Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6730/18.3T9LSB.L2-5
Relator: CID GERALDO
Descritores: NULIDADE
INCUMPRIMENTO DE DECISÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Se o Tribunal da Relação de Lisboa revogou o despacho da Mm.ª juiz de instrução que ordenara o arquivamento do processo e determinou que o mesmo fosse substituído por outro que declarasse a abertura de instrução e procedesse aos actos instrutórios solicitados pelo assistente, nomeadamente, a audição das testemunhas arroladas pelo mesmo e a Mm.ª juiz de instrução, só em parte acatou a decisão do tribunal superior na medida em que indeferiu a inquirição das testemunhas arroladas pelo assistente por reputar a diligência de inútil, padece esta decisão do do vício de nulidade insanável, nos termos do artigo 119°, alínea e) do CPP, por violação das regras de competência hierárquica do tribunal.
- Esta nulidade determina a invalidade de toda a Instrução, incluindo da decisão instrutória entretanto proferida, nos termos do artigo 122°, n° 1 do CPP, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


1. No âmbito da Instrução com o nº 6730/18.3T9LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 5, o assistente VB , interpôs recurso da decisão instrutória de não pronúncia da arguida CBB pela prática de um crime de difamação agravada p. e p. pelos artigos 180.°, n.° 1, 183.°, n.° 1, alínea a) e 184.°, por referência ao artigo 132.°, n.° 2, alínea l), todos do Código Penal.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1ª. Em 9.09.2019 o Assistente apresentou Requerimento de Abertura de Instrução nos presentes autos.
2ª. Em 30.10.2019 a Meritíssima Juiz de Instrução a quo rejeitou liminarmente o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Assistente, com o fundamento de que, atendendo aos factos invocados nesse mesmo Requerimento, a Arguida não podia ser criminalmente responsável pelo crime que se lhe pretendia ver imputado, pelo que determinou o arquivamento dos autos, ficando prejudicada a realização da presente instrução.
3ª. Desse Despacho foi interposto recurso pelo Assistente para o Tribunal da Relação de Lisboa em 4.12.2019, tendo sido concedido provimento ao recurso, por Acórdão proferido em 25.06.2020, que veio revogar o referido Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo em 30.10.2019 e ordenou a sua substituição por outro que ordenasse a imediata abertura da instrução, referindo tal decisão expressamente que "O Mm°. Juiz deverá ouvir as testemunhas arroladas pelo assistente e analisar todos os demais meios de prova por este oferecidos, só após podendo proferir uma decisão, que haverá de ser, necessariamente, sustentada de forma crítica e com argumentos que objectivamente se "imponham" à consciência dos respectivos destinatários".
4ª. Em 29.09.2020 a Meritíssima Juiz a quo proferiu Despacho, declarando aberta a instrução requerida pelo Assistente, mas, incumprindo o determinado pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 25.06.2020, indeferiu a inquirição de todas as testemunhas arroladas pelo Assistente no seu Requerimento de Abertura de Instrução (limitando-se a admitir a tomada de declarações ao Assistente) e logo designou data para a realização do debate instrutório.
5ª. Em 22.01.2021 foi proferida decisão instrutória de não pronúncia nos presentes autos.
6ª. Ao indeferir a inquirição de todas as testemunhas arroladas pelo Assistente no seu Requerimento de Abertura de Instrução (apenas permitindo a tomada de declarações ao Assistente), o Tribunal a quo demonstrou não ter qualquer vontade mínima de acatar e cumprir a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 25.06.2020.
7ª. O Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo em 29.09.2020 padece deste modo do vício de nulidade insanável, nos termos do artigo 119°, alínea e) do CPP, por violação das regras de competência hierárquica do tribunal. Esta nulidade irá determinar a invalidade de toda a Instrução, incluindo da decisão instrutória entretanto proferida, nos termos do artigo 122°, n° 1 do CPP.
8ª. Nestes termos, deve ser declarada a nulidade do Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo em 29.09.2020, bem como a invalidade de toda a Instrução, incluindo da decisão instrutória entretanto proferida, determinando-se o envio do processo para tramitação da instrução em 1ª instância, para cumprimento do Acórdão proferido em 25.06.2020 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos referidos nele mesmo.
9ª. Na decisão instrutória por si proferida o Tribunal a quo também não fez a enunciação dos factos indiciariamente julgados provados e não provados, de forma explícita e descriminada.
10ª. Tacitamente o Tribunal a quo julgou indiciariamente não provados os factos alegados no RAI pelo Assistente.
11ª. Mas a lei não permite tais decisões tácitas, que coartam o direito ao recurso, pois ao não se fazer uma enunciação dos factos indiciariamente julgados provados e não provados, de forma explícita e descriminada, não se permite que se discuta se tais factos foram bem ou mal julgados.
12ª. Decorre do artigo 308, n° 2 do CPP (ex vi artigo 283°, n° 3 do CPP) que também a decisão instrutória contém, sob pena de nulidade, "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada".
13ª. Assim sendo, a omissão, na decisão instrutória (de pronúncia ou de não pronúncia), dos factos julgados indiciariamente provados e não provados, constitui nulidade, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 308°, nº 1 e 2 e 283°, n° 3, alínea b) do CPP.
14ª. O Despacho de não pronúncia proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução é por isso nulo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 308°, nºs 1 e 2, 283°, n° 3, alínea b) e 379°, n° 2, todos do CPP, pelo que deve este Despacho ser revogado por esse Venerando Tribunal, porquanto este padece do vício de nulidade, segundo as disposições conjugadas dos artigos 308°, n° 2, 283°, n° 3, alínea b) e 379°, n° 2, todos do CPP, determinando-se que o Tribunal de 1ª instância, em nova decisão instrutória, faça a enunciação dos factos julgados indiciariamente provados e não provados, de forma explícita, descriminada e fundamentada.
