Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
901/14.9T8SNT.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ALIMENTOS A FILHO MAIOR
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. O n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, na redação dada pela Lei n.º 24/2017, de 24 de maio, com entrada em vigor a 23 de junho de 2017, que veio permitir que o FGADM, em substituição do progenitor obrigado a alimentos, continue a assegurar o pagamento das prestações que hajam sido fixadas durante a menoridade, até que o jovem complete 25 anos de idade se e enquanto durar o seu processo de educação ou de formação profissional, é aplicável a jovens que tenham atingido a maioridade antes da entrada em vigor da Lei n.º 24/2017, sendo a obrigação exigível após a data da entrada em vigor da Lei e desde o primeiro dia do mês seguinte ao da decisão que reconheça o direito do jovem maior à aludida prestação.
II. A Lei n.º 75/98 e o Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, que a regulamenta, não preveem a intervenção do FGADM ou da entidade que o gere no procedimento que desemboca na fixação da prestação substitutiva da prestação alimentar parental.
III. Quanto à fase posterior, de apreciação da renovação da prestação, deverá conceder-se ao IGFSS a possibilidade de se pronunciar previamente à decisão de manutenção da prestação ou não, se se considerar que tal é aconselhável, face a dúvidas ou questões que, no caso concreto, se suscitem e o justifiquem.
IV. A eventual omissão de auscultação prévia do IGFSS, nas circunstâncias supra previstas no n.º III, só determina a anulação de atos processuais se for alegado e demonstrado que a mesma influiu na decisão da causa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1. Em 26.10.2015, no âmbito de incidente de incumprimento das responsabilidades parentais (falta de pagamento de alimentos a menores), pendente na Comarca de Lisboa Oeste, 1.ª Secção de Família e de Menores de Sintra, em que é requerente Lúcia e requerido Carlos, foi proferido despacho no qual se determinou que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) pagasse à requerente a quantia mensal de € 66,66, correspondente à pensão de alimentos que a favor da menor Joana (nascida em 24.01.1999) havia sido anteriormente fixada, e bem assim igual quantia a favor do menor Rui (nascido em 21.5.2005).
2. O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP (IGFSS) iniciou o pagamento das aludidas prestações em novembro de 2015.
3. Em 28.11.2016 proferiu-se despacho determinando a continuação das prestações a serem pagas pelo FGADM, por se entender que se mantinham os respetivos pressupostos.
4. Em 17.9.2017 a requerente juntou aos autos documentos destinados a comprovar a necessidade da manutenção das prestações a cargo do Fundo.
5. Em 10.10.2017 o Ministério Público declarou que, face aos documentos apresentados pela requerente não se opunha a que o FGADM continuasse a suportar o pagamento das prestações alimentícias devidas pelo requerido e em substituição deste. Mais promoveu que se obtivesse na Base de Dados da Segurança Social e na Base de Dados das Finanças informação atualizada sobre a situação laboral e fiscal do requerido e se notificasse a requerente para comprovar documentalmente nos autos que a jovem Joana, que atingira a maioridade em janeiro de 2017, continuava o seu processo de educação e formação profissional.
6. Em 23.11.2017 foi proferido, a fls 112 dos autos, o seguinte despacho:
Atendendo à prova documental apresentada pela requerente, à promoção do Ministério Público, entendo que estão reunidos os requisitos legais para a requerente continuar a beneficiar da prestação concedida pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores em substituição do devedor.
Notifique e comunique ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
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Como se promove.
Prazo à requerente: 10 dias.
Junte print do resultado das buscas e, após, abra vista.”
7. Em 30.11.2017 o IGFSS foi notificado nos seguintes termos:
Fica por este meio notificado, de que por despacho do MºJuiz de Direito nos autos supra referenciados e cuja cópia se junta, foi ordenada a manutenção da garantia, por essa instituição, do pagamento da prestação atribuída à menor Pedro Manuel Pinta da Cruz.”
8. Em 11.12.2017 a requerente juntou nos autos documentos destinados a comprovar que a sua filha se encontrava a estudar, com aproveitamento.
9. Em 30.01.2018 foi proferido o seguinte despacho:
Quanto à jovem Joana: está a frequentar o curso técnico de turismo na Escola Profissional Gustave Eiffel com aproveitamento, conforme resulta da documentação que antecede. Assim, mantém-se a intervenção do FGA quanto à mesma conforme já decidido a flhs. 112.
Em Novembro de cada ano, a progenitora deverá juntar documentação relativa à frequência escolar e aproveitamento da Joana.
Notifique a requerente e o FGA.”
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O IGFSS apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I. A Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, criou o FGADM, e o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, veio regular a garantia dos alimentos devidos a menores previstos naquela Lei, com o objetivo de o Estado colmatar a falta de alimentos do progenitor judicialmente condenado a prestá-los, funcionando como uma via subsidiária para os alimentos serem garantidos ao menor.
II. O n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, na redação dada pela Lei n.º 24/2017, de 24 de maio, com entrada em vigor a 23 de junho de 2017, veio permitir que o FGADM, em substituição do progenitor obrigado a alimentos, continue a assegurar o pagamento das prestações que hajam sido fixadas durante a menoridade, até que o jovem complete 25 anos de idade se e enquanto durar processo de educação ou de formação profissional (desde que, cumulativamente, se encontrem preenchidos os restantes requisitos legalmente exigidos – n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, artigo 48.º do RGPTC, DL n.º 164/99, de 13 de maio, e DL n.º 70/2010, de 16 de junho).
