Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3398/11.1TVLSB.L1-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA
Sumário: 1. Em derrogação do princípio geral segundo o qual as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse mesmo Estado, estabelece o artigo 5º, nº 3, do Regulamento (CE) 44/2001, de 22.12.2000, que “uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
2. Na aferição da competência dos tribunais de um Estado-membro da Comunidade Europeia (com excepção da Dinamarca) é aplicável o Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, desde que as acções:
a) respeitem a matéria civil e comercial (âmbito material de aplicação);
b) o réu tenha domicílio (ou sede, administração central ou estabelecimento principal) no território de um Estado membro (âmbito espacial de aplicação);

c) e tenham sido intentadas após o dia 01-03-2002, data de entrada em vigor do Regulamento (âmbito temporal de aplicação).
3. Quando na aferição da competência internacional dos tribunais portugueses sejam aplicáveis as normas constantes do Regulamento, estas prevalecem sobre as normas de Direito Processual consagradas no Código de Processo Civil, não sendo aplicável a Convenção de Bruxelas, por ter sido substituída pelo Regulamento, nem tão pouco a Convenção de Lugano.
4. Quando o lugar do facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto causou prejuízos não coincidam, a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, que consta do n.º 3 do artigo 5.º do Regulamento, deve ser entendida no sentido de que se refere tanto ao lugar onde o prejuízo se verificou como ao local onde ocorreu o facto produtor dos danos.
5. E, para os efeitos do disposto nos art.ºs 5.º, n.º 3, e 10.º, ambos do Regulamento, deverá entender-se que o conceito de "tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso" abrange tanto os tribunais do Estado membro em cujo território se verificou o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual, como os tribunais do Estado membro em cujo território se verificou o dano, pelo que o autor pode optar, para demandar o réu, entre o tribunal do lugar da prática do facto ilícito e o tribunal do lugar onde se produziram os invocados danos.
6. Assim, uma entidade estrangeira, com sede em F…, ainda que não tenha qualquer delegação em P…, pode ser demandada nos tribunais portugueses numa acção de responsabilidade civil extracontratual, com o fundamento de ter divulgado, através da Internet, um artigo de opinião em que imputou ao ofendido (autor nessa acção) a prática de determinados factos que este, residente em P…, alega serem difamatórios.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da relação de Lisboa- 7. ª Secção.
I
1. R, residente em L…, propôs a presente acção declarativa, sob a forma ordinária,contra
“R, com sede em P…, F…, formulando os seguintes pedidos:
A. Declarar-se que, no seu comunicado de … 2010, publicado no seu sítio na internet em português, em inglês e em língua estrangeira, a R. mentiu quando afirmou que o A. foi constituído arguido no âmbito do processo judicial conhecido por…;
B. Declarar-se que, no mesmo comunicado, a R… mentiu quando afirmou que o Tribunal da Relação de L… condenou o semanário.. a pagar 1,5 milhões de euros de indemnização ao A.;
C. Declarar-se que, no mesmo comunicado, a R… mentiu quando afirmou que o A. foi representante do Estado Português nomeado pelo Primeiro-Ministro no Conselho de Administração da…;
D. Decidir-se que a parte decisória da sentença que vier a ser proferida neste processo deve ser publicada em todos os órgãos da imprensa nacional, a expensas da R.;
E. Condenar-se a R. a publicar no seu sítio na internet, a expensas desta, com o mesmo destaque e durante o mesmo período de tempo em que tiver publicado o seu comunicado datado de … de 2010 em que refere o A., a sentença integral deste processo, nas línguas estrangeira e portuguesa;
F. Condenar-se a R. no pagamento duma sanção pecuniária compulsória, em valor diário não inferior a EUR 500, por cada dia em que incumpra o pedido anterior, quer no que respeita à mora iniciar o cumprimento, quer no que respeita à duração da publicação;
G. Condenar-se a R. no pagamento ao A. de uma indemnização no valor de EUR 500.000, acrescida dos juros moratórios contados à taxa legal supletiva a partir da citação até pagamento integral.

A R., devendo considerar-se regularmente citada, não contestou.

