Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4667/2003-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
RENÚNCIA
PENHORA
REGISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário: A venda executiva de um bem sobre o qual ainda se mantém o registo da reserva de propriedade a favor do exequente depende do cancelamento dessa reserva, o que constitui ónus do exequente.
Não importa renúncia à reserva de propriedade o facto de a exequente ter indicado à penhora o bem sobre que incide a reserva.
Decisão Texto Integral: I – BANCO A, SA,
no âmbito de uma acção executiva para pagamento de quantia certa que intentou contra
B e C
foi proferido despacho determinando a suspensão da execução relativamente a um veículo automóvel que havia sido penhorado, a fim de a exequente declarar nos autos a renúncia à reserva de propriedade que se encontra averbada no registo automóvel e de que é beneficiária e certificar o cancelamento desse registo.

A exequente agravou de tal decisão e concluiu que:
(...)
Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II – Elementos a ponderar:
1. Foi solicitada a penhora do veículo automóvel com a matrícula 82-57-CP, tendo a exequente referido no requerimento respectivo que o mesmo pertencia aos executados;
2. A penhora foi ordenada e registada;
3. Foi apresentada a certidão de fls. 174, de onde consta que a “propriedade” se encontra registada, com data anterior, a favor do executado B, recaindo o “encargo - reserva” a favor da exequente;
4. Perante tal certidão, o Mº Juiz a quo proferiu o despacho agravado de fls. 204, no qual determinou a suspensão da execução quanto ao veículo automóvel até que a exequente renuncie à reserva e faça prova do respectivo cancelamento no registo.

III – Decidindo:
1. Cumpre antes do mais assinalar que o relato que a agravante faz dos passos do processo não tem correspondência com a realidade que dos autos dimana.
Invoca a agravante um despacho em que o Mº Juiz teria considerado que a exequente renunciara à reserva de propriedade (fls. 215). Alega ainda que apresentou um requerimento a declarar a renúncia à reserva de propriedade (fls. 218).
Tais afirmações não são confirmadas quando se procede à consulta do processo que, como se relatou, revela apenas, naquilo que interessa, a emissão de um despacho que ordenou a suspensão da execução quanto ao veículo automóvel até que esteja comprovado nos autos o cancelamento da reserva de propriedade.
As alegações terão, porventura, correspondência com outros processos, sujeitos a outras vicissitudes, atenta a insistente aposta que a agravante revela na sustentação das mesmas posições. Porém, neste processo em concreto não foi ordenada qualquer notificação da agravante para declarar a renúncia à reserva de propriedade, tal como não foi emitida qualquer declaração de renúncia a tal reserva.
O objecto do agravo resume-se, pois, a apurar se, constando do registo automóvel a reserva da propriedade a favor da exequente, a execução deve prosseguir, sem estar previamente demonstrado o cancelamento daquele registo. Cumpre ainda apreciar se tal cancelamento constitui um ónus da exequente ou deverá antes integrar-se nas tarefas do Tribunal sequenciais à futura venda.

2. A situação reflectida pelos autos no que respeita ao veículo causa alguma perplexidade. Referindo a agravante que a propriedade originária do veículo nunca esteve registada em seu nome e que apenas interveio numa operação de financiamento para a aquisição do veículo pelo executado, não pode deixar de se estranhar a existência de um registo de “reserva de propriedade” que, nos termos do art. 409º, apenas pode beneficiar o alienante (“é lícito ao alienante reservar para si a propriedade”).[1]
Não se conhecem os passos que a isso conduziram. Certo é que o registo deixa transparecer uma situação que mais se assemelha a uma hipoteca do que a um ónus de reserva de propriedade, ganhando contornos semelhantes aos da alienação fiduciária em garantia [2] vigente noutros sistemas mas que, entre nós, ainda não logrou alcançar consagração legal. Na verdade, reportando apenas o registo da propriedade a favor do executado, seguido do registo de um “encargo-reserva”, com a mesma data, a favor da exequente, não se percebe o fundamento jurídico deste segundo registo.
A situação retratada pelos documentos parece contrariar tudo quanto a respeito da figura da reserva de propriedade se possa invocar, designadamente o facto de se tratar de uma alienação sob condição suspensiva.
No art. 5º, nº 1, al. b), e nº 2, do Dec. Lei nº 54/75, de 12-2, prevê-se a inscrição obrigatória no registo automóvel da reserva de propriedade. Mas, como resulta art. 46º do Regulamento de Registo Automóvel, aprovado pelo Dec. Lei nº 55/75, de 12-2, tal reserva é a que for estipulada nos contratos de alienação de veículos.
Também no art. 6º, nº 3, al. f), do Dec. Lei nº 359/91, de 21-9 (contratos de aquisição a crédito) se prevê que fique a constar do texto do contrato de financiamento o “acordo sobre a reserva de propriedade”. Mas é óbvio que tal disposição se reporta a situações em que o vendedor era e continua a ser proprietário, agora sob reserva, financiando a aquisição através de alguma das formas previstas no art. 2º (diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou outro acordo de financiamento semelhante). Não pode essa norma ter aplicação a situações previstas no art. 12º, em que o crédito é concedido por terceiro para financiar o pagamento de bem adquirido ao vendedor.
Não se entende por que, em situações em que a entidade financiadora é terceiro relativamente ao negócio de aquisição do veículo automóvel, se considera admissível a inclusão no texto do contrato que titula a aquisição de uma cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante, em violação das mais elementares características do instituto que suspende, até ao preenchimento das circunstâncias contratualmente previstas pelas partes, a efectiva integração da propriedade do bem na esfera jurídica do adquirente.