III. Todavia, a obrigação de continuidade do pagamento em causa a assegurar pelo Fundo, cessa se:
- O respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes de atingida a maioridade;
- O processo de educação ou formação profissional tiver sido livremente interrompido;
- Se o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.
IV. No caso em apreço, foi decido manter-se a prestação de alimentos a suportar pelo FGADM para a jovem, ora maior, Joana.
V. Sucede, porém, que a prestação de alimentos foi cessada automaticamente com a maioridade, nos termos da legislação aplicável à data, pelo que, não há prestação a manter.
VI. Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que não se encontram preenchidos os pressupostos legais subjacentes à intervenção do FGADM, no que se refere à jovem, ora maior.
VII. Recorde-se que a Lei n.º 24/2017, de 24 de maio, que alterou o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, apenas entrou em vigor a 24 de junho de 2017, ou seja, em data posterior à data em que a jovem atingiu a maioridade (24.01.2017).
VIII. E a Lei só dispõe para o futuro, nos termos do artigo 12.º do CC.
IX. Não foram salvaguardadas as situações de maioridade anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 24/2017, de 24 de maio.
X. Nestes termos, e tendo presente o pressuposto de continuidade que a lei confere à garantia daquele pagamento, não pode o ora recorrente, salvo o devido respeito, concordar com o entendimento explanado na douta decisão, na medida em que o FGADM não se encontrava obrigado ao pagamento da prestação de alimentos à jovem Joana Cruz, no momento em que a lei se torna aplicável no ordenamento jurídico.
XI. O pagamento da prestação de alimentos que o FGADM se encontrava obrigado cessou com a maioridade, nos termos da legislação aplicável à data.
XII. A circunstância de o processo educativo ou de formação não se encontrar completo, no momento em que é atingida a maioridade, exceciona a cessação automática das prestações a que o FGADM se encontra a pagar, todavia, no momento em que esta possibilidade passa a existir no ordenamento jurídico a prestação já havia cessado, logo não há prestação a manter.
XIII. Por conseguinte, e embora a 2ª parte do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, remeta para o regime previsto no n.º 2 do artigo 1905.º do CC, não podemos esquecer o âmbito em que o mesmo é aplicado, ou seja, ao “pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado” – cfr. Artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro.
XIV. Não pode assim, o recorrente concordar com a decisão recorrida, na medida em que o FGADM foi condenado a assegurar uma prestação de alimentos à jovem dos autos, mas da letra da lei resulta que o pagamento cessa com a maioridade, salvo nos casos e nas circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 1905.º do Código Civil, ou seja, o Estado tem de estar obrigado ao pagamento e no momento em que a alteração legislativa entra em vigor tal não se verificou in casu.
XV. Pelo que, no presente caso tratar-se-ia não de uma continuidade ou manutenção do pagamento, mas de pela primeira vez o FGADM ser chamado a intervir na maioridade.
XVI. É de referir que a obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM é autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal e não decorre automaticamente da lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.
XVII. Todo o regime de garantia dos alimentos devidos a menores, estabelecido na Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, e regulamentado no DL n.º 164/99, de 13 de maio, é construído com um objetivo e um sentido: o Estado assegurar um valor de alimentos ao menor, na sequência da verificação ou preenchimento dos requisitos legalmente previstos, entre eles o incumprimento por parte do progenitor que estava obrigado a prestar alimentos, por não se conseguir tornar efetiva essa obrigação pelos meios previstos no artigo 48.° do RGPTC, bem como pela reunião de todos os requisitos previstos na Lei n.º 75/98, de 19 de novembro [com a redação dada pela Lei n.º 24/2017, de 24 de maio].
Por outro lado,
XVIII. O FGADM considera ter sido igualmente violado o princípio do contraditório, estatuído nos artigos 3. °, 4.º e 415. ° do Código de Processo Civil, segundo os quais, enquanto parte, nenhuma questão de direito ou de facto pode ser decidida sem que tenha tido possibilidade de sobre ela se pronunciar, nem admitida ou produzida prova sem que tal ocorra.
XIX. Pronuncia-se sobre questão idêntica e nestes precisos termos o Tribunal da Relação do Porto, no recente Acórdão proferido no agravo n.º 20030B/1999.P2.de 26/06/2012.
XX. O Fundo é, enquanto interveniente incidental, não apenas a entidade pagadora de uma prestação de cariz social determinada judicialmente, mas também parte legítima no processo no qual intervém, mas desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente exigidos para a sua intervenção.
SEM PRESCINDIR SEMPRE SE DIRÁ QUE,
XXI. Não há qualquer referência [e prova nesse sentido], de que o progenitor devedor continua a não poder satisfazer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 48.º do RGPTC, conforme exigido na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/05.
E que,
XXII. Dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/05, determinando como um dos pressupostos necessários para o pagamento da prestação de alimentos pelo FGADM em substituição do devedor é “que o menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS), nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre”.
Pelo que,
XXIII. Não basta a conclusão de estarem verificados os pressupostos legais – sobre os quais, o Tribunal recorrido nem sequer elenca –, remetendo apenas para o documento da prova escolar que o FGADM desconhece por completo e para a decisão de fixação durante a menoridade, que, em nosso entender, nesta altura e por se tratar de uma nova decisão, não basta a remissão para aquela.
