Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12542/16.1T8LSB.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL
INSTITUIÇÃO DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não ocorre nulidade de sentença por condenação em objecto diverso do pedido quando se condena no pagamento de indemnização correspondente ao dobro do sinal prestado em lugar da peticionada indemnização correspondente à diferença entre o valor da coisa - traditada e prometida vender, ao tempo do não cumprimento do contrato promessa - e o preço prometido: - em ambos os casos pretende-se uma indemnização e ela é concedida, embora segundo critério diverso do pedido, ainda que formulado este ao abrigo duma opção concedida pelo legislador.
Não se verifica nulidade de sentença por omissão de pronúncia quando o tribunal não se pronuncia expressamente sobre a apensação de acções requerida na petição inicial com fundamento na economia processual e para observância de caso julgado, mas cuida de obter para os autos certidão de sentença com trânsito em julgado proferida na acção cuja apensação se requer e com base na qual apura os factos e circunstâncias relevantes ao conhecimento da excepção de caso julgado.
A exigência legal de concurso ou hasta pública para a alienação de bem imóvel pertencente a instituição particular de solidariedade social, nos termos do artigo 23º do EIPSS na versão do DL 119/83, não implica automaticamente a nulidade de contrato promessa de compra e venda que relativamente ao mesmo bem haja sido celebrado, quer porque em tal preceito se prevê também, ainda que sob determinado circunstancialismo, a possibilidade de negociação directa, quer porque o valor negativo previsto para a actuação irregular dos órgãos de gestão da pessoa colectiva em causa é a anulabilidade.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.Relatório:


“M... Ld.ª” propôs a presente acção contra “Fundação ...”, pedindo a resolução do contrato promessa com esta celebrado, por incumprimento definitivo imputável à Ré e, em consequência a condenação desta a pagar-lhe o valor do prédio à data do não cumprimento da promessa (€ 562.650,00 ou aquele que se venha a apurar), deduzido do valor do preço prometido (€ 149.639,37), devendo ao resultado ser acrescida a quantia de €18.704,94, esta a restituir à autora a titulo de sinal entregue à Ré (€14.963,94) e de 12 meses de rendas pagos, conforme estabelecido na cláusula 6ª, nº 2 e cláusula 3ª, nº 2 do contrato promessa (€3.741,00), tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da primeira interpelação e até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que:
Em 28.07.1998, as partes celebraram um contrato promessa de compra e venda pelo qual a Ré prometeu vender à Autora determinado prédio urbano, do qual a Autora era arrendatária, pelo preço de 300.000.000$00, tendo sido entregue, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 3.000.000$00;
Em 19.04.2001, a autora propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, na qual pedia o cancelamento do ónus de renda vitalícia que incidia sobre o prédio prometido vender e a favor de Laurinda Conceição, em virtude do falecimento desta em 1999, e na qual pedia também fosse proferida sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial de venda, por parte da Ré, do identificado prédio;
Nos referidos autos de acção judicial foi proferida sentença a concluir pelo incumprimento do contrato promessa por parte da Ré, mas que não reconheceu à Autora o direito à pretendida execução específica do contrato promessa por ter considerado “face aos condicionalismos previstos para a alienação de bens imobiliários por parte da ré verificar-se a impossibilidade de cumprimento, tendo concluído ser o contrato promessa em análise insuscetível de execução específica, estando vedado ao tribunal substituir-se ao contraente em mora, nos termos previstos art.º 442/3 e 830º do Código Civil;
O incumprimento do contrato promessa é imputável à Ré, como aliás reconhecido na sentença, sendo que a Autora perdeu o interesse na concretização do negócio. 

Contestou a Ré pugnando pela sua absolvição por procedência das excepções de nulidade do contrato promessa e de impossibilidade legal de cumprimento da obrigação prometida, e, com base na impugnação feita, a sua absolvição do pedido por improcedência da acção.

Alegou, em síntese, e no que toca às referidas excepções, que:
É uma fundação de solidariedade social, instituída por testamento datado de 14.02.1968, cujos estatutos iniciais foram aprovados por despacho do Secretário de Estado da Segurança Social de 06.07.1976, alterados em 16.05.1995;
Foi declarada instituição particular de solidariedade social pelo despacho nº 6/83 do Secretário da Segurança Social de 04.05.1983;
Não foi promovido concurso para a venda pela autora do imóvel objecto do contrato promessa;
A alegada promessa de venda também não foi feita por motivo de urgência nem foi configurada a previsão de que através de negociação directa decorressem vantagens para a ré;
Os contratos que violem disposição expressa na lei são contrários à mesma e por isso são nulos;
A norma do art.º 23º, nº 1 do EIPSS impede que a venda seja feita por outro meio que não seja por intermédio de concurso, hasta pública ou procedimento interno de reconhecimento das vantagens da venda directa;
Assim, os administradores da ré estavam, como estão, impossibilitados de outorgar a escritura pública pretendida pela autora, por a obrigação de outorgar a escritura ou de vender o imóvel por simples declaração de vontade dos administradores da ré é impossível por imposição da lei;
Sendo a prestação impossível por força da lei, e não por causa imputável à ré, extingue-se a obrigação desta;
           
A Autora veio responder às excepções invocadas, alegando que:
A nulidade do contrato e a regularidade da representação da ré no contrato promessa já tinham sido invocadas pela ré e decididas nos autos que correram termos na 1ª secção da 1ª Vara Cível de Lisboa sob o nº 12.202/01.8TVLSB, devendo concluir-se pela verificação de caso julgado relativamente a estas matérias;
A extinção da obrigação por impossibilidade do cumprimento também já se encontra julgada na identificada acção.