15ª. No caso de estarmos perante crimes semipúblicos, e na circunstância de o Ministério Público ter proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de abertura de instrução apresentado pelo assistente (e mais concretamente a acusação em sentido material dele constante) delimita o thema probandum e fixa o objeto do processo em ordem a permitir a organização da defesa.
16ª. Tal significa que na decisão instrutória o Juiz de Instrução deverá pronunciar-se concretamente sobre todas as imputações factuais constantes da acusação em sentido material incluída no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, sob pena de incorrer em omissão de pronúncia, por ter deixado de se pronunciar sobre questões que devia ter apreciado.
17ª. No Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Assistente nos presentes autos é referida matéria factual relativa a afirmações produzidas pela Arguida que não foram apreciadas pela Meritíssima Juiz a quo, nomeadamente a matéria referida nos artigos 3°, 5°,   e 9° da Acusação em sentido material constante do RAI.
18ª. Por esta razão a decisão instrutória é irregular, nos termos dos artigos 118°, n° 2 e 123° do CPP, vício que ora se argui nos termos do artigo 379°, n° 2 do CPP, por identidade de razão.
19ª. Nestes termos, deve o Despacho de não pronúncia proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução ser revogado por esse Venerando Tribunal, porquanto este padece do vício de irregularidade, segundo os artigos 118°, n° 2 e 123° do CPP, determinando-se que o Tribunal de 1ª instância se pronuncie sobre todas as imputações factuais descritas no RAI do Assistente (entre as quais as descritas nos artigos 3°, 5°, 7° e 9° da Acusação em sentido material constante do RAI).
20ª. O Despacho de não pronúncia refere ainda duas asserções conclusivas inaceitáveis.
21ª. A primeira é a conclusão jurídica de que as concretas afirmações proferidas pela Arguida não são objetivamente ofensivas da honra e consideração pela conclusão jurídica de que a Arguida não agiu com dolo, que o Tribunal a quo retira de considerar que a Arguida atuou no legítimo exercício de um seu direito de opinião e de crítica do comportamento do Assistente e que a mesma não invadiu o espaço de proteção do fundamental direito à honra e consideração do Assistente.
22ª. O Tribunal a quo confunde na conclusão jurídica acabada de referir os pressupostos que poderiam fundar a aplicabilidade ao caso da causa de justificação exercício de um direito com a verificação do tipo objetivo e do tipo subjetivo do crime de difamação.
23ª. A segunda asserção conclusiva inaceitável referida no douto Despacho recorrido é a de que o Assistente "simultaneamente, integrar lista de árbitros, em matéria tributária, no Conselho de Prevenção da Corrupção", pois na realidade, tal como consta de abundante prova documental junta pelo Assistente a estes autos e foi claríssimo nas declarações do Assistente, o Assistente integrou a lista de quem pode ser selecionado para ser árbitro do Centro de Arbitragem Administrativa (ainda que como estando "indisponível" para participar nessa qualidade) e não a lista de quem já foi árbitro nesse Centro de Arbitragem. E Conselho de Prevenção da Corrupção (que o Assistente integra) não tem, nem nunca teve, uma lista de árbitros.
24ª. Como já foi supra referido, a Meritíssima Juiz a quo ignorou matéria factual constante dos artigos 3°, 5°, 7° e 9° da Acusação em sentido material do RAI, relativa a afirmações produzidas pela Arguida, cingindo-se às afirmações de "acumulação sem retidão", "desmérito" e "nulidades e ilegalidades", que segundo a Meritíssima Juiz a quo não são objetivamente ofensivas da honra e consideração.
25ª. Isto porque a Arguida refere expressamente que "O conselho da prevenção da corrupção conhece da situação de conflitos de interesses e permite o assento por inerência do cargo do acumulador de carros da administração pública... O Estado para 4000 euros mais 1200 mais 420 euros em acumulação ilegal... queres cidadão?".
26ª. E de forma perentória a Arguida refere ainda que "Não há dúvida nenhuma é totalmente incompatível. Tem de repor os 1200 euros mensais".
27ª. A Arguida afirma ainda que "[o] Inspetor-Geral era e é árbitro especialista da matéria que exerceu funções quer na Inspeção-Geral de Finanças, quer no Tribunal de Contas onde aprendeu e adquiriu  conhecimento e experiência sixnificativa para bem decidir sobre assuntos de interlocutores e clientes que auditava. (...) VB  
e é Jurista (tão só e apenas, mas ao mesmo tempo era Auditor-Chefe do Tribunal de Contas das matérias tributárias mas nem por isso se sentiu «inibido» a julgar arbitralmente questões suscitadas pelas partes, pensando assim que o conhecimento do exercício em paralelo com as funções (dirigentes) enrobusteciam a decisão arbitrai final)".
28ª. CBB efetua assim imputações de factos falsos e formula juízos ofensivos da honra e consideração de VB  quando menciona que este último acumulou de forma ilegal as funções de árbitro em matéria tributária no CAAD e de Auditor-Chefe do Tribunal de Contas das matérias tributárias.
29ª. O uso aqui da expressão "clientes que auditava" é particularmente ofensivo e insidioso, pois, como é óbvio, o Tribunal de Contas não tem clientes, sendo que o que a Arguida assim sugere é que o Assistente teria tido, ou querido ter, mais tarde como "clientes" as pessoas cuja responsabilidade apurou no Tribunal de Contas como Auditor-Chefe.
30ª. Além de a Arguida identificar inequivocamente que é ao Assistente VB  que ela se refere, afirma que o Assistente, que foi Auditor-Chefe do Tribunal de Contas e era Inspetor-Geral de Finanças (ao tempo da afirmação da Arguida), julgou arbitralmente questões suscitadas pelas partes  e que o fez sem se ter sentido inibido e, torpemente, "pensando assim que o conhecimento do exercício em paralelo com as funções (dirigentes) enrobusteciam a decisão final".