3. Porém, bem ou mal, o registo encontra-se em vigor, devendo partir-se desse dado objectivo para a apreciação do objecto do agravo.
Tendo as partes optado pela inscrição da reserva de propriedade a favor da exequente, não pode a mesma pretender que tal registo seja tratado intraprocessualmente como uma normal garantia real semelhante à hipoteca.
Caso tivesse sido outorgada (e registada) hipoteca sobre o veículo automóvel para garantia do crédito correspondente ao financiamento da aquisição, a penhora recairia prioritariamente sobre o veículo, beneficiando o exequente de preferência na ocasião da distribuição do produto da venda do bem hipotecado. Em tal eventualidade, depois da venda, seria ordenado o cancelamento dos registos correspondentes aos direitos reais de garantia, como sucede com a hipoteca e com a posterior penhora.
Não assim quando, como decorre dos autos, a exequente seguiu a via do registo da “reserva de propriedade” de um bem que, como confessa, nunca foi da sua “propriedade”, procurando, ao que parece, acautelar-se contra a penhora do bem por outros credores [3] e, agora, libertar-se dos custos inerentes ao cancelamento da reserva de propriedade.

4. Mantendo-se a reserva de propriedade a favor da exequente, o veículo não deveria ter sido penhorado.[4] Efectuada a penhora, não deveria ter sido registada em termos definitivos, atento o disposto no art. 92º, nº 2, al. a), do CRP, aplicável ao registo automóvel.
Invoca a agravante de que, ao indicar o bem à penhora, teria tacitamente renunciado à reserva de propriedade.
Ainda que fosse admissível atender a uma declaração de renúncia desacompanhada da comprovação do cancelamento da reserva de propriedade, tal declaração jamais poderia ser o resultado de uma interpretação, sempre duvidosa, de comportamentos processuais, devendo antes ser expressa e formalmente assumida em declaração dotada da força necessária para assegurar a renúncia e para servir de base ao futuro cancelamento registral.[5]
De todo o modo, nem sequer bastaria a declaração de renúncia. Sendo o registo automóvel um instrumento que deve estar em conformidade com a situação substantiva dos bens, designadamente para defesa de terceiros, a penhora do bem cuja reserva de propriedade está inscrita em nome do exequente exigia que esta, previamente, demonstrasse o cancelamento da reserva de propriedade.
Por isso, tendo a exequente omitido a verdadeira situação do veículo, ao referir que o mesmo pertencia ao executado, quando, afinal, tinha a seu favor a reserva da propriedade, não deve autorizar-se a passagem para uma outra fase do processo – a convocação de credores e a posterior venda do bem – sem que a questão fique regularizada.

5. Tal regularização é um ónus que recai sobre a exequente e não sobre o Tribunal, como pretende a agravante. Afinal é a exequente a única responsável pelo imbróglio revelado nestes e em muitos outros processos (dezenas?), malgrado as decisões que contra tal posição têm sido proferidas nesta Relação.
 Mais importante do que isso é considerar que a reserva de propriedade não constitui uma garantia real que esteja a acoberto das normas dos arts. 824º do CC, ou do art. 888º do CPC. Uma e outra apenas abarcam os direitos reais de garantia e os demais direitos reais (como a reserva de propriedade) que não tenham registo anterior.
Ainda que a reserva de propriedade tenha sido funcionalmente registada com o objectivo de garantir o cumprimento da dívida (apesar de o registo não dar notícia alguma do seu montante, como sucederia se tivesse sido registada hipoteca), não é juridicamente um “direito real de garantia”. Constituindo, em termos rigorosos, uma condição suspensiva aposta ao direito de propriedade e sendo o seu registo anterior ao da penhora, não encontra sustentação nas regras do cancelamento oficioso a pretensão da agravante.[6]
Numa outra perspectiva, de ordem prática, cabe ainda dizer que não é legítimo transferir para os Tribunais, já sobrecarregados com massificadas acções decorrentes de incumprimento de contratos de concessão de crédito ao consumo (entre os quais se encontra uma elevada percentagem em que a agravante é promotora) tarefas que devem ficar a cargo dos credores (ou daqueles que, em seu nome, tratam dos respectivos processos contenciosos).

7. Contra o referido não é legitimo invocar o disposto no art. 119º do CRP, aplicável ao registo automóvel.
O recurso ao mecanismo previsto em tal disposição apenas se justifica relativamente a discrepâncias entre a titularidade do bem e o respectivo registo que respeitem a pessoas diversas do exequente e não, como ocorre no caso concreto, a situações imputáveis à própria exequente.

IV – Conclusão:
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida.
Custas da agravante.
Remeta cópia deste acórdão à Direcção Geral de Registos e Notariado para os efeitos tidos por convenientes.

Lisboa, 27-5-03

(António Santos Abrantes Geraldes)
(Manuel Tomé Soares Gomes)
 (Maria  do Rosário C.  de Oliveira Morgado)
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[1] Cfr. Raul Ventura, ROA, ano 43º, pág. 605, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 176, e Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, pág. 23.
[2] Cfr. Antunes Varela, CC anot., vol. II, 4ª edº, pág. 230
[3] Menezes Leitão, ob. cit., pág. 176, e Raul Ventura, ob. cit., pág. 610
[4] Sobre a inadmissibilidade de penhora cfr. Antunes Varela, CC anot., vol. II, 4ª ed., pág. 230, o Ac. desta Relação, de 30-4-02, CJ, tomo II, pág. 124, assim como o Ac. proferido no procº nº 8862-02 (Rel. Maria do Rosário Morgado).
[5] Cfr. neste sentido Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, pág. 69, e o Ac. desta Relação, de 21-2-02, CJ, tomo I, pág. 114.
[6] Neste sentido se decidiu nos acórdãos desta Relação, de que fui adjunto, de 20-5-03, no procº nº 3693/03, e de 19-12-02, no procº nº 9593-02 (Rel. Jorge Santos).