XXIV. Termos em que se entende, salvo o devido respeito, que a douta decisão judicial em apreço, enferma de falta de fundamentação legal para justificar a intervenção do FGADM nos presentes autos.
O apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e substituída por outra que não condenasse o FGADM no pagamento da prestação de alimentos nos presentes autos, à jovem maior Joana, em substituição do progenitor devedor, pois só assim se faria Justiça.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que se suscitam nestes autos são, pela ordem por que foram enunciadas e analisadas pelo apelante, as seguintes: aplicação no tempo da Lei n.º 24/2017, de 24 de maio; violação do princípio do contraditório; falta de fundamentação da intervenção do FGADM.
Primeira questão (aplicação no tempo da Lei n.º 24/2017, de 24 de maio)
Durante a menoridade dos filhos, “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens” (n.º 1 do art.º 1878.º do Código Civil, sob a epígrafe “Conteúdo das responsabilidades parentais”).
A obrigação de os pais proverem ao sustento dos filhos menores e de assumirem as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação cessa “na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos” (art.º 1879.º do Código Civil).
Atingida a maioridade dos filhos, cessa a responsabilidade parental dos progenitores em relação àqueles.
A menos que se verifique a situação prevista no art.º 1880.º do Código Civil, que estipula, sob a epígrafe “Despesas com os filhos maiores ou emancipados”, o seguinte:
Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o número anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
Este preceito, introduzido pelo diploma que reduziu a idade de obtenção da maioridade dos 21 para os 18 anos de idade (Dec.-Lei n.º 496/77, de 25.11, art.º 130.º do CC), teve em consideração que hoje em dia muitos jovens atingem a maioridade, ou seja, a plena capacidade legal para o exercício dos seus direitos e o cumprimento das suas obrigações, numa fase que é ainda de formação, isto é, de obtenção dos conhecimentos e competências, por via do ensino e aprendizagem, que lhes permitirão futuramente reunir condições pessoais e materiais para regerem com verdadeira autonomia a sua pessoa e os seus bens. Tal situação de formação profissional exige, as mais das vezes, disponibilidade que não é compatível com o ónus de percecionar rendimentos pelo trabalho, que por sua vez nem sempre – e hoje, cada vez menos – está acessível, pelo que, não dispondo o filho de outros rendimentos próprios que lhe permitam fazer face às suas despesas, justifica-se que se prolongue a responsabilidade parental dos pais a este nível. Porém, apenas “na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
A Lei n.º 122/2015, de 01.9, aplanou o caminho do jovem para auferir deste apoio na sua formação. Com efeito, este diploma alterou o n.º 2 do art.º 1905.º do Código Civil, aí consignando que “Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.”
Conforme se exarou na exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 975/XII/4.ª, do grupo parlamentar do Partido Socialista, que esteve na origem deste preceito, “É hoje comum que, mesmo depois de perfazerem 18 anos, os filhos continuem a residir em casa do progenitor com quem viveram toda a sua infância e adolescência e que, na esmagadora maioria dos casos, é a mãe.
Tem vindo a verificar-se, com especial incidência, que a obrigação de alimentos aos filhos menores cessa, na prática, com a sua maioridade e que cabe a estes, para obviar a tal, intentar contra o pai uma ação especial. Esse procedimento especial deve provar que não foi ainda completada a educação e formação profissional e que é razoável exigir o cumprimento daquela obrigação pelo tempo normalmente requerido para que essa formação se complete.
Como os filhos residem com as mães, de facto são elas que assumem os encargos do sustento e da formação requerida.
A experiência demonstra uma realidade à qual não podemos virar as costas: o temor fundado dos filhos maiores, sobretudo quando ocorreu ou ocorre violência doméstica, leva a que estes não intentem a ação de alimentos. Mesmo quando o fazem, a decretação dos processos implica, por força da demora da justiça, a privação do direito à educação e à formação profissional. Há, também, por consequência do descrito, uma desigualdade evidente entre filhos de pais casados ou unidos de facto e os filhos de casais divorciados ou separados.
A alteração legislativa proposta vai ao encontro da solução acolhida em França, confrontada, exatamente, com a mesma situação, salvaguardando no âmbito do regime do acordo dos pais relativo a alimentos em caso de divórcio, separação ou anulação do casamento, a situação dos filhos maiores ou emancipados que continuam a prosseguir os seus estudos e formação profissional e, por outro lado, conferindo legitimidade processual ativa ao progenitor a quem cabe o encargo de pagar as principais despesas de filho maior para promover judicialmente a partilha dessas mesmas despesas com o outro progenitor.
Na mesma linha, a Lei n.º 122/2015 alterou o art.º 989.º do CPC, de molde a conferir ao progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos, legitimidade para exigir ao outro, em juízo, o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos, em termos idênticos ao regime previsto para os menores (n.º 2 do art.º 989.º).
Como é sabido, pese embora a primordial responsabilidade dos pais no sustento dos seus filhos, o Estado não se alheia da sorte das crianças e jovens, maxime quando os pais falham ou faltam.