31ª. Este excerto relata uma falsidade e é duplamente ofensivo: relata uma falsidade pois o Assistente VB nunca julgou arbitralmente ninguém (como se referiu apenas fez parte de uma lista de possíveis árbitros) e é duplamente ofensivo porque seria censurável ter efetivamente tido intervenção como árbitro (mas VB  não o fez!) e imputa ao Assistente, com subtil perfídia, não ter inibições (éticas, claro), quanto a intervir como membro de um Tribunal Arbitral, enquanto dirigente da Administração Pública e pensar que ser titular dessas funções daria mais força à sua decisão arbitral (o que constitui a imputação de um pensamento eticamente pervertido que VB  nunca teve!).
32ª. A Arguida CBB formula ainda um juízo claramente ofensivo da honra e consideração de VB , Inspetor-Geral de Finanças, ao dizer que pelo cargo que este último exerce no Conselho de Auditoria da Santa Casa da Misericórdia aufere ilegalmente mais 1200 euros por mês (para além do salário que aufere como Inspetor-Geral de Finanças) — o que é falso!
33ª. CBB refere-se ainda a VB  como sendo "o" "acumulador de cargos da administração pública", imputando-lhe um facto claramente falso — o de que este é quem mais acumula cargos na administração pública.
34ª. A afirmação da Arguida de que o Assistente tem "falta de vergonha" quanto à acumulação de funções é igualmente ostensivamente ofensiva.
35ª. Ora, é ofensivo e falso que o Inspetor-Geral de Finanças VB  tenha alguma vez acumulado funções ilegais e em conflito de interesses, e que alguma vez tenha agido de forma não isenta, com falta de retidão, de integridade ou de mérito.
36ª. Estas afirmações de CBB são ofensivas e falsas, pois as duas acumulações de funções que VB  teve encontram-se previstas na lei e foram exercidas em representação do próprio Estado/Ministério das Finanças, como sempre aconteceu ao longo de muitos anos com outros Inspetores-Gerais de Finanças.
37ª. As imputações de factos e as formulações de juízos feitas por CBB sugerem que o Inspetor-Geral de Finanças tem exercido as suas funções de forma ilegal, arbitrária, parcial, não isenta, com falta de mérito, de retidão e em desrespeito pela lei e pelas instituições do Estado, apenas com o intuito de favorecimento pessoal, em detrimento da prossecução do interesse público e da prossecução dos fins da IGF.
38ª. As afirmações de CBB a este respeito assumem ainda um carácter acrescido de ofensividade pelo facto de esta afirmar que VB  exerce as suas funções, sem que tenha qualquer mérito e competência para tal.
39ª. A Arguida não se limita a suscitar a dúvida, conforme refere a Meritíssima Juiz a quo, mas refere perentoriamente ("Não há dúvida nenhuma é totalmente incompatível") que VB  se encontra a exercer funções públicas de forma ilegal e não isenta desvirtuando as funções da IGF e prejudicando, com isso, os interesses desse serviço público e do próprio Estado, tudo para ele e outros obterem vantagens pessoais, o que é absolutamente FALSO e claramente ofensivo da sua honra e consideração.
40ª. É que é absolutamente falso que haja acumulações de funções ilegais, promiscuidades, conflitos de interesses e favorecimentos por parte do Assistente VB . E desde logo porque a competência para as nomeações que CBB considera ilegais pertence aos membros do Governo (e não ao Inspetor-Geral de Finanças), estão previstas na lei e sempre foram efetuadas ao longo dos anos, mesmo antes do atual Inspetor-Geral de Finanças ter iniciado o exercício das suas funções.
41ª. O supra exposto não corresponde à mera emissão de juízos de opinião, pois imputa-se falsamente e logo a alguém (VB , Inspetor-Geral de Finanças) que tem obrigações acrescidas de prossecução da legalidade, falta de integridade, falta de isenção e que exerce as suas funções de forma ilegal, persecutória e até com prejuízo para o interesse público.
42ª. Segundo a doutrina e jurisprudência maioritárias, na análise da verificação da tipicidade objetiva dos crimes contra a honra, difamação e injúria, deverá atender-se ao "contexto situacional" e ao "contexto sócio-cultural".
43ª. ,Atendendo ao contexto situacional em que as afirmações da Arguida foram proferidas e as pessoas envolvidas, que são pessoas de formação superior, ambas licenciadas, dirigentes superiores da administração pública, terá de concluir-se que as afirmações da Arguida são ofensivas da honra e consideração do Assistente.
44ª. Pois tais afirmações foram proferidas contra um Alto dirigente da administração pública e no exercício das suas funções e por causa delas, pelo que se exige que haja respeito institucional e contenção verbal, que foram totalmente desrespeitados pelo Arguida.
45ª. É pois inaceitável a ideia do Tribunal a quo de que a Arguida apenas se limitou a expressar dúvidas, discordâncias e questões quanto à forma de atuação do Inspetor-Geral de Finanças, porquanto o que fez foi fazer recair sobre o Assistente a imputação de factos e a emissão de juízos ofensivos da sua honra e consideração, tal como seriam ofensivos de qualquer outro Alto quadro da administração pública.
46ª. Como já vimos supra a decisão instrutória conclui juridicamente que não se encontra verificada a tipicidade subjetiva do crime de difamação, porquanto a Arguida não teria atuado dolosamente.
