Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4/17.4SVLSB-B.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: DECISÃO DE MÉRITO
CORRECÇÃO DA DECISÃO
PERDA DE BENS
RESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – A decisão sobre a perda de bens é uma decisão de mérito e, portanto, se a sentença não se pronuncia sobre a questão, esta falta não pode ser suprida com recurso ao mecanismo do art.º 380 do CPP;
II - A falta de decisão quanto aos bens apreendidos é resolvida pela própria lei, que prevê expressamente que, nesses casos, “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, ... .” (art.º 186º/2 do CPP).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Juízo de Central Criminal de Lisboa, por despacho de 10/10/2019, constante de fls. 83, sobre requerimento de II, foi decidido o seguinte:
“… No acórdão proferido nos autos não ficou provado que o veículo automóvel de matrícula …………… se relacionasse com a prática dos factos pelos quais os arguidos foram condenados. Tal resulta da leitura da factualidade que, nessa decisão, resultou provada e não provada. Deste modo, inexiste qualquer lapso ou obscuridade que possibilite a respectiva correcção, por não estarem verificados os pressupostos previstos no art. 380°, nº 1, al. b), do CPP.
Por conseguinte, não se encontrando provados, no acórdão proferido nos autos, factos que permitam declarar a perda do veículo a favor do Estado (nos termos do disposto nos arts. 35º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, e 109º, nº 1, do Código Penal), determino o levantamento da respectiva apreensão e a sua restituição à requerente de fls. 3981, titular inscrita da viatura, nos termos previstos no art. 186°, nºs 2 e 3, do CPP. …”.
*
Não se conformando, o Exm.º Magistrado do MP[1], interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 92/100, com as seguintes conclusões:
“… a) Como resulta do douto Acórdão transitado em julgado, não foi aí dado destino ao veículo automóvel de matrícula ……………., impondo o art. 374º, nº 3, al. c), do C.P.P. (requisitos da sentença), que a sentença termina pelo dispositivo que contém a indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime.
b) Tem precisamente o art. 380º, nº 1, al. a), do C.P.P., aplicação nas situações em que se imponha, verificados os respetivos pressupostos, a correção da sentença em conformidade mesmo após o trânsito em julgado respetivo, uma vez que dispõe o nº1, al. a) do preceito que o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando, fora dos casos previstos no artigo anterior (art.379.º - Nulidade da sentença), não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º.
c) E, nos termos do art. 135º, nº 2, al. d), da LOSJ, compete ao Juiz presidente do Tribunal Coletivo que proferiu o Acórdão, suprir as deficiências das sentenças e dos acórdãos referidos nas alíneas anteriores, esclarecê-los, reformá-los e sustentá-los nos termos das leis de processo.
d) Ao não ter sido corrigido o Acórdão nos termos das referidas disposições legais, não tendo sido acolhido o promovido a fls.3989, ocorreu a violação do disposto nos arts. 380º, nº 1, al. a), e 374º, nº 3, al. c), do C.P.P., correção essa que teria de ser efetuada pelo Juiz presidente do Tribunal Coletivo que proferiu o Acórdão sob pena de nulidade insanável por violação do art. 135º, nº 2, al. d), da LOSJ, nos termos e com os efeitos consagrados nos arts. 119º, al. e), e 122º, do C.P.P..
e) Veio II, a fls.3981, invocando a qualidade de interveniente acidental, alegar para requerer a devolução do veículo de marca ………….., com a matrícula ……………, ser sua proprietária, ter sido apreendido ao seu marido DD  e desconhecer a sua utilização para além do normal funcionamento.
f) Ora, num primeiro momento, há que ser definido na sentença, ou em sede da sua correção posterior por aplicação dos referidos normativos legais como no caso, se o objeto apreendido está ou não relacionado num registo de essencialidade com o crime, face ao disposto nos arts. 109º do C.P. e 35º do D.L. nº 15/93, de 22/01 e, num segundo momento, ainda na sentença, ou em sede da sua correção posterior, importará de seguida decidir o destino do objeto,
g) ou a declaração de perda a favor do Estado, se se concluir que o objeto apreendido está relacionado com o crime numa relação de essencialidade, tendo-se ainda presente a necessidade de aplicação do disposto nos art. 111º do C.P. tratando-se de bem pertença de terceiro, o que tem de resultar inequivocamente provado nos autos,
h) ou a entrega ao seu assim comprovado legítimo proprietário.
