Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
114/15.2PATVD-A.L1-5
Relator: SIMÕES DE CARVALHO
Descritores: DESCONTO NA PENA DE PRISÃO ANTERIOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – O Art.º 479º, do C.P.Penal, apenas se refere à contagem de tempo de prisão fixada em anos, em meses e em dias, determinando, outrossim, que esta última – prisão fixada em dias – será contada considerando cada dia um período de 24 horas, não prevendo a lei tempo de prisão contado em horas.

– Daí não se pode retirar a conclusão de que a detenção por tempo inferior a 24 horas, porque não expressamente prevista, não poderá ser descontada.

– Qualquer privação de liberdade, ainda que por algumas horas, trata-se, inquestionavelmente, de uma privação da liberdade, havendo que observar na contagem da pena a regra do Art.º 80º, n.º 1, do C. Penal, a qual impõe o desconto por inteiro da detenção sofrida no cumprimento de pena de prisão.

– Como a unidade de tempo mais pequena prevista para a contagem da prisão é o dia, correspondente a um período de 24 horas (das 00 horas às 24 horas), tendo a supra mencionada arguida sido detida e libertada em dias diversos (dois), há que proceder ao desconto de dois dias, pois só assim se interpretará devidamente a sobredita norma e o direito constitucional à liberdade decorrente do Art.º 27º da C.R.P.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:

 
No processo n.º 114/15.2PATVD do Juízo Local Criminal de Torres Vedras (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, por despacho de 19-03-2018 (cfr. fls. 95 e 96), no que agora interessa, foi decidido:

«… A arguida L. foi condenada nestes autos na pena de 9 meses de prisão, por decisão já transitada em julgado.

Foi ligada a estes autos em 23-01-2018.

Anteriormente, e ponderando o disposto no Art.° 80° do Código Penal verifica-se que a arguida esteve detida preventivamente à ordem do processo n° 487/16.0PASMJ desde 08-01-2018 e até 23-01-2018, data em que foi ligada a estes autos. Mais se verifica do expediente que antecede que nesses autos a arguida foi detida em 18-10-2016 e libertada em 19-10-2016, sofrendo assim um total de 17 dias de privação de liberdade e que importa descontar nestes autos.

Todavia, diferente é o entendimento do Ministério Público, conforme consta da anterior promoção. No entanto, temos de discordar do seu teor. É que o Art.º 80° do Código Penal não especifica a duração da detenção a considerar, e, o disposto no Art.º 479° do Código do Processo Penal respeita ao tempo de prisão e não ao tempo da detenção.

Neste ponto, efectuando até uma interpretação favorável ao arguido, consideramos que existindo detenção do arguido e caso a mesma ultrapasse o dia de calendário, ainda que não indo além do período de 24h deverão ser descontados dois dias de detenção, uma vez que por esse raciocínio e mesmo que essa detenção respeite apenas uma hora, sempre importará descontar igualmente um dia na pena de prisão.

Por outro lado, de acordo com o disposto no Art.º 479° do CPP o período de tempo mais curto para a contagem da pena é o dia e não a hora, isto sem prejuízo até do legalmente previsto para o momento da libertação.

Seguimos neste ponto o plasmado nos Acs. TRP datados de 2-12-2009, 2-2-2006 e de 18-10-2006, ambos in www.dgsi.pi, bem como o Ac. TRC de 19-2-2014 e ainda o Ac. TRL de 21-03-2013, CJ, 2013, T2, pág.143, citado in www.pgdlisboa.pt, onde se consagra que: "I. O desconto de qualquer privação da liberdade, como a detenção de arguido, não tem de ser ordenado na decisão condenatória, embora tal seja desejável. II. Caso o arguido tenha sido detido por um período inferior a 24 horas em dois dias diversos, seguidos ou não, para efeitos de desconto na pena em que foi condenado tal período de detenção corresponde a dois dias."

Assim, tendo a arguida sido condenada nestes autos por sentença transitada em julgado na pena de 9 meses de prisão, sendo colocado ã ordem destes autos em 23-01-2018, importará descontar os dois dias de detenção sofridos, bem como o período de prisão preventiva, nos moldes acima expostos, sofridos no processo n° 487/16.0PASMJ, conforme decorre do disposto no Art° 80.°, n° 1 do Código Penal.

Considerando o acima exposto e o Art.° 479°, n° 1, al. b) do Código Penal, a arguida atingirá:
a) - o fim da pena em 07-10-2018;
b) - o meio da pena em 22-05-2018;
c) - os dois terços da pena em 07-07-2018;
d) - os cinco sextos da pena em 22-08-2018.
Notifique, comunique e passe as requeridas certidões e proceda como promovido na parte final da promoção que antecede.
Comunique ao processo n° 487/16.0PASMJ que os dois dias de detenção ali sofridos e a prisão preventiva aplicada à arguida foram descontados nestes autos.»