Assim, o legislador, através da Lei n.º 75/98, de 19.11 e o Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, que a regulamentou, erigiu o sistema de garantia de alimentos devidos a menores, nos termos do qual, judicialmente verificada a impossibilidade de se obter da pessoa obrigada o pagamento das prestações alimentícias devidas a menor e constatando-se que o rendimento do alimentado e do seu agregado familiar é inferior a um determinado patamar, tido por essencial para garantir um nível de vida minimamente digno da condição humana, o Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menor, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, assegura determinadas prestações, fixadas pelo tribunal, em substituição do devedor e até ao início do efetivo cumprimento, por este, da sua obrigação.
Nesse sistema não se previa a aplicabilidade do regime de garantia a menores que atingissem a maioridade e que porventura reunissem as condições, nos termos do disposto no art.º 1880.º do Código Civil, para continuarem a receber alimentos – nem mesmo após a aludida inversão de ponto de partida introduzida pela Lei n.º 122/2015 (no sentido da apontada inaplicabilidade da garantia a jovens maiores, cfr., v.g., STJ, 27.01.2004, processo 03A3648; Relação do Porto, 15.11.2011, processo 21/1995.P2; Relação de Guimarães, 18.12.2012, processo 47-B/2000.G1; Relação de Évora, 08.5.2014, processo 87-A/1995; Relação de Coimbra, 13.9.2016, processo 106/03.4TBLMG-G.C1 – todos consultáveis in www.dgsi.pt).
Ora, foi precisamente para alargar aos referidos jovens o aludido sistema de proteção estatal de menores carecidos da devida prestação alimentar parental que a Lei n.º 24/2017, de 24.5, alterou a redação do n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 75/98 (o n.º 2 fora introduzido pela Lei n.º 66-B/2012, de 31.12), que passou a ser a seguinte:
O pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado, nos termos da presente lei, cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos, exceto nos casos e nas circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 1905.º do Código Civil.”
Pretendeu-se, conforme decorre da exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 327/XIII/2.ª, apresentado pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda, que originou a dita alteração legal, “por razões de coerência legislativa, por um lado, e de elementar justiça social, por outro”, “a equiparação entre os dois regimes de forma a assegurar que o prosseguimento dos estudos e da formação profissional dos jovens cujos alimentos são assegurados pelo Estado, nos termos da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro - regra geral, oriundos das classes sociais mais desfavorecidas -, não seja prejudicado por quaisquer constrangimentos financeiros.” E não se deixou de assinalar, na dita exposição de motivos, o impacto da medida, face à informação de que cerca de 20 mil crianças e jovens viam os seus alimentos assegurados pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devido a Menores.
Nos termos do seu art.º 8.º, a Lei n.º 24/2017, de 24.5, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação - isto é, entrou em vigor em 23 de junho de 2017.
Ora, o apelante defende que, em virtude de a jovem Joana ter atingido a maioridade antes da entrada em vigor do novo n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 75/98, não pode beneficiar do referido sistema de garantia de alimentos.
Diga-se, desde já, que o entendimento propugnado pelo IGFSS tem sido unanimemente arredado pela jurisprudência conhecida dos tribunais da Relação: vide os acórdãos da Relação de Coimbra, de 05.6.2018 (relator, Falcão de Magalhães); Évora, de 25.01.2018 (Elisabete Valente), de 08.3.2018 (Tomé Ramião) e de 26.4.2018 (Tomé de Carvalho); Guimarães, de 22.02.2018 (Maria dos Anjos Nogueira); Lisboa, de 07.6.2018 (Eduardo Petersen); Porto, de 23.4.2018 (Carlos Gil), 15.5.2018 (Rodrigues Pires) e de 30.5.2018 (Rui Moreira) – todos consultáveis em www.dgsi.pt).
E afigura-se-nos que a linha jurisprudencial traçada nesses arestos é a que está conforme com a reta interpretação da lei, tendo em consideração, como manda o disposto no art.º 9.º do Código Civil, os elementos tradicionalmente apontados como os fatores a considerar nessa tarefa (cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 17.ª reimpressão, 2008, pp. 181-185): o elemento gramatical (a “letra da lei”) e o elemento lógico (o “espírito da lei”), onde se integram o elemento racional ou teleológico (ratio legis, o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), o elemento sistemático (consideração das outras disposições que integram o instituto em que se insere a norma interpretanda e bem assim as disposições que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins, pressupondo-se que o conjunto normativo compõe um todo coerente) e o elemento histórico (a história evolutiva do instituto, os textos legais e doutrinais que inspiraram a norma interpretanda, os trabalhos preparatórios).
O apelante defende que a redação do n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 75/98, introduzida pela Lei n.º 24/2017, aponta para a inaplicabilidade do novo regime a quem tiver atingido a maioridade antes de 23.6.2017, data da entrada em vigor da Lei n.º 24/2017. Isto porque o legislador, ao afirmar que “o pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado, nos termos da presente lei, cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos, exceto nos casos e nas circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 1905.º do Código Civil”, inculca, segundo o apelante, impreterivelmente, que o Fundo só poderá ser obrigado a uma prestação que já tenha sido concedida, que esteja a ser garantida aquando da maioridade do beneficiário. Isto é, a obrigação do Fundo tem como pressuposto uma situação de continuidade, traduzida no prolongamento de uma prestação em concreto a que o Fundo já se encontrasse individualizadamente vinculado em 23.6.2017.
