Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4232/20.7T8OER.L1-6
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: REGIME JURÍDICO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO (RJPI)
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
ACORDO DE PARTILHA
MAIORIA
PROPORÇÃO DA QUOTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 4.1.–As decisões interlocutórias a que se refere o nº 2 do artigo 76º do RJPI - Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013 de 5 de Março (RJPI) - ,são as proferidas pelo juiz da 1ª instância, no âmbito das impugnações apresentadas às tomadas pelo Notário no processo de inventário, sendo apenas daquelas que cabe recurso para a Relação.

4.2O referido em 4.1. mostra-se amparado no disposto nos artºs 67º [ o qual reza que “Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos “ ] e 68º, ambos do CPC, a que acresce que as decisões proferidas pelo Notário na veste de titular de um processo de inventário não emanam de uma entidade jurisdicional.

4.3.–Nada obsta à homologação por sentença de acordo de partilha que seja alcançado por deliberação maioritária dos interessados e nos termos do artº 48º, nº1, do RJPI, máxime se a regra da maioria de dois terços dos titulares do direito à herança [prevista no nº1, do artº 48º, do RJPI] corresponde/coincide outrossim com a regra da maioria se aferida a mesma em razão da proporção da quota de cada um dos referidos titulares do direito à herança.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de LISBOA

                                    
1.–Relatório.

    
Em processo de inventário que corre termos [ iniciado em  meados de 22 de Julho de 2015 e em Cartório Notarial de João .... , com o n.º 3579/15, posteriormente – na sequência de oposição deduzida e da suscitação da questão da incompetência territorial do Cartório Notarial  - transitado para o Cartório Notarial de Lucinda .... ] com vista à partilha da herança aberta por óbito de José ....., e sendo nele interessados A ( JOÃO ...) [ filho do inventariado ], B ( RICARDO ... ) [ Cabeça-de-casal e filho do inventariado ] e C ( CATARINA ...) [ filha do inventariado ], organizado que foi – em 31/10/2020 - o mapa da partilha e notificados os interessados nos termos e para os efeitos do artigo 63.º da Lei n.º 23/2013 de 05 de Março (RJPI) [ não tendo sido requerida qualquer rectificação ou reclamação ], foram os autos remetidos – por despacho de 18/12/2020 - à Meritíssima Juiz da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível de Oeiras, vindo a ser proferida em 6/1/2021 a seguinte decisão homologatória da partilha :
No âmbito do presente inventário n.º 3579/15 que correu termos no Cartório Notarial de Oeiras, para partilha de bens em consequência do óbito de José Manuel ......, os interessados alcançaram um acordo sobre a partilha dos bens, concretizando os bens e valores adjudicados a cada um dos interessados.
Ao abrigo do disposto no art.º 66.º n.º1 do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013 de 5 de Março (RJPI), homologo por sentença o acordo de partilha, adjudicando aos interessados os respectivos bens pela forma por eles acordada, sendo devidas tornas nos termos elencados no mapa.
Custas em partes iguais pelos interessados (art.º 67.º, n.º1 do RJPI).
Registe e notifique.
Oeiras, ds”

1.1Notificado da decisão/sentença indicada em 1., veio A, não se conformando com a mesma, e nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 66.º do RJPI, interpor RECURSO para o Tribunal da Relação de Lisboa, aduzindo nas subjacentes alegações as seguintes conclusões :
1-A decisão de homologação proferida nos autos padece de erro de julgamento evidente, cuja expurgação determinará, necessariamente, decisão diversa da que foi tomada;
2-Os interessados não alcançaram um acordo sobre a partilha dos bens, pelo que, ao considerar um acordo entre os interessados que não existiu, a decisão homologatória laborou em claro erro de julgamento;
3-Existem nos autos diversas questões suscitadas pelo Recorrente que demonstram o não acordo;
4-As várias questões suscitadas pelo Recorrente no processo de partilha, junto do Cartório, deveriam ter sido ponderadas e decididas por parte do Senhor Juiz a quo;
5-Foi apresentada ao Cabeça de Casal uma proposta, no valor total de € 600.000,00, para a aquisição imediata dos imóveis relacionados nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação de bens apresentada nos autos, sendo este valor muito superior ao indicado na mesma relação de bens;
6-O Recorrente incluiu esta questão na reclamação que apresentou em 16/10/2017, por entender ser absolutamente indispensável que, pelo menos, fossem considerados os valores de mercado apresentados como valores de aquisição por parte da interessada na aquisição, ou que, no mínimo, a avaliação de tais imóveis fosse ordenada para garantir a equidade que o procedimento do inventário requer;
7-Por despacho de 4/11/2017, a Senhora Notária rejeitou analisar a reclamação apresentada por considerar já se encontrar precludido o direito invocado, violando o disposto no artigo 32.º, n.º 5, do RJPI;
8-As reclamações contra a relação de bens podem ser apresentadas até ao início da audiência preparatória;
9- Uma das questões suscitadas na reclamação apresentada pelo Recorrente em 16/10/2017 reportava-se ao valor dos bens imóveis relacionados nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação de bens, nomeadamente à diferença entre o valor relacionado e o constante da proposta recebida pelo Cabeça-de-Casal;
10-A proposta apresentada ao Cabeça-de-Casal tem data muito posterior à da notificação ao Recorrente da relação de bens, pelo que oportunidade para suscitar esta questão era até ao início da conferência preparatória;
11-As demais questões suscitadas pelo Recorrente na reclamação não tinham sido objecto de decisão por parte da Senhora Notária e influíam directamente com a relação de bens apresentada;
12-Ao contrário do que é referido pela Senhora Notária, a conferência preparatória não se iniciou em 17/09/2017, pois, nessa data, foi requerido o adiamento por todos os interessados;
13-A conferência preparatória (e não a continuação desta conferência) foi reagendada para o dia 16/10/2017;
14-A decisão proferida pela Senhora Notária em 4/11/2017 é ilegal, por violar o disposto no artigo 32.º, n.º 5, do RJPI, e deveria ter sido objecto de revogação pelo Senhor Juiz a quo na decisão final, anulando-se todo o processado posterior e ordenando-se, em consequência, a devolução do processo de inventário ao Cartório para que a Senhora Notária se pronunciasse sobre a reclamação apresentada;
15-Ao decidir de forma diversa, a decisão homologatória é também por isso ilegal, e viola o disposto no artigo 32.º, n.º 5, do RJPI, razão pela qual deve ser objecto de revogação, sendo substituída por outra que considere que a reclamação apresentada pelo Recorrente em 16/10/2017 deve ser admitida, anulando-se todo o processado posterior e ordenando-se, em consequência, a devolução do processo de inventário ao Cartório para que a Senhora Notária se pronuncie sobre a reclamação apresentada;
16-A Senhora Notária sempre deveria ter ordenado oficiosamente a avaliação dos bens imóveis identificados nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação de bens, no momento em que o Cabeça de Casal e a outra interessada apresentaram uma proposta, na conferência preparatória realizada em 10 de Janeiro de 2018, com o propósito de lhes serem adjudicados esses bens imóveis pelo valor patrimonial, e a mesma foi reprovada pelo Recorrente;
17-O Recorrente voltou então a requerer fosse ordenada uma avaliação aos imóveis objecto da proposta de adjudicação com o propósito de possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados;
18-Através de despacho proferido em 23/01/2018, a Senhora Notária rejeitou a avaliação requerida pelo Recorrente, com o argumento de a mesma ter de ser prévia à deliberação de adjudicação;
19-O despacho proferido em 23/01/2018 é injusto e ilegal por violar o disposto no 48.º, n.ºs 1 e 2, do RJPI, na medida em que o Recorrente foi confrontado com a proposta de adjudicação dos bens imóveis relacionados nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação da bens, durante a conferência preparatória, pelo que não podia ter requerido a avaliação antes;
20-A Senhora Notária, face à proposta de adjudicação, deveria ter desde logo assegurado o cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 48.º do RJPI, nomeadamente com o propósito de assegurar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados;
21-A Senhora Notária sabia que o valor dos bens imóveis relacionados nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação de bens se encontrava subvalorizado, pelo menos desde 16 de Outubro de 2017;
22-A adjudicação dos bens imóveis pelo valor patrimonial desvirtuou a repartição dos bens, com claro prejuízo para o Recorrente, como, de resto, os irmãos sempre pretenderam;
23-Ao permitir que fossem adjudicados bens imóveis da herança ao Cabeça de Casal e à outra Interessada, por deliberação destes, mancomunados, tomada na conferência preparatória sem assegurar, através da realização de uma avaliação, a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados, a Senhora Notária violou disposto no artigo 48.º, n.ºs 1 e 2, do RJPI, pelo que deveria a decisão da Senhora Notária, datada de 23/01/2018, ter sido revogada pelo Senhor Juiz a quo na sentença;
24-Ao decidir de forma diversa o Senhor Juiz a quo violou também o disposto no artigo 48.º, n.ºs 1 e 2, do RJPI, pelo que a decisão homologatória deverá ser revogada e substituída por outra que determine a realização de uma avaliação aos bens imóveis constantes nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação de bens, ordenando, em consequência, a devolução do processo ao Cartório;
25-O artigo 48.º do RJPI é inconstitucional por violar o princípio constitucional da igualdade ( cfr. artigo 13.º da CRP), conjugado com o direito à propriedade privada ( cfr. artigo 62.º da CRP);
26-O artigo 48.º do RJPI permite que os interessados possam deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, sobre importantes matérias como a designação das verbas que devem compor o quinhão de cada herdeiro, a aprovação do passivo e a forma do cumprimento dos legados e demais encargos da herança, limitando, e forma significativa, os direitos do herdeiro que não esteja de acordo com tal deliberação e prejudicando uma partilha igualitária entre todos os herdeiros;
27- O princípio de igualdade equivale à proibição do arbítrio;
28- Com a aplicação da regra da maioria de dois terços, apenas interessa saber o número de titulares do direito à herança, individualmente considerados, e não as respectivas quotas hereditárias, para, na conferência preparatória, ser deliberado sobre as referidas matérias, por maioria de dois terços dos interessados presentes, vinculando os ausentes, mesmo que as quotas hereditárias sejam desiguais;
29-Nos presentes autos, o quinhão hereditário do Recorrente, que devia ser igual ao dos irmãos, ficou sob o domínio destes, através da intervenção da maioria dos contitulares;
30-A possibilidade de a maioria dos herdeiros poder impor a atribuição de determinados bens da herança, com menos interesse, aos herdeiros minoritários, causa evidente perturbação na justiça por estes passarem a ser titulares do direito de propriedade de bens não desejados;
31-A decisão maioritária sobre a partilha dos bens da herança ofende, de forma grave, os princípios da igualdade e da propriedade privada, constitucionalmente protegidos;
32-A lei não assegura um tratamento igualitário a todos os interessados nas várias fases do processo de inventário, não garantindo sequer, na deliberação tomada na conferência preparatória, uma intervenção decisória correspondente aos quinhões, sendo individualizada, por cabeça, mesmo que os quinhões não sejam iguais;
33-Nenhuma das “válvulas de escape do sistema” funcionou nos presentes autos, não tendo sido cumprido o princípio de uma partilha equilibrada e igualitária;
34-Ao ser preenchido o quinhão hereditário dos irmãos do Recorrente com bens por eles desejados, por decisão da maioria, pode-se concluir que a aquisição, por essa via, ofende, intoleravelmente, o princípio constitucional à propriedade privada plasmado no artigo 62.º, n.º 1 da CRP;
35-Ao permitir que a maioria dos herdeiros possa impor a atribuição de determinados bens da herança, com menos interesse, aos herdeiros minoritários, o artigo 48.º do RJPI não garante um processo de inventário equitativo nem a tutela efectiva dos direitos dos herdeiros, violando o princípio constitucional do acesso à justiça, previsto no artigo 20.º, n.ºs 4 e 5, da CRP;
36-O regime contemplado no artigo 48.º do RJPI era errado e o legislador viria a reconhecer esse erro, abandonando-o no novo regime introduzido pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, que regressou ao regime da unanimidade;
37-Ao homologar a partilha que permitiu que a maioria dos herdeiros impusesse a atribuição de determinados bens da herança, com mais interesse, a eles próprios e a atribuição de outros, com menos interesse, ao Recorrente, herdeiro minoritário, sem assegurar a repartição igualitária e equitativa dos bens, o Senhor Juiz a quo violou também o disposto nos artigos 13.º, 20.º e 62.º, da CRP;
38-A decisão homologatória deverá ser revogada e substituída por outra que determine a realização de uma avaliação aos bens imóveis constantes nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação de bens, ordenando, em consequência, a devolução do processo ao Cartório;
Somente assim se fará JUSTIÇA.