i) O terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou objetos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infrações previstas no D.L. nº15/93, de 22/01, pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa fé, indicando logo todos os elementos de prova, entendendo-se por boa fé a ignorância desculpável de que os objetos estivessem nas situações previstas no n.º 1 do artigo 35.º do mesmo diploma legal.
j) Ou seja, parece-nos inegável que sempre o requerente terá de comprovar nos autos o que alega em abono da pretensão formulada, indicando logo todos os elementos de prova, o que no caso não se verificou, cujos pressupostos estão assim por demonstrar terem-se verificado, desde logo quanto ao invocado desconhecimento da utilização da sua viatura pelo arguido, seu marido, para além do normal funcionamento.
l) E, no caso, a requerente não fez prova do alegado desconhecimento de tal utilização da sua viatura para além do normal funcionamento.
m) Posto isto, no que ao caso importa, da matéria de facto provada decorre inequivocamente que o objeto apreendido está relacionado com o crime, face ao disposto nos arts. 109º do C.P. e 35º do D.L. nº 15/93, de 22/01, verificando-se inclusive o requisito «essencialidade», traduzido na circunstância de o bem em causa ser necessário ao surgimento do ilícito penal ou, pelo menos, à sua manifestação de determinado modo.
n) Na verdade, sem o concurso da viatura automóvel em causa o crime de tráfico de estupefacientes não teria ocorrido, face:
- Às movimentações e contactos que proporcionou com vista à boa prossecução da conduta de todos atentos os fins pretendidos.
- À deslocação na mesma para Monsanto, essencial para o transbordo e transporte da quantidade de produto estupefaciente, dinheiro demais objetos nela transportados e apreendidos.
- E, posteriormente, à proporcionada fuga e sua consumação com êxito, o que só não ocorreu nos seguintes termos constantes dos factos provados:
Percebendo a iminente abordagem por agentes policiais, o arguido DD iniciou a marcha do veículo em alta velocidade, para contornar o bloqueio estabelecido pelos agentes policiais e na Estrada da Circunvalação, circulou cerca de 50 (cinquenta) metros fora da estrada, arremessando entretanto para fora do veículo um objecto que não se logrou recuperar.
Por fim, o arguido viu-se obrigado a imobilizar o veículo e encetar fuga a pé, sendo imobilizado a cerca de 100 (cem) metros, na Praça Contra-Almirante Vítor Crespo.
E foi nestas circunstâncias que o arguido DD trazia, no veículo de matrícula …………, o que lhe foi apreendido nos termos documentados nos autos e dados como provados.
o) Daqui partindo, ou seja, de que o objeto apreendido está relacionado com o crime numa relação de essencialidade, impõe-se passar para a fase seguinte da decisão num percurso lógico decisório, de modo a se saber se a requerente da devolução do veículo, para mais tendo a invocada relação conjugal com o arguido DD, nesse contexto íntimo matrimonial, desconhecia a sua utilização pelo marido para além do normal funcionamento.
p) Ou seja, se:
- Concorreu, ou não, de forma censurável, para a sua utilização, ou do facto tirou benefícios, para efeitos do disposto no art. 111º, nº 2, al. a), do C.P..
- Atuou de boa fé, tida esta como a ignorância desculpável de que o objeto estivesse em situação prevista no n.º 1 do artigo 35.º, para efeitos de aplicação do art. 36º-A, ambos do D.L. nº15/93.
q) E dos autos parece-nos resultar inequívoco que, partindo do princípio de que o objeto tem relação essencial com o crime, tendo a requerente a invocada relação conjugal com o arguido DD, nesse contexto íntimo matrimonial, à luz das regras da experiência, conhecia a concreta, provada, repetida utilização da sua viatura pelo arguido, seu marido, ao qual facultou para o efeito a sua utilização, não estando em situação de ignorância desculpável de que o objeto estivesse em situação prevista no n.º 1 do artigo 35.º do D.L. nº15/93,
r) e, por conseguinte, deve a viatura em causa ser declarada perdida a favor do Estado.
s) Ainda que tal não se considere, ao menos impõe-se à requerente fazer prova do que alega nesta parte, ou seja, o desconhecimento da utilização da sua viatura pelo arguido, seu marido, para além do normal funcionamento, o que manifestamente não comprovou nos autos.
t) Pelo que, resultando inequívoco que no caso se verificou violação dos arts. 109º e 111º do C.P., 35º, 36º-A e 39º do D.L. nº15/93, de 22/01, e 380º, nº 1, al. a), por referência ao art. 374º, nº 3, al. c), ambos do C.P.P., deverão V. Exas. conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido e substituí-lo por outro que decida em conformidade com as conclusões que antecedem, assim fazendo a habitual JUSTIÇA! …”.