47ª. A este respeito o Tribunal a quo entra em clara e grave contradição, pois na mesma decisão refere que o crime de difamação não exige um dolo específico — um animus diffamandi — mas sim um dolo genérico, e logo a seguir refere que o crime de difamação não deixa de ser um crime doloso pois "exige o legislador para o seu cometimento a intenção voluntária de o agente proferir, perante terceiros, determinadas expressões, com o intuito de ofender, ou atingir a honra e consideração de outrem. Não está em causa o exercício de uma crítica, mas visa-se ofender a honra ou consideração do outro" (bold e sublinhados nossos).
48ª. O Tribunal a quo acaba por concluir que para o preenchimento da tipicidade subjetiva do crime de difamação é necessário que o agente tivesse agido com uma específica intenção de ofender ou atingir a honra e consideração de outrem, ou seja com um animus diffamandi (que apenas não qualifica como tal), o que é inaceitável, pois para o preenchimento do elemento subjetivo desse tipo penal basta o dolo genérico, ou seja, a representação mental pelo agente de que a imputação do facto ou o juízo formulado são ofensivos da honra ou da consideração do ofendido e a vontade de imputar o facto ou formular o juízo, o que ocorreu in casu.
49ª A Arguida representou mentalmente que estava a imputar factos e a formular juízos ofensivos da honra e da consideração do Assistente e atuou com vontade de imputar esses factos e formular esses juízos.
50ª. O que sucede é que a Arguida é, além de licenciada e Inspetora da Inspeção-Geral de Finanças, pessoa culta, escreve bem, com formação superior acima da média, e portanto não ofende com calão nem de forma primária, mas sim com insinuações e sugestões, com ironia, com perguntas retóricas e recurso à utilização de figuras de estilo, como hipérboles e metáforas.
51ª. A verificação do elemento intelectual do dolo in casu é ainda particularmente evidente, pelo facto de a Arguida exercer funções como Inspetora de Finanças há vários anos e conhecer o regime de acumulação de funções, pelo que sabia bem que as afirmações por si proferidas eram falsas.
52ª. O Tribunal a quo parece ainda confundir os pressupostos (que no seu errado entender estão verificados) que poderiam fundar a verificação da causa de justificação exercício de um direito com a análise jurídica acerca da verificação da tipicidade subjetiva (obviamente porque o Tribunal requer ilegalmente um animus diffamandi para considerar haver tipicidade) — quando refere que a Arguida não visou ofender a honra ou consideração do outro, mas a sua finalidade específica seria dar conta de uma situação que no seu entender seria passível de configurar comportamentos errados por parte do Assistente, tendo atuado no legítimo exercício do seu direito à liberdade de expressão.
53ª. Ainda que a conduta da Arguida CBB não tivesse o propósito específico de ofender VB  (e, contrariamente ao que se disse no Despacho recorrido, tudo revela o contrário) isso não exclui que ela estivesse consciente de que os factos imputados e os juízos formulados sobre o Recorrente eram falsos e ofensivos da honra e consideração deste e tivesse agido com vontade de imputar esses factos e formular esses juízos, perante terceiros e através de um meio que facilitava a sua divulgação, ou seja com o dolo (genérico) do tipo.
54ª. É igualmente inaceitável o entendimento pugnado pelo Tribunal a quo de que está em causa o exercício de um direito — o direito à liberdade de expressão.
55ª. As afirmações ofensivas e falsas proferidas pela Arguida relativamente ao Assistente VB  não têm qualquer fundamentação fáctica verdadeira, constituindo apenas imputações de factos falsos e censuráveis e uma crítica caluniosa que consiste na manifestação de um juízo de valor critico e excessivo, que faz a humilhação de uma pessoa, sem qualquer conexão nem com a obra ou com a prestação de tal pessoa, nem com a questão de interesse público em cujo contexto surgiu
56ª. Acresce que, as afirmações proferidas pela Arguida são claramente adequadas a desacreditar, desprestigiar e diminuir o bom nome do Inspetor-Geral de Finanças, VB , perante a opinião pública, tendo portanto tais afirmações e comentários um efeito vexatório e humilhante para o mesmo, sendo que a opinião pública que releva é a das pessoas que têm formação cultural para compreender a perfídia e a insídia da Arguida, nomeadamente outros altos quadros da Administração Pública.
57ª. Desta forma, as afirmações proferidas pela Arguida de forma alguma poderão ser incluídas no exercício da liberdade de expressão.
58ª. Resultam portanto dos autos indícios suficientes (como exigem, para a pronúncia, os artigos 308°, nos 1 e 2 e 283°, n° 2 do CPP) no sentido de existir a possibilidade razoável de à Arguida CBB vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
59ª. Nestes termos, deve o Despacho de não pronúncia ser revogado por esse Venerando Tribunal, devendo este ser substituído por Despacho que pronuncie a Arguida CBB pelo crime de difamação agravada, essencialmente nos termos da Acusação material contida no RAI apresentado pelo Assistente.
60ª. Para os efeitos previstos no artigo 412°, n° 2, alínea a) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo violou as seguintes normas jurídicas: artigos 119°, alínea e), 308°, nº 1 e 2, 283°, n° 3, todos do CPP, e artigos 31°, nº 1 e 2, alínea b), 14° e 180°, todos do CP.
61ª Para os efeitos previstos no artigo 412°, n° 2, alínea b) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo aplicou erroneamente as normas estatuídas nos artigos 119°, alínea e), 308°, nº 1 e 2, 283°, n° 3, todos do CPP, na medida em que, segundo a interpretação que parece ter feito destes preceitos, considerou que bastava proferir um despacho no qual declarasse aberta a fase de instrução e deferisse uma das diligências probatórias requeridas pelo Assistente no seu RAI (in casu a tomada de declarações ao Assistente), mas indeferindo a inquirição de todas as testemunhas arroladas pelo Assistente, para que estivesse a cumprir a decisão proferida pelo Tribunal superior, o qual revogou o Despacho anteriormente proferido e ordenou a sua substituição por outro que ordenasse a imediata abertura da instrução, devendo o Juiz de Instrução Criminal de 1 a instância ouvir as testemunhas arroladas pelo assistente e analisar todos os demais meios de prova por este oferecidos — o que não foi feito na decisão recorrida; e considerou que no Despacho de não pronúncia não é necessário fazer uma enunciação explícita e descriminada dos factos julgados indiciariamente provados e não provados, e nem sequer é necessário que o Juiz de Instrução se pronuncie sobre toda a matéria factual constante da Acusação em sentido material que integra o RAI apresentado pelo Assistente.