Por despacho de …-2013 foi julgada procedente a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses e, consequentemente, absolvida a R. da instância, nos termos dos artigos 105º, nº 1, e 288º, nº 1 al. a), do C.P.C.
 
2. Inconformado, dele recorreu o autor, terminando as suas alegações em síntese conclusiva:
1. Falece razão ao Tribunal a quo quando alega que a expressão facto danoso, constante do n.º 3 do art. 5.º do Regulamento (CE) 44/2001, no qual se fixam os critérios de determinação da competência internacional em matéria de responsabilidade civil extracontratual, deve ser restringida ao local onde decorreu principal atividade causadora do prejuízo;
2. Este entendimento é contrário à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia [V. acórdão de 30 de novembro de 1976, proferido no caso Bier BV v Mines de potasse d'Alsace SA, que se reporta ao art. 5º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas sobre a competência e execução de decisões em matéria civil e comercial (então aplicável por a decisão ser anterior ao Regulamento 44/2001) e que tem a mesma redação do art. 5º, n.º 3, do Regulamento 44/2001. Também assim acórdão proferida no caso Fiona Shevill v. Press Alliance];
3. Esta jurisprudência já se encontra consagrada na jurisprudência e na doutrina nacionais (V. acórdão do S.T.J. de 3 de Março de 2005, proferido no processo 04A4283, publicado em www.dgsi.pt);
4. A interpretação restritiva que o Tribunal a quo sufraga a propósito do conceito de facto danoso como sendo o comportamento causador do dano não só não tem apoio na letra da lei como é contrário à jurisprudência europeia e nacional dominantes.
5. No que concerne às normas de conflitos do Código Civil, a que a sentença recorrida faz apelo, há que salientar que a questão que discute neste âmbito não é a lei reguladora do litígio mas tão-só o foro competente.
6. De todo o modo, sempre se diga que no caso vertente não seria de atender às normas de conflitos portuguesas plasmadas no Código Civil Português, mas sim às normas de conflitos constantes do Regulamento CE n.º 864/2007, de 11 de Julho – “Roma II”, que regula a Lei aplicável às obrigações extracontratuais.
7. De acordo com o Regulamento Roma II, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano;
8. O Tribunal a quo considerou, como local da prática do fato ilícito, o território …, decisão da qual o Recorrente discorda profundamente;
9. Para o caso não é relevante saber onde foi praticado o facto ilícito. Isto porque, podendo a ação ser intentada no local onde se verificaram os danos, a opção do Recorrente pelo foro português, local onde justamente sofreu os danos cuja indemnização reclama, é legítima e conforme à lei, sendo, por conseguinte, irrelevante, para efeitos da aferição da competência internacional, saber em que local foi praticada a conduta ilícita causadora desses danos;
10. Como o Tribunal a quo reconhece na sua decisão, não existem elementos suficientes nos autos que levem a concluir por esta localização;
11. Se alguma conclusão pudesse ser retirada a este respeito, sempre teria que ser a inversa, ou seja, a de que, como toda a probabilidade, o facto ilícito, ou seja, a elaboração e divulgação do comunicado, foi feita a partir de P…;

E termina dizendo que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogada a decisão recorrida.

Não foram juntas contra-alegações.
Foram dispensados os vistos.
Cumpre apreciar e decidir.
3. Com interesse para a decisão do recurso importa ter em consideração o seguinte:
- A R. tem sede em F… e, atento o alegado pelo A. no artigo 5º da petição inicial, não tem delegação em P….
- A R, num artigo de opinião, publicado na Internet, imputou ao autor a prática de determinados factos, que este considerou difamatórios, e daí os pedidos formulados, designadamente, o de indemnização.
- Nesse artigo de opinião não é identificado o seu autor, não se podendo afirmar que é da autoria de algum correspondente com domicílio em P….
- Nada consta nos autos quanto à localização do servidor onde está alojado o “site” da R..
II
É pelas conclusões que se determinam o âmbito e os limites do recurso (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-B do CPC)
A única questão a decidir é saber se os tribunais portugueses são competentes para o julgamento desta acção.