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Neste tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 105/109, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela procedência do recurso.
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É pacífica a jurisprudência do STJ[2] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[3], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:
I – Nulidade do despacho recorrido, por incompetência material do Juiz que o proferiu;
II – Manutenção do despacho que determinou a devolução do veículo de matrícula ………….. à Requerente.
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Cumpre decidir.
I – Entende o Recorrente que o despacho recorrido padece de nulidade, por falta de competência material do Juiz que o proferiu.
É verdade que o acórdão de fls. 5/46, de 21/01/2019, que transitou em julgado em 24/07/2019, não deu destino ao referido veículo que se encontrava apreendido.
Mas, contrariamente ao que entende o MP, tal falta não pode ser suprida pela correcção da decisão (art.º 380º do CPP), uma vez que a decisão sobre a perda de bens é uma decisão de mérito e, quando muito, constituiria omissão de pronúncia, se o MP tivesse pedido expressamente a declaração de perda do referido bem, que deveria ter sido arguida nos termos do art.º 379º do CPP.
Ora, o MP conformou-se com a referida decisão, dela não tendo interposto recurso, nem arguido a referida omissão de pronúncia.
Para além disso, a própria lei prevê solução para os casos em que o tribunal não declara, expressamente, perdido qualquer bem apreendido (art.º 186º/2 do CPP, que determina que “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.”).
Por isso, o objecto do despacho recorrido não é a correcção do acórdão referido, pelo que não se verifica a invocada incompetência material do decisor.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
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II - O MP entende que o veículo em causa deve ser declarado perdido a favor do Estado, apesar de o não ter sido no acórdão referido.
Ora, os bens apreendidos em processo penal só podem ser declarados perdidos até ao trânsito da decisão final respectiva, salvo se se tratar de bens que, pela sua natureza, não podem ser detidos por quem os pretende reaver[4].
Como vimos, o acórdão aqui em causa não declarou perdido o referido veículo e transitou em julgado.
Por isso, aplica-se o disposto no art.º 186º/2 do CPP, que determina a restituição dos bens apreendidos que não tenham sido declarados perdidos a favor do Estado, que foi, precisamente o que o despacho recorrido ordenou, pelo que improcede, também nesta parte, o recurso.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos o despacho recorrido.
Sem custas.
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
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Lisboa, 02/07/2020
João Abrunhosa
Maria Leonor Botelho
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[1] Ministério Público.
[2] Supremo Tribunal de Justiça.
[3]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[4] Nesta matéria, por concordarmos com os respectivos argumentos, seguimos a jurisprudência maioritária, sufragada e citada no acórdão da RP de 12/07/2017, relatado por Luís Coimbra, no proc. 803/14.9JABRG.P2, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “… Saber se após a prolação da sentença transitada em julgado (que foi totalmente omissa quanto ao destino a dar aos objectos apreendidos) podem ainda ser declarados perdidos a favor do Estado os bens apreendidos nos autos.
Por várias vezes esta questão foi apreciada pelos Tribunais da Relação em diversos arestos que concluíram no sentido de que os objectos apreendidos, cujo destino não tenha sido definido na sentença já transitada em julgado, devem ser restituídos a quem de direito, a menos que a sua detenção por particulares seja proibida (cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos desta Relação do Porto de 30.06.2004 (Proc 0413638, rel. Fernando Monterroso); de 17-05-2006 (Proc. 0610514, rel. Joaquim Gomes) e de 20.01.2014 (Proc. 549/11.0JAPRT-A.P1, rel. Artur Oliveira); os Acórdãos da Relação de Évora de 16.04.2013 (Proc. 28/11.5GBORQ.E1, rel. Sénio Alves) e de 12-04-2016 (Proc. 1072/11.8 GTABF-B.E1, rel. Maria Filomena Soares); e os Acórdãos da Relação de Guimarães 12-01-2009 (Proc. 2200/08.2, rel Filipe Melo), de 28-9-2009 (Proc. 2143/05.5TBBCL, rel. Ana Paramés), de 17.01.2011 (Proc. 1168/03.0PBGMR, rel. Maria Isabel Cerqueira) e de 21.10.2013 (Proc. 316/09.0JABRG-F.G1, rel. António Condesso) - todos acessíveis in www.dgsi.pt). No mesmo sentido, veja-se ainda o acórdão da Relação de Guimarães de 07.02.2011 (proferido no Proc 741/02.8TDPRTR-S.G1, rel Luísa Arantes, desconhecendo-se da sua publicação).
