Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19156/15.1T8SNT-C.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EMBARGOS DE TERCEIRO
HIPOTECA
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O contrato promessa sem eficácia real mas com tradição do imóvel prometido vender e penhorado na execução, não confere por si só ao promitente comprador a possibilidade de embargar de terceiro perante o exequente que beneficia de hipoteca anterior registada sobre o imóvel;
II – A mera traditio do imóvel prometido vender ao promitente comprador não determina nem a inversão do título de posse, nem subsequentemente a posse do mesmo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
R… intentou os presentes embargos de terceiros por apenso à execução comum que a C… propôs contra a sociedade comercial “B…Lda., I… e J….
Alega, em síntese, que sobre o prédio X…, penhorado nos autos de execução e o qual se encontra em fase de venda, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda entre o ora embargante e os executados, por via do qual entregou a título de sinal e principio de pagamento a quantia no valor de € 51.000.00, reforçado em 15 de Fevereiro de 2015 na quantia de € 50.000.00, acrescida da quantia de € 500 desde o mês de Novembro de 2014, considerando que foi convencionado que o valor assim pago, mensalmente, seria computado e considerado no preço final, ou seja, até esta data, em € 27.500.00, ou seja, no total, já pago, a quantia de €128.500.00, num valor de preço que foi reduzido, por aditamento celebrado em 4 de Janeiro de 2015 para € 500.000.00. Mais refere que ocupa o imóvel e que tem feito obras de manutenção e que apenas não foi celebrada a escritura definitiva de compra e venda por culpa dos embargados que ainda não desoneraram o imóvel. Pede assim, que se reconheça o seu direito e “a posição que detém sobre o imóvel, determinando, como consequência a sustação da venda e demais diligências, considerando que esta ofende os seus direitos”.
Foi proferido despacho a indeferir liminarmente os presentes embargos.
Inconformado veio o embargante recorrer da decisão, pedindo a procedência do recurso, a revogação da decisão e o prosseguimento dos autos, formulando as seguintes conclusões:
«A)A douta sentença recorrida não só não fez a adequada e justa ponderação dos factos de acordo com elementos fornecidos pelo processo como não fez a boa aplicação do direito competente, que imporiam decisão diferente;
B)A douta decisão também não cumpre o previsto e estatuído no nº1 do Art.. 154, e nº 4. do Art. 607, ambos do CPC, mormente porque não esta fundamentada, de facto e, especialmente de direito, sendo tal injunção um imperativo;
C) Se é certo que o Tribunal, nos termos do disposto no Art. 608 nº 5 do CPC é inteiramente livre na apreciação da prova que as partes trazem aos autos, respondendo segundo a sua convicção, acerca de cada facto, tal principio tem excepção em função e consequência da prova tabelada e legal, não olvidando o poder não arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas ;
D) Mal vai a douta decisão recorrida quando não considera que, nos embargos, o embargante pode defender não só a sua posse mas também qualquer outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência judicialmente ordenada que se traduza um acto de agressão patrimonial;
E) Feita a prova da posse, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito real em termos do qual possui, conforme estatui o nº 1 do Art. 1268 do Cod. Civil, até porque o contrato promessa de compra e venda com entrega da coisa anteriormente à celebração do contrato definitivo, pode conferir ao promitente comprador a posse daquele;
F) A posse não está contigentada a nenhum pressuposto que não seja o definido no Art. 1285 do. Código Civil, que, na sua redação, não condiciona a existência ou não de eventuais hipotecas, anteriores ou posteriores;
G) O possuidor cuja posse for ofendida por penhora ou diligencia ordenada judicialmente pode lançar mãos ao instituto de embargos de terceiro sem qualquer limitação, não havendo nem existindo motivos e razões, substantivos ou adjectivos para o indeferimento, do procedimento».
O recurso foi admitido.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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Questões a resolver:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Assim, e tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa apreciar são as seguintes:
A) Saber se o contrato promessa sem eficácia real mas com tradição do imóvel prometido vender e penhorado na execução, confere ao promitente comprador a possibilidade de embargar de terceiro perante o exequente que beneficia de hipoteca anterior sobre o imóvel;
B) Saber se ao promitente comprador é conferida a posse do imóvel prometido vender que obstaculize o direito do credor hipotecário.