Admitida a resposta da Autora, dispensada a audiência prévia, e fixado o valor da acção em €431.715,57, o tribunal recorrido julgou improcedente a excepção de caso julgado, invocada pela autora e sustentada na certidão judicial constante de fls. 112/122 relativa ao processo que correu termos na 11ª Vara Cível de Lisboa, 1ª secção, sob o nº 12.202/01.8TVLSB, e passou seguida e imediatamente, ao abrigo do art.º 595º, nº 1, al. b), do Cód. Proc. Civil, a conhecer do mérito da causa, proferindo despacho saneador sentença de cuja parte dispositiva consta:
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, declara-se a resolução do contrato promessa celebrado entre autora e ré por facto imputável a esta e, em consequência condena-se a ré a pagar à autora uma indemnização correspondente ao dobro do sinal, isto é, no valor de € 29.927,88, absolvendo-se a ré do demais peticionado.
Julga-se improcedente o incidente de litigância de má fé e, em consequência, absolve-se a ré do pedido formulado.
Custas da ação pela autora e pela ré, na proporção, respetivamente de 3/10 e 7/10.
Sem custas do incidente, por se entender que a autora não formulou um pedido concreto de litigância de má fé contra a ré, tendo apenas mencionado a mesma.

Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
A)A Recorrente não se conforma com a douta sentença:
a)-Não fundamentação da razão de não aceitar-se o pedido formulado pela recorrente e condenação da recorrida em pedido diverso do formulado, e
b)-omissão de pronúncia e decisão de não exclusão da possibilidade de apreciação.
B)Só se alude no presente recurso à questão plasmada na alínea b)-da alínea anterior, por salvaguarda, pois, com a revogação ou nulidade da sentença ora recorrida, esta matéria revestirá ou certamente poderá revestir-se de utilidade para o bom julgamento da presente ação.
C)Cumpre ter presente que a ação de que ora se recorre mais não é do que a sequência natural dos autos que correram termos na 1.ª Secção da 1.ª Vara Cível de Lisboa, sob o n.º 12 202/01.8TVLSB, na qual a mesma A. da ação de cuja sentença ora se recorre pedia a condenação da mesma R., por incumprimento do mesmo contrato, mediante o recurso à execução específica.
D)Afigura-se claro que a preexistência da anterior ação, onde, à exceção do pedido, se discutiram os mesmos factos, terá que ter forçosamente uma influência decisiva na decisão a proferir nos presentes autos.
E)Essa influência perspetiva-se como uma questão de autoridade do caso julgado (a chamada função positiva do caso julgado).
F)Nesse sentido, Ac. STJ de 21 de Março de 2013, in www.dgsi.pt e, mais em concreto à situação em análise, o Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Setembro de 2010 (in www.dgsi.pt): “A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 498° do CPC”.
G)A não pronúncia sobre o mérito ou desmérito da apensação afigura-se revestir uma omissão de pronúncia e, como tal, a nulidade da sentença, conforme estabelecido no artigo 668.º, n.º 1, al. D), do Código de Processo Civil,
H)E a decisão de julgar improcedente a invocada exceção dilatória de caso julgado e, nessa medida, a decisão de não exclusão da possibilidade de apreciação de todas as questões explícita ou implicitamente resolvidas na ação cuja apensação se requereu, consubstancia-se em erro de julgamento, devendo, por tal, a douta sentença ser revogada por outra que plasme o entendimento aqui descrito.
I)Sem conceder, com o que a Recorrente não se pode conformar é com a não fundamentação da razão de não aceitar o pedido formulado e com a condenação da recorrida em pedido diverso do formulado.
J)Na verdade, o Meritíssimo Juiz após considerar verificados todos os requisitos para a aplicação do regime estabelecido no artigo 442.º, n.º 2 - ou seja, um contrato promessa incumprido, a tradição da coisa (logo por si óbvia, atenta a posição de arrendatária e a não exclusão no contrato dessa condição, mas também reforçada pelos poderes atribuídos na cláusula 7.ª do contrato promessa), a exigência pelo promitente do valor da coisa ao tempo do incumprimento e o incumprimento definitivo, - declara, sem qualquer justificação, que não poderá condenar a recorrida no peticionado pela Recorrente e apresenta uma breve justificação para a opção de condenação por que decide enveredar.
K)Decidindo como decidiu, o Meritíssimo Juiz não apresenta fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e condena a ora recorrida em objecto diferente do pedido da recorrente.
L)Na verdade, afigura-se indubitável que a declaração ‘mas não poderá obter como indemnização o aumento do valor da coisa objeto da promessa nos termos por si peticionados’ e a frase ‘e salvo o devido respeito por opinião em contrário, entendemos
ser-lhe devido como indemnização o dobro do sinal, porque não só o valor do mesmo está contido no valor dom pedido formulado pela autora nos presentes autos e, como tal, não se condenará em quantidade superior, como também continuamos no âmbito de uma condenação em indemnização’ não podem ser consideradas fundamentação alguma para o não acolhimento do pedido da ora recorrente.
M)A decisão não pode ser um ato arbitrário.
N)As partes necessitam saber a razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, nomeadamente para efeitos de defesa.
O)Por outro lado, peticionou-se a condenação da Recorrida no valor da coisa objeto do contrato promessa ao tempo do incumprimento e recebeu-se a devolução do sinal pago em dobro.
P)O Meritíssimo Juiz a quo justifica a possibilidade dessa condenação em objecto diverso no facto de, por essa via, não se condenar em valor superior ao peticionado e a condenação por si adotada ser também uma condenação em indemnização, dando a entender que, por essa razão, não condena em objecto diverso do que se pediu.
Q)Mas a verdade é que se condena em objeto diverso.
R)Uma coisa é numa indemnização de que se pede a condenação não se considerar, por exemplo, a extensão do dano alegada ou a incapacidade ou todos ou alguns dos valores peticionados (como, aliás, fez o Meritíssimo Juiz na sentença quando não aceitou a restituição da quantia de € 3.741,00, correspondente a 12 meses de rendas pagas); outra é a lei atribuir uma faculdade de opção do tipo de indemnização, o lesado fazer a opção e o Juiz alterar a opção escolhida, ainda para mais sem fundamentar a razão.
S)Ao condenar a Ré, ora recorrida, em indemnização de natureza diferente, o Meritíssimo Juiz condenou a recorrida em objeto diverso do pedido, o que implica a nulidade da presente sentença, atento o disposto no artigo 668.º, n.º 1, e).
T)Contudo, ainda que assim não fosse, o que só por exercício académico se admite, sempre teria o Meritíssimo Juiz a quo de justificar a razão da não aceitação da espécie de indemnização peticionada, o que não fez, pois em lado algum da sentença se consegue perceber a razão do seu acolhimento, sobretudo depois de reconhecer como preenchidos os quatro requisitos de que depende a sua aplicação.
U)Logo, impõe-se o reconhecimento, também aqui, da nulidade da sentença por violação do dever de fundamentação, prevista no artigo 668º, n.º 1, b), ou, no mínimo, mas sem conceder, o reconhecimento de uma deficiente fundamentação e, consequentemente, a revogação da sentença ora recorrida.
Nestes termos, (…) deve a douta sentença revogada, sendo substituída por outra que determine a condenação da Recorrida nos termos peticionados na p.i..

