditamentos de fls. 76, 93, 105 e 138; - Auto de denúncia de fls. 81 e 82; - Elementos clínicos de fls., 160, 206 e 208. Antecedentes criminais: C.R.C. junto aos autos.
A inclusão de vasto elenco de factos da Acusação nos factos não provados resulta, desde logo, da circunstância de a prova apresentada ser absolutamente lacunar, pois a própria Ofendida, ouvida em audiência, não quis prestar depoimento sobre os factos. A única testemunha que presenciou algo, apenas viu os mesmos desentendidos, e o Arguido a puxar os cabelos à Ofendida. O Arguido, por sua vez, não compareceu em julgamento.
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II.3- Apreciação do recurso
II.3.1- Se deve ser dado como provado que, na sequência do facto vertido em d) da factualidade provada:
- “de seguida, o arguido arrastou a ofendida para o solo”; e que
- “o arguido sabia que as descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal” [impugnação, portanto, da matéria de facto].
O recorrente alega que os referidos factos considerados não provados, deveriam ter sido dados como provados, pois, quanto ao primeiro, assim o referiu a testemunha presencial [“cfr. sessão de julgamento do dia 9/6/2022, ficheiro nº 20220609150748_2009801_2871126, a partir do minuto 19:41]., de cujo depoimento o tribunal a quo se socorreu para dar como provado o facto vertido em d) da factualidade provada [a saber, que: No dia 30.10.2017, pelas 20 horas, quando a Ofendida se encontrava no estabelecimento de restauração e bebidas "O ...”, sito na Rua de …, em Lisboa, o Arguido dirigiu à mesma, puxando-lhe os cabelos] e, quanto ao segundo, por ser o que resulta do critério da experiência comum.
Vejamos:
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008[4], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e ás concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Germano Marques da Silva[5] que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[6], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros[7].
Ora, como se escreveu no acórdão do TRC de 19.02.2009[8] “Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. (…). A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos”, devendo, com vista a valorar, ou não, um dado meio de prova, designadamente um depoimento, o julgador aferir da credibilidade dos factos relatados pela testemunha/depoente, para o que deverá socorrer-se de raciocínios lógicos e dedutivos, pautados nas regras decorrentes da experiência comum.
E, diga-se, foi isso o que fez a Mm.ª Juíza a quo no que respeita ao facto vertido na invocada alínea d) da matéria de facto provada, tendo sustentado a sua convicção no depoimento prestado pela testemunha F…, que considerou ter sido “claro, denotando recordar-se do que lhe foi dado conhecer, um depoimento sem obscuridades ou contradições, objectivo e isento; pelo que mereceu todo o crédito ao Tribunal” e foi isso o que fez quanto ao facto não provado ora em causa [a saber: “de seguida, o arguido arrastou a ofendida para o solo”]; considerando que  “A inclusão de vasto elenco de factos da Acusação nos factos não provados resulta, desde logo, da circunstância de a prova apresentada ser absolutamente lacunar, pois a própria Ofendida, ouvida em audiência, não quis prestar depoimento sobre os factos. A única testemunha que presenciou algo, apenas viu os mesmos desentendidos, e o Arguido a puxar os cabelos à Ofendida. O Arguido, por sua vez, não compareceu em julgamento.”.
Com efeito, embora defenda o recorrente que resulta do depoimento da mencionada testemunha que esta, além de ter visto o arguido a puxar os cabelos da ofendida, também o viu a arrastá-la para o chão, o facto é que ouvimos a gravação do depoimento prestado pela mencionada testemunha em audiência de julgamento e em momento algum esta o refere, bem pelo contrário. Com efeito, o que refere a testemunha é que o arguido agarrou os cabelos da ofendida, tendo, então, o depoente metido as mãos à frente e ela conseguiu “esquivar-se” (sic), facto que referiu a instâncias da Mm.ª Juíza a quo dizendo: “não a arrastou para a estrada porque eu consegui (…)”, (sic) separar, concluiu a Mm.ª Juíza a quo, e que reiterou a instâncias da Digna Procuradora da República, referindo: “não a arrastou para o chão porque eu ainda fui a tempo de separar” (sic).