1. No acórdão do STJ de …/2005 proferido no processo n.º 04A4283, foram extraídas, na parte que agora importa considerar, as seguintes conclusões:
I- Na aferição da competência dos tribunais de um Estado-membro da Comunidade Europeia (com excepção da Dinamarca) é aplicável o Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, desde que as acções:
a) respeitem a matéria civil e comercial (âmbito material de aplicação);
b) o réu tenha domicílio (ou sede, administração central ou estabelecimento principal) no território de um Estado membro (âmbito espacial de aplicação);

c) e tenham sido intentadas após o dia …-2002, data de entrada em vigor do Regulamento (âmbito temporal de aplicação).
II - Quando na aferição da competência internacional dos tribunais portugueses sejam aplicáveis as normas constantes do Regulamento, estas prevalecem sobre as normas de Direito Processual consagradas no Código de Processo Civil, não sendo aplicável a Convenção de Bruxelas, por ter sido substituída pelo Regulamento, nem tão pouco a Convenção de Lugano.
III - Dos art.ºs 25 e 26 do Regulamento decorre a regra do conhecimento oficioso da excepção de incompetência (absoluta) internacional decorrente da violação das disposições do mesmo Regulamento.
IV – (…)
V - Para efeitos do disposto nos art.ºs 5.º, n.º 3, e 10.º, ambos do Regulamento, deverá entender-se que o conceito de "tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso" abrange tanto os tribunais do Estado membro em cujo território se verificou o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual, como os tribunais do Estado membro em cujo território se verificou o dano.
VI - Mas não se pode fazer uma interpretação extensiva destes normativos por forma a considerar como lugar da materialização do dano o Estado ou os Estados onde se façam sentir as consequências danosas - incluindo sequelas e os danos futuros - de um evento que causou um dano num outro Estado.
(….).
Estava em causa neste acórdão uma acção intentada (no dia …-2002) num tribunal português, por um cidadão português, residente em P…, em que se pedia a indemnização por danos sofridos num acidente ocorrido no dia …-2000 numa estância de A... (País terceiro, onde não é obrigatório o Regulamento), provocado pelo despiste de um trenó conduzido por uma pessoa residente em F… e que celebrara com a Ré, com sede social em F…, um contrato de seguro de responsabilidade civil que cobria tal evento.
Conclui-se, assim, que o Regulamento (CE) 44/2001 é aqui aplicável para aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, prevalecendo as normas dele constantes sobre as normas de Direito Processual consagradas no Código de Processo Civil, não sendo aplicável a Convenção de Bruxelas, por ter sido substituída pelo aludido Regulamento (Cfr. artigos 1.º, 3.º, 59.º, 60.º e 68.º)
2. No caso sub judice, verificam-se os pressupostos referidos supra em I e II[1].
Com efeito:
- a acção foi interposta depois de 01-03-2002;
- a acção respeita a matéria de direito civil;
- a ré tem sede no território de um Estado-Membro, mais precisamente em F….
Está em causa a doutrina das conclusões n.ºs V e VI do citado acórdão.
Nos termos do artigo 26º nº 1 do Regulamento (CE) nº 44/2001, “quando o requerido domiciliado no território de um Estado-Membro for demandado perante um tribunal de outro Estado-Membro e não compareça, o juiz declarar-se-á oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições do presente regulamento”.
Dispõe o art. 2º nº 1 do mesmo regulamento: “sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”.
E, como decorre do disposto no artigo 3º, “as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo” (artigos 5.º a 14.º).
Finalmente, por força do disposto no artigo 5º, nº 3, do Regulamento, “uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
Trata-se de derrogação do princípio geral segundo o qual as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse mesmo Estado.
3. Resulta dos autos, e foi tido em consideração no despacho recorrido: a R. tem sede em F… e, atento o alegado pelo A. no artigo 5º da petição inicial, não tem delegação em P…; no artigo de opinião, que deu origem a esta acção, não é identificado o seu autor, não se podendo afirmar que é da autoria de correspondente da R. com domicílio em P…; não consta dos autos a localização do servidor onde está alojado o “site” da R., mas certamente o servidor não está localizado em P…;
4. Transcreve-se parcialmente a decisão recorrida:
«Passando à interpretação da expressão “facto danoso” empregue no citado art. 5º, n.º 3.