1.2.–Notificados da APELAÇÃO identificada em 1.1., vieram B e C apresentar contra-alegações, o que fizeram alegando e CONCLUINDO nos seguintes termos : “ falecendo todos os argumentos do Recorrente, está o recurso por ele interposto condenado à improcedência. Decidindo por tal improcedência fará este Tribunal JUSTIÇA.”

*

Thema decidendum
1.3.–Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a apreciar e a decidir  resumem-se às seguintes  :
A)-Aferir se a decisão proferida pela Senhora Notária em 4/11/2017 [ identificada no item 2.8. da motivação de facto ] é ilegal, por violar o disposto no artigo 32.º, n.º 5, do RJPI, e deveria ter sido objecto de revogação pelo Senhor Juiz a quo na decisão final, anulando-se todo o processado posterior e ordenando-se, em consequência, a devolução do processo de inventário ao Cartório para que a Senhora Notária se pronunciasse sobre a reclamação apresentada;
B)-Aferir se a decisão proferida pela Senhora Notária em 23/01/2018 [ identificada no item 2.11. da motivação de facto ] é injusta e ilegal por violar o disposto no 48.º, n.ºs 1 e 2, do RJPI , e deveria ter sido objecto de revogação pelo Senhor Juiz a quo na decisão final, razão porque ao decidir de forma diversa o Senhor Juiz a quo violou também o disposto no artigo 48.º, n.ºs 1 e 2, do RJPI, pelo que a decisão homologatória deverá ser revogada e substituída por outra que determine a realização de uma avaliação aos bens imóveis constantes nas verbas n.ºs 4 e 5 da relação de bens, ordenando, em consequência, a devolução do processo ao Cartório;
C)-Aferir se ao homologar a partilha que permitiu que a maioria dos herdeiros [ com fundamento no artº do RJPI, que é inconstitucional por violar o princípio constitucional da igualdade - cfr. artigo 13.º da CRP -, conjugado com o direito à propriedade privada - cfr. artigo 62.º da CRP -impusesse a atribuição de determinados bens da herança, com mais interesse, a eles próprios e a atribuição de outros, com menos interesse, ao Recorrente, herdeiro minoritário, sem assegurar a repartição igualitária e equitativa dos bens, o Senhor Juiz a quo violou o disposto nos artigos 13.º, 20.º e 62.º, da CRP;
D)- Aferir se a sentença apelada importa ser revogada, porque padece de erro de julgamento evidente, e isto porque os interessados não alcançaram um acordo sobre a partilha dos bens, pelo que, ao considerar um acordo entre os interessados que não existiu, a decisão homologatória laborou em claro erro de julgamento;