62ª. E ainda para os efeitos previstos no artigo 412°, n° 2, alínea b) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo interpretou erroneamente as normas dos artigos 31°, n°s 1 e 2, alínea b) e 14° e 180°, todos do CP, pois proferiu Despacho de não pronúncia contrariando frontalmente os indícios suficientes constantes dos autos, corroborados por prova documental, considerando erroneamente que a Arguida refere apenas opiniões e que o Assistente terá ficado suscetibilizado com tais afirmações, pelo que não estaria verificada a tipicidade objetiva nem subjetiva do crime de difamação, para além de ter considerado erroneamente que a Arguida agiu ao abrigo do direito à liberdade de expressão.
63ª. Para os efeitos previstos no artigo 412°, n° 2, alínea b) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo devia ter interpretado as normas dos artigos 119°, alínea e), 308°, nºs 1 e 2, 283°, n° 3, todos do CPP, no sentido de que a decisão proferida em recurso pelo Tribunal de instância superior, que ordene a substituição da decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância e que determine os termos da atuação do tribunal da 1ª instância, nomeadamente quanto à inquirição das testemunhas arroladas pelo Assistente, vincula o Tribunal de hierarquia inferior, devendo este cumprir a decisão do tribunal hierarquicamente superior — o que não foi feito na decisão recorrida — e no sentido de que no despacho de não pronúncia o juiz de instrução deve fazer uma enunciação explícita e descriminada dos factos julgados indiciariamente provados e não provados, devendo igualmente o Juiz de Instrução na decisão instrutória pronunciar-se sobre toda a matéria factual constante da Acusação em sentido material do RAI apresentado pelo Assistente — o que também não foi feito na decisão recorrida.
64ª. Para os efeitos previstos no artigo 412°, n° 2, alínea b) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo devia ter interpretado as normas dos artigos 31°, nos 1 e 2, alínea b) e 14° e 180°, todos do CP, no sentido de que o direito à liberdade de expressão e à critica não é absoluto e este não pode extravasar as suas finalidades e atingir de modo abusivo o núcleo essencial do direito à honra, bom nome e reputação, o que ocorre nos casos em as afirmações proferidas não têm qualquer fundamentação fáctica verdadeira, constituindo apenas imputações de factos censuráveis e falsos e uma crítica caluniosa que consiste na manifestação de um juízo de valor crítico, controverso e excessivo, que faz uma humilhação da pessoa, sem qualquer conexão com a obra, a prestação ou a questão de interesse público em cujo contexto surgiu e, bem assim, no sentido de que o crime de difamação não exige um específico animus diffamandi, mas apenas a representação mental pelo agente de que a imputação do facto ou o juízo formulado são ofensivos da honra ou da consideração e a vontade de imputar o facto ou formular o juízo, mesmo que o faça no exercício de um direito.
Nestes termos, e nos mais do Direito aplicável, deverá esse Venerando Tribunal declarar a nulidade do Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo em 29.09.2020, bem como a invalidade de toda a Instrução, incluindo da decisão instrutória entretanto proferida, que deve ser revogada, determinando-se o envio do processo para tramitação da instrução em 1.ª instância, para cumprimento do Acórdão de 25.06.2020 proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos nele referidos e supra mencionados, e determinando-se ainda a enunciação dos factos indiciariamente provados e não provados, de forma explícita, descriminada e fundamentada, determinando-se também que o Tribunal de 1ª instância se pronuncie sobre todas as imputações factuais descritas no RAI do Assistente (entre as quais as descritas nos artigos 30, 50, 1 -3 e 9° da Acusação em sentido material constante do RAI), e que tenha em consideração o elevado nível cultural da Arguida, do Assistente e dos típicos destinatários dos textos da Arguida que são altos quadros da Administração Pública, capazes de compreender ironias, subtilezas, perguntas retóricas, referências insidiosas e perfídias.
Subsidiariamente, deverá esse Venerando Tribunal revogar o douto Despacho de não pronúncia recorrido, e caso se considere em condições de conhecer de mérito, modificar a matéria de facto julgada indiciariamente provada (que deve passar a ser a alegada na Acusação material que consta do Requerimento de Abertura de Instrução do Assistente) e, aplicando corretamente o Direito vigente, determinar que se pronuncie a Arguida pelo crime de difamação agravada, essencialmente nos termos constantes do Requerimento de Abertura de Instrução, assim se fazendo JUSTIÇA.
*
A Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo:
1. O objectivo imediato da instrução é apenas a comprovação judicial do despacho de arquivamento.
2. O despacho recorrido não violou qualquer norma legal.
3. A matéria de facto indiciada não permite julgar preenchidos os elementos objectivos do crime de difamação agravado e, como tal, não permite concluir pela probabilidade da arguida vir a ser condenada.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida.
*
Nesta Relação, o Digno Procurador-geral Adjunto proferiu douto parecer, nos termos e fundamentos seguintes:
1. O assistente VB  interpôs recurso da decisão instru-tória de não pronúncia da arguida CBB pela prática de um crime de difamação agravada p. e p. pelos artigos 180.°, n.° 1, 183.°, n.° 1, alínea a) e 184.°, por referência ao artigo 132.°, n.° 2, alínea l), todos do Código Penal [referência processual 28607549 (02-03-2021)].
