Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1405/17.3YLPRT.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O negócio fiduciário caracteriza-se, pois, pela transmissão de um bem (tanto do próprio fiduciante como de terceiro) para o fiduciário, que passa a assumir a titularidade plena e exclusiva desse bem, sempre com o escopo de o transmitir posteriormente para o fiduciante ou para quem este indicar, decorrido certo lapso de tempo ou verificado determinado facto.
2. As relações jurídicas fiduciárias constituem-se, modificam-se e extinguem-se segundo as regras gerais aplicáveis aos negócios jurídicos de natureza privada, estando por isso sujeitas às normas que disciplinam a (in)validade dos negócios jurídicos em geral, sendo o negócio celebrado susceptível de ser anulado por ser usurário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO

S., SA intentou o presente procedimento especial de despejo, contra Raúl F. B. G., com vista ao despejo do prédio urbano em propriedade total com 2 pisos e 4 andares independentes (RC D, RC E, 1 E e 1 D), sito na Rua Beneficiado ..... nº ..., Alcochete, destinado a habitação.
Fundamentou a sua pretensão no facto de o requerido não ter procedido ao pagamento das rendas respeitantes ao período de Novembro de 2016 a Maio de 2017, razão pela qual, em 16.02.2017, foi notificado para proceder ao pagamento do valor em dívida e da intenção de resolução do contrato de arrendamento.
Notificado do requerimento de despejo, o R. deduziu oposição, invocando as excepções de incompetência territorial do BNA, a ineptidão do RI, e a ilegitimidade da A., e, ainda, a nulidade do contrato, por simulação, pois o que foi celebrado entre as partes foi um contrato de financiamento, nunca tendo sido intenção das partes celebrar qualquer arrendamento.
Termina pedindo a procedência das excepções invocadas e a improcedência da acção.
           Os autos foram remetidos à distribuição.
           Convidada a pronunciar-se sobre a oposição, propugnou a A. pela intempestividade da oposição, pela sua inadmissibilidade por falta de pagamento de caução, e improcedência das excepções invocadas.
            Foi proferido despacho que julgou:
- tempestiva e admissível a oposição;
- o tribunal competente, as partes legítimas, e improcedente a excepção de ineptidão do RI;
- improcedente a oposição deduzida pelo requerido, e procedente o presente procedimento de despejo, declarando resolvido o contrato de arrendamento identificado e condenando o requerido a desocupar o imóvel, bem como no pagamento das rendas vencidas desde Novembro de 2016 até à presente data, considerando o valor da renda mensal de 1.200,00€ (mil e duzentos euros), acrescidas de juros de mora calculados sobre o valor de cada uma das rendas desde a respectiva data de vencimento até integral pagamento, e no pagamento de indemnização equivalente ao valor das rendas mensais desde a presente data até integral pagamento (cfr. artigo 1045º do CC), indemnização que será elevada ao dobro, em caso de mora na entrega do locado.

Inconformado com a decisão, dela apelou o R., formulado, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1.º Com o presente Recurso, o ora recorrente pretende que seja analisado pelo Tribunal Superior, se o contrato de arrendamento dos autos é um contrato nulo e se estão preenchidos os requisitos da simulação.
2.º O recorrente teve conhecimento através de um anúncio publicado no Correio Da manhã, que a requerente concedia empréstimos, e como se encontrava numa situação económica difícil contactou os mesmos.
3.º A requerente apresentou como condições para a concessão do empréstimo o seguinte:
- O recorrente simularia a transferência do seu imóvel para a sociedade financiadora, declarando que o valor entregue era a título de contrapartida dessa transferência,
- Nesta conformidade, a requerente (entidade financeira) simularia a outorga de um contrato de arrendamento do imóvel dos autos, em que o requerido passava a ser inquilino do seu imóvel, onde era fixada uma renda cujo montante correspondia a prestações a pagar pelo empréstimo e juros estipulados no empréstimo que iria ser concedido. O contrato de arrendamento era simulado, para defraudar a lei e o fisco pois não era emitido qualquer recibo de renda.
- O requerente teria o direito a recomprar o imóvel.
4.º Assim, o recorrente no dia 8 de Julho de 2014, outorgou escritura de compra e venda do prédio dos autos, pelo preço de 60.000.00, em que o comprador é a SH. LDA (posteriormente foi vendida à empresa L. em 2 de Julho de 2015) e nesse mesmo dia outorga o contrato de arrendamento dos autos.
5.º Foi entregue ao recorrente a quantia de € 35.000.00, e foi-lhe exigido pela requerente a título de prestação pela concessão do empréstimo e não rendas a quantia de 6 mil euros que correspondia a 12 rendas simuladas, e posteriormente mais 18 mil euros que correspondia a juros.
6.º O recorrente nunca quis realizar um contrato de arrendamento, mas sim um contrato de mútuo.
7.º Nunca foi emitido qualquer recibo de renda.
8.º O empréstimo foi concedido com juros altíssimos e encapotados como rendas, para enganar o Estado, sendo que o arrendamento escondia as prestações a serem liquidadas e respectivos juros pelo empréstimo concedido.
9.º Defende, o recorrente que a sentença, contrariamente ao que devia, não apreciou a matéria de facto levada aos autos por considerar que não era necessário e julgou de modo incorrecto a matéria de direito relativamente aos requisitos da simulação.
10.º Não restam dúvidas que estamos perante um contrato de arrendamento simulado e por isso o mesmo é nulo.
11.º O incidente de despejo imediato carece de qualquer fundamento De facto e de direito, pelo que não é de decretar o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção de despejo, indicadas pelo senhorio ao fundamentar a causa.
Termina pedindo que se revogue a sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que declare o contrato de arrendamento nulo por simulação.
           A A. contra-alegou propugnando pela improcedência da apelação.

