Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10789/2006-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO
EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
QUIRÓGRAFO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2007
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Instaurada execução com base em título de crédito (cheque) prescrito do qual consta a ordem de pagamento da quantia nele indicada, não se pode considerar que a assinatura aposta no cheque (agora, quirógrafo) só por si, traduza reconhecimento de qualquer dívida pecuniária nos termos os artigo 458.º do Código Civil.
II- Tal cheque, agora mero documento particular por força da prescrição da obrigação cartular, desprovido de quaisquer menções indicadoras, não pode ser considerado título executivo nos termos do artigo 46.º,alínea c) do Código de Processo Civil.
III- Deverá o respectivo portador desse quirógrafo de cheque fazer uso da acção declarativa se quiser obter o cumprimento da obrigação subjacente.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.

No 1º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, N.[…] deduziu oposição à execução que contra ela moveu A.[…] alegando que o cheque dado à execução é inexequível, por terem passado mais de 6 meses sobre a data da emissão, nos termos do art.52º, da Lei Uniforme Sobre Cheques.

Mais alega que nada deve ao exequente, por terem sido saldadas todas as dívidas, sendo que, este é que lhe deve a devolução de 3 cheques que tem seu poder indevidamente, entre os quais, o ora dado à execução, já que, os mesmos foram, em parte, pagos e, noutra parte, substituídos por outros cheques que vieram, igualmente, a ser pagos.

Alega, ainda, que não está provada a existência de qualquer transacção entre as partes.

O exequente contestou, alegando ser inequívoco que o cheque dado à execução se encontra prescrito, enquanto título cambiário, mas que, reportando-se a pagamento de quantia determinada – 2 615 000$00 – e encontrando-se assinado pela executada, que não pôs em causa a autoria dessa assinatura, não invocou a falsidade do documento, nem alegou a inexistência da causa que deu origem à sua emissão, o mesmo é exequível, ao abrigo do disposto no art.46º, al.c), do C.P.C..

Mais alega que a executada não pagou o cheque em questão, o qual havia sido entregue ao exequente em troca de um outro que lhe passou, para ser remetido a um fornecedor, que já não aceitava cheques da executada.

Seguidamente, foi proferido despacho saneador, onde se conheceu da excepção de prescrição da acção cambiária, julgando-se a mesma procedente e, em consequência, extinta a execução instaurada com base no cheque nº0367146118, no valor de € 13.043,60.

Inconformado, o exequente interpôs recurso de apelação daquela sentença.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. O recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) A apelada reconhece e confessa, na sua petição inicial de embargos, que assinou o cheque dado como título à execução, afirmando «por respeito para com a sua assinatura» assumiu o pagamento do mesmo.

B) Igualmente a apelada não põe em causa a dívida para com o apelante, afirmando «que pediu ao exequente, ora apelante, que lhe emprestasse dinheiro, para fazer face a dificuldades que tinha na empresa […], que era dela e do marido», apenas alegando que o referido cheque já teria sido pago, não apresentando, porém, qualquer prova, presumindo-        -se, por isso, que a dívida se mantém, presunção essa que a mesma não logrou ilidir.

C) A apelante também não põe em causa a falsidade do documento.

D) O cheque é um título cambiário, à ordem do portador, que contém uma ordem incondicional, dirigida a banqueiro para que ele pague, à vista, a soma nele inscrita à pessoa que lhe apresente o cheque.

E) Quero com isto dizer que a assinatura do sacador significa a sua vontade de pagar ou de ordenar ao banco que pague à pessoa à ordem de quem foi emitido ou ao seu portador (como se refere no Ac. do STJ de 11/05/99, «ninguém se obriga por nada e sem causa, ninguém faz ou ordena pagamentos sem se encontrar a tal juridicamente vinculado, pelo que a ordem de pagamento concretizada no cheque recorta o reconhecimento da dívida»).