Nas suas razões:
- O despacho que declarou a abertura de instrução é nulo nos termos do artigo 119.°, alínea e), do Código de Processo Penal [conclusões 1.ª a 8.ª];
- A decisão instrutória é nula nos termos dos artigos 308.°, n.°s 1 e 2, e 283.°, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal [conclusões 9.ª a 14.ª];
- A decisão instrutória é irregular [conclusões 15.ª a 19.ª];
- Os factos indiciados nos autos e narrados no requerimento de abertura de instrução congregam a totalidade dos pressupostos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de difamação agravada [conclusões 20.ª e seguintes].
2. O Ministério Público respondeu ao recurso [referência processual 29216392 (11-05-2021)] mas o Mm.° juiz de instrução considerou a resposta intempestiva e ordenou que fosse desentranhada dos autos [referência processual 405542319 (14-05-2021)].
3. Parecer.
3.1. Da nulidade do despacho que declarou a abertura de instrução nos termos do artigo 119.°, alínea e), do Código de Processo Penal.
Diz o recorrente que o despacho de 29 de Setembro de 2020, na parte em que indefere a inquirição das testemunhas arroladas no requerimento de abertura de instrução, não respeita o determinado no acórdão de 25 de Junho de 2020 do Tribunal da Relação de Lisboa e, como tal, padece de nulidade insanável nos termos do artigo 119.°, alínea e), do Código de Processo Penal.
A consulta dos autos desvela que:
a) Na sequência do despacho de arquivamento do Ministério Público [referência processual 388223517 (26-02-2019)], o assistente, ora recorrente, CBB  requereu a abertura de instrução, solicitando a sua inquirição e a de cinco testemunhas e peticionando a pronúncia da arguida CBB pela prática de um crime de difamação agravada p. e p. pelos artigos 180.°, n.° 1, 183.°, n.° 1, alínea a), 184.° e 132.°, n.° 2, alínea l), todos do Código Penal [referência processual 23913291 (10-09-2019)];
b) Liminarmente, a Mm.ª juiz de instrução decidiu que «[a] denunciad[a] não pode ser criminalmente responsável por qualquer dos crimes que se lhes imputam no RAI» e determinou «o arquivamento dos autos, ficando prejudicada a realização da presente instrução» [referência processual 391341939 (29-10-2019)];
c) O assistente interpôs recurso deste despacho [referência processual 24853501 (05-12-2019)] e o Tribunal da Relação de Lisboa, em 25 de Junho de 2020, concedeu provimento ao recurso, «revogando o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro que ordene a imediata abertura de instrução» [referência processual 15798519 (25-06-2020)];
Lê-se no corpo fundamentador do douto acórdão que:
(...)Assim, a decisão recorrida, para além de precipitada, no sentido de ter sido proferida em momento processual desajustado, é, também, manifestamente infundada, compreendendo juízos que só poderão ser formulados, eventualmente, após a realização dos respectivos actos instrutórios, designadamente os solicitados pelo assistente/recorrente.
(...) O Mm.º JIC deverá ouvir as testemunhas arroladas pelo assistente e analisar todos os demais meios de prova por este oferecidos, só após podendo proferir uma decisão, que haverá de ser, necessariamente, sustentada de forma crítica e com argumentos que objectivamente se “imponham” à consciência dos respectivos destinatários.
(...)
d) Depois dos autos baixarem à 1.ª instância, a Mm.ª juiz de instrução, em 20 de Setembro de 2020, proferiu o seguinte despacho [referência processual 399157544 (20-09-2020)]:
(...)Em obediência ao doutamente decidido pelo TRL, declaro aberta a instrução.
Not.
Dos elementos probatórios requeridos: tendo em conta o objecto do processo – em causa a eventual prática de crime de difamação, consubstanciada em afirmações publicadas na rede social facebook, a prova a analisar é essencialmente de natureza documental.
Afigura-se-nos, pois, não se revelar útil ao desfecho dos presentes autos a inquirição das testemunhas arroladas.
Indefere-se, pois, o seu depoimento.
Para declarações ao assistente designo o próximo dia 23 Novembro, pelas 10.00. Não se antevendo a necessidade de produzir outra prova, realizar-se-á, de seguida, o debate instrutório.
(...)
e) Na sequência de adiamento, em 5 de Janeiro de 2021 foram tomadas declarações ao assistente [referência processual 401637077 (05-01-2021)], em 20 de Janeiro de 2021 teve lugar o debate instrutório [referência processual 402095788 (20-01-2021)] e em 22 de Janeiro de 2021 foi proferida a decisão instrutória sob recurso [referência processual 402219951 (22-01-2021)].
Nos termos da lei, os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores [v. os artigos 4.°, n.° 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.° 21/85, de 30 de Julho, e 4.°, n.° 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.° 63/2013, de 26 de Agosto].
No caso em apreço, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou o despacho da Mm.ª juiz de instrução que ordenara o arquivamento do processo e determinou que o mesmo fosse substituído por outro que declarasse a abertura de instrução e procedesse aos actos instrutórios solicitados pelo assistente, nomeadamente, a audição das testemunhas arroladas pelo mesmo.
Todavia, a Mm.ª juiz de instrução, só em parte acatou a decisão do tribunal superior na medida em que indeferiu a inquirição das testemunhas arroladas pelo assistente por reputar a diligência de inútil.
Ora, ao assim proceder, a Mm.ª juiz violou «as regras da hierarquia funcional em que os Tribunais se estruturam e, consequentemente, as regras da competência em razão dessa hierarquia. Esta violação das referidas regras, pela sua gravidade, põe em causa o fim último do Processo Penal: a realização da Justiça através da produção adequada à verdade material (...). Assim, no processo foi cometida uma nulidade absoluta, tipificada no art. 119.°, al. e) do CPP: violação das regras de competência hierárquica do Tribunal» [acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Março de 2009, apud acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Outubro de 2014, processo 1155/09.4TBVRL.P1, www.dgsi.pt].