Aderindo ao entendimento sufragado em tais acórdãos, e por nos revermos com a explanação exposta no, também já mencionado, acórdão da Relação de Évora de 16.04.2013, que tem enquadramento no nosso caso, passamos a reproduzir o que a dado nele se escreveu:
“Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se:
“a) Omissa na sentença condenatória a declaração de perdimento de bens apreendidos, é possível decidi-lo em despacho posterior?
b) Perante resposta afirmativa, justificava-se, no caso, a declaração de perdimento de tais objectos a favor do Estado?
No que à primeira questão diz respeito:
Estatui-se no artº 374º, nº 3, al. c) do CPP que a sentença termina pelo dispositivo que contém “a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime”.
De outro lado, manda o nº 2 do artº 186º do CPP que “logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”.
Foi precisamente com invocação deste último normativo que o recorrente peticionou a restituição dos objectos apreendidos, posto que não declarados perdidos na sentença condenatória (entretanto transitada em julgado).
Ora, num ponto todos estaremos seguramente de acordo: o momento correcto para dar destino aos objectos apreendidos é a sentença. É isso que claramente resulta dos dois dispositivos acabados de citar. E é isso que igualmente decorre do evoluir normal do processo: é na sentença, após fixação da matéria assente, que se há-de decidir se determinado objecto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas – artº 109º, nº 1 do Cod. Penal.
Ora, não tendo sido ordenado o perdimento a favor do Estado de determinados bens apreendidos no tal momento correcto que é a sentença, é possível fazê-lo em momento posterior, por simples despacho?
Há que distinguir:
Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no artº 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no artº 186º, nº 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe.
Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.
Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.
Sejamos claros:
Um arguido condenado numa pena de 40 dias de multa à razão diária de €5,50 (como sucedeu in casu) poderá não ter real interesse em recorrer da sentença. Ponderadas as hipóteses de sucesso de um eventual recurso e os custos inerentes a essa fase processual, a prudência aconselhará alguma contenção processual e uma resignação que, contudo, não significará necessariamente aceitação. Dito de outro modo: embora não concordando com a decisão, o arguido poderá considerar que “sai mais barato” pagar a multa em que foi condenado do que suportar os custos inerentes ao recurso e a um eventual decaimento no mesmo.
Ora, deixando assim transitar em julgado a sentença condenatória, se mais tarde for confrontado com uma declaração de perdimento de objectos com valor eventualmente superior ao próprio montante da multa em cujo pagamento foi condenado o seu direito ao recurso só formalmente lhe estará assegurado. Poderá efectivamente recorrer da decisão que declarou o perdimento (como sucedeu neste processo); porém, os pressupostos de que dependia a declaração de perdimento já se mostram fixados numa decisão anterior, transitada em julgado, contra a qual não pode agora reagir. Dito de outro modo: o prejuízo – o verdadeiro prejuízo – para o arguido surge numa decisão complementar da sentença proferida; mas a forma de contra a mesma reagir implicaria a impugnação da matéria de facto fixada numa sentença já transitada.
Posto que os objectos apreendidos sejam de detenção lícita por particulares (como sucede no caso em apreço), a omissão de pronúncia quanto ao destino a dar-lhes em sentença transitada em julgado determina, nos termos do artº 186º, nº 2 do CPP a sua restituição “a quem de direito”, isto é, aos seus proprietários.
Se o MºPº entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira.
Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no artº 186º, nº 2 do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos. (…)” …”.
Em sentido contrário, só encontrámos o acórdão da RP de 06/04/2011, relatado por Ricardo Costa e Silva, no proc. 538/06.6GNPRT.P1, in www.dgsi.pt, com a seguinte fundamentação: “… A tese de que o poder jurisdicional do juiz relativamente ao destino a dar aos objectos apreendidos se esgota com o trânsito em julgado da sentença, leva, no limite, a um impasse legal, situação que qualquer sistema legal rejeita.
Dispondo o art.º 186.º, n.º 1, parte final, do CPP, que os objectos apreendidos são restituídos “a quem de direito” e, no caso de produtos do crime, substância ilegais, e objectos perigosos, não sendo possível entregar tais objectos “a quem de direito”, porque ninguém pode arrogar-se o direito a possuí-los (excepção feita, naturalmente, aos casos de produtos do crime que pertençam legalmente a terceiros não implicados), quid juris?
Nestes casos, será defensável que, quando na decisão final não for, por omissão, dado destino aos objectos e, por inadvertência, se deixar transitar a decisão, tal destino já não possa ser dado após esse trânsito em julgado? E os objectos? Ficarão eles remetidos para uma espécie de limbo jurídico? Este resultado seria absurdo e contrariaria as pretendidas e afirmadas completude e harmonia do sistema.