Contra-alegou a Ré, formulando, a final, as seguintes conclusões:
A sentença não enferma de nulidade por omissão de pronúncia por o conhecimento da questão da requerida apensação dos autos anteriores aos presentes autos ter ficado prejudicada pela junção aos presentes autos de certidão da sentença, já transitada em julgado, proferida naqueles autos e nessa sequência ter sido proferida a sentença em crise (608º-2 e 615º-1/ CPC).
A sentença também não padece do alegado erro de julgamento por ter considerado improcedente a exceção dilatória do caso julgado invocada pela ora recorrente, relativamente às exceções invocadas pela ora recorrida na sua contestação.
Ao contrário do que a recorrente defende, as exceções invocadas pela ré ora recorrida na sua contestação não foram apreciadas e decididas na anterior ação.
Não se verificam no caso sub judice os requisitos cumulativos exigidos pela lei para que se verifique a exceção do caso julgado, nos termos da norma do artigo 580º do CPC.
A recorrente alega a autoridade de caso julgado, a função positiva de caso julgado, a qual impede que uma questão que já foi decidida com trânsito em julgado possa voltar a ser discutida, defendendo que não é exigível a coexistência da tríplice identidade.
O caso julgado, mesmo a sua função positiva ou autoridade de caso julgado, tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como dispõe o artigo 673º do CPC.
A recorrente entende que a sentença condenou em objeto diferente do que lhe foi pedido por ter condenado a ré ora recorrida no pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro do sinal, quando tinha pedido a condenação da ré ora recorrida no pagamento do valor do prédio á data do não cumprimento.
Efetivamente a sentença não pode condenar em objeto diverso ou em quantidade superior ao pedido, regras que poderão ser ainda consideradas decorrência do princípio do dispositivo (609º-1 e 615º-1/e CPC).
Mas isso não se verifica na situação dos autos, a indemnização que em concreto a ré ora recorrida foi condenada a pagar á autora ora recorrente, cabe do ponto de vista qualitativo e quantitativo no pedido formulado pela autora ora recorrente, porque não só o valor da mesma está contido no valor do pedido formulado pela autora ora recorrente e como tal não está a condenar em quantidade superior, como também está no âmbito de uma condenação em indemnização, pelo que também não condenou em objeto diverso do que foi pedido.
10ªA sentença não viola as normas contidas nos artigos 609º-1 e 615º-1/e) do CPC.
11ªA recorrente alega que a sentença é nula por no seu entender a mesma não apresentar fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão de condenar a ré ora recorrida a pagar-lhe uma indemnização correspondente ao dobro do sinal.
12ªÉ entendimento da doutrina e da jurisprudência que a falta de motivação suscetível de integrar a nulidade da sentença é apenas a que se reporta á falta absoluta de fundamentos, quer respeitem a factos, quer ao direito.
13ªA autora admite nas conclusões L) e U) que a sentença se encontra fundamentada, embora considere a fundamentação deficiente e não concorde com a mesma para fundamentar o não acolhimento do seu pedido.
14ªA sentença não viola o dever de fundamentação previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC.

A Ré apresentou recurso subordinado, formulando, a final, as seguintes conclusões:
O Tribunal a quo considerou válido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a autora e a ré, que é instituição particular de solidariedade social, por entender que é a venda e não a promessa de compra e venda de imóvel, que deve ser precedida de concurso público ou hasta pública.
A hasta pública é também uma modalidade de transmissão, como é a compra e venda, pelo que a primeira nunca poderia anteceder a segunda pois produziria desde logo a transmissão, que era o efeito jurídico pretendido.
Ao considerar que o contrato promessa deveria suceder à hasta pública e que por isso é válido, o Tribunal a quo violou as normas dos artigos 23º-1 do EIPSS e do artigo 410º-1 do C.C.
Nos termos do artigo 23º-1 do EIPSS a alienação do imóvel da ré poderia também ter sido feita através de outra modalidade de transmissão do imóvel desde que o transmissário fosse seleccionado através de concurso público e seguindo a regra do artigo 410º-1 do C.C., esse regime que rege a transmissão do imóvel da ré, é também aplicável ao contrato-promessa preliminar.
Ao considerar que a celebração do contrato promessa celebrado entre a autora e a ré não tem que observar o método de selecção do promitente contratante adquirente previsto naquela norma, que é o concurso público, o Tribunal a quo violou também os citados comandos legais do artigo 23º- 1 do EIPSS e 410º-1 do C.C.
A celebração do contrato promessa de compra e venda com violação do regime legal constante do artigo 23º-1 do EIPSS e do artigo 410º-1 do C.C., torna aquele contrato nulo, nos termos da norma do artigo 280º-1 do C.C.
Ao considerar válido o contrato promessa celebrado entre a autora e a ré, o Tribunal a quo violou as regras do artigo 23º-1 do EIPSS e dos artigos 410º-1 e 280º-1 do C.C.
Deve a sentença ser revogada e substituída por douta decisão que declare a nulidade do contrato promessa celebrado entre a autora e a ré, devendo esta ser absolvida do pedido.