Nos termos do artigo 119.° do Código de Processo Penal, as nulidades insanáveis podem e devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.
Segundo o artigo 122.° do Código de Processo Penal:
1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.
À vista do que antecede, deve, então, ser declarada a nulidade do douto despacho de 20 de Setembro de 2020 [referência processual 399157544 (20-09-2020)] e dos que se seguiram, com ressalva da inquirição do assistente [referência processual 401637077 (05-01-2021)].
Caso assim não se entenda, analisemos as restantes questões colocadas pelo recorrente.
3.2. Da nulidade da decisão instrutória nos termos dos artigos 308.°, n.°s 1 e 2, e 283.°, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
Diz o recorrente que da decisão instrutória não consta «a enunciação dos factos indiciariamente julgados provados e não provados, de forma explícita e descriminada» o que constitui nulidade ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 308.°, n.°s 1 e 2, e 283.°, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
Preceitua o artigo 308.°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Penal:
1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.°s 2, 3 e 4 do artigo 283.°, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.° 1 do artigo anterior.
(...)
O artigo 283.°, n.° 3, alínea b), do Código de Processo Penal, por sua vez, esta¬belece que:
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
(...)b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
(...)
Importa ainda transcrever o disposto no artigo 307.°, n.° 1, do Código de Processo Penal:
1 - Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.
(...)
Lê-se na decisão instrutória que:
(...)O Tribunal sopesou todo o suporte documental carreado para os autos em sede de inquérito e instrução, relativo à ofensa de que alega o Assistente ter sido alvo por parte da Arguida, únicos elementos com real interesse para a resolução do objecto da presente instrução: se há, ou não indícios suficientes da prática de um crime de difamação.
Não é posto em causa nos autos a publicação, por parte da arguida, das expressões/comentários constantes do RAI, sendo certo que os elementos documentais fundam a existência de fortes indícios (pois que nos encontramos em sede de instrução) da ocorrência daquelas publicações, de onde constam as expressões que o assistente considera ofensivas.
(...)Assim, a questão a resolver consiste em saber qual o relevo jurídico-penal a atribuir a tais escritos.
(...)
Como se pode verificar, a Mm.ª juiz de instrução não deixa de narrar os factos que considera suficientemente indiciados [«os elementos documentais fundam a existência de fortes indícios (...) da ocorrência daquelas publicações, de onde constam as expressões que o assistente considera ofensivas»].
Estava obrigado a enumerar expressamente o conteúdo de cada uma das publicações e expressões em causa?
A resposta perspectiva-se como negativa.
Com efeito, os artigos 308.°, n.° 2, e 307.°, n.° 1, 2.ª parte, do Código de Processo Penal, anteriormente transcritos, permitem que a fundamentação, nomeadamente quanto aos factos que se consideram suficientemente indiciados, possa ser feita por remissão para o requerimento de abertura de instrução [onde tais publicações e locuções estão reproduzidas – v. os respectivos artigos 2.° a 9.°].
Nesta parte, a decisão recorrida não merece censura.
3.3. Da irregularidade da decisão instrutória
Diz o recorrente que a decisão instrutória padece de irregularidade nos termos do artigo 118.°, n.° 2, e 123.° do Código de Processo Penal em virtude de a Mm.ª juiz de instrução não se ter pronunciado sobre cada uma das imputações factuais constantes do requerimento de abertura de instrução.
Esta questão está associada à anterior.
Conforme visto, a Mm.ª juiz de instrução, considerou que existiam «fortes indícios (...) da ocorrência daquelas publicações, de onde constam as expressões que o assistente considera ofensivas» mas, em sede de apreciação jurídica, entendeu, essencialmente, que «as concretas afirmações [todas elas] não são objectivamente ofensivas da honra e consideração» e que a arguida actuou «no legítimo exercício de um seu direito – o de liberdade de expressão».
Daí que, contrariamente ao preconizado pelo recorrente, não tenha omitido pronúncia sobre qualquer um dos factos imputados à arguida no requerimento de abertura de instrução.
De resto, a ter havido omissão de pronúncia, a correspondente irregularidade estaria sanada por não ter sido tempestivamente arguida [artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].
3.4. Do crime de difamação agravada
Neste ponto, o Ministério Público adere à argumentação do recorrente, que dispensa quaisquer considerações adicionais, e entende que a arguida deve, efectivamente, ser pronunciada pelo crime de difamação agravada que lhe é imputado no requerimento de abertura de instrução.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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2. De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
 O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à questão de saber:
- O despacho que declarou a abertura de instrução é nulo nos termos do artigo 119.°, alínea e), do Código de Processo Penal [conclusões 1.ª a 8.ª];
- A decisão instrutória é nula nos termos dos artigos 308.°, n.°s 1 e 2, e 283.°, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal [conclusões 9.ª a 14.ª];
- A decisão instrutória é irregular por omissão de pronúncia [conclusões 15.ª a 19.ª];
- Os factos indiciados nos autos e narrados no requerimento de abertura de instrução congregam a totalidade dos pressupostos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de difamação agravada [conclusões 20.ª e seguintes].
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3. Quanto à nulidade da decisão instrutória, nos termos do artigo 119.°, alínea e), do Código de Processo Penal.
Para uma correcta decisão da questão equacionada, importa conhecer os antecedentes do douto despacho recorrido.
Em 9.09.2019 o Assistente apresentou Requerimento de Abertura de Instrução nos presentes autos.