Este dilema foi resolvido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2006/05/17, processo n.º 0610514, relator Joaquim Gomes, consultável em http://www.dgsi.pt (nº convencional: JTRP00039178), através da dicotomia entre bens proibidos e bens permitidos, bem expressa no sumário publicado:
«Os bens apreendidos no processo penal, desde que não sejam proibidos, só podem ser declarados perdidos a favor do Estado na sentença.»

Embora a solução encontrada, na prática, seja funcional, ela não fundamenta dogmaticamente – do ponto de vista dos efeitos do caso julgado – a razão de se atribuir ou não ao juiz poderes para declarar o perdimento dos objectos, consoante a diferente natureza destes.
Por outro lado, temos dúvidas quanto à bondade de se considerar como insuperável imperativo legal que o único momento processual possível para a declaração de perdimento de objectos apreendidos seja o da sentença e, sobretudo, fundamentar tal convicção com o complexo de garantias de raiz constitucional. Que a lei determina que a declaração de perdimento deve ser proferida na sentença, é um facto. Ver nisso uma proibição de que tal declaração tenha lugar fora da sentença, afigura-se-nos redutor e insatisfatório, face aos concretos problemas que a omissão de tal acto na sentença coloca. Isto porque, independentemente do trânsito em julgado da sentença e da definitiva fixação de tudo quanto nela se determina, a verdade é que o processo continua a reclamar, com carácter de imprescindibilidade, um acto decisório que dê destino aos objectos apreendidos.
Assim, como duvidamos fortemente que a solução da omissão de declaração de perdimento seja resolvida pelo disposto no art.º 186.º, n.º 2, do CPP.
Dispõe tal número e artigo que: «2. Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado».
Em nossa opinião a aplicação desta norma supõe que tenha sido devidamente cumprido o disposto na al. c) do n.º 3 do art.º 374.º do CPP, ou seja, que previamente a ela tenha havido uma decisão judicial a dar destino aos objectos [6]. Na omissão dessa decisão judicial prévia, a norma do n.º 2 do art.º 186.º torna-se inexequível, até porque ninguém, além do juiz, tem competência para declarar quem é “quem de direito”. Pode, é claro, defender-se que, após o trânsito da sentença, o Juiz poderá dar um despacho a mandar entregar os bens, vinculando-se aos efeitos da omissão cometida na sentença. Afigura-se-nos tal solução como artificiosa. O caso julgado recairia sobre um silêncio, que teria de ser posteriormente preenchido por uma declaração que respeitasse os efeitos jurídicos desse silêncio.
Afigura-se-nos, ainda, que – sendo certo que o caso julgado visa garantir o direito das partes à estabilidade e segurança asseguradas por uma sentença firme – o facto de, onde a decisão final nada tenha afirmado, o destino dos objectos aprendidos ser dado por despacho proferido depois do trânsito em julgado dessa decisão em nada colide com os direitos constitucionais dos possíveis visados, nomeadamente, com os seus direitos processuais e com o direito de propriedade.
No plano processual não é postergado um direito ao contraditório, que no caso, não existe – o que pode configurar um argumento mais no sentido de que o destino a dar aos objectos apreendidos não é uma “questão da causa”. Quanto ao direito ao recurso, os visados pela decisão têm-no nos mesmos termos em que o teriam da sentença recorrida (enfim, poderá não ser exactamente nos mesmo termos, mas, em todo o caso, em grau suficiente para garantir tal direito). E no que respeita ao direito de propriedade, o despacho posterior ao trânsito em julgado da decisão que julgou a causa é, relativamente aos objectos apreendidos, proferido sob a mesma exigência de observância do direito aplicável, nomeadamente no que se refere aos eventuais direitos de propriedade. A não ser que se queira ver na dedução de efeitos jurídicos da omissão cometida pelo tribunal uma forma legítima de obstaculizar uma declaração de perdimento e por essa via salvaguardar um direito de propriedade de outro modo comprometido.
Em suma, repugna-nos que possa recair caso julgado sob aspectos do processo que, de todo em todo não foram decididos, não se podendo, salvo o devido respeito, afirmar que a omissão os decide negativamente, porque, dada a natureza do que há que decidir, tal não corresponde à realidade, como já bastante referimos.
Seja como for, há que reconhecer que a jurisprudência que se vai formando sobre este particular problema jurídico não vai no sentido que propugnamos. …”.