Respondeu a Autora ao recurso subordinado, formulando as seguintes conclusões finais:
a)-A presente alegação é inadmissível;
b)-Desde logo, por bem ter andado o Meritíssimo Juiz a quo ao decidir como decidiu na douta sentença;
c)-Em segundo lugar, por igual pedido, com idêntica causa de pedir, já haver sido formulado na ação que correu termos na 1.ª Secção da 1.ª Vara Cível de Lisboa, proc. N.º 12202/01.8TVLSB, constante a fls. 112/122 dos presentes Autos, que teve por objeto o contrato-promessa sub judice e as mesmas partes, o que constituiria caso julgado;
d)-Em terceiro lugar, a arguição daquela nulidade formal pela recorrente constitui, nas circunstâncias concretas das relações entre as partes, um caso típico de "venire contra factum proprium" e de flagrante abuso de direito, nos termos do artº 334º do CC, que viola frontalmente os princípios fundamentais da boa fé e dos bons costumes e dos usos, que choca até o próprio sentimento de justiça e da ética jurídica.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II.Direito.

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, as questões a decidir são:
No recurso principal:
1A nulidade de sentença, por omissão de pronúncia, falta de fundamentação e condenação em pedido diverso;
2O caso julgado.
3Saber se a Ré devia ter sido condenada na indemnização peticionada pela Autora.
No recurso subordinado:
4–Saber se o contrato promessa celebrado entre as partes é nulo e se consequentemente a Ré devia ter sido absolvida.

III.Matéria de facto.

A matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido e que não vem posta em causa, é a seguinte:
1)-A ré é proprietária do prédio urbano, com área de 1023m2, sito em Lisboa, na Rua da Manutenção, nºs 18 a 32, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 804/19981109, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Beato nº 388.
2)-A autora é uma sociedade comercial que tem por objeto o comércio e indústria de materiais de construção civil, comércio e representações e reparações de veículos automóveis, peças e acessórios, importação, exportação e comércio de diversos produtos.
3)-Em 28.07.1998, M... e J..., na qualidade de membros do Conselho de Administração da Fundação ... e esta como promitente vendedora e cujas assinaturas nessas qualidades foram reconhecidas presencialmente no Cartório Notarial de Montemor-o-Novo, em 28.07.1998 e a ré, na qualidade de promitente compradora, subscreveram o instrumento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, cuja cópia consta a fls. 70vº/72 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, onde consta, para além do mais, (…) na qualidade em que, respetivamente, outorgam, é celebrado o presente contrato promessa de compra e venda, que se regerá pelas cláusulas seguintes, que ambos reciprocamente, declaram aceitar:

Cláusula 1ª:
1.-A representada dos 1ºs outorgantes – F..., é dono e legítima proprietária do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua da Manutenção, 24 a 32, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Beato sob o artigo 388.
2.-O prédio identificado no número anterior não se encontra ainda descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva, mas já foi requerida a sua descrição e inscrição a favor da representada dos primeiros outorgantes, em 98.07.27, conforme se demonstra pela cópia da respectiva apresentação que figura em anexo ao presente contrato. 3. Sobre o prédio identificado no número 1 incide um ónus de renda vitalícia a favor de L..., no valor de 5.000$00 mensais, a satisfazer pela representada dos primeiros outorgantes, (…).

Cláusula 2ª:
1.-Pelo presente contrato a representada dos primeiros outorgantes promete vender à representada do segundo outorgante, ou aos sócios desta, ou a uma outra sociedade só por eles constituída, e estes prometem comprar-lhe o prédio identificado na Cláusula 1ª.

Cláusula 3ª: O preço ajustado da compra e venda é de Esc: 30.000.000$00 e será pago pela promitente compradora à promitente vendedora da seguinte forma:
1.-Neste ato e como sinal e princípio de pagamento, a quantia de Esc: 3.000.000$00, quantia que a promitente vendedora recebe em simultâneo com a assinatura do presente contrato e de que dá quitação.
2.-No ato da celebração da escritura de compra e venda, o remanescente em dívida, ou seja a quantia de Esc: 27.000.000$00, sem prejuízo da dedução a que houver lugar nos termos previstos infra no nº 2 da cláusula 6ª.

Cláusula 4ª: A escritura pública de compra e venda será celebrada nos seguintes prazos e condições:
a)-A promitente vendedora obriga-se a obter o registo da descrição predial do prédio e a respetiva inscrição a seu favor, bem como a demais documentação relativa ao prédio e à promitente vendedora, necessária à outorga da escritura;
b)-Logo que se encontrem efetuados os registos referidos na alínea anterior a promitente vendedora informará desse facto a promitente compradora, enviando-lhe a respetiva certidão, por carta registada com aviso de receção, no prazo máximo de oito dias a contar da efetivação dos registos; (…);
i)-No caso de, nos termos da parte final da alínea f) desta cláusula, a promitente compradora optar pela manutenção do contrato a escritura de compra e venda será realizada em data, hora, e cartório notarial a indicar pela promitente compradora à promitente vendedora com antecedência mínima de 15 dias, mas nunca mais de 90 dias depois de se mostrar cancelado o registo do ónus referido no número 3 da cláusula 1ª, nem depois de esgotado o prazo de 1 ano referido na parte final da alínea f) desta cláusula. (…).