Afigura-se-nos que tal argumentação, meramente formal, está desalinhada com o espírito da lei, a razão de ser da norma, expressa nos trabalhos preparatórios e compreendida à luz dos antecedentes legislativos e do sistema atualmente em vigor, já supra expostos. Ou seja, a visão propugnada pelo apelante afronta as regras de interpretação da lei, na perspetiva dos elementos lógico, histórico e sistemático. Por outro lado, não tem no texto da lei um apoio que se sobreponha a todos estes elementos. Com efeito, no texto da norma não se encontra o aludido pressuposto de uma prévia imposição concreta de prestação substitutiva por parte do Fundo, antes de o jovem alimentando atingir a maioridade. O que nele se descortina é o intuito de alargar as responsabilidades do Fundo em benefício dos jovens até aos vinte e cinco anos de idade, posto que não ocorram as situações de exceção previstas no n.º 2 do art.º 1905.º do Código Civil (conclusão antecipada do processo de educação ou formação profissional, livre interrupção desse processo ou irrazoabilidade da exigência). Isto é, o legislador pretende a continuidade da posição do Estado enquanto garante da formação dos jovens menores de 25 de idade, desde que estes careçam dessa proteção, nos termos que já eram previstos para os menores de 18 anos e desde que reunidos os pressupostos previstos nos artigos 1880.º e 1905.º n.º 2 do CC. O legislador não exige que o jovem carecido de proteção já seja beneficiário do Fundo à data em que atinge a maioridade, tão só alarga o encargo do Fundo, a sua missão, a todos os jovens com idade até aos 25 anos, nada obstando a que essa intervenção substitutiva por parte do Estado se verifique ou inicie após a maioridade do jovem.
Porém, a respetiva obrigação apenas será exigível após a entrada em vigor da Lei n.º 24/2017 (23.6.2017), sob pena de não prevista retroatividade da lei (neste sentido, cfr. o já citado acórdão da Relação de Évora, de 08.5.2018).
Mas será imediatamente aplicável, após a entrada em vigor do diploma.
No nosso direito ordinário, a regra é a de que a lei só dispõe para o futuro, ou seja, não tem efeitos retroativos (art.º 12.º n.º 1 do Código Civil): e mesmo que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (art.º 12.º, n.º 1, 2.ª parte).
Explicitando o teor do n.º 1, o n.º 2 do art.º 12.º vem como que definir o que são e o que não são factos passados e efeitos dos factos passados, sendo certo que aos factos passados e aos efeitos dos factos passados aplica-se a lei antiga (J. Baptista Machado, “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, Livraria Almedina, 1968, pág. 354). Esse número estipula que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
Assim, no n.º 2 do art.º 12.º distinguem-se, “dum lado, as normas relativas à validade de quaisquer factos ou aos efeitos de quaisquer factos (entendendo por efeitos não só os efeitos imediatos sob todos os aspectos, mas ainda o conteúdo duma situação jurídica duradoira que seja definido ou intrinsecamente modelado em função dos respectivos factos constitutivos), do outro lado, as normas que dispõem directamente sobre o conteúdo das situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem.” (Baptista Machado, obra citada, pág. 354).
In casu, está-se perante uma situação conjugada de filiação e maioridade, cujos efeitos de direito substantivo a Lei n.º 122/2015, de 01.9 regulamentou de forma a incrementar a proteção do jovem maior com idade até 25 anos, vindo, depois, a Lei n.º 24/2017, de 24.5, complementar o conteúdo dessa situação jurídica com o adicionamento da referida prestação social.
Cessada uma obrigação alimentar por força do regime em vigor à data da sua cessação, nada obsta a que essa obrigação, dependente de uma relação de parentesco que permaneceu, ou seja, do status familiae, renasça, à luz de uma lei nova, com efeitos a partir da entrada em vigor dessa lei (vide Baptista Machado, obra citada, pp. 139-144).
Ainda que à data da entrada em vigor da Lei n.º 24/2017 a jovem Joana já fosse maior, e por isso tivesse cessado a obrigação do FGADM para com ela, ela poderá vir a beneficiar do aludido apoio, uma vez que, tendo menos de 25 anos, se constate reunir os restantes pressupostos legalmente necessários (não ter interrompido a sua formação, não ser possível obter do progenitor o pagamento dos alimentos devidos e o rendimento per capita do agregado familiar ser inferior ao valor do IAS).
Assim, na falta de norma expressa sobre direito transitório, deve entender-se que a nova redação da Lei n.º 75/98 é potencialmente aplicável a jovens até aos vinte e cinco anos de idade, independentemente de terem atingido a maioridade antes ou depois da entrada em vigor da norma, reunidos que se mostrem os restantes pressupostos e com efeitos a partir da entrada em vigor da Lei n.º 24/2017.
Nesta parte, pois, a apelação é improcedente.
Segunda questão (violação do princípio do contraditório)
O factualismo a levar em consideração é o supra exposto no Relatório.
O Direito
Na formulação da Constituição da República Portuguesa (CRP), “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” (n.º 1 do art.º 20.º da CRP). A defesa dos direitos e interesses em tribunal deverá fazer-se mediante processo equitativo (n.º 4 do art.º 20.º da CRP), o que pressupõe dar às partes em conflito a possibilidade de exporem as suas razões e de apresentarem as suas provas, em igualdade de circunstâncias, inclusive em resposta à atuação processual da contraparte (cfr., v.g., artigos 3.º, 4.º, 415.º do CPC).