F) Isto é, a ordem dada ao banco, concretizada no cheque, implica em princípio um reconhecimento unilateral de dívida, sendo certo que é ao devedor, nos termos do art.458º, do C.Civil, a quem incumbe o ónus da prova da existência ou respectiva cessação da causa, ao invés do que fundamenta a M.ª Juiz «a quo» quando refere que o cheque, sendo um documento particular assinado pelo devedor, para que possa ser título executivo, terá que conter outros elementos para além dos atinentes ao cheque – título cambiário – isto é, que deve fluir do próprio documento a constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária.

G) Ao decidir como decidiu, a M.ª Juiz «a quo», salvo o devido respeito (que é muito), violou o disposto no art.46º, al.c), do C.P.C. e art.458º, nº1, do C.Civil.

Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser revogada a douta sentença, considerando-se o cheque nº0367146118, no valor de € 13.043,60, como um título executivo válido, mandando-se prosseguir a execução.

2.2. A única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se, no caso, promovida a execução e oposta pela executada, com êxito, a excepção de prescrição da obrigação cartular criada pela emissão do cheque dado à execução, poderá a acção executiva seguir para a exigência da obrigação causal, ou deverá ficar sem efeito o processo executivo, cumprindo ao exequente fazer uso da acção declarativa, se quiser obter o cumprimento da obrigação subjacente.

Na sentença recorrida entendeu-se que nada obsta a que um título cambiário que não possa valer como título executivo, por ter prescrito a acção cambiária, tenha validade como documento particular assinado pelo devedor e, como tal, possa ser considerado título executivo à luz do disposto no art.46º, al.c), do C.P.C. No entanto, considerou-se que, no caso sub judice, apesar de o cheque se encontrar assinado pela devedora (executada) e de o respectivo montante ser determinado, de tal documento não resulta que a emitente tenha constituído ou reconhecido uma obrigação pecuniária, já que dele não consta a razão da ordem de pagamento. Para, depois, se concluir que o referido cheque não pode ser considerado como documento particular a que alude o citado art.46º, al.c), pelo que, não é título executivo. Daí que se tenha decidido julgar procedente a invocada excepção de prescrição da acção cambiária e extinta a execução instaurada com base no aludido cheque.

Segundo o recorrente, a ordem dada ao banco, concretizada no cheque, implica em princípio um reconhecimento unilateral de dívida, sendo certo que é ao devedor, nos termos do art.458º, do C.Civil, a quem incumbe o ónus da prova da existência ou respectiva cessação da causa. Considera, pois, que a sentença recorrida violou o disposto naquele artigo e no citado art.46º, al.c).

Vejamos.

Dúvidas não restam que, no caso dos autos, a acção do portador do cheque (exequente) contra a sacadora (executada) prescreveu, nos termos do art.52º, da Lei Uniforme Sobre Cheques, por ter decorrido, há muito, o prazo de seis meses, contado do termo do prazo de apresentação (o cheque tem data de 25/8/98, foi apresentado a pagamento em 27/8/98 e a respectiva acção foi proposta em 14/10/2005). Por outro lado, nesta acção, o exequente limitou-se a referir que o cheque dado à execução constitui título executivo bastante, de acordo com o art.46º, al.c), do C.P.C.. Isto é, nem alegou que não se tratava de acção cambiária, por via da aludida prescrição, nem invocou qualquer negócio subjacente que tenha determinado a obrigação cambiária. De todo o modo, a executada deduziu oposição, alegando, além do mais, a referida prescrição, que foi julgada procedente na sentença recorrida.

Esta decisão não é posta em causa pelo recorrente, que se limita a defender a tese de que, apesar de tal prescrição, o cheque continua a ser título executivo, enquanto documento particular, assinado pela recorrida, que importa constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante é determinado (cfr. o citado art.46º, al.c)).