Cláusula 6ª:
1.-À data da celebração do presente contrato, a promitente compradora é, há vários anos, arrendatária do prédio prometido comprar e vender, pelo que o contrato de arrendamento se manterá em vigor, com todos os direitos e obrigações dele decorrentes para ambas as partes, até à celebração da escritura de compra e venda.
2.-Porém, ao valor previsto no número 2 da cláusula 3ª será abatido o valor total das rendas efetivamente pagas pela promitente compradora, na qualidade de inquilina, à promitente vendedora na qualidade de senhoria, ao abrigo do contrato de arrendamento, desde a data da assinatura do presente contrato até à data da escritura de compra e venda, desde que a mesma não exceda o prazo de 1 ano, caso em que as rendas pagas findo esse prazo serão suportadas pela inquilina sem direito a qualquer dedução.

Cláusula 7ª:
1.-Pelo presente contrato, a promitente vendedora desde já autoriza a promitente compradora a realizar todas as obras de conservação, manutenção ou alteração que entenda convenientes no espaço prometido vender e de que permanece arrendatária. (…).
Cláusula 8ª: O incumprimento do presente contrato tem as consequências previstas na Lei, incluindo, expressamente, a faculdade de recurso à execução específica, atribuída à parte não faltosa, nos termos do artigo 830º do Código Civil. (…)”..

4)Em 28.02.1994 foi outorgada escritura pública de arrendamento, cuja cópia consta a fls. 74/76 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, em que a ré declarou “Que na qualidade em que outorga, pela presente escritura dá de arrendamento à sociedade representada pelos segundos outorgantes, o prédio urbano, sito em Lisboa, na Rua da Manutenção, nº 18, 22, 26, 28, 30 e 32, da freguesia do Beato, concelho de Lisboa, (…). Que faz este arrendamento pelo prazo de um ano, com início em 01.01.1994 e pela renda mensal de esc: 62.500$00 e ainda pelos termos constantes do documento complementar anexo a esta escritura que arquivo e cujo conteúdo eles outorgantes declaram conhecer e aceitar perfeitamente. E Pelos Segundos outorgantes [ora autora] foi dito: Que aceitam para a sociedade sua representada este arrendamento nos termos expostos. (…)”.

5)A ré é uma instituição particular de solidariedade social instituída por vontade da sua fundadora, A..., manifestada em testamento que outorgou em 14.02.1968, e está reconhecida por despacho do Sr. Secretário de Estado da Segurança Social de 06.07.1976, publicado no Diário da República, III Série, de 02 de agosto de 1976.
6)Os estatutos da ré foram aprovados e estão publicados no Diário da República, III Série, de 02 de agosto de 1976, cuja cópia consta a fls. 36/40 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, mas que foram alterados para os termos aprovados por despacho de 16.05.1995 da Diretora-Geral da Ação Social, conforme consta a fls. 60/64 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
7)A ré foi declarada instituição particular de solidariedade social pelo despacho nº 6/83 do Secretário de Estado da Segurança Social de 04.05.1983, publicado no Diário da República nº 116, II série de 20.05.1983.
8)A ré não procedeu à entrega da certidão a que se refere a cláusula 4ª, b) do acordo escrito descrito em 3).
9)Com data de 1998.11.09 encontra-se registada sobre o prédio descrito em 3) uma hipoteca legal a favor de Laurinda Vitória da Conceição, cujo cancelamento foi registado em 2006.06.07, conforme consta da cópia da certidão a fls. 68/70 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
10)L... em agosto de 1999.
11)Em 19.04.2001 a autora propôs contra a ré uma ação declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, no qual pedia o cancelamento do registo do ónus de renda vitalícia a favor de L... e a prolação que produzisse os efeitos da declaração negocial de venda, por parte da ré, do prédio urbano, com área de 1023m2, sito em Lisboa, na Rua da Manutenção, (…), transmitindo-se, por essa via e pelo preço de esc: 30.000.000$00 (€149.639,37), à autora a propriedade do mesmo, a qual correu seus termos na 11ª Vara Cível de Lisboa, 1ª secção, sob o nº 53/01, atualmente nº 12.202/01.8TVLSB.
12)No âmbito da ação referida em 11) foi realizada perícia, cuja cópia do relatório consta a fls. 85/96 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
13)No âmbito da ação judicial referida em 11) e 12) foi proferida sentença, transitada em julgado em 19.11.2012, cuja certidão consta a fls. 113/122 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, onde consta, para além do mais, “(…)Daí a conclusão a retirar do comportamento omissivo da ré não possa deixar de ser a de que sendo ainda possível a obrigação, mostra-se incumprido o contrato promessa por banda da ré, uma vez que não ilidiu a presunção de culpa estabelecida no art.º 799º, do Cód. Civil, constituindo-se em mora, pelo menos, a partir de 22.11.2000, de harmonia com o disposto nos artº.s 804º e 805º, nº 2, al. a), do Cód. Civil. Assente que a ré se encontra em mora e que o art.º 830º, nº 1, do Cód. Civil se basta com esta situação de incumprimento “lato sensu”, teria à partia que reconhecer-se à autora o direito à pretendida execução específica do contrato promessa.
(…). Contudo, no caso em apreço, não poderá olvidar-se que a ré, dado tratar-se de uma pessoa coletiva impõe-se-lhe a observância de regras estatutárias e legais tendentes à salvaguarda dos fins preconizados pelo instituidor. (…). Ora, segundo o estatuído no art.º 23º do DL nº 119/83, de 25.02, a alienação de bens imóveis pertencentes à instituição deverá ser feita em concurso ou hasta pública. Só podendo ser feitas por negociação direta quando seja previsível que daí decorram vantagens para a instituição ou por motivos de urgência, fundamentado em ata. Competiria deste modo à autora demonstrar, que da prometida alienação decorreriam vantagens para a instituição, ou que em ata do conselho geral constasse deliberação quanto ao caráter urgente da alienação. Sucedendo no caso em apreço a ausência de demonstração da vantagem que para a ré adviria do objeto mediato do contrato promessa, cuja execução específica a autora peticiona, não poderá deixar de concluir-se pela improcedência da sua pretensão. (…). Destarte há que concluir ser o contrato promessa em análise insuscetível de execução específica, estando vedado ao tribunal substituir-se ao contraente em mora, nos termos previstos nos art.ºs 442º, nº 3 e 830º, Código Civil. (…). Por todo o exposto, na presente ação em que é autora Melo & Rodrigues, Ld.ª e ré Fundação Arcelina Vítor dos Santos, julga-se a ação e reconvenção totalmente improcedentes, absolvendo autora e ré dos pedidos que contra elas foram deduzidos. (…)”.
14)Após a prolação da sentença descrita em 13), a autora declarou ter perdido o interesse na concretização do negócio.