Consequentemente, tal facto não poderia ter sido considerado provado, como, e bem, o fez a Mm.ª Juíza a quo.
Improcede, portanto, o recurso nesta parte.
Vejamos, agora, quanto ao segundo facto que o recorrente pretende que seja considerado provado, a saber, que: “o arguido sabia que as descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal”, por assim o impor o critério da experiência comum.
Ora, desde já se adianta que assiste razão ao recorrente neste segmento do recurso.
Com efeito, não está demonstrado que o arguido ignorasse que a sua conduta era subsumível a um tipo legal devido a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da sua personalidade, sendo certo que a ignorância tout court é irrelevante.
Ninguém põe em causa que uma agressão física como a dos autos [a saber: o arguido puxou os cabelos à então companheira], verificando-se o preenchimento do elemento subjetivo, como é o caso [cfr. decorre da alínea e) da matéria de facto provada], seja facto punível pela lei penal.
Como se vem defendendo na doutrina, quanto à problemática do erro sobre a ilicitude, “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito (…)”, por isso “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe a consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume”.[9]
Por sua vez, decorre da Jurisprudência do STJ que “a consciência da ilicitude fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento geral que ele é proibido e punível”.
Aliás, assim já se decidiu nesta 5.ª secção, deste Tribunal da Relação[10], ou seja, no sentido de que “Na caracterização do elemento subjectivo da culpa e quando se esteja perante um tipo de comportamento que não seja axiologicamente neutro, a prova da “consciência da ilicitude” e da intencionalidade decorre das regras da experiência comum e, das circunstâncias do caso (…)”.
Face ao exposto, entende este tribunal, tal como defendido neste último aresto citado,  que a infração em causa não é axiologicamente neutra, não se descortinando que o arguido padeça de qualquer incapacidade ou anomalia de compreensão das regras sociais e jurídicas em vigor, tendo, aliás, agido de forma deliberada, livre e  consciente, com o intuito de ofender o corpo da vítima [facto vertido na alínea e) da matéria de facto provada], o que é demonstrativo da sua capacidade de decisão e de autodeterminação, pelo que sabia que a sua conduta era proibida e sancionada por lei penal.
Aqui chegados, pode dizer-se que uma pessoa média, colocado perante o teor da decisão recorrida, conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal a quo violou as regras da experiência e que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta ao dar como não provado o facto respeitante ao “conhecimento da ilicitude”. 
Nessa vertente, a sentença recorrida padece de vício (formal) designado de “erro notório na apreciação da prova” a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, que, aliás, pese embora não tenha sido dessa forma invocado, é de conhecimento oficioso.
Consequentemente, cumpre dar como provado que “o arguido sabia que a referida conduta era proibida e punida por lei penal”, tal como vem defendido e consta do artigo 23. do libelo acusatório.
Procede, portanto, o recurso nesta vertente.
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II.3.2- Da qualificação jurídica dos factos:
Entende o recorrente que os factos em causa consubstanciam a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, nº 1, e 145.º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao artigo 132.º, nº 2, al. b), todos do Código Penal.
Vejamos:
Preceitua o artigo 143.º do Código Penal que comete o crime de ofensa à integridade física simples:
“1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”
caso em que é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Trata-se da tutela do bem jurídico “integridade física da pessoa humana”, obedecendo ao comando constitucional do artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República [A integridade moral e física das pessoas é inviolável].
No que concerne ao tipo objetivo, escreve Paula Ribeiro de Faria[11]:
“A lei distingue duas modalidades de realização do tipo:
a) ofensas no corpo e
b) ofensas na saúde.
Muitas das vezes haverá coincidência entre estas duas formas de realização do tipo; assim será, por exemplo, quando o agente, espetando uma seringa no braço da sua vítima, lhe causa uma infecção. Mas não necessariamente. Casos há em que existe uma lesão no corpo sem que concomitantemente haja lesão da saúde. Pense-se na controvertida agressão à bofetada (leve) sobre uma pessoa, sem qualquer sofrimento ou incapacidade para o trabalho, e que parte da jurisprudência (Ac. da RL de 26-6-90, CJ XV-III 172) tinha, à luz da versão anterior do art. 142.º, como integrando o tipo legal de injúrias. Outra foi, no entanto, a última palavra do STJ, que fixou jurisprudência sobre esta matéria no Ac. de 18-12-91, qualificando o dito comportamento como ofensa corporal. Por outra banda, poderá haver lesões da saúde que não configuram ofensas no corpo, pois que inclusivamente aumentam o bem-estar do lesado (será o caso da administração de estupefacientes). Pode aqui recorrer-se à impressiva imagem, utilizada por ESER (cf. S/ S / ESER § 223 1), de dois círculos que se cruzam embora mantenham a sua autonomia”.