Conforme se refere em recente Acórdão do STJ, de 4/4/06, C.J., Ano XIV, tomo II, 27, a partir da nova redacção dada pela reforma processual de 1995 àquela al.c), a jurisprudência tem hesitado na solução a adoptar sobre a interpretação deste novo preceito, acabando por se formar três grupos de opiniões. Assim, para uns, o cheque, apesar de prescrito ou de lhe faltarem requisitos legais essenciais, constituiria um documento particular assinado pelo devedor que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária (Acórdãos da Relação de Lisboa, de 18/12/97, C.J., Ano XXII, tomo V, 129, e da Relação de Coimbra, de 3/12/98, C.J., Ano XXIII, tomo V, 33); para outros, o título de crédito prescrito a que faltassem os requisitos legais para valer como título de crédito, não poderia, por si só, ser tido como documento que importe o reconhecimento ou a constituição de uma obrigação pecuniária (Acórdãos do STJ, de 4/5/99, C.J., Ano VII, tomo II, 82, de 29/2/2000, C.J., Ano VIII, tomo I, 124, e de 16/10/2001, C.J., Ano IX, tomo III, 89, bem como, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 9/3/99, C.J., Ano XXIV, tomo II, 19, de 27/6/2000, C.J., Ano XXV, tomo III, 37, e de 6/2/2001, C.J., Ano XXVI, tomo I, 28); finalmente, para outros, o título de crédito prescrito ou a que faltassem os requisitos legais para valer como tal, poderia preencher a previsão da al.c), do art.46º, se a relação subjacente à emissão do título de crédito fosse de natureza não formal e essa causa fosse alegada no requerimento inicial de execução de modo a poder ser impugnada pelo executado (Acórdão do STJ, de 18/1/2001, C.J., Ano IX, tomo I, 71, que acolheu o entendimento defendido por Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, À Luz do Código Revisto, 2ª ed., pág.54).

Refere-se, ainda, no citado Acórdão do STJ, de 4/4/06, que a primeira destas correntes jurisprudenciais foi abandonada, em especial pelo STJ, havendo neste momento seguidores das duas últimas correntes citadas.

No caso dos autos, adoptando-se qualquer uma destas duas últimas correntes, a solução será sempre a mesma. Na verdade, do cheque prescrito não consta a causa da obrigação, desconhecendo-se a que obrigação se reporta e se emerge ou não dum negócio jurídico formal, sendo que, aquela causa nem sequer foi invocada no requerimento inicial da execução. O que significa que o cheque dado à execução nunca poderia ser tido como título executivo, tendo em conta aquelas duas orientações jurisprudenciais.

Por nossa parte, também não aderimos à primeira das correntes atrás referidas, antes propendemos para a segunda, defendida, designadamente, no citado Acórdão do STJ, de 29/2/2000, de onde retiramos a seguinte passagem, por se tratar de caso semelhante ao dos presentes autos: «E nem se pretenda que, apesar da perda do direito da acção cambiária pelo portador - a Exequente -, esse cheque, agora como simples quirógrafo, constitui título executivo à luz da al.c) do art.46º do CPC (redacção actual), onde se prescreve que podem servir de base à execução «os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias …».

Alínea em que se explicitou que «a obrigação que consta do título pode nele ser objecto de constituição ou reconhecimento» (cfr. J. Lebre de Freitas e outros, «Código Civil Anotado», 1999, vol.I, pág.89).

Figurando, pois, o cheque como mero quirógrafo, a obrigação exigida não é, obviamente, a obrigação cambiária ou cartular – caracterizada pela literalidade e abstracção – mas sim a obrigação causal, subjacente ou fundamental.

Ora, tal cheque, afastada a «pretensão abstracta», assume a natureza de simples documento particular, em que não há «incorporação» da pretensão, faltando a menção da obrigação subjacente que visava satisfazer.

Logo, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária dos sacadores e avalista, já anteriormente constituída.

Daí que não seja título executivo».

Como é sabido, o cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, enunciando uma ordem de pagar à vista a soma nele inscrita, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual há um fundo depositado pelo emitente do título (cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, III-22). Por outro lado, a subscrição exarada no cheque não cria a obrigação cambiária, pois que esta só se torna perfeita através da conjugação de dois elementos: a declaração cartular e a emissão, ou seja, a sua entrega ao portador imediato (cfr. Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Cheques, Anotada, 4ª ed., págs.12, 13 e 62). O portador pode exercer os seus direitos de acção, designadamente, contra o sacador, se o cheque, apresentado em tempo útil, não for pago e se a recusa de pagamento for verificada por qualquer das formas referidas no art.40º, daquela Lei. Porém, essa acção prescreve decorridos que sejam seis meses, contados do termo do prazo da apresentação (cfr. o art.52º, da mesma Lei).

Ora, como já se referiu, é indiscutido que esta prescrição ocorreu. O que significa que, enquanto título de crédito com o regime próprio da Lei Uniforme, o exequente não pode exigir com êxito o pagamento do cheque, dada a prescrição da obrigação cartular. Mas será que, extinta a obrigação cambiária por virtude da prescrição, nas relações entre exequente e executada o escrito (cheque) está em condições de valer como título particular de obrigação a que deva atribuir-se força executiva? Entendemos que não, em casos como o dos presentes autos, já que estamos na presença de um cheque, onde consta apenas que a ora recorrida dirigiu ao Banco Totta e Açores a ordem de pagamento de 2 615 000$00 ao ora recorrente. Assim, o que esse cheque prova, neste momento, uma vez prescrita a acção que o mesmo podia fundamentar por si só, é o facto da emissão, e não a existência da obrigação que titulava. Na verdade, o título em questão nem constitui essa obrigação, nem sequer a reconhece, já que não contém qualquer referência identificadora da origem da mesma.

E não se diga que a assinatura do cheque pode valer, nos termos do art.458º, do C.Civil, como acto de reconhecimento da dívida, até porque a sua subscrição e emissão não implica, nem tem como função, o reconhecimento de uma obrigação, radicando a responsabilidade legal do subscritor na garantia do interesse na respectiva circulação, enquanto título exclusivamente literal e abstracto (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, pág.69). Não se pode, pois, considerar que o cheque em causa, só por si, reconheça qualquer dívida pecuniária, não tendo aqui aplicação o disposto no citado art.458º.

E não se invoque, em contrário, o Acórdão do STJ, de 11/5/99, C.J., Ano VII, tomo II, 88, porquanto, o mesmo recaiu sobre uma acção declarativa, visando obter um título executivo (sentença), enquanto que, no nosso caso, está em questão saber se o cheque prescrito continua a valer, ele próprio, como título executivo.

Entendemos, assim, que o aludido cheque não pode, como documento particular que é e tradutor, apenas, de uma relação cartular prescrita, sem quaisquer menções indicadoras, ser considerado título executivo, nos termos do art.46º, al.c), do C.P.C..

Haverá, deste modo, que concluir que, no caso, promovida a execução e oposta pela executada, com êxito, a excepção de prescrição da obrigação cartular criada pela emissão do cheque dado à execução, não poderá a acção executiva seguir para a exigência da obrigação causal, antes deverá ficar sem efeito o processo executivo, cumprindo ao exequente fazer uso da acção declarativa, se quiser obter o cumprimento da obrigação subjacente.

Improcedem, pois, as conclusões da alegação do recorrente, não merecendo qualquer censura a sentença recorrida.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.

Custas pelo apelante.

Lisboa, 20 de Março de 2007

(Roque Nogueira)
(Pimentel Marcos)
(António Geraldes ( com a declaração de que, no caso concreto, trata-se de cheque ao portador, não implicando, por si só, o reconhecimento (confissão de dívida) da obrigação de pagamento de quantia certa ao exequente, nos termos do artigo 458.º do Código Civil)