IV.Apreciação

Recurso principal:

1ª questão: Da nulidade de sentença.
recorrente sustenta a nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º do CPC, com base na falta de fundamentação do segmento decisório em que se desatendeu ao pedido formulado, optando-se por condenar a Ré em indemnização consistente no dobro do sinal, ainda com base nesta mesma condenação, enquanto condenação em objecto diverso do pedido, e com base na omissão de pronúncia relativamente ao mérito da apensação requerida.
É nula a sentença, segundo o referido preceito, quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito da decisão, quando o tribunal não se pronuncie sobre questões de que deva pronunciar-se e ainda quando o tribunal condene em objecto diverso do que lhe tiver sido pedido.
Porém, e salvo o devido respeito, no caso concreto, nenhuma de tais nulidades foi cometida.
Como sustenta a recorrida, é jurisprudência firme que só a falta absoluta de fundamentação – e não a fundamentação deficiente – gera a nulidade de sentença. A sentença menciona que não pode ser atendida a pretensão do aumento do valor da coisa, ainda que a Autora tenha direito à resolução do contrato. E no parágrafo seguinte prossegue indicando que entende que é devido o valor de indemnização consistente no dobro do sinal, pelas razões que explica. Isto é, há, ainda que não de modo profuso nem suficientemente explicativo, uma fundamentação.   
 
Quanto à nulidade por condenação em objecto diverso do pedido:
A Autora peticionou a resolução do contrato promessa e a condenação da Ré a pagar-lhe o valor do prédio à data do não cumprimento da promessa.
Tal pedido foi pela Autora fundamentado, e aliás insere-se, na previsão legal constante do artigo 442º nº 2 e 3 do Código Civil, ou seja, de que “2 - Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
3-Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º; se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.º

Quer isto dizer que ao contraente não faltoso serve a lei duas hipóteses em termos de sancionamento ou consequência da resolução do contrato em função do incumprimento definitivo devido à outra parte: ou exige o dobro do que prestou, ou, tendo havido tradição da coisa, pode exigir alternativamente o valor dela, determinado objectivamente, ao tempo do não cumprimento da promessa, no fundo, a valorização da coisa durante o tempo de pendência de cumprimento. Compreende-se: pode o dobro do sinal entregue, por exemplo, ser muito inferior à diferença entre o preço convencionado e o preço que o bem apresenta transcorrido o tempo de pendência da promessa. Tendo havido tradição da coisa, o nível de frustração de expectativa negocial e simultaneamente de expectativa de valorização de património é mais agravado. E por outro lado, este tipo de sanção opcional quadra melhor aos casos em que o tempo de pendência duma promessa se prolongou acentuadamente.

Estamos em presença de duas indemnizações/sanções alternativas cuja opção está atribuída à livre disponibilidade do beneficiário, de tal modo que se o tribunal indeferir a pedida e decidir atribuir a outra, está a violar o princípio dispositivo, incorrendo em nulidade de sentença?
Sem dúvida, como já mencionámos, a lei concede uma alternativa, pode pedir o dobro do prestado, pode pedir o valor da coisa. Simplesmente, estamos sempre a falar de resolução do contrato, isto é, quanto se pretendeu com ele não será possível obter, os efeitos jurídicos que se obtiveram e pretendiam obter não poderão manter-se nem obter-se. Haverá que reposicionar os contratantes à situação que existiria se o contrato não tivesse sido celebrado, excepção feita àquele que tenha dado causa à resolução, porque para esse haverá de definir-se um sancionamento que funcionará como reparação a favor do outro. Em todo o caso, esta sanção nunca passa, nos termos alternativos previstos no artigo 442º do Código Civil, por outra solução, por outro efeito jurídico, que não seja a atribuição de um montante em dinheiro ao contraente não faltoso, e portanto, ao fim e ao cabo, o que a lei afinal concede, como alternativa, é o critério de cálculo desse montante. Ou seja, substancialmente, o tribunal recorrido, no caso concreto, não serviu coisa diversa daquela que teria de servir se tivesse simplesmente deferido o pedido feito, a diversidade está apenas no montante pecuniário em que a Ré foi condenada. E em bom rigor, nem sequer podemos afirmar que há essa diversidade, pois a matéria de facto provada nos autos não demonstra qual o valor do prédio prometido vender à data do não cumprimento da promessa.
Entendemos pois que não se verifica nulidade de sentença por condenação em objecto diverso do pedido.

Finalmente, quanto à nulidade por omissão de pronúncia, recordamos que os tribunais têm o dever de se pronunciar sobre as questões que lhes sejam colocadas, mas que isso não impede que não se pronunciem se a pronúncia já resultar, implicitamente, da decisão duma outra questão.

Ora, tendo sido requerida, na petição inicial, a apensação, a estes autos, da acção referida no ponto 11 da matéria de facto supra, com fundamento na “economia processual e no caso julgado”, a verdade é que o tribunal não se pronunciando expressamente sobre essa apensação, determinou, antes da prolação da decisão final, se apurasse o estado daqueles autos e se obtivesse certidão de sentença com trânsito em julgado, e foi a partir desta que consignou o que à referida acção respeita e se mostra descrito na matéria de facto provada.