Facto danoso é o comportamento do agente causador do dano.
Feita pesquisa em http://curia.europa.eu/juris/recherche.jsf?language=pt, não foi encontrado acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia que interprete a expressão “o tribunal do lugar onde ocorreu… o facto danoso” empregue no art. 5º nº 3 do Regulamento (CE) nº 44/2001.
Sobre o preceito correspondente da Convenção de Bruxelas, temos o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 30 de Novembro de 1976, processo C-21/76 (http.//eur-lex.europa.eu), nos termos do qual, “caso o lugar onde ocorreu o facto susceptível de implicar responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou o dano não coincidam, a expressão lugar onde ocorreu o facto danoso - contida no artigo 5°, n° 3, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial deve ser entendida no sentido de que se refere simultaneamente ao lugar onde o dano se verificou e ao lugar onde decorreu o facto causal. Consequentemente, o réu pode ser demandado, consoante opção do autor, perante o tribunal do lugar onde o dano se verificou ou perante o tribunal do lugar onde decorreu o evento causal na origem desse dano”.
Deverá esta orientação jurisprudencial ser acolhida na interpretação do art. 5º nº 3 do Regulamento (CE) nº 44/2001?
Trata-se, a meu ver, de uma interpretação extensiva que não tem apoio no texto do citado artigo, pois, como atrás foi referido, facto danoso é o comportamento que causa o dano.
Constituindo o mencionado artigo 5º nº 3 uma excepção à regra de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado, não deveria ser interpretado extensivamente.
Consta do citado acórdão o seguinte:
“… resulta da comparação das legislações e jurisprudências nacionais sobre repartição de competências que, tanto nas relações internas entre as várias áreas de competências jurisdicionais como nas internacionais, se recorre, embora mediante técnicas jurídicas diversas, a um e a outro dos dois critérios de conexão em causa, e isto, em vários Estados, a título cumulativo.
Assim, a interpretação acima explanada tem a vantagem de evitar qualquer subversão das soluções elaboradas no quadro dos vários direitos nacionais, procurando alcançar-se a uniformização, em conformidade com o artigo 5º n° 3, da convenção, no sentido da sistematização de soluções já adquiridas, no seu princípio, na maior parte dos Estados interessados”.
No quadro do direito português, relevante é o lugar onde ocorreu o facto e não o lugar onde ocorreu o dano.
Nos termos do art. 65º nº 1 al. c) do C.P.C., “a competência internacional dos tribunais portugueses depende” de “ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram”.
O termo “praticado” só pode referir-se ao comportamento do agente e não ao dano.
Conforme decorre do disposto no art. 74º nº 2 do C.P.C., artigo relativo à competência territorial, “se a acção se destinar a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu”.
Assim, se o comportamento do agente ocorreu fora do território português, mesmo que os danos tenham ocorrido neste, não há tribunal português territorialmente competente, sendo a excepção da incompetência em razão do território de conhecimento oficioso, por força do disposto no art. 110º nº 1 al. a) do C.P.C..
(…)
Não se vislumbram, pois, razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo que justifiquem a atribuição da competência aos tribunais portugueses no caso dos autos e, portanto, razões para a interpretação extensiva do art. 5º nº 3 do Regulamento (CE) nº 44/2001.
(…)
Importa, pois, considerar como lugar onde decorreu a principal actividade causadora do prejuízo a sede da R».
E concluiu-se na douta sentença: Por o facto danoso, isto é, o comportamento da R. não ter ocorrido em P…, importa considerar os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes.
III
1. Segundo se extrai da decisão recorrida, o Tribunal a quo entendeu não ser competente para apreciação da causa porquanto:
- A expressão facto danoso, essencial para a determinação da competência internacional em matéria de responsabilidade civil extracontratual nos termos do n.º 3 do art. 5.º do Regulamento (CE) 44/2001, deve ser restringida ao local onde decorreu a principal atividade causadora do prejuízo;
- Como não consta dos autos a identificação do local da ocorrência do evento causador do dano, deve atender-se à sede da recorrida, ou seja, F….