Por força das alterações introduzidas no CPC de 1961 pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, com a redação fixada pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9, o legislador aprofundou o papel das partes na resolução do litígio, alargando o seu envolvimento ativo às várias fases do processo, em termos que assim ficaram espelhados no n.º 3 do art.º 3.º do CPC, reproduzido no mesmo artigo do atual Código:
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Tal princípio também se aplica, obviamente, aos processos tutelares cíveis, como de resto decorre da norma expressa contida, sob a epígrafe “contraditório”, no art.º 25.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9.
Posto é, em regra, que estejam em causa entidades cujos interesses possam ser diretamente afetados pela decisão a proferir e que, por conseguinte, devam ser previamente auscultadas – salvas as exceções legalmente admitidas, justificadas, nomeadamente, por razões de especial celeridade ou de eficácia da decisão, ou por desnecessidade (cfr. art.º 3.º n.ºs 2 e 3 do CPC).
A Lei n.º 75/98 não prevê, a título de “disposições processuais” (epígrafe do art.º 3.º), a intervenção do FGADM, ou da entidade sua gestora, no procedimento que desemboca na fixação da mencionada prestação. Com efeito, a Lei n.º 75/98 estipula que compete ao Ministério Público ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue requerer nos respetivos autos de incumprimento que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar (n.º 1); se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente, o juiz, após diligências de prova, proferirá decisão provisória (n.º 2); seguidamente, o juiz mandará proceder às restantes diligências que entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor, posto o que decidirá (n.º 3). Por sua vez o diploma que regulamenta a Lei n.º 75/98, o já mencionado Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, determina que “a decisão de fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público” (n.º 1 do art.º 4.º), que para esse efeito “o tribunal pode solicitar a colaboração e informações de outros serviços e de entidades públicas ou privadas que conheçam as necessidades e a situação socioeconómica do alimentado e do seu agregado familiar” (n.º 2 do art.º 4.º), que a aludida decisão de fixação das prestações a pagar pelo Fundo “é notificada ao Ministério Público, ao representante legal do menor ou à pessoa a cuja guarda este se encontre, e ao IGFSS, I. P.” (n.º 3 do art.º 4.º), devendo o IGFSS, I. P., iniciar o pagamento das prestações, por conta do Fundo, “no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não havendo lugar ao pagamento de prestações vencidas” (n.º 4 do art.º 4.º).
Ou seja, estará subjacente a esta regulação o entendimento de que estando em causa uma prestação devida pelo Estado, à luz de interesse público acautelado de forma clara na lei, dependente de aplicação por um órgão imparcial (o tribunal), perante o qual intervém o Ministério Público, representante do Estado nos tribunais (artigos 1.º e 5.º n. 1, al. a) do Estatuto do Ministério Público), os interesses do IGFSS, entidade integrada na administração indireta do Estado (cfr. o art.º 1.º n.º 1, do Dec.-Lei n.º 215/2007, de 29.5, que aprovou a Orgânica do Instituto e o n.º 1 do art.º 1.º do Dec.-Lei 84/2012, de 30.3, que atualmente regula essa Orgânica), seriam suficientemente acautelados com a sua intervenção a posteriori, após a prevista notificação da decisão judicial de fixação da prestação, sendo certo que, nos termos do n.º 5 do art.º 3.º da Lei n.º 75/98, da decisão cabe recurso, com efeito devolutivo, para o tribunal da relação.
Aliás, o reconhecimento desse prévio alheamento do IGFSS face ao procedimento de fixação da aludida prestação era brandido como um dos argumentos justificativos da fixação do dies a quo da obrigação do Fundo na data da sua notificação da respetiva decisão judicial e não em momento anterior, como o da instauração do incidente de incumprimento – sob pena de violação do contraditório (cfr. acórdão do STJ, de uniformização de jurisprudência, n.º 12/2009, de 07.7.2009, in DR., 1.ª série, n.º 150, de 05.8.2009, onde a dado passo se lê o seguinte: “Acresce que o Fundo, enquanto interveniente no incidente, é chamado aos autos apenas com a notificação da decisão do tribunal. Todo o processado do incidente do incumprimento da obrigação alimentar pelo devedor originário decorre sem o conhecimento do Fundo e sem qualquer intervenção da sua parte”; no mesmo sentido, STJ, 30.9.2008, processo 08A2953; Relação de Lisboa, 30.01.2014, processo 306/06.STBAGH-A.L1-6; a referida jurisprudência, atinente ao dies a quo da obrigação suportada pelo FGADM, veio a ser expressamente consagrada nos n.ºs 4 e 5 do art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 164/99, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 64/2012, de 20.12).
Pese embora o acima exposto, alguma jurisprudência defende que, mesmo na fase da prévia determinação da intervenção substitutiva do Estado em benefício do alimentando, o IGFSS deve ser ouvido e informado, sob pena de violação do contraditório (cfr., v.g., acórdão da Relação de Guimarães, de 19.3.2013, processo 1066/06.5TBPTL-B.G1; acórdão da Relação do Porto, de 09.10.2014, processo n.º 1234/12.0TMPRT-A.P1; acórdão da Relação de Évora, de 28.5.2015, processo 1005/10.9TBSTR-C.E1).