O Mº Pº não aceitou esta decisão e dela recorreu (cfr. fls. 96 a 106), extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«1.– Por sentença transitada em julgado em 19 de Janeiro de 2017, foi a arguida L. condenada na pena única de nove meses de prisão.
2.– Nestes autos, a arguida não sofreu nenhum dia de privação da liberdade passível de ser descontado para efeitos do preceituado no artigo 80°, n° l, do Código Penal.
3.– No âmbito do processo n° 487/16.0PASJM, a arguida esteve detida no período de tempo compreendido entre as 22h08m do dia 18.10.2016 e as 20h48m do dia 19.10.2016, sofrendo, assim, em nosso entender, apenas um dia de detenção, pois esteve privada da liberdade 22horas e 40 minutos, ou seja, um período de tempo inferior a 24 horas.
4.– No âmbito do processo n° 487/16.0PASJM, a condenada foi ainda sujeita à medida de coacção de prisão preventiva entre o dia 08 de Janeiro e o dia 23.01.2018, data em que foi colocada à ordem destes autos, correspondendo tal prazo a um período de catorze dias de privação da liberdade, considerando cada dia um período de 24 horas.
5.– Nos termos do artigo 80°, n.° 1, do Código Penal, "A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas."
6.– Em esclarecimento ao citado normativo legal, fixou o Acórdão n° 9/2011 do Supremo Tribunal de Justiça, a seguinte jurisprudência: "Verificada a condição do segmento final do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal - de o facto por que o arguido for condenado em pena de prisão num processo ser anterior à decisão final de outro processo, no âmbito do qual o arguido foi sujeito a detenção, a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação -, o desconto dessas medidas no cumprimento da pena deve ser ordenado sem aguardar que, no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, seja proferida decisão final ou esta se torne definitiva."
7.– Acrescenta o artigo 479°, n° 1, alínea c), do Código de Processo Penal que a prisão fixada em dias é contada considerando-se cada dia um período de vinte e quatro horas.
8.– "O período de detenção anterior, sofrido pelo condenado, deve ser contado em horas e não em dias, para efeitos de desconto no cumprimento da pena que posteriormente lhe foi aplicada. Atendendo a que a detenção é sempre referida, no ordenamento jurídico processual penal português, em horas e não em dias -cfr. arts. 254°, n° 1, 382°, n° 3, e 385°, n° 2, do Cód. Proc. Penal, correspondendo cada dia de prisão a um período de 24 horas (...)" - cfr. Ac. RL de Lisboa de 26.02.2013, in www.dgsi.pt.
9.– Assim, dúvidas não subsistem que a detenção sofrida pela arguida deve ser descontada na prisão que tem a cumprir, mesmo que essa detenção tenha durado por tempo inferior a 24 horas.
10.– Mas proceder ao desconto de dois dias só pela circunstância do decurso desse período de tempo ter ocorrido cm dois dias seguidos, quando, como no caso em apreço, a arguida esteve detida 22 horas e 40 minutos, conduzirá a situações de profunda injustiça e desigualdade tendo o despacho recorrido implícita uma diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável ou atendível, sem que se paute por critérios de justiça relativa face a idênticas ou mais gravosas situações de privação da liberdade.
11.– Em sentido idêntico decidiu o douto aresto da Relação de Lisboa de 01.03.2018, in www.dgsi.pt, sumariando-se o seguinte: "- O período de detenção anterior, sofrido pelo condenado, deve ser contado em horas e não em dias, para efeitos de desconto no cumprimento da pena que posteriormente lhe for aplicada, atendendo a que a detenção é sempre referida, no ordenamento jurídico processual penal português, em horas e não em dias correspondendo cada dia de prisão a um período de 24 horas - cfr. Código Penal, artigo 80." n.° 1, e Código de Processo Penal, artigos 254.º, n.º 1, 382.º, n.º 3, 385.º, n. ° 2, e 479.º, n." 1, alínea c). Caso o arguido lenha sido detido por um período inferior a 24 horas em dois dias diversos, seguidos ou não, para efeitos de desconto na pena em que foi condenado, tal período de detenção corresponde a um dia."
12.– Ademais, regulando o artigo 479°, do Código de Processo Penal, a contagem do tempo de prisão sem fazer qualquer menção expressa à contagem do tempo a descontar, outra solução não resta senão a de proceder à contagem do tempo a descontar segundo as regras previstas nesse normativo legal.
13.– Assim, conforme previsto na alínea c), do n° l, do supra citado preceito legal, a prisão fixada em dias será contada considerando cada dia um período de 24 horas, pelo que, tendo sido a arguida presa preventivamente, no âmbito do processo n° 487/16.0PASJM, entre o dia 08.01.2018 e o dia 23.01.2018, sofreu a condenada apenas 14 dias de prisão preventiva, e não 15 dias conforme sufragado no despacho recorrido.
14.– Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo violou as normas previstas no artigo 80°, n° 1, do Código Penal, 479°, n° 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
15.– Face ao exposto, deverá ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que decida homologar a proposta de liquidação da pena constante de íls. 474 e 475, procedendo ao desconto de quinze dias no cômputo da pena, um dia de desconto pela detenção sofrida e catorze dias pela prisão preventiva aplicada, períodos de privação da liberdade sofridos pela condenada no âmbito do processo n° n° 487/16.0PASJM.
Contudo, Vossas Excelências decidindo, farão a costumada JUSTIÇA»  

Admitido o recurso (cfr. fls. 107) e, efectuadas as necessárias notificações, não foi apresentada qualquer resposta

Remetidos os autos a esta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto teve vista no processo (cfr. fls. 111).