Importa, por conseguinte, interpretar o conceito de “facto danoso” de modo a determinar o respetivo âmbito de aplicação.
Segundo o Tribunal “a quo”, como vimos, por facto danoso deve entender-se apenas o comportamento do agente causador do dano, pelo que de acordo com o seu entendimento, para a fixação da competência internacional nesta matéria apenas se deve atender ao local onde foi praticada a conduta ilícita e não ao local onde ocorreu o dano.
Contudo, parece-nos que este entendimento é contrário à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Tal como se refere nas alegações de recurso, “a propósito do preceito correspondente da Convenção de Bruxelas – citado na decisão recorrida –, o Tribunal de Justiça da União Europeia consignou expressamente que a expressão facto danoso deve ser entendida como englobando, simultaneamente, o lugar onde o dano se verificou e o lugar onde decorreu o facto causal. Nessa medida, o réu pode ser demandado, consoante opção do autor, perante o tribunal onde o dano se verificou ou perante o tribunal do lugar onde decorreu o evento causador desse dano”
Com efeito, pode ler-se nesse acórdão supra referido: (tradução livre):
«Quando o local da ocorrência do facto que pode originar responsabilidade por acto ilícito, delitual ou quase-delitual e o local onde esse facto provoca danos não são idênticos, a expressão “local onde o facto danoso ocorreu” no artigo 5 (3) da Convenção de 27 de Setembro de 1968 sobre competência e execução de decisões em matéria civil e comercial deve ser entendido como pretendendo abranger tanto o local onde o dano ocorreu como o local onde o facto que lhe deu origem.
Em consequência, o réu pode ser demandado, por opção do autor, nos tribunais do lugar onde o dano ocorreu ou nos tribunais do lugar onde o facto que causa e está na origem desse dano».
Esta decisão está acessível no sítio Eur-Lex: http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61976CJ0021:EN:HT ML
Também no caso Fiona Shevill v. Press Alliance, em que se discutiu a competência em matéria de difamação internacional através de uma publicação na imprensa, o mesmo tribunal decidiu que o lesado pode intentar a ação em qualquer Estado onde a publicação tenha sido divulgada e o lesado entenda que sofreu danos.
Neste mesmo sentido, como vimos, pronunciou-se também o acórdão do STJ de 03.03.2005, de que se transcreve agora o essencial:
«Por força do disposto no n.º 3 deste art.º 5 uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.
Foi questão muito discutida durante a negociação técnica do Regulamento, a de saber qual o lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso. O Conselheiro Neves Ribeiro (…), depois de lembrar o conhecido acórdão "Minas de Potassio" - acórdão C-21/76, de 30 de Novembro - em que o Tribunal das Comunidades decidiu que o réu pode ser demandado, por escolha do autor, perante o tribunal onde o dano emergiu, ou perante o tribunal do lugar do acontecimento causal que originou o dano, afirma que "a questão está em saber qual o local de produção do dano, do resultado ou do efeito danoso, sobretudo quando ocorre em vários locais (a acção, a omissão, ou, então, efeito lesivo plurilocalizado). A ideia prevalecente foi deixar-se à apreciação de cada caso, conforme o grau maior ou menor de conexão com o foro demandado" (…)
Dispondo o art.º 5, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 que o requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso, facilmente se conclui que a única novidade do n.º 3 do art.º 5 do Regulamento consiste em abranger "não só os casos em que o facto danoso já se produziu, mas também aqueles em que há o risco de ele se produzir" (Dário Moura Vicente, estudo citado, pág. 363). Ou seja, pretendeu-se abranger as acções preventivas (assim, Conselheiro Neves Ribeiro, obra citada, pág. 70).
Assim, pensamos que na interpretação do art.º 5, n.º 3, do Regulamento, importa ter presente a jurisprudência firmada pelo Tribunal das Comunidades Europeias atinente ao conceito "lugar onde ocorreu o facto danoso" constante do art.º 5, ponto 3 da Convenção de Bruxelas (já que não se localizou jurisprudência sobre o preceito correspondente do Regulamento).