Outra jurisprudência, além da já acima citada, propende, à luz do por nós acima exposto, para uma visão sensível às particularidades da regulamentação da espécie em questão e dos interesses em presença, que apontam para a desnecessidade, pelo menos em princípio, da intervenção do IGFSS na aludida fase inicial (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 30.9.2014, processo 181/10.5TBMDL.1.P1 e acórdão da Relação do Porto, de 07.5.2015, processo 2196/09.7TBPVZ-B.P1).
E quanto às fases de reapreciação da manutenção da obrigação alimentar por parte do IGFSS?
Uma vez fixada a prestação, o seu montante perdurará “enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado” (n.º 4 do art.º 3.º da Lei n.º 75/98; n.º 1 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 164/99). Sendo certo que “o IGFSS, I.P., o ISS, I.P., o representante legal do menor ou a pessoa à guarda de quem este se encontre devem comunicar ao tribunal qualquer facto que possa determinar a alteração ou a cessação das prestações a cargo do Fundo” (n.º 2 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 164/99), podendo tal necessidade de cessação ou alteração das prestações ser comunicada ao curador (Ministério Público) por qualquer pessoa (n.º 2 do art.º 4.º da Lei n.º 75/98). Por outro lado, a lei impõe a quem recebe a prestação o ónus de “renovar anualmente a prova, perante o tribunal competente, de que se mantêm os pressupostos subjacentes à sua atribuição” (n.º 4 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 164/99). “Caso a renovação da prova não seja realizada, o tribunal notifica a pessoa que receber a prestação para a fazer no prazo de 10 dias, sob pena da cessação desta” (n.º 5 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 164/99). Finalmente, “o tribunal notifica o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social da decisão que determine a cessação do pagamento das prestações” (n.º 6 do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 164/99).
Por conseguinte, também em relação à fase subsequente, de apreciação da renovação da prestação, o legislador nada consigna quanto aos termos da participação do IGFSS.
A nosso ver, deverá conceder-se ao IGFSS a possibilidade de se pronunciar previamente à decisão de manutenção da prestação ou não, se se considerar que tal é aconselhável, face a dúvidas ou questões que, no caso concreto, se suscitem e o justifiquem. Sendo certo que, conforme decorre do supra exposto, o posicionamento do IGFSS, enquanto entidade que desempenha o papel do Estado na prossecução do interesse público da proteção das crianças e jovens, na dimensão de prestação assistencial substitutiva dos progenitores, insere-se, ao fim e ao cabo, do mesmo lado da barricada que o Ministério Público, a quem cabe, esse sim, papel ativo no andamento do processo.
In casu, poderá dizer-se que a vicissitude decorrente do alcance da maioridade pela beneficiária Joana, antes da entrada em vigor da Lei n.º 24/2017, poderia justificar uma prévia auscultação do IGFSS. Ora, a verdade é que antes da prolação do despacho recorrido (que data de 30.01.2018), já o IGFSS havia sido notificado do despacho proferido em 23.11.2017, no qual se remetia para a documentação junta pela requerente e, bem assim, para a promoção do Ministério Público, datada de 10.10.2017, para justificar a decisão de manutenção das prestações a que o IGFSS havia anteriormente sido obrigado, inculcando a manutenção, pois, da prestação atribuída à jovem Joana, que já nessa altura havia atingido a maioridade. Ora, o IGFSS foi notificado desse primeiro despacho e, pese embora o exposto, não reagiu nem suscitou qualquer questão. É certo que a secretaria notificou o IGFSS de que se mantinha a prestação devida “à menor Pedro Manuel Pinta da Cruz” (sic, n.º 7 do Relatório supra). Tratava-se, como não podia deixar de ser notado pelo notificado, de um manifesto lapso, uma vez que o mencionado Pedro era o irmão mais velho da jovem Joana e do seu irmão Rui, e tinha atingido a maioridade antes da primeira fixação de prestações a cargo do Fundo, pelo que nunca fora delas beneficiário.
Assim, ao apelante foi dada a oportunidade de se manifestar ou pronunciar, antes da prolação do despacho de que veio a recorrer.
Sendo certo que, à semelhança do que ocorreu nos casos julgados nos supra citados acórdãos da Relação de Guimarães, de 19.3.2013, da Relação do Porto, de 09.10.2014 e da Relação de Évora, de 28.5.2015, o apelante não explica em que medida a invocada violação do contraditório influiu no exame e na decisão da causa, determinando a anulação de atos e a repetição ou a prática de outros (art.º 195.º n.º 1 do CPC).
Pelo que, a nosso ver, nesta parte a apelação também improcede.
Terceira questão (falta de fundamentação da intervenção do FGADM)
O apelante defende que a decisão recorrida “enferma de falta de fundamentação legal para justificar a intervenção do FGADM nos presentes autos.”.
Isto porque, alega o apelante:
- Não há qualquer referência e prova de que o progenitor devedor continua a não poder satisfazer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 48.º do RGPTC, conforme exigido na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/05;
- Nem do pressuposto, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/05, de “que o menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS), nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre”;
- Não basta a conclusão de estarem verificados os pressupostos legais, de resto não elencados pelo tribunal e a remissão para o documento da prova escolar - que o FGADM desconhece por completo - e para a decisão de fixação durante a menoridade.
Vejamos.
Embora não a enuncie expressamente, o apelante imputa à decisão a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, norma que comina com a nulidade a sentença que “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A decisão recorrida indica como facto fundamentador a circunstância de a jovem Joana estar a frequentar um determinado estabelecimento de ensino. No mais, remete para a decisão proferida a fls 112, ou seja, aquela que data de 23.11.2017 e está supra transcrita no n.º 6 do Relatório. Ora, esta última não discrimina qualquer facto, limitando-se a apontar a prova documental, que não analisa ou descreve, e a declarar estarem reunidos os requisitos legais para a manutenção da prestação, que também não indica.
Afigura-se-nos, pois, que a decisão recorrida enferma, efetivamente, da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, o que se declara.
Caberá a esta Relação, com base na regra da substituição consagrada no art.º 665.º n.º 1 do CPC, substituir o tribunal recorrido, na medida em que o processo contenha os elementos para tal necessários.
Ora, resultam dos autos os seguintes
Factos
1. Em 26.10.2015, data em que primeiramente foi fixada a favor de cada um dos menores Joana e Rui Alexandre a prestação, suportada pelo Fundo, de € 66,66, o agregado familiar era composto pela requerente, pelo filho Pedro, maior, nascido em 28.12.1996, e pelos dois menores referidos (vide decisão, a fls 70).
2. O agregado familiar tinha como único rendimento o Rendimento Social de Inserção, auferido pela requerente, no valor anual de € 1 692,45 (vide relatório social, a fls 65 a 67).
3. A que correspondia, conforme identificado na decisão datada de 26.10.2015, o rendimento mensal per capita de € 52,23 [€ 1 692,45 : (1 + 0,7 + 0,5 + 0,5) : 12].
4. Em outubro de 2016 o agregado familiar mantinha a composição referida em 1 e tinha, como únicos rendimentos, prestações de abono de família e o Rendimento Social de Inserção, auferido pela requerente, no valor mensal de € 355,35 (vide fls 84 a 92).
5. Em dezembro de 2016, efetuada busca junto das bases de dados da Segurança Social e das Finanças, manteve-se o desconhecimento de bens ou rendimentos titulados pelo requerido (fls 102 e 103).
6. Em setembro de 2017 o agregado familiar mantinha a composição referida em 1 e tinha, como únicos rendimentos, prestações de abono de família e o Rendimento Social de Inserção, auferido pela requerente, no valor mensal de € 390,33 (vide fls 106 a 110).
7. Em novembro de 2017, efetuada busca junto das bases de dados da Segurança Social e das Finanças, manteve-se o desconhecimento de bens ou rendimentos titulados pelo requerido (fls 117 e 118 e 130).
8. A jovem Joana, que perfez dezoito anos de idade em 24.01.2017, está a frequentar o curso técnico de turismo na Escola Profissional Gustave Eiffel com aproveitamento (fls 121 a 123).
O Direito
Está provado que a jovem Joana, assim como o seu irmão Rui, recebiam, desde 2016, do FGADM, cada um, a prestação mensal de € 66,66, por se ter demonstrado que reuniam os pressupostos exigidos pela Lei n.º 75/98, de 19.11 (com as alterações publicitadas) e pelo Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5 (com as alterações publicitadas): impossibilidade de obtenção, pelos meios previstos no art.º 48.º do RGPTC, da prestação de alimentos a que o respetivo progenitor (o requerido) estava judicialmente obrigado; não ter o alimentado rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficiar nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (n.º 1 do art.º da Lei n.º 75/98, de 19.11, com a redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31.12), entendendo-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS, quando a capitação do respetivo agregado familiar não for superior ao valor do IAS (n.º 2 do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 164/99, de 13.5, na redação introduzida pela Lei n.º 64/2012, de 20.12).
Sendo certo que o valor do IAS para o ano de 2017 foi de € 421,32 (Portaria n.º 4/2017, de 03.01) e, para 2018, é de € 428,90 (Portaria 4/2017, de 03.01).
Ora, como resulta dos factos provados a referida situação de carência económica e de impossibilidade de obtenção de pagamento dos alimentos pelo progenitor obrigado manteve-se e mantinha-se à data da decisão recorrida.
E está demonstrado que a jovem Joana, que atingiu a maioridade em 24.01.2017, continua a estudar, não tendo completado a sua formação. Assim, aplica-se-lhe, como se expôs supra, a nova redação introduzida ao n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 75/98 pela Lei n.º 24/2017, de 24.5, cabendo ao Fundo efetuar a prestação alimentar substitutiva, que o tribunal a quo manteve em € 66,66.
Entendendo-se, porém, que essa obrigação não pode ser reportada a data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 75/98 (23.6.2017), sob pena de não prevista retroatividade, e a prestação será devida a partir do 1.º dia do mês seguinte ao da decisão recorrida (cfr. n.ºs 4 e 5 do art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 164/99, com a redação introduzida pela Lei n.º 64/2012, de 20.12, cuja conformidade com a CRP foi atestada, v.g., no acórdão do TC n.º 446/2018, de 02.10.2018).
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, alterando-se a decisão recorrida, condena-se o recorrente a pagar, em benefício da jovem Joana, supra identificada, por conta do FGADM, a prestação mensal de € 66,66 (sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), devida desde 01 de fevereiro de 2018.
Sem custas, atendendo à isenção de que o apelante, único arguente e que decai parcialmente, beneficia (art.º 4.º n.º 1 al. v) do RCP).

Lisboa, 25.10.2018

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Pedro Martins