Ou seja, o tipo legal do artigo 143.º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados.
Também não relevam para o preenchimento do tipo os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão, pese embora, como é evidente, tais circunstâncias sejam de ter em conta, ao abrigo do artigo 71.º do Código Penal, para determinação da medida da pena.
Admite-se, é certo, que, em face do princípio da subsidiariedade, vertido no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, sendo o enquadramento penal a ultima ratio, a ofensa ao corpo ou à saúde prevista na norma do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, deve assumir um grau mínimo de gravidade, descortinável segundo uma interpretação do tipo legal à luz do critério de adequação social.
Porém, não constitui condição da relevância típica a provocação de dor ou mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho, aleijão ou marca física, nada legitimando uma interpretação do conteúdo constitucional do direito à integridade pessoal, concretamente na sua componente de direito à integridade física, em termos de apenas abranger a proteção contra um determinado grau de ofensas corporais, designadamente as que tenham por efeito a provocação de uma lesão ou de incapacidade para o trabalho[12].
A existência de dor ou a sua intensidade, a existência de lesões, sequelas e sua intensidade e a incapacidade para o trabalho, não são questões de tipicidade no que respeita ao crime de ofensa à integridade física simples, pelo que qualquer ato comportamental, que seja voluntário, injustificado, atentatório da incolumidade corporal de terceira pessoa, verificados os demais pressupostos legais, fará incorrer o respetivo agente em responsabilidade criminal, independentemente da maior ou menor extensão objetiva da respetiva ofensa e das suas resultantes consequências.
Pois bem:
O ato de o arguido ter puxado os cabelos à ofendida exprime, a nosso ver de forma inequívoca, do ponto de vista ético-social, uma agressão no corpo desta, tal como, aliás, assim o considerou a Mm.ª Juíza a quo, pois que o fez constar da factualidade provada, com a seguinte redação: “O arguido, na situação descrita, agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, com o intuito concretizado de ofender o corpo da Ofendida” – alínea e) da matéria de facto provada [sublinhado nosso].
E não vislumbramos qualquer razão, perante a factualidade provada, para que tal conduta do arguido tenha sido ignorada pelo tribunal a quo, da qual não extraiu qualquer consequência, sendo certo que sobre ela nada disse na sentença recorrida, aquando da apreciação do aspeto jurídico da causa, pese embora seja uma evidência que a mesma preenche todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de ofensa à integridade física.
Acresce que, conforme decorre de fls. 118 a 130, a 20-12-2017, a ofendida manifestou expressamente o seu desejo de procedimento criminal contra o arguido, designadamente pelos factos aqui em causa [artigo 143.º, n.º 2, do Código Penal].
Encontram-se, portanto, preenchidos todos os pressupostos legais para a condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física, perante o preceituado no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Entende o recorrente que a conduta do arguido integra a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.
Ora, conforme decorre do artigo 145.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, a ofensa à integridade física será qualificada, punida com pena de prisão até quatro anos, “  se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente”.
E, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal “são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º.”.
Por sua vez, da alínea b), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal decorre que “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…), entre outras, a circunstância de o agente:
(…);
b) Praticar o facto contra (…), pessoa (…) do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, (…)”.
A introdução da aludida e atual alínea b), pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, teve a finalidade de responder à censurabilidade social das situações de agressões no contexto de violência doméstica, na consideração de que, como anota Paulo Pinto de Albuquerque[13], “os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”,mesmo se tiverem cessado as relações matrimoniais, pois os laços familiares devem continuar a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram[14]
Está-se no âmbito dos vínculos familiares, ou equiparados, a partir da relação matrimonial. A incriminação agravada das agressões e dos maus tratos conjugais, está ligada à necessidade de recriminar o crescente aumento da sua prática. O legislador entende que qualidades ou relações como as descritas agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o crime é praticado e integra estes comportamentos no artigo 132.º
Deste modo, as ofensas corporais qualificadas, forma agravada de culpa do crime de ofensas corporais, define-se, em termos genéricos, pela verificação de circunstâncias - quaisquer circunstâncias - que revelem aquela especial censurabilidade ou perversidade na produção do evento [no caso das ofensas corporais], seguindo-se, no n.º 2, pela denominada técnica dos exemplos-padrão, a enumeração de circunstâncias específicas que podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade que importa o agravamento do crime. Assim, por um lado, não apenas aquela enumeração é meramente exemplificativa, como o revela a utilização da expressão “entre outras”, como ainda, por outro lado, as várias circunstâncias aí apontadas não são de preenchimento automático, ou seja, apesar de se verificar uma situação formalmente enquadrável numa dessas circunstâncias, daí não se segue necessariamente a qualificação do crime, exigindo-se que tal circunstância tenha aquele alcance, isto é, que, em concreto, sustente esse juízo de especial censurabilidade ou perversidade do agente na prática do crime.
Na palavra de Figueiredo Dias “..., a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no nº 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”.
A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor (…), que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade” [15]
Do que ficou exposto resulta que não basta o facto de a vítima ser cônjuge ou ter vivido com o agente em condições análogas às do cônjuge para que o crime de ofensa à integridade física seja qualificado. É necessário conjugar as demais circunstâncias do ato e verificar se dessa conjugação resulta uma espe­cial censurabilidade ou perversidade do agente.
Ora, no caso dos autos, perscrutada a factualidade provada, constata-se que o arguido agiu num contexto sem qualquer especificidade suscetível de configurar os apontados conceitos de especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Com efeito, é verdade que a vítima era, na data dos factos, companheira do arguido, vivia com este em condições análogas às dos cônjuges, porém, tal facto, sem mais, apenas poderá relevar, no momento oportuno, no plano das consequências jurídicas do crime, na ponderação que se fizer aquando da determinação da sanção, uma vez que se encontra desacompanhado de qualquer outro facto que nos permita concluir por um especial desvalor capaz de denotar uma especial censurabilidade e perversidade do agente.
Ou seja, a conduta do arguido, ao agredir a ofendida com puxões de cabelo, o que fez com o intuito, conseguido, de a ofender no seu corpo, tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal, configura uma conduta desvaliosa e preenche, sem dúvida, o tipo legal de crime de ofensa à integridade física.
Porém, tal ofensa à integridade física não é qualificada, pois, pese embora não se esqueça que sobre o arguido impende um especial dever de respeito para com a vítima, atentos os valores éticos inerentes a uma união conjugal/união análoga à dos cônjuges, o que, sem dúvida, demanda que se reveja na sua conduta um aspeto desvalioso da sua personalidade, tal facto, por si só, não é suficiente para qualificar o crime. Torna-se, portanto, necessário verificar se da conjugação dessa circunstância com a restante factualidade que envolve o ato se retira a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente e no caso dos autos tal não ocorre.
Na verdade, analisada a factualidade provada entendemos que, apesar do desvalor de ação inerente ao facto de a vítima ser, na data, a companheira do arguido, o que justifica um elevado juízo de censura no âmbito do tipo do ilícito base, nada mais resulta que revele insensibilidade e desvende uma «imagem global do facto agravada»[16], suscetível de sustentar um juízo de especial censurabilidade, por fundar um juízo de maior desvalor ético, quando confrontada com os procedimentos de agressão comummente adotados.
Ou seja, a sentença recursiva não contém factos que sustentem a conclusão defendida pelo recorrente de que o arguido agiu de uma forma especialmente censurável, nem no pano objetivo nem no plano subjetivo do tipo de crime em apreço.
Consequentemente, porque a conduta perpetrada pelo arguido é insuscetível de revelar uma especial censurabilidade ou perversidade, preenche, portanto, apenas, o tipo do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Improcede, assim, o presente recurso na vertente da qualificativa da conduta do arguido.
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II.3.3 - Da comunicação da alteração da qualificação jurídica:
Conforme decorre do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”:
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
(…).
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”.
No caso dos autos, o arguido vem acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo pelo artigo 152.º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal.
Comete tal crime (no que ao caso importa) quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Ou seja, este crime abrange, além do mais, situações de maus tratos físicos, agressões físicas.
Na sentença sub judice entendeu-se não estar configurado, in casu, o cometimento de um crime de violência doméstica, “em face da muito lacunar realidade trazida à audiência de julgamento”, posição, aliás, que o recorrente não contesta.
Porém, pese embora nada se tenha referido a tal respeito aquando da análise do aspeto jurídico da causa, conforme analisamos supra, a conduta do arguido, integra a prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
É, assim, inquestionável a existência da divergência quanto à qualificação jurídica dos factos.
Entende o recorrente que deve ser dado cumprimento ao disposto no artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, porém tal preceito legal só é aplicável no âmbito da audiência a realizar nesta instância de recurso e o recorrente não requereu a sua realização.
Resta, portanto, verificar se será de comunicar ao arguido a referida alteração da qualificação jurídica, ao abrigo do citado artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.
Vejamos:
Não se esquece que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido e que a audiência de julgamento está subordinada ao princípio do contraditório [artigo 32.º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa], o que significa que, à luz destes princípios constitucionais, ao arguido devem ser reconhecidas todas as possibilidades de se opor à acusação contra si deduzida, em ordem a evitar uma condenação injusta, tanto ao nível da matéria de facto, como no plano do direito, o que implica, além do mais, que lhe seja conferido o ensejo de discutir, em plenitude e com efetividade, os juízos jurídicos formulados pela entidade acusadora.
Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objeto processual tem de ser necessariamente excecional, e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária, o que equivale a dizer, em concreto, dentro dos condicionalismos definidos pelos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Assim sendo, e por princípio, estará ferida de nulidade a sentença que condene o arguido com base numa qualificação jurídica dos factos diversa da constante da acusação, sem que a modificação lhe tenha sido comunicada e lhe tenha sido dada a oportunidade de dela se defender.
Porém, o que se revela necessário, é que estejamos perante uma alteração que efetivamente "mexa" com os direitos do arguido[17], que postule essa necessidade de defesa.
Assim não acontece, "quando aos factos da acusação se retiram algum ou alguns, isto é, se reduz o objecto do processo já que aqueles direitos permanecem intocáveis"[18].
Ora, é inquestionável que, in casu, os factos dados como provados na sentença recorrida [quanto à ofensa corporal em questão] foram alegados em sede de acusação [concretamente nos números 12, 13.º, 21.º e 23.]  e, por isso, sobre os mesmos o arguido já teve oportunidade de preparar a sua defesa, pois foram objeto do julgamento a que foi sujeito.
O arguido teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime de ofensas à integridade física simples e teve oportunidade de os contraditar, pois constavam da acusação.
A verificada divergência entre as qualificações jurídicas não resulta da prova de factos não articulados no libelo acusatório, radicando, exclusivamente, no facto de apenas ter resultado provada uma ínfima parte dos factos pelos quais o arguido vinha acusado.
Acresce que o crime de violência doméstica em questão é punível, em abstrato, com pena de 2 a 5 anos de prisão [e não tendo como alternativa a pena de multa], ao passo que o crime de ofensa à integridade física simples é punível com pena de multa ou com pena de prisão [tendo esta limites, mínimo e máximo, muito inferiores ao crime de violência doméstica – concretamente de 1 mês a 3 anos].
O crime de violência doméstica distingue-se, neste caso concreto, do crime de ofensa à integridade física, individualmente considerados, por envolver uma ilicitude mais densa, trata-se, no fundo, de um tipo qualificado relativamente aos crimes parcelares que o integram.
Por conseguinte, e em nosso entendimento, o crime de ofensa à integridade física simples, pelo qual o arguido deverá ser condenado, é um minus em relação ao crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado e, no presente caso, todos os elementos constitutivos de tal crime encontram-se abrangidos pela tipicidade da violência doméstica e estavam descritos na acusação.