Em 30.10.2019 a Meritíssima Juiz de Instrução a quo rejeitou liminarmente o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Assistente, com o fundamento de que, atendendo aos factos invocados nesse mesmo Requerimento, a Arguida não podia ser criminalmente responsável pelo crime que se lhe pretendia ver imputado, pelo que determinou o arquivamento dos autos, ficando prejudicada a realização da presente instrução.
Desse Despacho foi interposto recurso pelo Assistente para este Tribunal em 4.12.2019, tendo sido concedido provimento ao recurso, por Acórdão proferido em 25.06.2020, que veio revogar o referido Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo em 30.10.2019, e ordenou a sua substituição por outro que ordenasse a imediata abertura da instrução, referindo tal decisão expressamente o seguinte (cfr. pág. 14 quarto parágrafo do douto Acórdão): "O Mm°. Juiz deverá ouvir as testemunhas arroladas pelo assistente e analisar todos os demais meios de prova por este oferecidos, só após podendo proferir uma decisão, que haverá de ser, necessariamente, sustentada de forma crítica e com argumentos que objectivamente se "imponham" à consciência dos respectivos destinatários".
Em 29.09.2020 a Meritíssima Juiz a quo proferiu Despacho, declarando aberta a instrução requerida pelo Assistente, indeferindo a inquirição de todas as testemunhas arroladas pelo Assistente no seu Requerimento de Abertura de Instrução (limitando-se a admitir a tomada de declarações ao Assistente) e logo designou data para a realização do debate instrutório, tendo sido proferida, em 22.01.2021, nova decisão instrutória de não pronúncia.
Como vimos, no caso em apreço, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou o despacho da Mm.ª juiz de instrução que ordenara o arquivamento do processo e determinou que o mesmo fosse substituído por outro que declarasse a abertura de instrução e procedesse aos actos instrutórios solicitados pelo assistente, nomeadamente, a audição das testemunhas arroladas pelo mesmo.
Todavia, a Mm.ª juiz de instrução, só em parte acatou a decisão do tribunal superior na medida em que indeferiu a inquirição das testemunhas arroladas pelo assistente por reputar a diligência de inútil.
Ou seja, o Tribunal a quo, em clara violação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.06.2020, proferiu um despacho no qual indeferiu a inquirição de todas as testemunhas arroladas pelo Assistente no seu Requerimento de Abertura de Instrução (limitando-se a admitir a tomada de declarações ao Assistente e a designar data para a realização do debate instrutório) — com o fundamento de que "Dos elementos probatórios requeridos: tendo em conta o objeto do processo — em causa a eventual prática de crime de difamação, consubstanciada em afirmações publicadas na rede social Facebook, a prova a analisar é essencialmente de natureza documental.
Afigura-se-nos, pois, não se revelar útil ao desfecho dos presentes autos a inquirição das testemunhas arroladas. Indefere-se, pois, o seu depoimento", porquanto, nos termos da lei, os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores [v. os artigos 4.°, n.° 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.° 21/85, de 30 de Julho, e 4.°, n.° 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.° 63/2013, de 26 de Agosto].
Ora, ao assim proceder, a Mm.ª juiz violou as regras da hierarquia funcional em que os Tribunais se estruturam e, consequentemente, as regras da competência em razão dessa hierarquia.
Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 18.03.2009 (citado no Acórdão deste mesmo Tribunal, de 30.10.2014, disponível em www.dgsi.pt), "A decisão proferida, em recurso, pelo Tribunal de superior Instância, confirmando, ou alterando a decisão recorrida; ordenando — se disso for o caso — a repetição total do Julgamento ou a repetição apenas parcial (delimitada às questões nela definidas), vincula o Tribunal de hierarquia inferior, impendendo sobre o Juiz titular do mesmo o dever de cumprir e acatar essa decisão. Não o fazendo — e analisada a questão, estritamente, do ponto de vista jurídico-processual —, viola as regras da hierarquia funcional em que os Tribunais se estruturam e, consequentemente, as regras da competência em razão dessa hierarquia. Esta violação das referidas regras, pela sua gravidade, põe em causa o fim último do Processo Penal: a realização da Justiça através da produção adequada à verdade material (não obstante, no caso estarmos perante uma "bagatela penal'). Assim, no processo foi cometida uma nulidade absoluta, tipificada no art 119º, al. e) do CPP: violação das regras de competência hierárquica do Tribunal. A comissão dessa nulidade determina a invalidade do segundo Julgamento e da Sentença que no termo do mesmo foi proferida (a aqui sob apreciação), tendo o procedimento de regressar à fase de cumprimento do Acórdão por esta Relação proferido, efectuando-se novo Julgamento para averiguação e decisão das questões supra identificadas, sendo proferida a adequada decisão de Direito, quer quanto à matéria criminal, quer quanto ao pedido de indemnização civil".
Nos termos do artigo 119º do Código de Processo Penal, as nulidades insanáveis podem e devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.
Segundo o artigo 122.° do Código de Processo Penal:
1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.
Face ao exposto, o Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo em 29.09.2020 padece do vício de nulidade insanável, nos termos do artigo 119°, alínea e) do CPP, por violação das regras de competência hierárquica do tribunal.
Esta nulidade determina a invalidade de toda a Instrução, incluindo da decisão instrutória entretanto proferida, nos termos do artigo 122°, n° 1 do CPP, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
*
 4. Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal (5ª) deste Tribunal em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, declarar a nulidade do Despacho proferido pela Meritíssima Juiz a quo em 29.09.2020, bem como a invalidade de toda a Instrução, incluindo da decisão instrutória entretanto proferida, revogando-se a mesma, determinando-se o envio do processo para tramitação da instrução em 1ª instância, para cumprimento do Acórdão proferido em 25.06.2020 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos nele referidos e supra mencionados.
Sem tributação.
 
Lisboa, 21 de Setembro de 2021
Cid Geraldo
Ana Sebastião