Proferido o despacho preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.
*

Vejamos:

São as “conclusões” formuladas na motivação do recurso que definem e delimitam o respectivo objecto – Art.ºs 403º e 412º do C.P.Penal.
Como resulta das transcritas conclusões do mesmo, a questão que se nos coloca, fundamentalmente, é a seguinte:
– Deverá ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que decida homologar a proposta de liquidação da pena constante de fls. 93 e 94, procedendo ao desconto de quinze dias no cômputo da pena, um dia de desconto pela detenção sofrida e catorze dias pela prisão preventiva aplicada, períodos de privação da liberdade sofridos pela condenada no âmbito do processo n.° 487/16.0PASJM.
         
Antes de mais, não pode, desde logo, deixar de se referir que sobre idêntica problemática se pronunciou já, em termos que se têm por inequivocamente correctos, o acórdão da Relação do Porto de 02-12-2009, disponível in www.dgsi.pt, de que foi relator o Exm.º Desembargador Coelho Vieira, cuja fundamentação se irá seguir de perto, por a ela aderirmos na sua globalidade.

Apreciando:

De acordo com o n.º 1 do Art.º 80º do C. Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.

A alteração introduzida pela supra referida Lei consistiu, pois, em mandar descontar no cumprimento da pena de prisão todas as medidas de coacção referidas e sofridas pelo arguido, ainda que aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.

Segundo o Prof. Figueiredo Dias, “o instituto do desconto, regulado nos arts. 80.º a 82.º, assenta na ideia básica segundo a qual privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado” (cfr. Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime – Editorial Notícias, Pág. 297).

Esta ideia vale para todas as privações da liberdade anteriores ao trânsito em julgado da decisão do processo: prisões preventivas, obrigações de permanência na habitação e quaisquer detenções (não só as referentes ao Art.º 254º mas também, v. g. as que resultem do Art.º 116º, ambos do C.P.Penal).
Revertendo para o caso concreto, verifica-se que a detenção da arguida L. perdurou por dois dias diversos.


Na verdade, a mesma foi detida à ordem do processo n.° 487/16.0PASMJ em 18-10-2016, as 22,08 horas, tendo perdurado nessa situação até ao dia seguinte, 19-10-2016, às 20,48 horas, altura em que foi libertada.

Tudo somado, revela-se, assim, inequívoco que a privação da liberdade perdurou por menos de 24 horas.

Será, no entanto, que, tal como sustenta a Digna recorrente, se deverá descontar apenas um dia?

Ora, revela-se inequívoco que o Art.º 479º, do C.P.Penal, apenas se refere à contagem de tempo de prisão fixada em anos, em meses e em dias, determinando, outrossim, que esta última – prisão fixada em dias – será contada considerando cada dia um período de 24 horas.

Não prevê, no entanto, a lei tempo de prisão contado em horas.
Todavia, daí não se pode retirar a conclusão de que a detenção por tempo inferior a 24 horas, porque não expressamente prevista, não poderá ser descontada.

E dizemos isto até porque se trata, inquestionavelmente, de uma privação da liberdade, havendo que observar na contagem da pena a regra do Art.º 80º, n.º 1, do C. Penal, a qual impõe o desconto por inteiro da detenção sofrida no cumprimento de pena de prisão.
Como a unidade de tempo mais pequena prevista para a contagem da prisão é o dia, correspondente a um período de 24 horas (das 00 horas às 24 horas), tendo a supra mencionada arguida sido detida e libertada em dias diversos (dois), há que proceder ao desconto de dois dias, pois só assim, também a nosso ver, se interpretará devidamente a sobredita norma e o direito constitucional à liberdade decorrente do Art.º 27º da C.R.P..

Desta forma e mesmo se o arguido foi detido por dois períodos inferiores a 24 horas em dois dias diversos, seguidos ou não, deverão ser, em nossa opinião, descontados dois dias de detenção.
Em face do que acaba de se afirmar, decorre, outrossim, que o período de prisão preventiva sofrido pela predita arguida, no processo n.° 487/16.0PASMJ, desde 08-01-2018 e até 23-01-2018, corresponde a 15 dias e não a 14, conforme pretende a Digna recorrente.

Nos termos de tudo quanto acaba de se expender, sofreu, portanto, aquela arguida 17 dias de privação da liberdade, tal como acertadamente se entendeu na decisão em causa.
Por conseguinte, inexistem dúvidas de que o recurso tem forçosamente de improceder.
*

Assim, do exposto, tudo visto e sem a necessidade de maiores considerações:
Acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando, na sua plenitude, o despacho impugnado.

Sem tributação.


Lisboa,11-09-2018


Simões de Carvalho
Margarida Bacelar