Não cumpre, portanto, proceder a qualquer comunicação ao arguido da referida alteração da qualificação jurídica, designadamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, que se afiguraria inútil, não se verificando, com tal omissão, qualquer postergação das garantias de defesa do arguido, que tal normativo legal visa proteger[19].
Improcede, também, nesta parte o presente recurso.
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II.3.4 – Da determinação da pena concreta a aplicar ao arguido:
Aqui chegados, cumpriria proceder à escolha da pena a aplicar ao arguido e determinar a sua medida, em obediência ao disposto nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal. Porém, da factualidade provada não resulta qualquer facto que permita a este Tribunal de recurso fazê-lo, não tendo o Tribunal a quo curado de apurar factos imprescindíveis à obtenção de uma decisão justa, designadamente, respeitantes à situação económico-financeira e condições pessoais do arguido.
Assim sendo, cumpre remeter os autos à 1.ª instância a fim de a Mm.ª Juíza a quo, ao abrigo dos artigos 340.º, 369.º, n.ºs 1 e 2 e 371.º, todos do Código de Processo Penal, proceder às diligências necessárias com a inerente ou subsequente reabertura da audiência para a determinação da sanção a aplicar ao arguido pela prática do mencionado crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º1, do Código Penal.
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III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
A. Determina-se que seja aditada à alínea e) da matéria de facto provada, o seguinte: “(…), bem sabendo o arguido que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei penal”.
B. Condena-se o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
C. Ordena-se a remessa dos autos à 1.ª instância, restrita à questão da determinação da sanção, a fim de a Mm.ª Juíza a quo, ao abrigo dos artigos 340.º, 369.º, n.ºs 1 e 2 e 371.º, todos do Código de Processo Penal, proceder às diligências necessárias com a inerente/subsequente reabertura da audiência e determinação da pena concreta a aplicar ao arguido.
D. Sem custas.

Lisboa, 08 de novembro de 2022
Os Juízes Desembargadores
Isilda Maria Correia de Pinho 
José Manuel Purificação Simões de Carvalho
Agostinho Torres
_______________________________________________________
[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010 in http://www.dgsi.pt,
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..
[4] Proc. nº 07P4375, acessível in www.dgsi.pt
[5] In Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999.
[6] In «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37.
[7] Cfr, neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt
[8] Acessível in www.dgsi.pt
[9] Teresa Beleza, in Direito Penal, 2.º Volume, pág. 71, respeitante à problemática do erro sobre a ilicitude.
[10] Mediante acórdão datado de 02-02-2016, Processo n.º 44/14.5PBVLS.L1-5, cujo relator, Ex.mº Desembargador Agostinho Torres, é aqui adjunto.
[11] Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 205.
[12] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 226/2000, de 5 de abril de 2000, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.
[13] Código Penal Anotado, pág. 349.
[14] Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal – Anotado e Comentado, pág. 344.
[15] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 29.
[16] Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal, 2.º volume, pág. 26.
[17] Acórdão desta Relação de Lisboa, de 29-11-2007, Processo n.º 7223/07, relatado pelo Exm.º Desembargador João Carrola, in www.dgsi.pt.
[18] Acórdão que acaba de se indicar e Acórdão do S.T.J. de 08-11-2007, Processo n.º 07P3164, relatado pelo Exm.º Conselheiro Carmona da Mota, in www.dgsi.pt.
[19] Neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 03-04-1991, de 12-11-2003 e de 12-09-2007; Acórdão do TRE, datado de 18-04-2017, Processo n.º 72/15.3GBTMR.E1; Acórdão do TRC de 23-11-2011; Acórdãos do TRP de 12-01-2011 e 14-03-2018, acessíveis in www.dgsi.pt.; e
Castanheira Neves, Sumários de Direito Criminal;
Simas Santos, Alteração substancial dos factos, RMP, n.º 52, págs. 113 e BMJ 423-9;
Frederico Isaac, Alteração Substancial dos Factos e Relevância no Processo Penal Português RPCC, 1, 2, 221;
Souto Moura, Notas sobre o Objecto do processo, RMP n.º 48, 41;
Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, 93.