No recente Acórdão do Tribunal das Comunidades Europeias de 10/06/2004 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), relatado pelo Sr. Conselheiro Cunha Rodrigues, começa-se por lembrar que o sistema de atribuição das competências comuns previstas no Título II da Convenção se baseia na regra de princípio, enunciada no art.º 2, primeiro parágrafo, segundo o qual as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado, e que é só por derrogação a este princípio fundamental da competência dos tribunais do domicílio do requerido que a secção 2 do Título II da Convenção prevê alguns casos de atribuição de competências especiais, entre as quais a que consta do art.º 5, ponto 3, da Convenção.
Afirma-se de seguida, nesse Acórdão, que as "regras definidoras de competências especiais são de interpretação estrita, não permitindo uma interpretação que vá além das hipóteses explicitamente consideradas pela convenção", e que "segundo jurisprudência assente, a regra enunciada no artigo 5.º, ponto 3, da convenção é fundada na existência de uma conexão particularmente estreita entre o litígio e tribunais diferentes dos do domicílio do requerido, que justifica uma atribuição de competência a esses tribunais por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo".
Refere-se ainda neste Acórdão que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias já declarou que, "caso o lugar onde se situa o facto susceptível de implicar uma responsabilidade extracontratual não coincida com o lugar onde esse facto provocou o dano, a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», que figura no artigo 5.º, ponto 3, da convenção, deve ser entendida no sentido de que se refere simultaneamente ao lugar onde o dano se verificou e ao lugar onde ocorreu o evento causal na origem deste dano, de modo que o requerido pode ser demandado, consoante a opção do requerente, perante o tribunal de um ou outro desses dois lugares".
Este entendimento do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem subjacente um sistema de responsabilidade civil extracontratual assente em dois elementos constitutivos essenciais: o facto ilícito ou delito, por um lado; e o dano, por outro.
Perante um tal sistema e a ratio do art.º 5, n.º 3 (facilitar a produção da prova e a organização do processo), justifica-se plenamente considerar que na aferição da competência dos tribunais dos Estados contratantes quanto às acções fundadas em responsabilidade extracontratual deve ser atribuída igual relevância a ambos os elementos essenciais constitutivos da responsabilidade.
A Relação, no acórdão recorrido, a propósito da interpretação a ser dada ao art.º 5, n.º 3, aderindo à posição já defendida no Ac. da RC de 19/12/2000, considerou que o "facto danoso" deve "ser interpretado no sentido do facto também pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, aliás o seu primeiro pressuposto, entendido este como o elemento básico da responsabilidade delitual, como o facto voluntário, ou seja, o facto dominável ou controlável pela vontade humana, a conduta do agente causadora do dano".
E citou o Prof. Miguel Teixeira de Sousa (in "A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns", pág. 72), quando escreve que nas "acções relativas a matéria extracontratual, a parte pode ser demandada perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso (art.º 5.º, n.º 3, CBrux); se o lugar desse facto não coincidir com o do dano, a acção pode ser instaurada no tribunal deste último". A Relação criticou esta doutrina, por falta de apoio legal, mas, na verdade, ela mais não é do que o reconhecimento da orientação jurisprudencial firmada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
Assim, não pode aceitar-se a interpretação preconizada no acórdão recorrido, antes consideramos, na esteira da jurisprudência do TJCE, que no caso das acções fundadas em responsabilidade civil extracontratual, quando o lugar do facto e o lugar do dano, seus pressupostos, não coincidem, tanto são competentes os tribunais do Estado contratante em cujo território se verificou o facto ilícito gerador da responsabilidade, como os tribunais do Estado contratante em cujo território se verificou o dano”.
2. Embora proferido no domínio de legislação diferente, a verdade é que, para o caso, a solução deverá ser a mesma, pois as normas em causa são em tudo semelhantes, com uma pequena diferença, mas sem qualquer relevância para o caso.
O artigo 5.º do Regulamento tem a mais apenas o inciso “ou poderá”, sendo, pois, a sua redacção: “…lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
E não vemos qualquer razão para não seguir a orientação preconizada naquele douto acórdão do STJ.
IV
1. Parece-nos ser ponto assente que a ré não tem domicílio em território português, mas sim em território estrangeiro. A questão está então em saber se, sendo uma pessoa colectiva de um Estado-Membro, pode ser demandada noutro Estado-Membro, no caso em P….
Como vimos, estamos perante uma acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, pelo que a R. poderá ser aqui demandada em conformidade com o n.º 3 do artigo 5.º, ou seja, se considerarmos P... como o “lugar onde ocorreu o facto danoso”.
Portanto, toda a questão está na interpretação a dar ao n.º 3 do artigo 5.º do Regulamento (CE) nº 44/2001, segundo o qual “uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
E não há qualquer dúvida de que se trata de uma acção de indemnização, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, pois está em causa um conflito entre o direito à liberdade de opinião e de expressão, por um lado, e o direito à honra e ao bom nome, por outro, em que o autor alega que o seu direito foi violado pela ré.
2. À primeira vista poderia parecer que somente haveria que ter em consideração o tribunal onde ocorreu o facto danoso, ou seja, onde foi publicado o artigo em causa. E parece que assim seria se atendessemos apenas à letra da lei. Todavia, há que ter em consideração o seu espírito. Daí que não vejamos razões para não seguir a doutrina do citado acórdão do STJ e as decisões nele referidas no mesmo sentido. O local da prática do acto é, em regra, facilmente determinado quando, por exemplo, está em causa um acidente ocorrido num determinado local de um terminado Estado, como era o caso sobre que se debroçou aquele acórdão do STJ.
E o “facto danoso” é, in casu, como se disse na sentença recorrida, o comportamento do agente causador do dano.
Mas não se compreende muito bem a alusão que é feita (no futuro) ao lugar onde “poderá ocorrer” o facto danoso (sendo certo que esta expressão não constava da Convenção de Bruxelas).
Seria facilmente compreensível se aquela norma do Regulamento se referisse aos danos, pois estes podem, por um lado, produzir-se em locais diferentes e, por outro, podem verificar-se mesmo em data posterior à própria acção. O facto causador do dano será sempre um facto passado, a não ser que se entenda como tal, um facto que ainda não ocorreu, mas que se pretende evitar com a propositura de uma acção ou de um procedimento cautelar. Mas é questão que não se coloca aqui e  agora, pelo que se dispensam outras considerações a este respeito.
3. No caso sub judice, como já se viu, não é fácil determinar onde foi praticado o facto danoso, uma vez que se trata de um artigo divulgado através da Internet.
O incremento da deslocação das pessoas singulares entre países (e a interacção das sociedades de vários Estados) potencia o aparecimento de litígios que podem apresentar conexões com várias ordens jurídicas. E esse incremento é agora ainda mais acentuado na era da Internet e de outros meios de divulgação simultânea de notícias em tempo real, facilmente acessíveis, nomeadamente, à maioria dos cidadãos residentes nos países em que é aplicável o Regulamento.
As regras relativas à competência internacional socorrem-se de determinados elementos de conexão para determinação da jurisdição nacional competente. Esses elementos podem ser de vária ordem, designadamente, o domicílio de uma das partes, o lugar do cumprimento das obrigações, ou da prática do facto ilícito.
Por isso foram adoptadas convenções internacionais sobre a matéria, como, por exemplo, as de Bruxelas e de Lugano em matéria civil e comercial.
O artigo 5.º da Convenção de Bruxelas, relativo à “competências especiais”, estabelece que “o requerido com domicílio no território de um Estado Contratante pode ser demandado num outro Estado Contratante:
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3. Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu o facto danoso”.