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II. Fundamentação:
Os elementos fácticos relevantes para a decisão são os seguintes:
1. Por documento particular, datado de 17 de novembro de 2014, cuja cópia se encontra junta aos autos e se dá por integralmente reproduzida, J… e mulher, I… como primeiros outorgantes e como segundos outorgantes R… e mulher L…, estabeleceram o seguinte: «Considerando que:
 A) Os Primeiros Outorgantes são donos e legítimos proprietários do prédio urbano X…, descrito na la Conservatória do Registo Predial de Sintra sob a ficha …, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesia de Sintra sob o Art. … com a licença de utilização Nº … emitida pela Camara Municipal de Sintra em 7.06.1995 assim como de tudo o que o integra e constitui;
B) O Imóvel objecto mediato deste contrato, pese embora a sua aptidão, o que é reconhecido por todos os outorgantes, carece de obras de conservação, beneficiação, recuperação, manutenção e de adaptação para quais os Primeiros Outorgantes, ao contrário dos Segundos Outorgantes, por si ou terceiros directa ou indirectamente, não tem meios nem capacidade para custear e suportar, estimadas e orçamentadas em E 51.000 (Cinquenta e um mil euros);
C) Os Segundos Outorgantes, de motus próprio, directa ou indirectamente, ou através de terceiros, aceitam e vão proceder à realização das obras referidas na Alínea B) deste considerando, com o pressuposto de que o valor total das mesmas, será e é compensado no valor do preço da compra e venda do contrato prometido;
É celebrado, livremente e de boa fé. o presente contrato promessa de compra e venda, que há-de reger-se pelos termos das cláusulas seguintes:
1.Os Primeiros Outorgantes prometem vender aos Segundos Outorgantes ou a quem estes indicarem, que, por sua vez, aceitam prometer comprar, nos termos, clausulas. preço, condições e termos que houverem por bem o imóvel melhor identificado na al. A) do considerando pelo preço global liquido de € 650.000 € ( Seiscentos e cinquenta mil ouros ).
2ª O preço convencionado será pago da seguinte forma:
a)-€ 51.000.00 (Cinquenta e um mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento. considerando o enunciado na alínea B). de que os Primeiros Outorgantes que já deram quitação;
b)- € 50.000.00 (Cinquenta mil euros), como reforço do sinal e principio do pagamento a ser pago até 15 de Fevereiro de 2015;
c) O remanescente do preço, na data da outorga do contrato prometido, deduzido do valor de todas as rendas, no montante mensal de  € 500 (Quinhentos euros) que, os Segundos Outorgantes, a titulo locatício, mensalmente, a partir da outorga deste contrato, convencionam pagar, valor que é imputado no pagamento do preço, considerado como o valor do uso, gozo, fruição, disposição e utilização do imóvel, no todo ou em parte, por eles ou terceiros, que possam indicar, seja a que titulo, natureza, qualidade, espécie ou natureza que for, em parte ou na sua totalidade, valor que será apurado em encontro de contas, na referida data e altura.
3° O contrato prometido de compra e venda, com prazo estabelecido a favor dos Segundos Outorgantes, será celebrado na data em que estes notificarem os Primeiros Outorgantes, por escrito, com a antecedência mínima de trinta dias, para o dia, hora e local onde o mesmo vai ser celebrado.
4° Todas as despesas e encargos com o contrato prometido, registos o IMT e Imposto de Selo, se for o caso, serão encargo dos Segundos Outorgantes.
5º Como a entrega do sinal, não obstante os efeitos obrigacionais deste contrato, os Primeiros Outorgantes conferem e dão, também, aos Segundos Outorgantes, o direito de retenção e posse, o que é consubstanciado não só por via da entrega de todas as chaves do prédio, como do direito e faculdade de, a partir desta data, poderem ceder a posição, contratual deste contrato, arrendar, subarrendar, ceder a exploração ou onera-lo, seja a que título, natureza, espécie e qualidade for, bem como de qualquer forma dele dispor e usar, negócios que não caducam mesmo que o contrato prometido não venha a ser cumprido e celebrado;
6° Consequência do acordado na cláusula 5ª anterior, a partir da data da outorga deste contrato, os Segundos Outorgantes são e passam a ser responsáveis por tudo o que envolva e possa o imóvel, ou seja, entre outros, contribuições, impostos, taxas, licenciamentos, seguros assim como o pagamento dos contadores e consumos de energia, agua e comunicações, incluindo, se for o caso, licenciamentos e alvarás de qualquer actividade incluindo riscos e segurança das obras e utilização;
7° Ambos os Outorgantes aceitam e anuem subsumir o presente contrato ao regime da execução específica, regulando-se, no omisso, tudo o estipulado no regime legal competente, dispensando, ambos, no sentido de não o poderem invocar, especialmente os Primeiros Outorgantes, a omissão do reconhecimento presencial das assinaturas.
8° Para dirimir e resolver qualquer litígio que possa emergir do presente contrato promessa ou do contrato definitivo, com expressa exclusão e renuncia a qualquer outro, ambos os Outorgantes elegem como foro competente o da Comarca de Sintra.
9º O presente contrato é elaborado em duplicado, ficando um exemplar em poder de cada um dos Outorgantes, valendo cada uma das cópias como original»;
2. Com data de 20/11/2014, por documento particular, J… e mulher, I… e R…e mulher L…, subscrevem o seguinte: «É celebrado, livremente e de boa fé, o presente aditamento ao contrato que outorgaram em 17 de Novembro de 2014 tendo por referencia o prédio X…, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob a ficha Nº…, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesia de Sintra sob o Art….com a licença de utilização N°… emitida pela Camara Municipal de Sintra em 7.06.1995.
1º Acordam os outorgante que a renda mensal convencionada no valor mensal de € 500 ( Quinhentos euros ) será paga por via de transferência bancaria até ao dia 8 do mês anterior aquele a que disser respeito.
2º Os Segundos Outorgantes ou quem eles indicarem poderão alterar e escolher os fornecedores de energia, gaz e comunicações, sendo eles os únicos responsáveis pelo pagamento dos consumos e dos contadores, se for o caso.
3º Qualquer alteração ou obra que os Segundos Outorgantes façam e produzam no imóvel objecto mediato deste contrato serão suportadas por estes, ficando as mesmas integradas no imóvel
4º O presente aditamento é elaborado em duplicado, ficando um exemplar em poder de cada um dos outorgantes, aplicando-se, no omisso, quanto à locação, o regime do contrato de arrendamento de duração indeterminada, valendo cada uma delas como original»;
3. No âmbito da execução foi com data de 6/12/2017, realizada a penhora sobre o imóvel X…, figurando como executada “B…, Lda” – cf. cópia do edital junto com a petição de embargos como doc. 1;
4.No âmbito da certidão do registo na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, do imóvel X… e descrito sob o nº…, com o artigo matricial …, encontra-se regista pela Ap. 42 de 27/10/2004, a aquisição do mesmo pela executada “B…, Lda” por compra efectuada a J… e M…;
5. Em termos registais pela Ap. 23 de 25/11/2005 encontra-se registada uma hipoteca voluntária sobre o imóvel constituída a favor da C…  pela executada “B…, Lda”;
6. Com data de 06/06/2012 e pela Ap. 271, e pela Ap. 1275 datada de 06/07/2012, foram registadas duas hipotecas voluntárias constituída a favor da C…, figurando como sujeito passivo a B…, Lda;
7. Pela Ap. 4231 de 06/12/2017 foi registada a penhora supra aludida.
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III. O Direito:
Nos termos da lei processual o que caracteriza os «embargos de terceiro», conforme expresso pelo próprio legislador no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, com uma argumentação que se mantém actual, é “a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante.”
Permite-se, deste modo, que os direitos atingidos ilegalmente pela penhora possam ser invocados com as mesmas garantias de que beneficiariam em acção autónoma – e conduzindo logicamente, por esta razão, o processo de embargos à formação de caso julgado material, relativamente à existência e titularidade dos direitos que dele foram objecto (neste sentido, e por todos, Ac. da Relação do Porto, de 16.12.2009, in www.dgsi.pt).
Os embargos de terceiro podem ser deduzidos com dois fundamentos: ou o terceiro alega e prova que é possuidor, beneficiando de presunção da titularidade do direito nos termos do qual possui, ou alega e prova ser titular do direito incompatível com a execução em curso (Miguel Mesquita, Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, pág. 95).
No caso dos autos, fundamenta o apelante que a penhora do imóvel ofende a sua posse, baseando a existência desta na celebração com os executados I… e J… um contrato promessa de compra e venda, que tem por objecto o mesmo imóvel. Posse essa que, nos termos alegados, advém da entrega do imóvel pelos promitentes vendedores e no qual o embargante viveu e que agora sub arrendou, e onde, além do mais, efectuou “avultadas obras”, tendo-o adaptado e “colocado à sua medida”. Mais alega que do preço final acordado – 500.000,00€, pagou a título de sinal 128.500,00€.
Da certidão do registo predial relativa ao imóvel penhorado, resulta que a propriedade do imóvel encontra-se registada a favor da executada “B.., Lda”, desde 27/10/2004, e não dos executados que figuram como promitentes vendedores no contrato promessa datado de 17/11/2014 (ainda que também não coincida o nº de registo do imóvel e artigo matricial). Porém, no âmbito do recurso haverá apenas que apreciar o direito do embargante tal como foi apresentado e decidido nos autos, pois é o embargante que alega que tem a posse sobre o imóvel penhorado e que essa posse advém da entrega do mesmo pelos proprietários, na sequência da celebração de um contrato promessa.
A situação em causa nos autos reconduz-nos a um problema amplamente tratado na doutrina e na jurisprudência, que é saber em que termos e circunstâncias se poderá qualificar como «verdadeiro» possuidor o promitente comprador que, no âmbito de um contrato promessa desprovido de eficácia real, obtém a tradição da coisa, em consequência de acordo negocial conexo com a promessa de venda, e permanece no uso e fruição do imóvel prometido comprar e vender, neste caso desde 2014.
Ora, no caso dos autos verifica-se a situação jurídica do embargante ser o promitente comprador, nos termos alegados, do imóvel penhorado, tendo ocorrido a tradição deste, mas em promessa desprovida de eficácia real. Face à data de tal traditio manifestamente nem sequer se pode aferir da existência ou não dos pressupostos da usucapião, pois entre esta e a penhora distam apenas três anos.
Na verdade, sendo incontroverso a tradição da coisa prometida vender, a mesma assenta na pressuposição e expectativa de que será cumprido o contrato definitivo e equivalendo, quando muito, à outorga ao promitente comprador de uma situação equiparável a um direito pessoal de gozo ( cfr. Acs. de 17/4/07 e de 23/03/2011, proferidos pelo STJ in www.dgsi.pt/jstj), apenas desencadeará normalmente uma situação de mera detenção, enquadrável no art. 1253º do CC, possuindo aquele interessado o imóvel em nome do proprietário/promitente vendedor, sem que tal envolva a transmissão a seu favor da posse sobre o imóvel – poderão, todavia, verificar-se situações excepcionais em que assim não seja, merecendo a posição do promitente comprador com tradição do imóvel a qualificação originária de verdadeiro possuidor; ou ocorrer, na pendência da fruição do prédio, uma situação de inversão do título da posse, prevista no art. 1265º do CC, susceptível de desencadear supervenientemente a aquisição de posse - verdadeira e própria - por parte do – até então – mero detentor.
Quanto à posse, define-a o artigo 1251º do Código Civil , como «(o) poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real».
Daqui decorre que a posse tem de se revestir de dois elementos: o corpus, elemento material da posse, ou seja, o poder de facto que se exerce sobre a coisa, e o animus possidendi, o elemento psicológico, ou seja, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.
Segundo o artigo 1253º do Código Civil, «[s]ão havidos como detentores ou possuidores precários:
a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;
b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;
c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.»
Ainda com relevância para a questão decidenda, atente-se no que dispõe o artigo 1263º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe aquisição da posse: “A posse adquire-se:a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito;
b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor;
c) Por constituto possessório;
d) Por inversão do título da posse.”
Para ter a posse não é necessária a prática de actos materiais sobre a coisa; basta a possibilidade de os praticar, já que o nosso Código Civil perfilhou uma concepção subjectiva da posse, onde, a par da actuação de facto sobre a coisa é preciso que haja por parte do detentor a intenção "animus" de exercer como o seu titular um direito real e não um mero poder de facto sobre ela (cfr. na doutrina, Código Civil Anotado, Vol. III, de Pires de Lima e A. Varela, 2.ª Edição revista e actualizada, pág. 5 e segs)
Como nos diz, entre outros, ORLANDO DE CARVALHO «(n)ão existe corpus sem animus nem animus sem corpus. Há uma relação biunívoca. Corpus é o exercício de poderes de facto que intende para uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) em (de) certa actuação de facto. É essa inferência ou correspondência que se acentua no artigo 1251.º. De resto, o artigo 1253.º, contrapondo posse a detenção, não deixa lugar a dúvidas». (in Introdução à Posse, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122 (n.º 3780), pág. 66).
Daqui decorre, que é necessária uma posse real e efectiva, com o seu elemento material ou corpus e o elemento intencional ou animus sibi habendi.
Como vem sendo reiteradamente considerado na jurisprudência (cfr., por exemplo, o Ac. de 12/7/11, proferido pelo STJ endereço da net referido), a qualificação da natureza da posse do beneficiário da tradição da coisa, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda de imóvel, depende fundamentalmente de uma ponderação casuística que valore adequadamente os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração, podendo efectivamente verificar-se situações – seguramente excepcionais – em que a «traditio» não teve originariamente como pressuposto subjacente à vontade dos contraentes a realização do contrato definitivo; ou em que, supervenientemente, ocorreram vicissitudes na vida da relação contratual determinantes de uma radical mudança no título que tinha justificado a inicial «entrega das chaves», a título precário e limitado, ao promitente comprador, enquadráveis na figura da inversão do título da posse.
Ora, no caso dos autos o promitente comprador não efectuou o pagamento da totalidade do preço, sendo que as partes acabam por justificar a permanência do embargante no uso e fruição do imóvel com o alegado aditamento ao contrato promessa, onde se estabelece o pagamento de uma renda, bem como no mais não previsto no contrato, na aplicação do regime do contrato de arrendamento de duração indeterminada.
Como se afirma, no Ac. de 9/9/08, proferido pelo STJ no P. 08A1988, citado no Ac. do STJ de 12/03/2015( in www.dgsi.pt/jstj):A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – art. 1251 do C. C.
Na análise de uma situação de posse distinguem-se dois momentos: um elemento material (corpus), que se identifica com os actos materiais de detenção e fruição praticados com o exercício de certos poderes sobre a coisa; um elemento psicológico (animus) que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados. (…) A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio . Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª ed., págs 6/7 ) , “ o contrato promessa de compra e venda não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador . O contrato promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo ( a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real . O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse“ ».
Trata-se de posição que tem sido sufragada pela doutrina (Antunes Varela, R.L.J. Ano 124º- 348 ; Vaz Serra, R.L.J. Ano 109º-314 e Ano 114º-20, Calvão da Silva, BMJ nº 349-86, nota 55), bem como pela jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça (Ac. do S.T.J. de 26-5-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, 118; Ac. S.T.J. de 19-11-96, III, 3º, 96; Ac. S.T.J. de 11-3-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 1º, 137; Ac. S.T.J. de 23-5-06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 2º, 97).
Analisando a situação dos autos, e face inclusive ao aditamento e a alegação do próprio embargante que refere que subarrendou o imóvel, manifestamente não actua como proprietário nem alega factos que nos permitam concluir pela inversão da posse, tanto mais que nem sequer resulta claro que os promitentes vendedores sejam proprietários do imóvel penhorado e, logo, prometido vender, pois não lhes assiste a presunção decorrente do registo – artº 1268º do CC.
Assim sendo, é bom de ver que não resultaram alegadas quaisquer daquelas circunstâncias excepcionais que permitam concluir que possa existir o animus da posse, por parte do promitente comprador, em resultado da tradição da coisa que lhe foi facultada pelos promitentes vendedores, na sequência da celebração do contrato promessa de compra e venda, pois não basta referir que foram “efectuadas avultadas obras”, pois estas nos termos também alegados destinavam-se a colocar o imóvel por forma a ser utilizado pelo embargante, ou seja no uso e fruição do mesmo, sem que para tal se conclua pela atuação como proprietário.
Com efeito, nem a coisa foi entregue ao promitente comprador como se sua fosse já, nem este nesse estado de espírito (de proprietário) podia praticar sobre a coisa entregue actos materiais correspondentes ao direito de propriedade, pois era propósito das partes celebrar o contrato definitivo de compra e venda, quando foi outorgado o contrato promessa, sendo certo, por outro lado, que o preço não estava pago na totalidade. Logo, a posse do promitente comprador foi exercida com referência à traditio da coisa decorrente do contrato promessa e dos factos alegados não resultam existir circunstâncias excepcionais que justifiquem a consagração de uma excepção à regra da qualidade de mero detentor do promitente comprador.
Como alude Augusta Ferreira Palma ( in “Embargos de Terceiro”, pág. 135) « o direito de retenção de que goza o promitente comprador com “traditio” é um mero direito real de garantia insuscetível de posse. Não pode, consequentemente, deduzir embargos de terceiro, apenas tendo direito de ver reconhecido e graduado com prioridade o seu crédito no caso de incumprimento contratual».
Em idêntico sentido, pode citar-se o Ac. 27/5/04, proferido pelo STJ, onde se considerou: «À tradição material que acompanha o contrato-promessa de compra e venda não corresponde, em regra, a transmissão da posse correspondente ao direito de propriedade, porque a causa daquele acto translativo, que é o contrato-promessa e a convenção acessória de entrega antecipada da coisa, não se destina à constituição ou transferência de direitos reais, designadamente, o direito de propriedade, mas, tão só, à constituição de um direito de crédito a uma determinada declaração negocial.»
 Mas, aquela traditio pode envolver a transmissão da posse, como nos casos excepcionais em que já se encontra paga a totalidade do preço ou em que as partes têm o deliberado e concertado propósito de não realizar a escritura pública, para evitar despesas, e a coisa foi entregue ao promitente-comprador em definitivo, como se dele fosse já. Fora destas circunstâncias, a intenção do beneficiário de uma tal traditio só tem possibilidades de influir no animus da detenção a partir do momento em que se exteriorize numa atitude de oposição face ao transmitente, por uma das formas previstas no artº1265º, CC (inversão do título da posse).
Por outro lado, a inversão do título da posse por oposição do detentor tem uma natureza recetícia, tendo de se exteriorizar face àquele perante quem produzirá efeitos jurídicos, ou seja, aquele que constituiu a posse precária.( ac. de 6/5/04, proferido pelo STJ ).
Logo, ainda que com fundamentação diversa da constante da decisão de indeferimento liminar no âmbito do tribunal a quo, tal determinaria a improcedência do recurso.
Na verdade, o contrato promessa e o sinal pago apenas determinaria a existência de um eventual direito de retenção do apelante. Tal direito de retenção, encontra-se previsto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), o qual estabelece que: “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º”.
Constitui, pois, posição consolidada, tanto na doutrina (consolidada mas não unânime, como parece decorrer do estudo de Menezes Cordeiro, “Da retenção do promitente na venda executiva”, ROA, ano 57, 1997, volume II, pág. 547 e seguintes, onde se defende que o direito de retenção do promitente-adquirente que beneficiou da traditio visa, também, assegurar o gozo da coisa, sobrevivendo à venda executiva, se o direito de retenção for anterior à penhora) como na jurisprudência (onde também existe uma opinião contrária, minoritária, traduzida no acórdão do STJ de 20.01.1999 supra referido e no acórdão da Relação do Porto, de 15.4.2008, processo n.º 0820536, in www.dgsi.pt), que o direito de retenção reconhecido ao promitente-adquirente nos termos da alínea f) do art.º 755.º, n.º 1 do Código Civil, se destina a garantir os créditos que para ele emergem do incumprimento definitivo do contrato-promessa pela contraparte, ou seja, nos termos do art.º 442.º do Código Civil, o dobro do sinal prestado ou o valor da coisa traditada, calculado nos termos aí previstos (neste sentido, v.g., Remédio Marques, “Curso de processo executivo comum à face do Código revisto”, Almedina, 2000, pág. 331, nota 934; Luís Miguel de Andrade Mesquita, “Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro”, Almedina, 2.ª edição, 2001, páginas 170 e 171; João Calvão da Silva, “Sinal e contrato-promessa”, Almedina, 12.ª edição, 2007, páginas 178 e 182; L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 33, Janeiro/Março de 2011, página 4; José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva Depois da reforma da reforma”, Coimbra Editora, 5.ª edição, 2009, pág. 283, nota 24; na jurisprudência, v.g., STJ, de 04.12.2007, processo 07A4070; STJ, 08.10.2013, processo 10262/06.4TBMTS.P1.S1; STJ, 04.02.2014, processo 360/09.8TCGMER.G1.S1; STJ, 30.4.2015, processo 1187/08.0TBTMR-A.C1.S1).
Assim, o direito de retenção existe para garantir o crédito gerado pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa, e não para garantir o crédito à prestação de facto ou seja, o uso ou fruição da coisa.
O direito de retenção, como qualquer outro direito real de garantia, extingue-se com a venda executiva, ou melhor, passará a incidir sobre o produto da venda (art.º 824.º n.ºs 2 e 3 do Código Civil), posto que o respetivo credor garantido tenha reclamado o seu crédito na execução.
Assim sendo, o eventual direito de retenção titulado pelo promitente-comprador não é oponível à penhora, ou seja, não obsta à efetivação ou subsistência de penhora incidente sobre o imóvel que lhe tenha sido entregue pelo promitente-vendedor, ora executado, no âmbito do contrato-promessa.
Logo, o direito de retenção não constitui fundamento de embargos de terceiro, pois este direito é um direito real de garantia, que confere ao seu titular o direito de executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor (n.º 1 do art.º 759.º do Código Civil), ou de invocar o seu direito em execução instaurada contra o devedor por terceiro, no âmbito do concurso de credores, meio através do qual é assegurada a sua posição jurídica.
Assim, também o eventual direito de retenção in casu não se subsume à possibilidade de embargar de terceiro nos termos previstos no artº 342º do CPC. Pois ainda que se possa conceder que o direito de retenção e a possibilidade de execução específica possam ser pressupostos de embargos de terceiros (Cfr. ac. do S.T.J., de 20 de Janeiro de 1999, in “BMJ” n.º 483), a invocação de um inviabiliza o outro, pois o que os embargos de terceiro permitem viabilizar é o direito à execução específica e não o direito de retenção, pois este surge apenas para garantia do crédito derivado do incumprimento definitivo e não constitui um direito incompatível com a realização da penhora, a defender por embargos de terceiro.
Como refere Calvão da Silva “(…) quem pede a execução específica não goza de direito de retenção; quem invoca o direito de retenção não goza de execução específica” (“Sinal e contrato-promessa”, citado, pág. 178, nota 197), mas esta última possibilidade nem sequer foi alegada pelo embargante.
Vejamos a última questão, que constitui a abordagem feita na decisão a quo, ou seja a impossibilidade de embargar de terceiro pelo promitente comprador no caso de existir hipoteca anterior registada sobre o imóvel objecto da promessa.
 Refere-se na decisão sob recurso que «No caso dos autos, ainda que se entenda que os factos alegados integram uma posse em nome próprio, exercida pelo embargante, nunca esta posse pode fundamentar os embargos de terceiro na execução em causa.
Isto porque o entendimento atrás exposto só pode valer em execuções em que não exista uma hipoteca registada anteriormente a favor do exequente.
Já não pode valer nas execuções hipotecárias, como é o caso dos autos (cfr ac STJ de 19/06/2007, P. 07A1624, em www.dgsi.pt). Conforme resulta dos autos, a exequente tem uma hipoteca registada a seu favor (Ap.22 de 2007/12/10) em data anterior à da celebração do contrato promessa (17.11.2014), para garantia do crédito exequendo.(…) Por isso, mesmo que o ora embargante tivesse celebrado a escritura definitiva de compra e venda e efectivamente adquirido o prédio, nunca poderiam impedir a penhora do mesmo e subsequente venda, devido à existência de hipoteca anterior a favor do exequente e ao respectivo direito de sequela, restando-lhes apenas a possibilidade de expurgar a hipoteca ao abrigo do artigo 721º do CC.
Não tendo sido celebrado o contrato definitivo de aquisição do prédio pela embargante, esta não pode expurgar a hipoteca, pelo que o único direito que poderá ter sobre o prédio, caso tenha havido incumprimento do executado no contrato promessa (questão que não está em discussão nestes autos) é o direito de retenção sobre o mesmo na reclamação dos eventuais créditos contra o executado promitente vendedor (artigo 755º nº1 f) do CC). Mas o direito de retenção, a existir, não obsta a que a embargante tenha de abrir mão do prédio para que os credores – nomeadamente o exequente credor hipotecário – possam satisfazer os seus créditos com o produto da venda do mesmo, graduando-se os créditos consoante as garantias de cada um (cfr Acs. RL, de 13.09.2012, relatado por Maria Teresa Pardal, e de 15/12/2011, P. 9400/06, em www.dgsi.pt).Como cristalinamente se concluiu no Ac. STJ, de 21.03.2013, relatado por Bettencourt de Faria (in www.dgsi.pt): “I - O promitente comprador a quem foi entregue o imóvel prometido vender, pode, nos casos limite, ser considerado um possuidor e não um detentor precário, nomeadamente, quando se puder deduzir que as partes, com aquela entrega, pretenderam antecipar os efeitos do contrato definitivo. II – Ainda que o promitente comprador se encontre na situação de possuidor, nos termos definidos em I, não pode opor, a sua posição ao titular de hipoteca sobre o imóvel, com registo anterior.”.
Nos termos do n.º 1 do artigo 686.º, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Não abordaremos a questão discutida quer na jurisprudência, quer na doutrina, sobre o artº 759º nº 2 do CC, ou seja o confronto entre o interesse do credor hipotecário e o direito de retenção cujos pressupostos se constituem após o registo da hipoteca, e que, malgrado tal anterioridade, vem a prevalecer sobre a garantia em causa.
Porém, haverá que considerar que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu em de 20.03.2014 o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2014, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 95, de 19.05. 2014, com o seguinte teor dispositivo: «No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente - comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil».
Decorre da mera leitura do AUJ citado, que se exige para a validade e oponibilidade do direito de retenção do promitente-comprador ao credor hipotecário: i) que o promitente adquirente seja “consumidor”; ii) que tenha ocorrido a traditio da coisa prometida vender. E tal questão pode ser também considerada em termos de processo executivo, pois são as mesmas as razões que determinaram tal AUJ.
A prova dos referidos pressupostos incumbe ao credor que invoca o direito de retenção, nomeadamente a condição de “consumidor”. E o critério normativo é-nos fornecido pelo n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho – Lei de Defesa do Consumidor: «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios».
No AUJ n.º 4/2014, justifica-se a consagração do requisito “consumidor” como pressuposto indispensável ao direito de retenção, nestes termos: «A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente seletividade na concessão de crédito. […] Assim se compreende que a alínea f) do artigo 755º nº 1 seja entendida restritamente de molde a que se encontre a coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor».
No caso dos autos o embargante em momento algum alega que é consumidor, acresce que manifestamente o registo das hipotecas que incidem sobre o imóvel são todas anteriores à data da celebração do contrato promessa alegado como causa justificativa de embargos.
Por outro lado, o registo da hipoteca é constitutivo, esse registo mesmo entre as partes é condicionante da sua eficácia – cf. artº 4º nº 4 do Código Registo Predial, tem a garantia da prioridade do registo – artº 7º do mesmo diploma – e é oponível a terceiros, nomeadamente o embargante – artº 56º do Cód. Reg. Predial.
Como se refere no Ac. do STJ de 13/11/2007 (in endereço da net referido) «Mesmo provando-se que os embargantes são titulares do direito de posse sobre o imóvel penhorado, jamais os embargos poderiam proceder porquanto estamos em presença de penhora incidente sobre prédio hipotecado, em que a garantia da hipoteca está registada em data muito anterior ao início da posse dos embargantes.»
Permitir fazer valer a posse de um promitente comprador sobre um registo de hipoteca anterior seria o equivalente a não considerar tal garantia válida, pois mesma na eventualidade de se provar a posse, está já ocorreria durante um período em que a hipoteca, obrigatoriamente sujeita a registo para a sua validade, já existiria, pelo que haverá que considerar o escopo que preside ao registo. Pois a função do registo predial é essencialmente dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (cf. artº 1º do Cod. Reg. Predial).
Assim, apenas assiste ao embargante direito de retenção, ou seja a possibilidade de ser ressarcido, pelo valor da venda do imóvel, com preferência sobre os demais credores com garantia real sobre o mesmo, sendo um direito real de garantia e não um direito real de gozo. A prova da existência de direito de retenção a favor do embargante apenas lhes confere o direito de ser pago com preferência em relação aos demais credores, atento o disposto no art.º 759.º, n.º 2 do C. Civil, pois o direito de retenção enquanto direito de garantia caduca com a venda judicial, nos termos do art.º 824.º, n.º 2 do C. Civil.
Conforme o disposto no artº 345º do CPC, constitui motivo de indeferimento liminar de embargos a não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante. Considerando o exposto, quer pela inexistência de alegação de factos que consubstanciam a posse do promitente comprador, quer ainda pela inoponibilidade dessa alegada posse ao credor hipotecário, com registo de hipoteca anterior, o despacho que indeferiu os embargos não nos merece qualquer reparo, sendo o recurso improcedente.
                                                *
IV. Decisão:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo embargante, mantendo a decisão ora recorrida.

Custas pelo apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 15 de Novembro de 2018

Gabriela Fátima Marques

Adeodato Brotas

Gilberto Jorge