Nos termos do artigo 267º do CPC, a apensação serve para a apreciação conjunta de casos pendentes de apreciação em que se verifiquem os pressupostos de admissibilidade do litisconsórcio, da coligação, da oposição ou da reconvenção. Nenhum destes casos se verifica no presente caso, mas, mais que isso, a não pronúncia do tribunal sobre uma apensação pedida na petição inicial configuraria uma nulidade processual (artigo 195º do CPC) e não uma nulidade de sentença, e, quando a sentença (despacho saneador-sentença) é proferida, já o tribunal recorrido se tinha assegurado do conhecimento sobre os contornos daquela acção que precisava para decidir esta – ou seja, sanando aquela nulidade – e já tinha assegurado que o processo já não estava pendente, já tinha sido decidido com trânsito em julgado, razão pela qual também não teria qualquer interesse a apensação.

Portanto, com esta posição do tribunal recorrido e em face dos factos provados que respeitam precisamente ao conhecimento daquela acção na parte que é relevante para a decisão desta, não pode imputar-se ao tribunal recorrido a nulidade de sentença por omissão de pronúncia sobre a requerida apensação da acção anterior feita na petição inicial.
Improcedem portanto as nulidades invocadas.

2ª questão:
Do caso julgado:
Na contestação, a Ré defendeu-se invocando a nulidade do contrato promessa e a impossibilidade legal de cumprimento da obrigação prometida. Na resposta da Autora foi invocado o caso julgado. Como se menciona no nº 5 da resposta: “Ambas as questões, nulidade do contrato e regularidade da representação da R. (promitente vendedora), já tinham sido invocadas pela R. e decididas pelo Meritíssimo Juiz nos autos que correram termos na 1ª Secção da 1ª Vara Cível de Lisboa sob o nº 12 202/01.8TVLSB, devendo concluir-se pela verificação de caso julgado relativamente a estas duas matérias”. Mais, também conforme resulta do nº 8 da mesma resposta, a Autora afirmou que a questão da extinção da obrigação por impossibilidade de cumprimento se encontrava já julgada na referida acção.

O tribunal recorrido conheceu da excepção de caso julgado, julgando-a improcedente.

A solução da presente questão do recurso não reveste interesse autónomo para o recurso principal. Se apenas este tivesse sido interposto, e nos termos em que o foi, haveria apenas a decidir, posto que estaria garantido que o tribunal recorrido tinha declarado haver direito à resolução do contrato promessa, qual o critério e montante da indemnização na qual condenar a Ré. Nenhuma suposta violação de caso julgado teria consequências sobre o pedido formulado pela Autora e sobre os termos em que o mesmo foi decidido.

Porém, em face do recurso subordinado, em que a questão da nulidade do contrato promessa se volta a colocar, devemos relegar o conhecimento desta questão para o recurso subordinado, se aquela vier a proceder.

3ª questão:
Saber se o tribunal recorrido devia ter condenado a Ré na indemnização peticionada pela Autora.

Ainda que o tribunal recorrido não tenha sido particularmente expressivo, o que se pode dizer para afastar, como se deve, a pretensão de condenação na indemnização peticionada, é que não ficou provado o valor do imóvel, ou seja, o critério de fixação ou de apuramento do valor da indemnização, passando pelo apuramento do valor do imóvel à data do incumprimento, não é possível de ser operado pois não há factos suficientes para tanto, sendo certo que qualquer decisão se tem de sustentar no resultado – essencialmente – do cumprimento dos ónus de alegação e prova – artigo 342º do Código Civil e artigo 607º do Código de Processo Civil.

Repare-se que a esta questão é indiferente a questão do caso julgado ou do valor, digamos assim mais latamente, da acção anterior nesta: por um lado, o resultado da prova pericial não assegura a prova dos factos sobre os quais a perícia incide (artigo 389º do Código Civil: “A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.”), por outro na fundamentação de facto da sentença anterior e da actual, não se encontra qualquer facto sobre o valor do imóvel prometido vender, a partir do qual se pudesse operacionalizar o critério de fixação de valor de indemnização invocado pela Autora e recorrente.
Improcede assim esta questão.

Recurso subordinado:
Sustenta a Ré, recorrente subordinada, que o contrato promessa é nulo e que deve por isso ser absolvida. Opõe-se-lhe a Autora, recorrida, invocando o caso julgado e o abuso de direito.
A nulidade do contrato procede, invocadamente, da violação dos artigos 23º nº 1 do EIPSS e dos artigos 410º nº 1 e 280º nº1 do C.C.  
  
Estando adquirido que: 
“5)-A ré é uma instituição particular de solidariedade social instituída por vontade da sua fundadora, A..., manifestada em testamento que outorgou em 14.02.1968, e está reconhecida por despacho do Sr. Secretário de Estado da Segurança Social de 06.07.1976, publicado no Diário da República, III Série, de 02 de agosto de 1976.
6)-Os estatutos da ré foram aprovados e estão publicados no Diário da República, III Série, de 02 de agosto de 1976, cuja cópia consta a fls. 36/40 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, mas que foram alterados para os termos aprovados por despacho de 16.05.1995 da Diretora-Geral da Ação Social, conforme consta a fls. 60/64 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
7)-A ré foi declarada instituição particular de solidariedade social pelo despacho nº 6/83 do Secretário de Estado da Segurança Social de 04.05.1983, publicado no Diário da República nº 116, II série de 20.05.1983”
nenhuma dúvida ocorre, nem controvérsia existe entre as partes, de que, atenta a data do contrato e o disposto no artigo 12º do Código Civil, o regime estatutário aplicável à Ré era o do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 9/85, de 9 de Janeiro, 89/85, de 1 de Abril, 402/85, de 11 de Outubro, e 29/86, de 19 de Fevereiro, segundo o artigo 23º do qual, a alienação de bens imóveis devia ser feita em concurso ou hasta pública, conforme fosse mais conveniente, sem prejuízo de negociação directa quando previsível que dela decorresse vantagem ou por motivo de urgência, o que teria de ser fundamentado em acta, e em qualquer caso os preços aceites não poderiam ser inferiores aos praticados no mercado normal, de harmonia com os valores estabelecidos em peritagem oficial.