Tem, pois, redacção semelhante à do Regulamento (tendo este a mais o inciso “ou poderá”), ou seja: “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
Em anotação ao artigo 5.º da Convenção de Bruxelas escrevem MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA e DÁRIO MOURA VICENTE[2]: «Quando o lugar do facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou um prejuízo não coincidam, a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, que figura no n.º 3, deve ser entendido no sentido de que se “refere tanto ao lugar onde o prejuízo se verifica como ao do evento causal”, pelo que o autor pode optar entre o tribunal do lugar do facto e o do dano para demandar o alegado responsável»[3]. E acrescentam: «Esta solução baseia-se na igual relevância dos dois factores e de conexão referidos, mas envolve o risco de excessivas multiplicações de atribuições de competência internacional, constituindo por isso um incentivo ao fórum shopping e é potencialmente gerador de decisões contraditórias…»[4]. Mas logo esclarecem que é de excluir a atribuição de competência com este fundamento aos tribunais do lugar da verificação de um dano apenas indirectamente causado pelo evento gerador de responsabilidade extracontratual.
Ora, in casu, trata-se uma publicação divulgada na Internet, pelo que pode ser lida ao mesmo tempo em qualquer lugar e por um conjunto indeterminado de pessoas, seguramente por alguns milhões.
Mas tais notícias destinam-se sobretudo a ser conhecidas em P…, pois é aos portugueses que o assunto mais interessa. A própria forma como a notícia é apresentada indicia que a mesma se destina sobretudo a leitores portugueses (embora, obviamente, também se destine a pessoas de outros países) (e daí ter sido publicada em língua estrangeira) e também a portugueses residentes noutros países. Mas, como é evidente, a acção apenas poderá ser proposta num Estado.
E não há qualquer dúvida de que os danos (a existirem) se produziram também (e sobretudo) em território português.
Em princípio, o lugar onde se verifica o dano coincide com o local onde “o facto foi praticado”. Por isso existe uma grande conexão entre estes dois factos. No caso em análise, tendo em consideração o modo como a notícia foi divulgada, o lugar donde dimanou pouco ou nenhum interesse tem, pois o que é importante é o local onde foi produzido o dano (ou seja, onde o facto produziu os seus efeitos). E, como se disse, os danos terão ocorrido sobretudo em P…, local da residência do ofendido. E, embora a R tenha a sede em F…, facilmente pode organizar a sua defesa em P…. Pelo contrário, para o autor importaria um sacrifício desproporcionado se a acção tivesse de ser proposta em F….
A razão de ser da disposição em análise justifica plenamente que o tribunal competente para o julgamento da acção seja o do local onde se produziram os  danos invocados.
Este entendimento do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem subjacente um sistema de responsabilidade civil extracontratual assente em dois elementos essenciais: o facto ilícito, por um lado, e o dano, por outro.
Nestes casos, a relevância do local onde foi emitida a notícia é praticamente nula, pois o que importa é o local onde os efeitos são produzidos, e estes podem ocorrer em vários locais e muito distantes entre si. E assim bem se justifica que, quando o lugar do facto gerador de responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto causou prejuízos não coincidam, a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, que consta do n.º 3 do artigo 5.º do Regulamento, deve ser entendida no sentido de que se refere tanto ao lugar onde o prejuízo se verificou como ao local onde ocorreu o facto produtor dos danos, pelo que o autor pode optar, para demandar o réu, entre o tribunal do lugar da prática do facto ilícito e o tribunal do lugar onde se produziram os invocados danos.
Perante um tal sistema e a razão de ser do art.º 5, n.º 3 (facilitar a produção da prova e a organização do processo), justifica-se plenamente que se considere que na aferição da competência dos tribunais dos Estados contratantes quanto às acções fundadas em responsabilidade civil extracontratual seja atribuída igual relevância a ambos os elementos constitutivos dessa responsabilidade.
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Por todo o exposto acorda-se em julgar procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida e julgam-se os tribunais portugueses internacionalmente competentes para o julgamento da acção.
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Lisboa, 18.06.2013.
José David Pimentel Marcos
Manuel Tomé Gomes
Maria do Rosário Morgado.
[1] O Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, “relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial” é aplicável em todos os Estados-Membros da União Europeia desde 1 de Março de 2002 e veio substituir, sem grandes alterações, a Convenção de Bruxelas (Convenção de 1968).
[2]  Comentário À Convenção de Bruxelas, Lex, Lisboa, 1994, pág. 93
[3]  Para tano invocam o acórdão do TJ de 30.11.76, Bier c. Mines de Potasse d Alsace
[4]  Ob. loc. cit. pág.