*

2. Motivação de facto.
A factualidade a atender no âmbito do julgamento do objecto da apelação é aquela a que se alude no relatório do presente Acórdão, à qual se acrescenta a seguinte que decorre do expediente inserto nos autos de inventário ;
2.1.-Em 17 de Dezembro de 2010, faleceu José ....., tendo deixado como herdeiros A [ filho do inventariado ], B [filho do inventariado ] e C [ filha do inventariado ];
2.2.-Em 22 de Setembro de 2015, A, ora Recorrente, deduziu - no inventário que corria termos  no Cartório Notarial de João Maia ......, com o n.º 3579/15 - oposição/impugnação e reclamação ao abrigo do disposto nos artigos 30º e 32º do RGPI, v.g. invocou a ilegitimidade do cabeça-de-casal para o desempenho do cargo, e pronunciou-se quanto à relação de bens, reclamando da omissão de bens na relação apresentada, da indevida inclusão de (outro) bens na dita relação e do valor atribuído à verba 4 (quatro).
2.3.-Em 29/4/2016, foi no Processo de inventário a correr termos no Cartório notarial de João Maia ....., proferido despacho que, julgando procedente a excepção dilatória da incompetência relativa arguida pelo interessado A, determinou a remessa dos autos para o Cartório Notarial de Oeiras, a cargo de Lucinda do Rosário ......;
2.4.-Satisfeito o contraditório ( por B - cfr. artº 35º, do RJPI ) relativamente ao requerimento identificado em 2.2., foi apresentada uma relação de bens adicional e, em 4 de Julho de 2017 veio a Exmª Notária a decidir o incidente despoletado por A, o que fez DECIDINDO  que ;
por falta de reclamação, tinham-se por aceites e estabilizados os bens relacionados nas verbas 1 (um), 2 (dois), 3 (três), 6 (seis), 7 (sete) e 8 (oito) da relação de bens apresentada em 28 de agosto de 2015;
-Quanto à verba 4 (quatro) da dita relação de bens, apesar da impugnação do valor atribuído pelo cabeça-de-casal, uma vez que o aqui Recorrente nada disse quanto àquele que tinha por ser o valor devido, foi mantido o valor atribuído;
-  Determinando a inclusão de duas novas verbas ( bens móveis  : a) vários slides da autoria do inventariado e b), uma mesa ) ;
- Determinando a não admissão das participações sociais objecto da relação de bens inicial e da adicional como bens a incluir no conjunto dos activos a partilhar;

2.5.-Em 6/8/2017 B vem apresentar nova RELAÇÃO DE BENS, corrigida em observância da DECISÃO identificada em 2.4 ;
2.6.-Em 1/9/2017, após notificação da relação de bens corrigida e identificada em 2.5., vem A impetrar a RECTIFICAÇÃO  - por estar em causa erro material a ser rectificado - da RELAÇÃO DE BENS corrigida e identificada em 2.5., invocando ser aquela OMISSA no tocante à descrição de uma arrecadação [ cujo recheio integra jogos de ferramentas ] da Cave adstrita da Fracção identificada sob a Verba nº 4;
2.7.-Em 6/9/2017, B vem apresentar nova RELAÇÃO DE BENS, corrigida, no seguimento da aceitação e reconhecimento do Lapso identificado em 2.6. e respeitante ao recheio da arrecadação;
2.8.-Designada data para a realização de conferência preparatória (a realizar em 18/9/2017 ), na data aprazada e iniciada a diligência foi determinado o respectivo adiamento [ nos termos do nº 5, do artº 47º, do RJPI ] para que as partes procurassem, mais uma vez, obter acordo, tendo logo ficado designado o dia 16 de Outubro de 2017 para sua continuação, caso o aludido entendimento não fosse alcançado;
2.9.-Em 16/10/2017, vem A, invocando o disposto no artº 32º,nº5, do RJPI, deduzir ( através da plataforma informática www.inventarios.pt, e pelas 13h43m ) reclamação contra a RELAÇÃO DE BENS [ apresentada em 6/9/2017, por B, e que corrige – na sequência de requerimento atravessado nos autos por A a 1/9/2017 – a anterior já constante dos autos ] , designadamente questionando v.g.;
a)- A composição da Verba nº 1 ( recheio da casa de Miraflores);
b)- O valor da colecção de Ferraris ;
c)- O valor das verbas nºs 4 e 5 ; e informando que relativamente a ambas as referidas verbas nºs 4 e 5, havia recebido uma proposta de aquisição ( da parte de Sociedade unipessoal ) no valor total de € 600.000,00 [ 320.000,00€ para a verba nº 4 e 280.000,00€ e para  verba nº 5 ];
d)- O valor da verba nº 9;
e)- O valor do direito de uso e habitação da verba nº 4 ;
f)- A não descrição de um crédito da herança sobre a interessada C ;
g)- A não descrição de passivo da herança,

2.10.–Iniciada a CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA designada para o dia 16 de Outubro de 2017, pelas 15.00h, foram os demais interessados notificados para se pronunciarem – em 10 dias - sobre a reclamação identificada em 2.6., o que veio a fazer o interessado B, pugnando pelo respectivo indeferimento in totum;
2.11.–Em 4 de Novembro de 2017, a Exmª Notária profere DECISÃO dirigida ao requerimento de A e identificado em 2.6., sendo ele , EM PARTE, do seguinte Teor :

“(...)
Nos termos do Regime Jurídico do Processo de Inventário o momento próprio para reclamar da relação de bens encontra-se previsto no número 1 do artigo 32º.
Ora, como acima exposto , o interessado A, por requerimento submetido na referida plataforma sob o número 287625, fez uso do direito que lhe assistia.
Porém, contempla o mesmo normativo uma cláusula de salvaguarda para os interessados que não reclamaram e para os que, tendo reclamado, venham até ao início da conferência preparatória acusar a falta de bens não relacionados, é esta a previsão do nº 5 do artigo 32º ao permitir que até àquele momento possa ainda haver reclamação, sem prejuízo da observância da disciplina processual.
O que aconteceu nos autos, já que em momento posterior veio o mesmo interessado ,reclamar da falta de relacionação de uma nova verba, requerimento registado sob o número 924454, que se admitiu ao abrigo da referida disposição legal, com vista à partilha integral do património hereditário.
Assim, esta reclamação embora fora de prazo, foi admitida dado que o que se pretendia era acusar a falta de relacionação de um bem que integra a herança.
Porém, veio de novo o mesmo interessado deduzir reclamação, documento número 974474, invocando esta mesma norma.
Cumpre, pois tomar, posição.
Por o interessado já ter reclamado em momento próprio;
Por a reclamação ora em apreciação contemplar matéria já relacionada e decidida;
Por não acusar a falta de bens que devam ser relacionados, requerer a exclusão de bens indevidamente relacionados ou arguir qualquer inexactidão na descrição dos bens;
E porque a conferência preparatória se iniciou em 18 de Setembro de 2017.
É convicção deste Cartório Notarial já se encontrar precludido o direito invocado.
Pelo que se decide pela não admissão da reclamação ora apresentada.”;

2.12.–Em 2/12/2017, profere Exmª Notaria Drª Lucinda do Rosário ..... despacho designando o dia 10/1/2018  para a “ CONTINUAÇÃO DA CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA DA CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS, INICIADA A  18/8/2017” ;
2.13.–Em 10/1/2018, teve lugar a CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA identificada em 2.12., sendo o CONTEÚDO  - parcial - da respectiva ACTA do seguinte teor :   