Invoca pois a Ré, recorrente subordinada, que na ausência de concurso ou hasta pública, o contrato promessa de compra e venda de imóvel da sua propriedade é nulo, por violação do referido artigo 23º nº 1 e nos termos dos artigos 410º nº 1 e 280º do Código Civil, ou seja, na medida da aplicabilidade ao contrato promessa, das disposições aplicáveis ao contrato prometido.

O artigo 23º em causa estabelece, é certo, uma ordem, segundo a qual a regra será, para a alienação de imóveis, a do concurso ou hasta pública. Mas, no segundo lugar dessa ordem, encontramos a previsão da admissibilidade de negociação directa, desde que ocorra urgência ou vantagem: ou seja, e tendo em conta que o último pressuposto do preceito é o de que, concurso ou negociação directa, o preço nunca pode ser inferior ao preço normal estabelecido em peritagem oficial, o que é manifesto é que a “vantagem” que pode ser fundamento da legalidade da negociação directa pode ser precisamente uma vantagem económica, por exemplo, que o preço que se consegue em negociação directa é superior ao preço que se consegue no concurso ou hasta pública. Por exemplo, no caso concreto, podemos até estar perante um caso em que fazia todo o sentido a negociação directa: - vendia-se ao arrendatário, possivelmente mais facilmente e mais caro do que se conseguiria em concurso, com interessados a perderem interesse em face de um armazém arrendado. 

Admitindo a lei que ocorra negociação directa – isto é, não exigindo exclusivamente e sempre o concurso ou hasta pública, enquanto única forma de assegurar a melhor gestão do património da instituição que é simultaneamente a garantia de que a mesma continuará a prosseguir os fins de solidariedade social e que no caso concreto lhe merecerem a declaração de utilidade pública – naturalmente que a figura jurídica através da qual tal negociação opera, na translação da propriedade, é o contrato de compra e venda, o qual, sem qualquer dúvida, pode ser precedido de contrato promessa de compra e venda ao qual não são aplicáveis as disposições do contrato prometido no que diz respeito à forma.

Parece-nos claro que, no caso de alienação de bens imóveis das instituições particulares de solidariedade social, o interesse que o legislador quer proteger não é o dos possíveis compradores de tais bens, mas sim o de proteger o interesse da instituição não autorizando actos que desvalorizem o seu património e que a impeçam de exercer os seus fins. Porque o interesse em causa é unilateral, não vemos também que o acto de pré-negociação directa com preterição da regra de concurso ou hasta pública viole de maneira intolerável pela ordem jurídica interesses relevantes de toda a comunidade, em termos tais que se deva eliminá-lo por via da nulidade, de acesso a qualquer interessado e a todo o tempo.

Repare-se, pelo contrário, que estando apenas em causa garantir que os bens, neste caso, da fundação, não são desbaratados, esta garantia é em primeira linha estabelecida a favor da própria fundação, garantia a verificar pelos seus órgãos sociais: - é por isso que o requisito de admissibilidade da negociação directa é o da fundamentação em acta (fundamentação que aliás nada impede que não conste do contrato promessa mas venha a ser obtida a tempo da celebração do contrato prometido, único que verdadeiramente opera a translação da propriedade). E é por isso que, na versão legal em vigor ao tempo da celebração do contrato promessa dos autos, o artigo 22º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 9/85, de 9 de Janeiro, 89/85, de 1 de Abril, 402/85, de 11 de Outubro, e 29/86, de 19 de Fevereiro, se estabelecia como vício a anulabilidade e não a nulidade: “As decisões tomadas por qualquer dos corpos gerentes fora da sua competência são anuláveis”.  

O que se contextualizarmos para o caso concreto, voltaria a fazer todo o sentido: se após a fase inicial (promessa) da negociação directa, se verificasse que este negócio directo era mais vantajoso, podia então a instituição simplesmente não pedir a anulação.

Na última versão do diploma, com a alteração do DL 172-A/2014, a redacção do artigo 22º foi alterada para “As deliberações de qualquer órgão contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objeto, seja em virtude de irregularidades havidas na convocação ou no funcionamento do órgão, são anuláveis, se não forem nulas, nos termos do artigo anterior”. Não se tratando dum esclarecimento, fica porém mais claro todo o tipo de actos que podiam exorbitar a competência dos corpos gerentes. E fica também claro que, para o legislador, a preterição de concurso ou hasta pública não era caso tão grave que merecesse ser punido com nulidade.

Não entendemos pois que a não realização de concurso ou hasta pública importe automaticamente a nulidade do contrato promessa dos autos.

Ora, estando apenas em causa no recurso saber se a preterição do artigo 23º nº 1 do Estatuto das IPSS determina a nulidade do contrato promessa em discussão nos autos, entendemos que não, como explicado, e por isso improcede o recurso subordinado. Em consequência fica prejudicada a apreciação da questão do caso julgado bem assim como a do abuso de direito.

Tendo ambas as recorrentes decaído, em cada um dos recursos que respectivamente interpuseram, são, cada uma, responsáveis pelas respectivas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

V.–Decisão.
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento aos recursos principal e subordinado e em consequência confirmar inteiramente o despacho saneador-sentença recorrido.
Custas do recurso principal pela recorrente principal, e do recurso subordinado pela recorrente subordinada.
Registe e notifique.



Lisboa,   21 de Setembro de 2017



Eduardo Petersen Silva
Maria Manuela Gomes
Fátima Galante
Decisão Texto Integral: