Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3110/13.0JFLSB-B.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: A audição prevista no art.º 194º/4 do CPP, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, deve ser presencial, sob pena de nulidade insanável.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: *

Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Tribunal Central de Instrução Criminal, Lisboa, em que, além doutros, são Arg.[1] e , com os restantes sinais dos autos, por despacho de 28/12/2016, constante de fls. 110/111, foram-lhes aplicadas as seguintes medidas de coacção:

i)         proibição do exercício de todas e quaisquer funções em escolas de condução e centros de exame do setor;

ii)        proibição de contatos com os restantes arguidos, com todos os candidatos por si angariados, com todos os funcionários das escolas de condução onde esses candidatos se encontravam matriculados e com todos os funcionários do Centro de Exames do Porto do ACP;

iii)       prestação de caução no montante correspondente a €750,00 por cada candidato indevidamente aprovado, ou seja, €11.250,00 para o Arg. Manuel Oliveira, e €3.000,00 para o Arg. Mário Azevedo.

*

Não se conformando, o Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 129/139, com as seguintes conclusões:

“…”.

*

Também inconformado, o Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 112/128, com as seguintes conclusões:

“…”.
*

Respondeu o Exm.º Magistrado do MP[2] ao recurso do Arg. …, a fls. 145/168, nos seguintes termos:

“…”.

E ao recurso do Arg. , a fls. 169/191, nos seguintes:

“…“.

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Neste tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 199/201, com o seguinte teor:

“… II – Da nulidade absoluta

Apesar de, numa primeira análise, podermos concordar com o decidido, parece-nos, porém, ocorrer uma nulidade absoluta pelas razões seguintes.

O art.° 194.° do CPP, no seu n.° 1, estabelece como regra que, à excepção do TIR, qualquer medida de coacção e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho de juiz (leia-se de juiz de instrução) durante, no que aqui interessa, o inquérito.

Por sua vez, no n.° 4 daquela disposição legal estabelece que a aplicação das medidas de segurança e de garantia patrimonial é precedida, necessariamente em qualquer fase do processo, inclusive no inquérito, de audição prévia do arguido, "ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentado", que Pinto de Albuquerque enumera no seu "Comentário do CPP", 4.`' ed., pág. 576, anotação 12, como sendo os casos em que, quanto ao(à) arguido(a), é desconhecido o seu paradeiro ou sofre de doença grave, ou de anomalia psíquica, ou de gravidez ou puerpério, e ainda se "não for conveniente" ouvi-lo(a).

Por sua vez, durante o inquérito o n.° 5 estabelece ao juiz um prazo (bem curto, diga-se de passagem) de 5 dias para aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial pedida pelo M°P°. Aqui é que importa responder à questão: o arguido deve ou não ser ouvido previamente, e ainda à questão de saber se tal audição deve ou não ser presencial.

Parece-nos evidente que nessa norma o legislador quis indubitavelmente impor ao juiz de instrução que decida rapidamente sobre medidas de coacção e de garantia patrimonial promovidas pelo M°P° (qualquer que seja a medida de coacção, mesmo as não privativas da liberdade, ela é urgente para impedir a concretização dos perigos referidos no art.° 204.° do CPP – pois, qualquer medida de coacção, com excepção do TIR, tem de se basear na verificação de qualquer daqueles perigos –, bem como a garantia patrimonial para impedir a dissipação de bens), sem, porém, deixar de exigir a satisfação do contraditório. Dito de outro modo: ainda que o juiz de instrução tenha de decidir no prazo dos 5 dias (só não o fará se estiver impossibilitado de o fazer em tempo – "salvo impossibilidade devidamente fundamentada"), tem sempre de satisfazer o contraditório. Pode-se argumentar que 5 dias é um prazo demasiado curto para se ouvir o arguido, mas, não sendo caso de "não ser conveniente" a audição prévia do arguido (que obviamente tem de ser fundamentada), como é o caso dos autos, esta não é prescindível em obediência ao princípio do contraditório, pelo que o juiz deve mandar notificar o arguido para ser ouvido sobre a promoção do M°P°, tudo nos termos do n.° 4 do mesmo art.° 194.° do CPP.

A questão que se suscita de seguida é a de se saber se a audição deve ou não ser presencial. Entendemos que sim.

Com efeito, no que diz respeito à audição, estabelece o n.° 4 do art.° 194.° do CPP que à mesma deve ser aplicado o disposto no art.° 141.°, n." 4 do mesmo Código, ou seja, que o juiz é obrigado a informar, em suma, os direitos que o arguido tem, bem como de quais os indícios que existem, o que só é possível presencialmente, ou seja, não conseguimos vislumbrar que o juiz possa dar cumprimento ao disposto no art.° 141.°, n.° 4 do CPP sem que o arguido esteja presente. Daí que aquela presença do arguido tenha de ser considerada como obrigatória, pelo que, não ocorrendo, estamos na presença da nulidade insanável do art.° 119.°, al. c) do CPP (neste sentido, mutatis mutantis, no que diz respeito à fundamentação para se concluir que o arguido tem de estar presente aquando da audição para eventual revogação da suspensão da execução da pena, cfr. em www.dgsi.pt os acórdãos da R. Guimarães lavrado no Proc.° 150/03.1TAGMR.Gl em 22-02-2011, da R. Porto lavrado no Proc.° 436198.5 BVRL-C.P l em 04-05-2011 e R. Coimbra exarado no Proc.° 219/06.OGCSCD-A.Cl em 10-12-2013, e ainda no Ac. R. Lisboa, não publicitado, lavrado em 30/10/2014 no Proc.° 293/08.5PDAMD.L1 da 9' Secção.).

Consequentemente, o despacho recorrido é nulo, devendo o tribunal a quo designar dia para a audição presencial dos arguidos (mesmo os não recorrentes por se tratar de nulidade insanável) e, após, apreciar da aplicação das medidas propostas pelo M°P°.

III - Conclusão

Pelo exposto, e em síntese conclusiva, somos do parecer de que o despacho recorrido deve ser declarado nulo, devendo o tribunal a quo proceder em conformidade com o estabelecido no art.° 194.°, n.° 4 do CPP, ouvindo os arguidos presencialmente antes de estabelecer as medidas promovidas pelo M°P°. …”.

*
É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões, tendo em conta as de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as única questões fundamentais a apreciar no presente recurso são as seguintes:

I – Nulidade do despacho recorrido por falta de audição prévia dos Arg.;

II – Falta de fundamentação do despacho recorrido;

III – Falta de indícios relativos ao Arg. Manuel Oliveira;

IV – Legalidade, adequação e proporcionalidade das medidas de coacção aplicadas.

*

Cumpre decidir.

I – Nulidade do despacho recorrido por falta de audição prévia dos Arg..

No presente caso e no que diz respeito aos Arg./Recorrentes, o MP promoveu a aplicação daquelas medidas de coacção (fls. 49/57, de 30/11/2016), o Exm.º JIC mandou notificar essa promoção aos Arg. (fls. 136, de 30/11/2016), o Arg. Mário Azevedo pronunciou-se contra a aplicação de tais medidas, pelo requerimento de fls. 67/79, e o Arg. Manuel Oliveira pronunciou-se contra a aplicação de tais medidas, pelo requerimento de fls. 108/109.

De seguida, o Exm.º JIC, sem que tenha ouvido presencialmente estes Arg., prolatou o despacho de fls. 110/111, de 28/12/2016, que aplicou as referidas medidas.

Está em causa decidir se a audição do Arg. a que se refere o art.º 194º/4 do CPP deve ser presencial, ou se basta com a notificação do Arg. ou do seu Defensor para se pronunciar sobre a aplicação de medidas de coacção.

Em acórdão da RC de 04/11/2009[5], defendeu-se, com importante fundamentação e forte argumentação, que tal audição se basta com a notificação do Arg. ou do seu Defensor para se pronunciar, ainda que o Arg. possa ser presencialmente ouvido.

Aceitamos que a solução preconizada neste acórdão seria a melhor solução legal do ponto de vista da prática processual.

No entanto, entendemos que, se na redacção do art.º 194º do CPP que vigorou até 14/09/2007, era aceitável que essa fosse a interpretação natural do preceito, na actual redacção já não o é, ainda que caiba na letra da lei.

Na verdade, na versão deste art.º que vigorou até 14/09/2007, dizia o seu n.º 2: “A aplicação referida no número anterior é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial.”.

A partir de 15/09/2007, com a alteração introduzida pela Lei 48/2007, de 29/08, este nº 2 passou a ser o n.º 3 e a ter a seguinte redacção: “A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141º.”, e foram-lhe acrescentados os n.ºs 4 (“A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade: a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; c) A qualificação jurídica dos factos imputados; d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º.”) e 5 (“Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.”)[6].

Ora, estas alterações não podem ser anódinas para a decisão da nossa questão.

Na verdade, acrescentar-se que àquela audição se aplica sempre o art.º 141º/4 do CPP e que não podem servir para fundamentar o despacho de aplicação de medidas de coacção factos que não tenham sido comunicados durante a audição, reforça muito a interpretação de que a audição deve ser presencial.

Para além disso, a prevista impossibilidade de audição faz mais sentido se se referir à audição presencial, uma vez que a notificação do Arg. e/ou do seu Defensor será quase sempre possível.

Acresce que, mesmo quando a aplicação de medidas de coacção é feita depois de deduzida a acusação, esta pode tê-lo sido, e o Arg. ter assumido tal qualidade, sem que alguma vez tenha sido ouvido antes, por exemplo, porque se encontrava ausente em parte incerta (art.º 57º do CPP).

Por outro lado, se, depois do inquérito o juiz decidir aplicar oficiosamente uma medida de coacção que não seja o TIR (art.º 194º/1), e ouvido o MP este nada disser, que conteúdo teria a notificação feita ao Arg. para se pronunciar sobre a aplicação de medidas de coacção?

Destes elementos interpretativos concluímos que o legislador quis que a audição prevista no art.º 194º/4 do CPP fosse presencial.

Neste sentido se pronunciam, o acórdão da RP de 01/10/1997[7], este prolatado ainda na redacção anterior, e a seguinte doutrina:

- Cruz Bucho, in “A Revisão de 2010 do Código de Processo Penal Português”, 2008[8];

- Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, 2ª ed., Coimbra Editora, 2011[9];

- Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 2008, pág. 309, onde defende que a audição prévia do Arg. deve ser pessoal e, só em caso de impossibilidade devidamente fundamentada, se pode prescindir dessa audição; e

- Nuno Brandão, in “Medidas de coacção: o procedimento de aplicação…”, Revista do CEJ, n.º 9 (especial), 2008, pág.78/79, onde defende que a audição prévia do Arg. deve ser feita no âmbito de um interrogatório judicial.

Aqui chegados, importa tirar as consequências da falta dessa audição pessoal, quando ela se verifique, como foi o caso.

Entendemos que, uma vez que a lei impõem a audição pessoal do Arg., antes da aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial, a sua falta há-de constituir a nulidade insanável prevista no art.º 119º/c) do CPP, aplicando-se aqui, mutatis mutandis, a jurisprudência praticamente pacífica[10] relativa à situação similar da audição do Arg. para efeitos de revogação da suspensão da pena de prisão ou da modificação das condições da sua execução, bem como da revogação, suspensão, substituição ou modificação da pena de trabalho a favor da comunidade (art.º 495º/2 do CPP).

Nestes termos, há que declarar a nulidade prevista no art.º 119º/c) do CPP e, consequentemente, anular o despacho recorrido, nos termos do 122º do CPP.

Esta declaração de nulidade, prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas relativamente a este.

*****
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos nula a decisão recorrida.
Sem custas.

*

Notifique.

D.N..

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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

*****

Lisboa, 19-10-2017

Abrunhosa de Carvalho

Maria do Carmo Ferreira

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[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Supremo Tribunal de Justiça.
[4]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[5] Relatado por Paulo Guerra, no proc. 9/09.9SJGRD-A.C1, in www.dgsi.pt, do qual citmos: “… 3.2. O artigo 194.º, n.º 2, do CPP, na redacção anterior à revisão de 2007, dispunha que a aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial era precedida, sempre que possível e conveniente, da audição do arguido e podia ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial.
A lei determinava a audição, sempre que possível e conveniente.
A regra, no sistema processual penal português, era já, então, a do exercício do contraditório, no que toca à aplicação das medidas de coacção, no inquérito ou depois do inquérito.
Constituindo o exercício do contraditório a regra que se impunha observar, a impossibilidade ou inconveniência da audição do arguido deveria constar, fundamentadamente, do despacho que decidisse a aplicação de uma medida sem precedência da audiência prévia.
Era objecto de controvérsia a questão relativa às consequências da falta de audição sem que o juiz fundamentasse a sua impossibilidade ou inconveniência, com as soluções mais diversas na jurisprudência portuguesa (irregularidade, nulidade, nulidade insanável).
Essas soluções dependiam, assinale-se, do entendimento que se perfilhasse quanto ao modo de realizar a “audição”.
Alguns defendiam que a dita prévia “audição” implicava um acto presencial, ou seja, que o arguido estivesse presente e prestasse declarações. A preterição dessa “audição” constituiria a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea c), do C.P.P.
Já outros entendiam que a falta de audição se bastava com a notificação do arguido para se pronunciar.
Aqui chegados, sempre entendemos que se o juiz não declarasse e fundamentasse a impossibilidade ou inconveniência da prévia audição, preterindo o princípio geral de fundamentação dos actos decisórios, constante dos artigos 205.º, n.º1, da Constituição e 97.º, n.º 4, do CPP, a referida omissão constituía irregularidade processual, submetida ao regime do artigo 123.º do CPP.
Como tal, não se apoiava a tese segundo a qual a não audição do arguido, a quem se aplicasse uma medida de coacção (ou de garantia patrimonial), consubstanciava uma nulidade insanável, pelas seguintes razões, sumariamente indicadas:
A regra do artigo 118.º do CPP é a do princípio da legalidade relativamente às nulidades processuais: só são nulos os actos praticados em desarmonia com a lei do processo penal que a lei qualifique dessa forma, ou seja, como nulos;
Relativamente à nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), entendíamos que deveríamos distinguir entre dever de comparência, direito de presença e direito de audição;
A nulidade do artigo 119.º, alínea c), ocorre quando a lei exige que o arguido esteja presente a determinado acto e esse acto de comparência obrigatória é praticado na ausência do arguido: nela não cabem, a nosso ver, as situações em que apenas não seja observado o direito de presença ou o direito de audição (e em que a lei não exija que o arguido esteja presente a determinado acto processual, ou seja, em que a lei não estabeleça o dever de comparência obrigatória);
O artigo 61.º, n.º1, alínea a), refere-se ao direito de o arguido “estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”, distinguindo-o do direito de “ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte”. O n.º3, alínea a), por sua vez, reporta-se a um dever de comparência. Temos, por conseguinte, um direito de presença e um direito de audição;
O direito de presença não se confunde com o direito de audiência, o que não quer dizer que, em muitos casos, a garantia do direito de audiência não deva passar pela prática de um acto em que o arguido esteja presente e preste pessoalmente declarações;
Não dizendo a lei quando estamos perante actos processuais que directamente digam respeito ao arguido, entendíamos que só caso a caso seria possível avaliar se o acto tem ou não essa configuração. O direito de presença do arguido diz respeito, essencialmente, aos actos de produção de prova e, em especial, à audiência, actos que, nos termos da lei, solicitem a sua participação pessoal;
Diversos autores e arestos pareciam partir do pressuposto de que o “direito de audição ou de audiência” mencionado no artigo 61.º, n.º1, alínea a), do CPP, impõe que o arguido seja chamado a tribunal a fim de se pronunciar “em pessoa”, o que não era por nós secundado – um exemplo: o artigo 385.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe o seguinte: “O tribunal ouvirá o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”. O artigo 386.º, n.º 1, prescreve: “Findo o prazo da oposição, quando o requerido haja sido ouvido, procede-se, quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo juiz”. Ora, nestas situações, é evidente que “audiência” e “audição” significam exercício do contraditório: o requerido é “ouvido” ao ser citado para, querendo, deduzir oposição;
O mesmo ocorre quando, em sede diversa, o artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas se reporta, em epígrafe, ao «direito de audição e defesa do arguido», que pode concretizar-se através da prestação de declarações, mas também na audição por escrito, posto que o arguido esteja ao corrente de todos os elementos que o habilitem a pronunciar-se em sua defesa;
A violação dos direitos de presença e de audiência constituiria mera irregularidade, a menos que se tratasse de caso em que a ausência ao acto fosse especificadamente sancionada de nulidade (artigo 118.º, n.º2).
No fundo, e em suma, a aplicação de uma medida de coacção só não era precedida de audição do arguido se tal não fosse possível e/ou conveniente.
Quando era limitada a liberdade de uma pessoa, pela aplicação de uma medida de coacção, existia o dever de prévia audição dela, apenas dispensado no caso de tal prévia audição se mostrar impossível e/ou inconveniente;
Para nós, tratava-se da consagração do princípio do contraditório, permitindo que o arguido expusesse previamente as suas razões relativamente à decisão judicial;
A falta de audição prévia do arguido, sem que se fundamentasse a impossibilidade ou inconveniência, constituía, segundo o nosso entendimento, mera irregularidade que, no caso de medida de coacção imposta no acto do primeiro interrogatório judicial, ficaria sanada se não fosse arguida de imediato.
Fora dos casos de interrogatórios judiciais de arguidos detidos, admitíamos que a salvaguarda do direito de “audição” se fizesse através da notificação para se pronunciar, posto que estivesse a defesa habilitada com todos os elementos relevantes para essa pronúncia.
Contudo, no domínio do regime processual penal vigente antes da revisão de 2007, admitimos como possível – não obrigatória, logo - a existência de interrogatórios judiciais, durante o inquérito, de arguidos não detidos.
Se o juiz entendesse que devia ouvir o arguido, em declarações, tendo em vista a aplicação de uma medida de coacção requerida pelo M.P., porque razão não o poderia fazer?
Sendo esse acto prévio e inteiramente instrumental de um acto da competência exclusiva do juiz, como era a aplicação de uma medida de coacção (para além do TIR), parecia-nos admissível a sua realização, ainda que essa não devesse ser a regra, repete-se.
A falta de abertura a esta possibilidade teve como consequência as cenas lamentáveis que todos conhecemos de detenções de pessoas, fora de flagrante delito, com a única e exclusiva intenção de que fossem apresentadas detidas a interrogatório judicial para aplicação de medidas de coacção - e que, por um lado, sustentava-se a necessidade de audição “presencial”; por outro, como só se admitia a existência de interrogatórios judiciais de detidos, havia que deter previamente as pessoas, fora de flagrante delito, para permitir que, nessa situação de detenção, fossem interrogados judicialmente.
3.3. A consequência desses abusos está na génese da alteração do regime da detenção fora de flagrante delito, agora mais exigente e de difícil aplicação, operada pela revisão de 2007.
Conforme já se disse, face à redacção anterior do artigo 194.º, n.º 2, no que concerne à audição prévia do arguido sempre que possível e conveniente, entendíamos que essa audição traduzia-se na oportunidade de exercício dos direitos de defesa, através do contraditório, não exigindo necessariamente um acto de interrogatório, a não ser que o arguido estivesse detido.
O novo n.º 3 do artigo 194.º, resultante da revisão de 2007, ao prescrever que a audição pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º, veio recolocar a questão, pois este último preceito refere-se a um conjunto de informações que devem ficar a constar de auto.
Por via da alteração da lei, é natural que se problematize, novamente, se a audição prévia se basta com a oportunidade do exercício do contraditório ou se implica um acto pessoal de audição.
Desde logo, o referido preceito legal tem de ser interpretado com algum cuidado.
Veja-se que o n.º 3 do artigo 194.º reporta-se à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial referida no n.º 1, o que, na letra da lei, abrange a aplicação dessas medidas durante o inquérito e depois do inquérito.
No entanto, a remissão para o nº 4 do artigo 141.º (dever de informação) tem escasso sentido, sem adaptações, quando estivermos perante a aplicação de medidas de coacção na fase de julgamento, depois de delimitado o objecto do processo através da dedução de acusação ou da prolação de decisão instrutória de pronúncia.
Nesses casos, temos para nós que o que será fundamental é que o arguido (ou o responsável meramente civil) seja confrontado com os factos concretos e elementos de prova que consubstanciam os pericula libertatis - pressupostos de aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial - para estar em condições de exercer o contraditório. Para esse efeito, bastará a notificação do defensor, segundo julgamos, e a remissão para o artigo 141.º, n.º 4, terá de ser feita com as devidas adaptações.
Do que concluímos que a audição do arguido prevista no art. 194.º, n.º 3, não tem que se realizar sempre da mesma forma. Ainda que na maior parte dos casos deva conduzir a um interrogatório nos termos do art. 141.º, mormente quando se trate de arguido detido, noutras situações bastar-se-á com o exercício do contraditório realizado mediante a notificação do defensor, como será o caso da aplicação de medidas de coacção requeridas após a acusação ou a pronúncia (ou mesmo requeridas na própria acusação).
3.4. Há, porém, um elemento que pode inculcar a necessidade de interrogatório judicial de arguido, ainda que não detido, durante o inquérito.
Trata-se do novo artigo 385º, n.º 3, al. b), do C.P.P.
A lei expressamente refere-se a um arguido que está em liberdade e que é submetido a primeiro interrogatório judicial para eventual aplicação de medida de coacção.
Contudo, não vemos que esta nova disposição legal – diversa do n.º 3 do artigo 382.º, parte final, que se reporta à apresentação ao juiz de arguido que está detido (essa apresentação surge como alternativa à libertação imediata com TIR) - tenha despertado grande atenção nos nossos tribunais.
E daí que se explique que o tribunal «a quo» insista com o velho argumento de que a realização de interrogatório de arguido em liberdade compete sempre ao M.P., sem atentar que o artigo 385.º, n.º 3, al. b), prevê um interrogatório judicial de arguido previamente libertado, em ordem à eventual aplicação de medida de coacção.
Esta disposição veio baralhar os dados, podendo inculcar a necessidade da tal “audição” pessoal – aliás, a revisão de 2007 veio, noutras disposições, impor actos de audição pessoal, como é o caso da audição do condenado, no quadro do incidente por falta de cumprimento das condições da suspensão da execução da pena, que, nos termos do novo n.º 2 do artigo 495.º, deve ser ouvido «na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão.»
Todavia:
1º- tal artigo 385º apenas se aplica no âmbito do processo sumário, não tendo potencialidades para ser aplicado fora do âmbito de um processo tão célere que deve sempre ser o «sumário» (o que não é o nosso caso);
2º- quando a lei exige presença física do arguido, em sede do exercício do contraditório, di-lo expressamente como o faz no citado artigo 495º, não o tendo feito, de facto, na letra do artigo 194º, n.º 3.
Assim sendo, fora dos casos de interrogatório judicial de arguido detido e da previsão do citado artigo 385.º, n.º 3, al. b), o direito de audição não pressupõe, sempre, a existência de um acto de interrogatório.
Audição quer significar aqui auscultação não necessariamente oral.
Da mesma forma que, quando se escreve “o juiz ouve o MP e o arguido” no artigo 213º, n.º 3 do CPP, pretende-se que seja feita uma notificação de tais sujeitos processuais para dizerem de sua justiça sobre o reexame dos pressupostos da aplicação da prisão preventiva.
De igual modo, o artigo 215º, n.º 4 do CPP não postula a obrigatoriedade de presença física do arguido (e aí também se escreve ”ouve”).
A esse propósito, dir-se-á que o direito de audição prévia do arguido sobre a questão da declaração da excepcional complexidade concretiza-se dando conhecimento ao arguido que essa questão vai ser ponderada e objecto de decisão pelo juiz de instrução, permitindo ao arguido que aduza o que entender adequado a influenciar essa decisão e no sentido que, para si, se mostre mais favorável ou conveniente.
Como tal, o direito de audição não envolve a presença física do arguido, nem sequer a sua intervenção pessoal: trata-se do direito a tomar posição prévia sobre qualquer decisão que pessoalmente o possa afectar e pode ser (e é normalmente) exercido através do seu defensor, que para o efeito deve ser notificado nos termos do art. 113.º n.º 9 do CPP (e tal é aceitável pois só o advogado estará, em princípio, tecnicamente habilitado a defender os interesses do seu patrocinado).
«O que importa é que o arguido saiba que a questão da declaração da excepcional complexidade do procedimento vai ser apreciada», sentencia o Acórdão da Relação de Évora de 29/4/2008 – Pº 739/08.1, consultado em http://dgsi.pt/jtre.nsf.
O direito de presença do artigo 61º, n.º 1, alínea a) do CPP requer necessariamente presença física perante o juiz ou o MP.
Já o direito de audição ou de audiência da alínea b) do citado artigo 61º/1 significa que o arguido beneficia da possibilidade de ser ouvido, sempre que se preveja que o juiz irá tomar decisões que pessoalmente o possam afectar.
São, pois, direitos distintos, com protecção jurídica também diferente, sendo evidentemente mais forte a do primeiro, que se reporta a situações em que o direito de defesa tem que beneficiar de uma mais intensa protecção.
O direito à presença do arguido em determinado acto tem necessariamente o significado de presença física, e constitui uma superior garantia de defesa, ao permitir ao arguido a imediação com o julgador e com as provas que contra ele são apresentadas, estando naturalmente esse direito circunscrito a um número reduzido de actos, entre os quais sobressai o julgamento.
O direito de audição não envolve a presença física do arguido, nem sequer a sua intervenção pessoal: trata-se do direito a tomar posição prévia sobre qualquer decisão que pessoalmente o possa afectar e pode ser (e é normalmente) exercido através do seu defensor [daí que seja de rejeitar o conceito de “ausência processual”, ao menos enquanto equivalente à ausência física, para os efeitos do art. 119º, c) do CPP].
3.5. No nosso caso, há que situarmos no artigo 194º, n.º 3 do CPP e na interpretação a dar ao termo “precedida de audição do arguido”.
Aqui, e na linha do – implicitamente - opinado pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 27/10/2004 (CJ 2004-IV-50), entendemos que a lei quer apenas aí exigir um justo contraditório, não reconduzível à exigência de uma notificação para que o arguido venha fisicamente a tribunal.
Constituindo a imposição de uma medida de coacção uma clara restrição á liberdade individual do arguido, é perfeitamente compreensível que se ouça o visado para permitir que o julgador venha a ter uma mais ampla apreensão da situação vivencial do arguido.
E ouvir aqui, quer apenas dizer notificá-lo, em tom de contraditório…
Não obstante decorrer da norma convocada que “a aplicação das medidas de coacção é precedida de audição do arguido (...) e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial”, facto é que, com isso, não está a lei a pressupor necessariamente que a audição do arguido tenha que ser levada a cabo em primeiro interrogatório judicial, pois que, da norma em referência, resulta apenas que tal audição “pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial”, assente que o Código de Processo Penal apenas prevê, em fase de inquérito, o primeiro interrogatório judicial de arguido detido (cf. 141.º e ss).
Note-se até que na anterior revisão do 194º se escreveu “pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial”. Já o 194º revisto deixa escrito que «pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial (…)» - a mudança do DO para DE poderá reafirmar que o 1º interrogatório apenas ai está contemplado como possível palco para a aplicação das medidas de coacção (e só em é em caso de arguido detido) e não como assumpção de uma obrigatoriedade processual em tal se fazer em sede dessa diligência.
Na nossa situação, o arguido não é apresentado como detido ao JIC, não havendo qualquer obrigatoriedade legal, a nosso ver, para a marcação e realização desse acto processual presidido por um juiz
Na realidade, compulsados os artigos 268º, n.º 1, alíneas a) e b) e 254º, n.º 1, alínea a) do CPP, constata-se que o legislador diferencia as situações em que o arguido se encontra privado da liberdade daquelas em que se trata somente de aplicação de medida de coacção, permitindo supor que a aplicação de uma medida de coacção, tanto pode ter lugar em acto de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, como fora dele.
Dos vários interrogatórios previstos na lei (primeiro interrogatório judicial de arguido detido - artigo 141º -, primeiro interrogatório não judicial de arguido detido - artigo 142º - e outros interrogatórios - artigo 144.º), apenas no primeiro interrogatório judicial de arguido detido é imposta a intervenção do Juiz de Instrução (cf. 141.º), dispensando a lei, no artigo 143º, a intervenção do Juiz (apenas a impondo quando o Ministério Público não libertar o arguido - cf. n.º 3) e expressamente consagrando no artigo 144º que “os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo Juiz (...)“.
In casu, o arguido foi libertado pelo MP (cf. fls 12 – 6º parágrafo), não estando detido na hora em que o MP faz a promoção de fls 42 a 45.
Fez-se um 1º interrogatório não judicial de arguido não detido, presidido pelo MP, na sequência do que promove tal entidade a realização de 1º interrogatório judicial para aplicação de duas medidas de coacção (que não TIR) – imposição de obrigações e apresentações policiais periódicas -, medidas estas aplicáveis, de forma exclusiva, pelo JIC.
Como tal, e no plano da pura legalidade, não poderemos deixar de dar razão ao tribunal «a quo», ao prescrever que não existe obrigação legal para a realização do dito promovido 1º interrogatório judicial de arguido não detido para aplicação de medidas de coacção.
Agora, não custaria nada ao JIC em causa, em nome de uma Justiça que se quer célere e eficaz, fazer logo ali o contraditório - esse sim imposto por lei -, podendo, e seria um seu critério de oportunidade a nortear uma decisão neste jaez, ouvir presencialmente o arguido, presente naquele dia no tribunal e apto a poder responder às perguntas obre o seu estatuto processual.
Perdeu-se uma chance para poder restringir e monitorizar os movimentos de um arguido suspeito de tráfico de estupefacientes…
Por isso, se bem andou, sob o ponto de vista legal, o Juiz «a quo», já terá ele perdido uma dourada oportunidade para fazer aquilo que se lhe exige – ouvir um arguido sobre o seu estatuto processual, assente que o MP entendia que lhe deveriam ser aplicadas medidas de coacção mais gravosas que o mero termo de identidade e residência.
Fazer justiça não é só cumprir na íntegra a lei – é também adaptar a lei a novas realidades fácticas que se colocam, agindo com o bom senso que sempre terá de ser o guia e farol de qualquer juiz português.
Como tal, e embora não nos mereça censura legal o comportamento do JIC em causa, sempre se dirá que poderia ter ele aproveitado a presença física do arguido em Tribunal da Guarda naquele dia 26/6/2009 para cumprir o contraditório imposto pelo n.º 3 do artigo 194º do CPP:
3.6. É certo que o n.º 3 do artigo 194º do CPP adianta que se aplica à audição do arguido o disposto no artigo 141º, n.º 4.
Contudo, tal não significa que a audição do arguido tivesse de ser pessoal e física. Já que havia sido previamente constituído como arguido nos autos (fls 16), e não sendo aplicável a alínea b) precisamente pelo facto de estarmos perante um arguido NÂO DETIDO, não haveria também que cumprir a alínea a) do citado n.º 4.
Restariam as comunicações das alíneas c) e d) do n.º 4 do artigo 141º.
E tais elementos estão já plasmados e devidamente descritos na promoção do MP  a fls 42 a 45, ficando assim tacitamente cumprido o artigo 141º, n.º 4 com a notificação ao arguido (ou ao seu defensor oficioso - cfr. artigo 113º, n.º 9 do CPP[1]) do dito requerimento/promoção  - contudo, nada impede o juiz de, no despacho a ordenar a feitura do contraditório do n.º 3 do artigo 194º do CPP, colocar ali expressamente as referências do artigo 141º/4, caso não constem de forma muito explícita da promoção do MP.
Diga-se ainda que sempre poderá o arguido – residindo aqui uma cláusula de salvaguarda – pedir para ser ouvido presencialmente pelo JIC, podendo o JIC fazer tal “outro interrogatório”, se o achar conveniente e necessário (tal como se prevê para a instrução – cfr. artigo 292º, n.º 2 do CPP), convocando-o. Repetimos: pode fazê-lo mas não é obrigado a fazê-lo…
Como tal, basta-se aqui a lei com a simples garantia de contraditório, não exigindo um acto pessoal de audição - na realidade, a audição do arguido neste sede e com este móbil pode ser feito em 1º interrogatório judicial de arguido detido (justificando-se então a audição presencial perante o «o juiz das garantias e das liberdades» pela efectiva situação de privação da liberdade em que ele se encontra), não tendo de ser ouvido presencialmente, em situação de não detenção, em diligência “avulsa” visando unicamente tal audição pelo JIC (nada impedindo, não obstante, como se viu, que o juiz o decida fazer dessa forma mas apenas guiado por critérios de oportunidade e conveniência). …”.
[6] Estes normativos correspondem hoje, respectivamente os n.ºs 4, 6 e 7 do art.º 194º do CPP.
[7] Relatado por Matos Manso, in JusNet 6617/1997, do qual citamos: “… Dispõe o artº 227º, nº 2 do C. P. Penal que, havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização ou de outras obrigações civis derivadas do crime, o lesado pode requerer que o arguido ou o civilmente responsável prestem caução económica em termos e sob a modalidade a determinar pelo juiz.
O artº 194º, nº 1 do C. P. Penal dispõe que "as medidas de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Mº Pº e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o MºPº".
Da literalidade deste último preceito parece resultar que, durante o inquérito, o M.° P.° pode requerer a prestação de garantia patrimonial e o juiz pode oficiosamente, depois do inquérito, ordenar a prestação de garantia patrimonial do pagamento da indemnização ao lesado, já que a norma não diz expressamente que apenas se refere às garantias do pagamento da pena pecuniária, do imposto de justiça, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime (às quais se refere o nº 1 do artº 227º do C. P. Penal). O preceito não deve porém ser interpretado literalmente, antes deve fazer-se uma interpretação que atenda à finalidade do mesmo.
Com efeito o direito do lesado à indemnização é um direito subjectivo, da sua titularidade, e disponível. Como tal não faria sentido que outrem, sem ser mandatado pelo titular (ou sem assumir a qualidade de seu gestor de negócios nos termos da lei), ou o juiz, oficiosamente, se arrogassem a iniciativa de pretender a garantia de tal direito.
Excluída a aplicabilidade do nº 1 do artº 194º do C. P. Penal à garantia patrimonial do pagamento da indemnização ao lesado, parecerá que Ihe não é aplicável também o disposto no nº 2 do dito artº 194º do C. P. Penal. Dispõe este preceito: "A aplicação referida no número anterior é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial".
Ora, se "a aplicacão referida no número anterior" não diz respeito à garantia do pagamento da indemnização ao lesado, este preceito (o nº 2) também não lhe diz respeito.
Mas daqui não se pode concluir que a aplicação de uma medida de garantia patrimonial do pagamento da indemnização ao lesado possa ser decretada sem contraditório do obrigado.
O princípio do contraditório, até por ser um princípio processual geral, deve ser observado também neste caso.
Com efeito o artº 61º, nº 1, als. a) e b) do C. P. Penal dispõe que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de estar presente aos actos processuais que directamente Ihe disserem respeito e de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.
Ora não há dúvida de que a decisão que impõe ao arguido a prestação de uma garantia patrimonial do pagamento da indemnização ao lesado é um acto processual que afecta directamente o arguido.
Donde concluímos que o arguido tem de ser notificado para estar presente na diligência onde deva ser decidida a prestação de caução económica e ouvido a fim de se pronunciar sobre o objecto da diligência.
Dispõe o artº 119º, al. c) do C. P. Penal que constitui nulidade insanável, que deve ser declarada em qualquer fase do procedimento, a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.
E dispõe o artº 122º, nº 1 do C. P. Penal que as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aqueles que puderem afectar.
Assim, não tendo o arguido sido notificado para estar presente nem tendo sido ouvido na diligência em que foi proferido o despacho a determinar que prestasse caução, é nula a diligência e o despacho. …”.
[8] Disponível em trg.pt/info/estudos.html, do qual citamos: “… A segunda nota para acentuar que a lei continua a não resolver o problema de saber se a audição do arguido tem necessariamente de revestir a forma de audiência pessoal como parece depreender-se da remissão para o disposto no n.º 4 do artigo 141.º constante da parte final do n.º 3 do citado artigo 194.º e bem assim da parte final do n.º 7 do mesmo artigo 194.º, ou se o contraditório poderá ser exercido de outra forma, nomeadamente por escrito.
(Nota: No parecer da ASMJ sugeria-se uma solução diferenciada: audição presencial do arguido nos casos em que fosse requerida a aplicação de uma medida de coacção mais gravosa (v.g. as medidas para as quais a lei exige fortes indícios) prevendo forma mais expedita (resposta por escrito em face da notificação do requerimento do MP) nas demais medidas de coacção e garantia patrimonial, podendo prever-se que o arguido fosse ouvido presencialmente, mesmos nestes casos, quando expressamente o requeresse (“Proposta de Lei n.º 94/2010 – Alterações ao Código de Processo Penal”, cit., págs. 13-14). Esta proposta não mereceu acolhimento no texto legal. Não vislumbrávamos qualquer vantagem naquela proposta uma vez que iria problematizar, ainda mais, ao nível do arguido não detido, toda a temática da aplicação das medidas de coacção, que a Reforma de 2007 já tornara extremamente complexa.)
Refira-se, por último, que o n.º 7 do artigo 194.º [“Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º5, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição do recurso”] limita-se a reproduzir o anterior n.º 6, substituindo a referência à alínea b) do n.º 4 pela menção da alínea b) do n.º 5.  …”.
[9] A pág. 558, donde citamos: “… Parece que o arguido deve ser sempre ouvido, a não ser no caso de impossibilidade (v. g. em caso de doença) devidamente fundamentada …”.
[10] A este propósito, veja-se, por todos, o acórdão da RE de 30/09/2014, relatado por António João Latas, no proc. 89/06..9GCSTB-A.E1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “… Na verdade, são muitas as decisões das Relações no sentido de, pelo menos quando tal audição seja possível, a falta de audição (presencial) do arguido imposta pelo art. 495º nº 2 do CPP constituir nulidade insanável nos termos do art. 119º nº1 al. c) do CPP, aí se incluindo o Ac R.E de 12.07.2012 (relatora, Ana Bito) (1) / (2) , subscrito pelo agora relator como adjunto, que foi proferido num caso de revogação da substituição da prisão por PTFC como o presente, entendendo-se aí que «A preterição da audição presencial do arguido, sendo ela possível, integra a nulidade do art. 119.º, al. c) do Código de Processo Penal ....». …”.