ACTA DE CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA
Processo de Inventário número: 3579/2015- Partilha de Herança
Inventariado: José Manuel ...... .
Requerente/Cabeça de Casal: B
Data: 10 de janeiro de 2018
Local: Cartório Notarial em Oeiras a cargo da Notaria Lucinda G...., sito na A... ... ... ..., número ..., Piso ...-....
Presentes: O requerente/cabeça de casal B, por si e em representação da interessada C cuja procuração com poderes para o ato já se encontra junta ao processo, acompanhado da ilustre mandatária de ambos, Dra. Maria ...  . Encontrava-se ainda presente o ilustre mandatário substabelecido, Dr. PC... conforme substabelecimento, com reserva, que se junta, em representação do interessado A .           
À hora marcada, e expostos os motivos da convocação da conferência preparatória da conferência de interessados, com vista à composição dos quinhões deliberaram por unanimidade:
I) - Decompor a verba 1 e fixar os valores atribuídos, como segue:
(...)
II) - Concretizar a verba 3 e fixar o valor atribuído, como segue:
- Conjunto de 22.679 slides da autoria do inventariado, no valor global de € 3,00.
Foi ainda deliberado por unanimidade dos interessados, adjudicar:
- ao interessado A, as verbas 1 aa), 1 ab), 1 ac), 1 d), 1 e). 1 f), 1 ga), 1 ha), 1 hb), 1 hc), 1 ia), 1 ib), 1 ic), 1 id). 1 nb), 1 oa), e 1/3 da verba 3, pelos valores atribuídos e supra indicados, no valor global de € 4.571,00;       
- ao interessado B, as verbas 1 c), 1 h), 1 i), 1 j), 1m), 1 na), 1 ob), 1/3 da verba 3, pelos valores atribuídos e supra indicados, verba 4, e verba 7), estas pelos valores atribuídos constantes da relação de bens, no valor global de € 12.741,00;           
- à interessada C, as verbas 1 a), 1 b), 1 g), 1 nc), 1 oc), 1 p), 1/3 da verba 3, pelos valores atribuídos e supra indicados, verba 2, esta pelo valor atribuído constante da relação de bens, no valor global de € 3.981,00;
Foi ainda deliberado pelos interessados, B e C, que representam 2/3 dos titulares do direito à herança, adjudicar pelos valores atribuídos e constantes da relação de bens, ao interessado B, a verba 6, e à interessada C as verbas 5, 8, 9 e 10.
No que concerne às verbas descritas nas alíneas k e I da verba 1 da relação de bens, não houve qualquer deliberação sobre as mesmas.
Após o que, e antes de concluída a presente conferência o ilustre mandatário do interessado A, pediu a palavra no uso da qual requereu nos termos do número 2 do artigo 48° do RJPI a avaliação das verbas 5 e 6 da relação de bens, justificando a sua pretensão com a circunstância de as mesmas terem sido objecto da deliberação prevista na alínea a) do número 1 do referido preceito legal.
A ilustre mandatária dos restantes interessados, Dra. MPR... solicitou que lhe fosse concedido prazo para se pronunciar sobre a matéria de tal requerimento, o que se deferiu
Nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a conferência preparatória”

2.14.–Após o contraditório, em 22 de Janeiro de 2018, a Exmª Notária profere DECISÃO dirigida ao requerimento de A e identificado em 2.10. [ atinente à avaliação das verbas 5 e 6 da relação de bens ] , sendo ele , EM PARTE, do seguinte Teor :
“(...)
Cumpre decidir.

Da tempestividade do requerimento de avaliação
Nos termos do Regime Jurídico do Processo de Inventário, os interessados directos na partilha podem impugnar o valor dos bens oferecido pelo cabeça de casal, requerendo a avaliação dos mesmos e oferecendo o valor que se lhe afigure adequado, no caso concreto, em dois momentos.
O primeiro desses momentos, tem lugar aquando da notificação para deduzir oposição ao inventário e/ou reclamar contra a relação dos bens, conforme resulta dos artigos 30° a 32° do RJPI.
O segundo momento em sede de conferência preparatória.
Ora, o interessado A deduziu nos autos incidente de reclamação à relação de bens, com os fundamentos que constam do seu requerimento submetido na referida plataforma com o número 287625 de documento, no qual acusou a falta de relacionação de alguns bens; requereu a exclusão de uma verba, e impugnou o valor atribuído à quota da herança aberta por óbito de ....., juntou prova documental e requereu ainda a produção de prova testemunhal.
Quanto às verbas que constituem os dois imóveis pertença da herança, o interessado não impugnou o valor, não ofereceu qualquer outro e não requereu a avaliação. “Perdeu” pois o primeiro momento colocado à sua disposição.
Iniciada a conferência preparatória, nos termos da alínea a) do artigo 48°, os interessados deliberaram por unanimidade a composição dos seus quinhões, como segue:
Adjudicar, ao interessado A, as verbas 1 aa), 1 ab), 1 ac), 1d), 1 e), 1 f), 1 ga), 1 ha), 1 hb), 1 hc), 1 ia), 1 ib), 1 ic), 1 id), 1 nb), 1 oa), e 1/3 da verba 3.
Ao interessado B, as verbas 1 c), 1 h), 1 i), 1 j), 1 m), 1 na), 1 ob), 1/3 da verba 3, verba 4, e verba 7).
À interessada C, as verbas 1 a), 1 b), 1 g), 1 nc), 1 oc), 1 p), verba 2, e 1/3 da verba 3.
Foi ainda deliberado pelos interessados, B e C, que representam 2/3 dos titulares do direito à herança, adjudicar pelos valores atribuídos e constantes da relação de bens, ao interessado B, a verba 6, e à interessada C as verbas 5, 8, 9 e 10.
No que concerne às verbas descritas nas alíneas k e I da verba 1 da relação de bens, não houve qualquer deliberação sobre as mesmas.
Tudo conforme resulta da ata de conferência preparatória registada na plataforma com o número 1080373 de documento.
Donde se constata que só após se ter formado a deliberação, por maioria de 2/3, relativamente às verbas 5 e 6 veio o interessado, A, requerer a sua avaliação.
Estatui o corpo do n° 2 do artigo 48° que "As diligências referidas nas alíneas a) e b) do número anterior podem ser precedidas de avaliação, requeridas pelos interessados"(sublinhado nosso).
Ora, este elemento literal é decisivo para a coerência do sistema. Pois a não ser assim, ou seja, a permitir-se a avaliação após as deliberações para a composição dos quinhões, estariam estas (deliberações) necessariamente inquinadas porquanto seriam adjudicadas verbas por valor diferente do que serviu de base à vontade de deliberar.
Assim, é entendimento deste Cartório Notarial que, tomadas as deliberações, se esgotou o prazo ou oportunidade para o interessado requerer a avaliação, pelo que vai a sua pretensão indeferida “;
2.15.-Em 22/2/2018, teve lugar a CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS, sendo o CONTEÚDO  - parcial - da respectiva ACTA do seguinte teor :
Processo de inventário: 3579/2015- Partilha de Herança
Inventariado: José Manuel .......
Requerente/Cabeça de Casal: B
Data: 22 de Fevereiro de 2018
Local: Cartório Notarial em Oeiras a cargo da Notária Lucinda G..., sito na A... ... ... ..., número ..., Piso ...-....

ACTA DE CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
Presentes:
- O requerente/cabeça de casal B, por si e em representação da interessada C, conforme procuração com poderes para o ato já junta aos autos, a ilustre mandatária de ambos, Dra. MPR...; e
- em representação do interessado A, o ilustre mandatário substabelecido, Dr. PC..., conforme substabelecimento, com reserva, já junto aos autos.    
À hora designada, deu-se início à presente diligência, não tendo sido apresentadas, até ao início da mesma, quaisquer propostas em carta fechada para adjudicação das verbas k) e I) da relação de bens, donde, foram informados os presentes que conforme previsto no artigo 51° do RJPI, os bens não adjudicados seriam agora objecto de adjudicação por negociação particular, realizada por mim Notária, e que, frustrando-se tal negociação, tais verbas seriam sorteadas nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 58° do RJPI, o que implicaria a sua divisão em lotes iguais a serem sorteados pelos interessados.
Perante tal informação, os interessados requereram o seguinte:
1- Que fosse excluída da relação de bens a verba I), por não ter valor comercial, mas apenas afectivo, pelo que acordaram que o cabeça de casal procedesse à sua entrega ao tio dos interessados, irmão do inventariado, o qual demostrou interesse na mesma.
2- Que, relativamente à verba k), e porque a sua divisão em lotes poderia implicar uma eventual desvalorização comercial, acordaram na sua venda a terceiro, assumindo os interessados os custos da mesma na proporção dos seus quinhões, e posterior partilha nestes autos do produto obtido;      
3- A suspensão dos presentes autos por um período de 60 (sessenta) dias, com vista à concretização de tal venda.        
Nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a presente diligência.
Para constar se lavrou a presente ata.”

*

3. Motivação de Direito.
3.1.-Se a decisão proferida pela Senhora Notária em 4/11/2017 [ identificada no item 2.8. da motivação de facto ] é ilegal, por violar o disposto no artigo 32.º, n.º 5, do RJPI, e deveria ter sido objecto de revogação pelo Senhor Juiz a quo na decisão final, anulando-se todo o processado posterior e ordenando-se, em consequência, a devolução do processo de inventário ao Cartório para que a Senhora Notária se pronunciasse sobre a reclamação apresentada.
A primeira questão a apreciar/resolver no âmbito da presente apelação incide sobre decisão interlocutória proferida pela Exmª Notária, importando designadamente aferir do respectivo acerto [ se ao não admitir a reclamação  apresentada - em 16/10/2017 - pelo interessado A, bem andou a Exmª Notária ].
O presente processo de inventário, iniciado em  meados de 22 de Julho de 2015, em Cartório Notarial e com vista à partilha da herança aberta por óbito de José ..., é regulado pelo Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, de 05/03, designadamente pelo seu artº 76º [ o qual dispõe, no seu nº 2,  que “ Salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do Código de Processo Civil, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha” ], e isto tendo presente o disposto no artº 11º, nº2 [ o qual reza que “O regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, continua a aplicar-se aos processos de inventário que, na data da entrada em vigor da presente lei, estejam pendentes nos cartórios notariais e aí prossigam a respectiva tramitação“],da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro - que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2020.
Estando em causa portanto uma decisão interlocutória proferida pela Exmª Notária em sede de inventário tramitado nos termos do RJPI [ aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março ], decisão que não foi objecto de impugnação para o tribunal da 1.ª instância competente [ como assim o determinam os artºs 16º, nº4 e 57º, nº4 do RJPI , ainda que relativamente a especificas/diversas decisões proferidas pelo Notário – Despacho de Remessa do processo para os meios comuns e  Despacho sobre a forma da partilha ] a questão que de imediato importa elucidar/resolver é aferir se cabe a este Tribunal da Relação julgar um recurso de uma decisão de Notário, ainda que integrada – como decisão interlocutória - em apelação que tem por objecto uma efectiva decisão proferida por tribunal da 1.ª instância ( decisão homologatória da partilha, proferida nos termos do artº 66º,nº1, do RJPI).

É que, se é verdade que nos termos do artº 76º,nº2, do RJPI, “ Salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do Código de Processo Civil, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha”, o certo é que, se por um lado reza o artº 67º, nº1, do CPC, que “Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos “, por outro logo acrescenta o subsequente artº 68º do mesmo diploma, no seu nº 2, que “Compete às Relações o conhecimento dos recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1.ª instância.”.

Ou seja, da conjugação das disposições legais referidas, e não olvidando que a decisão interlocutória proferida em inventário e por Notário é da autoria/responsabilidade de órgão não jurisdicional – logo, situado fora e aquém da estrutura jurisdicional hierárquica – o busílis da questão consiste em saber se com fundamento no disposto no artº 76º,nº2, do RJPI, pertinente é reconhecer/admitir que instituiu o referido diploma um regime legal de recursos directos das decisões do Notário para o tribunal da Relação e não, primeiro, para o tribunal da 1ª instância e, só depois, para o Tribunal da Relação – qual sistema de recurso per saltum.

Porque de questão se trata que há muito ( verdadeira vexata quaestio ) vem sendo debatida – na doutrina e jurisprudência - , brevitatis causa, temos por adequado de pronto adiantar que, relativamente aos inventários tramitados nos termos do RJPI, tem prevalecido nos tribunais superiores a corrente jurisprudencial – na qual nos revemos - na qual, em síntese, se preconiza a seguinte orientação: i) as decisões proferidas pelo Notário ao longo do processo de inventário são, em regra, impugnáveis judicialmente; ii) incumbe tribunal de 1.ª instância a competência para o conhecimento de tais impugnações; iii) as impugnações das decisões do Notário seguem o regime coincidente com o previsto nos artigos 57.º e 16.º do RJPI, aplicando-se subsidiariamente o regime do recurso de apelação. (1)

O mesmo Tribunal da Relação, muito recentemente (2), e bem a propósito de situação semelhante à dos nossos autos [ em que, com excepção da decisão homologatória da partilha, estamos perante um inventário todo processado perante a Notária e em que nenhuma das decisões tomadas por si – vg as pelo ora apelante visadas - foi objecto de impugnação ou recurso para o tribunal da 1ª instância ], discorreu nos seguintes termos :
“(...)
Finalmente, o artigo 76º, nº 2, estabelece que, salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do C.P.C., as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão da partilha.
As decisões interlocutórias referidas neste último preceito são as proferidas pelo juiz da 1ª instância no decurso do processo de inventário e não as do notário, uma vez que estas são impugnáveis para o tribunal.
É nesse sentido que o artigo 67º do C.P.C. estipula que compete aos tribunais de 1ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos.
Ou seja, as decisões do notário são impugnáveis para o tribunal da 1ª instância que for territorialmente competente, enquanto da sentença homologatória da partilha proferida pelo juiz daquele mesmo tribunal cabe recurso para o Tribunal da Relação, precisamente por se tratar de uma decisão jurisdicional.
É neste sentido que se pronuncia Lopes Cardoso: «Dir-se-á, pois, que – muito mais do que um paralelismo excessivo com o Contencioso Administrativo, a despeito da natureza jurídica dos actos decisórios do Notário – deve ser aqui aplicado o regime subsidiário dos recursos civis (ex vi do citado artigo 82º do RJPI) vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através de um requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário (C.P.C., artigo 637º- 1).
Do exposto deve deduzir-se que, não estando previsto que a impugnação das «decisões interlocutórias» que não são autónomas suspendam o andamento do processo de inventário, também não se justifica que subam imediatamente ao juiz do processo, pelo que, preparada a impugnação com a respectiva alegação, aquela irá aguardar o momento em que o processo seja remetido a Tribunal para a prolação da decisão homologatória da partilha». Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 6ª edição, 2015, págs. 82/85.
As decisões interlocutórias que o nº 2 do artigo 76º do RJPI refere são as proferidas pelo juiz da 1ª instância, no âmbito das impugnações apresentadas às tomadas pelo Notário no processo de inventário, sendo apenas daquelas que cabe recurso para a Relação.
Do citado artigo 76º, nº 2, RJPI, tal como do artigo 644º, nº 2, do C.P.C., decorre que o recurso de apelação deve versar sobre decisões do tribunal da 1ª instância e não ter por objecto as proferidas por uma entidade não jurisdicional, como é o Notário na veste de titular de um processo de inventário, numa espécie de recurso per saltum para o Tribunal da Relação.

Tomé D’Almeida Ramião defende isso mesmo, referindo que «não é admissível uma espécie de recurso per saltum para o Tribunal da Relação de uma decisão proferida pelo notário. O recurso para este tribunal superior tem necessariamente de ter por objecto uma decisão jurisdicional». O Novo Regime do Processo de Inventário, págs. 198/199.”
(...)
Neste contexto em que, por ausência total de impugnação das várias decisões tomadas pela Notária no decurso do inventário, o juiz da 1ª instância não teve oportunidade de proferir qualquer decisão interlocutória, prevista no nº 2 do artigo 76º do RJPI, nada há no recurso da sentença judicial de homologação do mapa de partilha que possa ser conhecido por esta Relação.” (3)(4).

Alinhando por idêntico entendimento, e ainda no âmbito da doutrina, igualmente para Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita (5) importar ter presente que o regime de recursos previsto no art.º 76.º do RJPI ,com remissão para o C.P.C, “…apenas se aplica a decisões tomadas pelo tribunal e não pelo notário, uma vez que as decisões tomadas por este último apenas poderão ser objecto de impugnação para o Tribunal de 1.ª instância territorialmente competente nos casos especialmente previstos na lei ou nas situações que temos vindo a apontar.”.

No seguimento do acabado de expor, perfilhando nós o entendimento jurisprudencial preponderante, porque a decisão interlocutória ora em apreço foi proferida pela Exmª Notária e sobre a mesma não incido qualquer pronúncia por parte tribunal judicial de 1ª instância – em consequência de pertinente e subjacente impugnação recursória - , mostra-se assim a presente apelação – na referida parte – destituída de objecto cognoscível .
Destarte, as conclusões recursórias nºs 4 a 15, improcedem forçosamente.

*

3.2.–Aferir se a decisão proferida pela Senhora Notária em 23/01/2018 [ identificada no item 2.11. da motivação de facto ] é injusta e ilegal por violar o disposto no 48.º, n.ºs 1 e 2, do RJPI , e deveria ter sido objecto de revogação pelo Senhor Juiz a quo na decisão final.
Com os fundamentos indicados em 3.1., que se aplicam outrossim à impugnação da decisão interlocutória proferida pela Senhora Notária em 23/01/2018, também as conclusões recrusórias nºs 16 a 21 devem  improceder.

*

3.3.–Aferir se ao homologar a partilha que permitiu que a maioria dos herdeiros [ com fundamento no artº do RJPI, que é inconstitucional por violar o princípio constitucional da igualdade - cfr. artigo 13.º da CRP -, conjugado com o direito à propriedade privada - cfr. artigo 62.º da CRP -impusesse a atribuição de determinados bens da herança, com mais interesse, a eles próprios e a atribuição de outros, com menos interesse, ao Recorrente, herdeiro minoritário, sem assegurar a repartição igualitária e equitativa dos bens, o Senhor Juiz a quo violou o disposto nos artigos 13.º, 20.º e 62.º, da CRP.

O grosso das conclusões recursórias nºs  19 a 37,  e tendo presente o teor da ACTA  da CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA que teve lugar a 10/1/2018, têm por desiderato patentear a ilegalidade da deliberação – em sede de preenchimento do quinhão hereditário dos irmãos do Recorrente - dos interessados B e C, e apesar de representarem ambos 2/3 dos titulares do direito à herança.

É que, sendo verdade que o nº1, do artº 48º, do RJPI , dispõe que “Na conferência podem os interessados deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes:
a)- Designando as verbas que devem compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados;
b)- Indicando as verbas ou lotes e respectivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objecto de sorteio pelos interessados;
c)- Acordando na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados“,
é todavia entendimento do apelante que “Ao ser preenchido o quinhão hereditário dos irmãos do Recorrente com bens por eles desejados, por decisão da maioria, pode-se concluir que a aquisição, por essa via, ofende, intoleravelmente, o princípio constitucional à propriedade privada plasmado no artigo 62.º, n.º 1 da CRP”, sendo portanto ilegal.
Quid júris ?

Como vimos supra, o nº1, do artº 48º, do RJPI, com a redacção anterior à introduzida pelo artigo 8º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro [ diploma este que revoga o regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de Março],dispõe que “Na conferência podem os interessados deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes....”.

O referido artigo 8º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro [ que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2020 ], porém, veio alterar a redacção dos artigos 3.º, 27.º, 35.º e 48.º do regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de Março , isto por um lado e, por outro, no seu artº 11º, nºs 1 e 2, vem dispor que (nº1) “  O disposto na presente lei aplica-se apenas aos processos iniciados a partir da data da sua entrada em vigor, bem como aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º” e que ( nº2) “ O regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, continua a aplicar-se aos processos de inventário que, na data da entrada em vigor da presente lei, estejam pendentes nos cartórios notariais e aí prossigam a respectiva tramitação”.
Passando – com a Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro – o nº1, do artº 48º, do regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, a dispor que “Na conferência, os interessados podem deliberar, por unanimidade, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes....”, a primeira observação que importa efectuar e relacionada com a questão recursória ora em análise é a de que ainda assim deve ela ser resolvida/aferida à luz da regra dos dois terços, prevista na anterior redacção do art.º 48º, n.º 1, do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), que não pela aplicação do nº 1 do artigo 48º do anexo à Lei nº 23/2013 de 05 de Março e introduzida pelo artigo 8º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro.
 É que, tendo a CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA – em que foi tomada a deliberação ora em análise – tido lugar em 10 de Janeiro de 2018, o certo é que em sede de aplicação das Leis no tempo manda o artº 12º, do CC, máxime a regra de que a lei nova só vigora para o futuro, e que ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos a que a lei nova se destina a regular – cfr. artigo 12.º, n.º 1 do Código Civil.
Isto dito, importa começar por reconhecer que, como bem nota JOANA GERALDO DIAS (6), difícil é não admitir que “deliberar independentemente da proporção da quota, implica uma violação das normas substantivas que determinam os quinhões hereditários de cada herdeiro, que regulam a sucessão legal imperativa e a sucessão legal supletiva e, ainda, a regra do voto por cabeça.
No seguimento da aludida nota, não é assim de estanhar que, v.g. EDUARDO SOUSA PAIVA e HELENA CABRITA (7), considerem que a referida norma do artº 48º “permite que os herdeiros com uma quota minoritária, mas em maior número, se imponham aos herdeiros da maior parte (mas em menor número)”, razão porque, ao tratar de forma igual situações que são desiguais, em questões que contendem directamente com a forma da partilha dos bens entre os herdeiros, viola os princípios da igualdade e do direito a um processo equitativo e justo, sendo portanto materialmente inconstitucional.
A propósito da propriedade do conteúdo da referida norma, também o Conselho Superior da Magistratura (8) veio pronunciar-se, considerando que o preceituado em causa imprime uma das principais deficiências do regime, pois que abre caminho para as maiores arbitrariedades na efectivação das partilhas mortis causa, porque permite a “ditadura de uma maioria, contrária às regras elementares de justiça relativa e até de defesa do direito de propriedade, constitucionalmente protegido” .
Diz-se ainda do referido Parecer do CSM, que “admitir que dois terços dos herdeiros pudessem impor uma determinada composição dos quinhões poderia representar até, no que à sucessão legitimária diz respeito, uma violação do princípio da intangibilidade qualitativa da legítima. Ou seja, aquilo que a lei veda ao autor da sucessão - que é a possibilidade de designar os bens que devam preencher a legítima, contra a vontade do herdeiro legitimário (cfr. artigo 2163.° do Código Civil), - passaria a ser possível aos co-herdeiros, desde que representassem dois terços da herança. Imagine-se, a título de exemplo, a situação de três irmãos com direitos quantitativamente iguais na herança de um progenitor comum; dois deles poderiam seleccionar para si, por acordo entre eles, os bens que lhes aprouvesse, destinando ao terceiro irmão - “o minoritário” - os bens que, também eles, decidissem, por não lhes interessarem. E isto claramente contra a vontade de um deles, apesar de ser herdeiro legitimário como os demais.
(...)
Repete-se a interrogação: porquê uma imposição de partilha, de acordo com uma regra de maioria? E que maioria se deveria tomar em consideração?
(...)
Tratar a delicada questão da composição em concreto dos quinhões dos herdeiros através da regra da maioria é abrir a porta à desigualdade e à não protecção dos herdeiros que não se tenham abrigado sob o “chapéu de chuva” da maioria de dois terços.

Outrossim censurando a regra da maioria plasmada no artº 48º,nº1, do RJPI, consideram AUGUSTO LOPES CARDOSO (9) e TOMÉ D´ALMEIDA RAMIÃO (10), respectivamente, que não se concilia a mesma com a garantia dos princípios constitucionais da igualdade (artigo 13.º, da CRP), nem com o direito à propriedade privada (artigo 62.º, da CRP),  e , ademais, conduz a uma solução pouco justa e adequada, que pode conduzir à desigualdade dos lotes, interferindo certos herdeiros na escolha e na atribuição dos bens que integram a legítima dos herdeiros legitimários, sendo a composição do seu quinhão feita com bens e valores escolhidos pelos restantes interessados presentes, contra a sua vontade .

Já Divergindo do entendimento doutrinal referido, temos v.g., ADALBERTO COSTA (11), pois que defende que a deliberação sobre a composição dos quinhões tem de ser tomada por uma maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção da quota de cada herdeiro, e , ademais, não belisca a mesma a lei fundamental, visto que o novo processo de inventário, além de desjudicializar o procedimento, procura, também, a simplificação de forma a impedir futuros impasses na tomada da deliberação, com o respeito pelas regras adjectivas e pelo fim, que é a partilha.

Por fim, e em sede de jurisprudência conhecida, tudo indica que o entendimento que vem sendo sufragado é o que aponta para a “licitude” em face da Lei Fundamental do disposto no artigo 48.º, n.º 1 do RJPI, mas, desde que o mesmo não viole o que se dispõe no artigo 1263.º do Código, que proíbe que, contra a vontade do herdeiro, este se veja na contingência de herdar apenas o que a maioria determina. (12)

Mais assertivo na defesa do respeito pela Constituição da República Portuguesa do artº 48º, do RJPI é porém o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, e de 25/5/2017 (13), nele se considerando/decidindo incisivamente que a hipótese de ser preenchido o quinhão hereditário com bens não desejados, e por decisão da maioria , nos termos do artº 48.º, n.º 1, do RJPI, não decorre de todo a ofensa, intoleravelmente, do princípio constitucional à propriedade privada plasmado no artigo 62.º, n.º 1 da CRP.,  e isto porque o direito de propriedade, no parecer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, abrange pelo menos quatro componentes [  a) a liberdade de adquirir bens; b) a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; c) a liberdade de os transmitir; d) o direito de não ser privado deles ], sendo que nenhum dos quatro é afectado com uma deliberação dos interessados e nos termos do artº 48º, nº1,do RJPI

Acresce que, diz-se ainda no citado Acórdão do TRGuimarães, tendo o Tribunal Constitucional densificado o conteúdo do direito à propriedade privada, no plano normativo-constitucional, nos termos que constam do seu Acórdão n.º 421/2009 [ ou seja, sintetizando-o da seguinte forma : “O primeiro ponto firme é o da não identificação entre o conceito civilístico de propriedade e o correspondente conceito constitucional : a garantia constitucional da propriedade protege - no sentido que a seguir se identificará - os direitos patrimoniais privados e não apenas os direitos reais tutelados pela lei civil, ou o firme é o da dupla natureza da garantia reconhecida no artigo 62.º, que contém na sua estrutura tanto uma dimensão institucional-objetiva quanto uma dimensão de direito subjectivo. O terceiro ponto firme dirá respeito ao âmbito desta última dimensão, de radical subjectivo, que irá incluída na estrutura da norma jusfundamental. A esta dimensão pertence precisamente como direito “clássico” de defesa, o direito de cada um de não ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação…” ], certo é que também ele – o referido conteúdo - não é posto em causa através de uma deliberação de dois terços dos titulares do direito à herança.

Conhecidos, em traços largos, as divergências doutrinais que sobre a matéria ora em analise existem, maxime os fundamentos que suportam ambas as correntes contrastantes, certo é que temos por adequado seguir nesta matéria a corrente jurisprudencial que em ambos os Acs. supra indicados foi seguida/perfilhada.

Acresce que, in casu, e tendo presente a forma da partilha proferida no inventário, a partilha entre os 3 interessados/irmãos vem a fazer-se nos termos dos nºs 1 e 2, do artº 2139º, do CC, ou seja, o valor da herança é dividido por 3 partes iguais.

Tal equivale a dizer que, in casu, a regra  da  maioria de dois terços dos titulares do direito à herança [ prevista no nº1, do artº 48º, do RJPI ] corresponde/coincide outrossim com a regra da maioria se aferida a mesma em razão da proporção da quota de cada um dos referidos titulares do direito à herança.

Por outra banda, pertinente é também não olvidar que, in casu, a deliberação da maioria incide especificamente sobre a composição dos seus próprios quinhões, que não “directamente sobre a composição do quinhão do restante co-herdeiro e contra a vontade deste.

Por último, porque in casu a regra da maioria de dois terços dos titulares do direito à herança coincide outrossim com a regra da maioria se aferida em razão da proporção da quota de cada um dos referidos titulares do direito à herança, de afastar é também a possibilidade de a deliberação visada pelo apelante brigar com o princípio - Alicerçado à protecção da família, nomeadamente, da família mais próxima do de cuius (14) - da intangibilidade qualitativa da legítima, com expressão no artigo 2163.º, do CÓD.CIVIL.

Sem necessidade de mais considerações, e pelas breves razões aduzidas, o recurso do apelante também quanto à questão ora em análise não merece provimento.

*

3.4.–  Aferir se a sentença apelada importa ser revogada , porque padece de erro de julgamento evidente, e isto porque os interessados não alcançaram um acordo sobre a partilha dos bens, pelo que, ao considerar um acordo entre os interessados que não existiu, a decisão homologatória laborou em claro erro de julgamento.

Conclui o apelante A que a decisão de homologação proferida nos autos padece de erro de julgamento evidente, cuja expurgação determinará, necessariamente, decisão diversa da que foi tomada.
É que, justifica A ,os interessados não alcançaram um acordo sobre a partilha dos bens, pelo que, ao considerar um acordo entre os interessados que não existiu, a decisão homologatória laborou em claro erro de julgamento.

A presente questão, salvo melhor juízo, não dispõe de qualquer fundamento pertinente que a suporte.

Desde logo, pacifico é, como vimos supra, que nos termos do artº 48º, nº1, do RJPI, “Na conferência podem os interessados deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes”, máximeDesignando as verbas que devem compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados.

Tal equivale a dizer, como refere FERNANDO NETO FERREIRINHA(15), que a composição de quinhões pode ser acordada pela mencionada maioria de dois terços, o certo é que este regime não se pode sobrepor ao “princípio da intangibilidade qualitativa da legítima”.

Ora, tendo presente o teor da ACTA DA CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA  de 10/1/2018 e identificada em 2.13, nela se descobre v.g. que :
“(...)
 À hora marcada, e expostos os motivos da convocação da conferência preparatória da conferência de interessados, com vista à composição dos quinhões deliberaram por unanimidade:
I)- Decompor a verba 1 e fixar os valores atribuídos, como segue:
(...)
II)- Concretizar a verba 3 e fixar o valor atribuído, como segue:
- Conjunto de 22.679 slides da autoria do inventariado, no valor global de € 3,00.
Foi ainda deliberado por unanimidade dos interessados, adjudicar:
- ao interessado A, as verbas 1 aa), 1 ab), 1 ac), 1 d), 1 e). 1 f), 1 ga), 1 ha), 1 hb), 1 hc), 1 ia), 1 ib), 1 ic), 1 id). 1 nb), 1 oa), e 1/3 da verba 3, pelos valores atribuídos e supra indicados, no valor global de € 4.571,00;
- ao interessado B, as verbas 1 c), 1 h), 1 i), 1 j), 1 m), 1 na), 1 ob), 1/3 da verba 3, pelos valores atribuídos e supra indicados, verba 4, e verba 7), estas pelos valores atribuídos constantes da relação de bens, no valor global de € 12.741,00;         
-  à interessada C, as verbas 1 a), 1 b), 1 g), 1 nc), 1 oc), 1 p), 1/3 da verba 3, pelos valores atribuídos e supra indicados, verba 2, esta pelo valor atribuído constante da relação de bens, no valor global de € 3.981,00;

Foi ainda deliberado pelos interessados, B e C, que representam 2/3 dos titulares do direito à herança, adjudicar pelos valores atribuídos e constantes da relação de bens, ao interessado B, a verba 6, e à interessada C as verbas 5, 8, 9 e 10.”

Ou seja, pacifico é que na referida Conferência Preparatória, e ao abrigo do disposto no artº 48º, do RJPI, os interessados vieram a ACORDAR - nuns casos por unanimidade e em outros por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, sobre matéria relacionada com a composição dos quinhões e os valores por que eram adjudicados , em suma, e tal como consta da SENTENÇA recorrida, “os interessados alcançaram um acordo sobre a partilha dos bens, concretizando os bens e valores adjudicados a cada um dos interessados.”
Sem necessidade de mais considerandos, não padece assim a sentença recorrida de um qualquer erro de julgamento.
A apelação de A, portanto , improcede in totum .

*

4.-Sumariando  ( cfr. nº 7, do artº 663º, do CPC).(supra transcrito)
4.1.- As decisões interlocutórias a que se refere o nº 2 do artigo 76º do RJPI - Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013 de 5 de Março (RJPI) - ,são as proferidas pelo juiz da 1ª instância, no âmbito das impugnações apresentadas às tomadas pelo Notário no processo de inventário, sendo apenas daquelas que cabe recurso para a Relação.
4.2.- O referido em 4.1. mostra-se amparado no disposto nos artºs 67º [ o qual reza que “Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos “ ] e 68º, ambos do CPC, a que acresce que as decisões  proferidas pelo Notário na veste de titular de um processo de inventário não emanam de uma entidade jurisdicional.
4.3.- Nada obsta à homologação por sentença de acordo de partilha que seja alcançado por deliberação maioritária dos interessados e nos termos do artº 48º, nº1, do RJPI, máxime se a regra  da  maioria de dois terços dos titulares do direito à herança [ prevista no nº1, do artº 48º, do RJPI ] corresponde/coincide outrossim com a regra da maioria se aferida a mesma em razão da proporção da quota de cada um dos referidos titulares do direito à herança.

***

5.– Decisão.
Em face de tudo o supra exposto,
acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa , em , julgando improcedente a apelação interposta pelo interessado A:
5.1.–confirmar  decisão/sentença recorrida.
Custas da Apelação a cargo do recorrente.

***

(1) Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-10-2020, proferido no Proc. nº 969/17.6T8AMT.P2, sendo Relator CARLOS QUERIDO, e disponível in www.dgsi.pt .
(2) Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11-5-2021, proferido no Proc. nº 585/20.5T8GDM.P1, sendo Relator AUGUSTO DE CARVALHO, e disponível in www.dgsi.pt .
(3) No mesmo sentido e de entre vários outros, assim se decidiu nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26/4/2018 [ proferido no Proc. nº 9995/17.4T8VNG-A.P1, sendo Relatora INÊS MOURA], de 27/6/2018 [ proferido no Proc. nº 379/18.8T8GDM.P1, sendo Relator ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA ], e de 22/5/2019 [ proferido no Proc. nº 969/17.6T8AMT.P1, sendo Relator MANUEL DOMINGOS FERNANDES ]; do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/05/2017 [ proferido no Proc. nº 86/17.9YRCBR, sendo Relator ARLINDO OLIVEIRA ] , de 20/6/2017 [ proferido no Proc. nº 109/17.1YRCBR, sendo Relator MOREIRA DO CARMO ] e de 8/10/2019 [ proferido no Proc. nº 64/16.5T8CNT-A.C1, sendo Relator VÍTOR AMARAL ] e do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/10/2017 [ proferido no Proc. nº 2004/17.5T8BRG-A.G1, sendo Relator ESPINHEIRA BALTAR ], todos eles e disponíveis in www.dgsi.pt .
(4) Em sentido contrário, pode ver-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/12/2018 [ proferido no Proc. nº 71/16.8T8PTS.L1, sendo Relator PEDRO MARTINS ] e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/6/2020 [ proferido no Proc. nº 284/19.0T8FIG-A.C1, sendo Relatora MARIA TERESA ALBUQUERQUE ], ambos disponíveis in www.dgsi.pt .
(5) Em Manual do Processo de Inventário, à Luz do Novo Regime, Coimbra Editora, pág. 230.
(6) Em “A Deliberação sobre a Composição dos Quinhões Hereditários à luz do Princípio da Intangibilidade Qualitativa da Legítima no “RJPI” (Lei n.º 23/2013, de 5 de Março), disponível em JULGAR Online, Março de 2019,página 36.
(7) Em Manual do Processo de Inventário à luz do novo regime aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março e regulamentado pela Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 133
(8) Em Parecer de 20/11/2012, sobre a Proposta de Lei n.º 105/XII, que aprova o novo regime do processo de inventário acessível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a5355786c5a793944543030764d554e425130524d5279394562324e31625756756447397a5357357059326c6864476c3259554e7662576c7a633246764c7a55324e575269596a517a4c546379595463744e44646d4d5330355a475a6d4c544d344e446b774e546b354e5445354d5335775a47593d&fich=565dbb43-72a7-47f1-9dff-384905995191.pdf&Inline=true.
(9) Em Partilhas Judiciais, vol. I, 6.ª Edição (completamente revista, adaptada e actualizada pelos RJPI e CPCIV, de 2013), Coimbra, Almedina, 2015, pág.84;
(10) Em O Novo Regime do Processo de Inventário - Notas e Comentários, Lisboa, 2.ª Edição, Quid Juris?, 2015, pág. 134.
(11) Em A Partilha em Inventário – Incursão pelo Novíssimo Regime Jurídico do Processo de Inventário, Lisboa, Vida Económica, 2015, p. 82, apud JOANA GERALDO DIAS, em Dissertação de Mestrado, A DELIBERAÇÃO SOBRE A COMPOSIÇÃO DOS QUINHÕES HEREDITÁRIOS À LUZ DO PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE QUALITATIVA DA LEGÍTIMA NO REGIME JURÍDICO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO (LEI N.º 23/2013, DE 5 DE MARÇO), FDUL,2018, página 46, e acessível em https://repositorio.ul.pt/jspui/bitstream/10451/37485/1/ulfd136695_tese.pdf.
(12) Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/11/2017 [ proferido no Proc. nº 245/17.4YRCBR, sendo Relator ARLINDO OLIVEIRA ], e de 25/6/2019 [ proferido no Proc. nº 254/18.6T8OFR.C1, sendo Relator Luís Cravo ], ambos disponíveis in www.dgsi.pt .
(13) Proferido no Proc. nº 50/17.8YRGMR, sendo Relatora ANABELA TENREIRO, e disponível in www.dgsi.pt .
(14) Cfr. JOANA GERALDO DIAS, em ob. indicada em nota 11, pág. 124.
(15) In Processo de Inventário - Reflexões Sobre O Novo Regime Jurídico, 3.ª Edição, Revista, Aumentada e Actualizada, Almedina, Outubro de 2017, a pág.s 291 e 292 e nota 107 .

*


LISBOA, 9/9/2021


António Manuel Fernandes dos Santos (O Relator)
(#)  Ana de Azeredo Coelho (1ª Adjunta)
Eduardo Petersen Silva (2º Adjunto)



(#) Vencida quanto ao entendimento de que é admissível a deliberação, por maioria, quanto aos bens que compõem os quinhões dos herdeiros legitimários presentes na conferência, por violação do princípio da intangibilidade qualitativa da legítima (cf. artigo 2163.º do Código Civil), mesmo quando a deliberação respeite apenas à composição dos quinhões dos herdeiros que a votam, uma vez que, por contraponto e pela negativa, define a composição do quinhão do herdeiro minoritário, independentemente da vontade deste, na vertente dos bens que o não integram e daqueles que o podem integrar.
A norma processual do artigo 48.º do RJPI assim interpretada constituiria alteração do direito substantivo aplicável, tanto na parte em que derrogaria o princípio da intangibilidade qualitativa da legítima, como naquela em que atribuiria, por via adjectiva, um direito à incorporação de bens dos herdeiros legitimários que formem maioria de dois terços (que podem determinar a composição em bens dos seus quinhões contra a vontade dos restantes), direito que a lei substantiva não reconhece.
Não é esse o escopo do direito processual que deve ser harmonizado com o direito substantivo aplicável, harmonização possível mediante a restrição da aplicação da norma à possibilidade de composição dos quinhões dos titulares que, notificados com essa cominação, não compareçam na conferência.
Nessa medida, julgaria procedente a apelação na parte em que impugna a homologação da composição de quinhões resultante da conferência.
                                                 Ana de Azeredo Coelho