            QUESTÕES A DECIDIR
           Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) as questões a decidir são:
            a) a nulidade da sentença recorrida;  
b) a nulidade do contrato, por simulação.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
           
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
           O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
           1. S., S.A., na qualidade de primeira outorgante ou senhoria, e Raul F. B. G., na qualidade de segundo outorgante ou inquilino, assinaram o escrito denominado “Contrato de Arrendamento para Fins Habitacionais”;
2. Tal contrato visou o prédio urbano em propriedade total com 2 pisos e 4 andares independentes (RC D, RC E, 1 E e 1 D), sito na Rua Beneficiado ... n.º ..., Alcochete, descrito na Conservatória de Registo Predial de Alcochete sob o n.º 3900 e inscrito na matriz sob o artigo 2280;
3. Na cláusula 4.ª do aludido contrato pode ler-se o seguinte: “o arrendamento é realizado pelo prazo de 6 meses com início no dia 10.05.2016 e termo em 09.11.2016; o presente contrato poderá renovar-se, por iguais períodos, no prazo máximo de 3 renovações, caso as partes não se oponham a essa renovação; por cada renovação ao valor mensal devido a título de renda acrescem 200,00€ mantendo-se o pagamento semestral das rendas devido no início de cada renovação”;
4. Na cláusula 5.ª lê-se que “a renda mensal é de 1.000,00€.

           FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
           Não obstante o apelante, nas alegações, tenha invocado a nulidade da sentença recorrida nos termos do artigo 615º, nº 1, als. b) e d) [1], por “algumas das respostas dadas pelo tribunal a quo” serem “deficientes, obscuras e contraditórias”, o que é um facto é que veio a restringir o objecto do recurso nas conclusões porquanto aí nada refere quanto à invocada nulidade da sentença [2].
Sempre se dirá, contudo, que a sentença recorrida não padece dos vícios formais referidos:
- na sentença recorrida são especificados os factos provados e as disposições legais e fundamentos jurídicos que justificam a decisão de procedência do PED e improcedência da oposição apresentada;
- o tribunal recorrido apreciou a pretensão da requerente, analisando as questões por esta suscitadas (existência de contrato e incumprimento contratual, resolução do mesmo, e obrigação de pagamento de rendas em atraso), e a oposição/pretensão do requerido (existência de simulação, nulidade do contrato de arrendamento);
- nem a fundamentação de facto, nem a fundamentação de direito padecem de “deficiência, obscuridade ou contraditoriedade”.
Ao contrário do que sustenta o apelante, o tribunal recorrido apreciou a matéria de facto levada aos autos pelo requerido, e foi com base nessa apreciação que concluiu pela improcedência da oposição, porque entendeu que a factualidade alegada (mesmo que viesse a resultar provada) não permitia concluir pela simulação invocada.
E se a factualidade alegada não permitia concluir pela simulação invocada, nenhum sentido fazia realizar julgamento para apurar a mesma, por irrelevante, ao tribunal estando proibido realizar actos inúteis (art. 130º do CPC).
Vejamos, então, se a factualidade alegada permite concluir pela verificação de simulação e, consequente, nulidade do contrato subjacente aos autos, como sustenta o apelante no presente recurso, caso em que se terá de revogar a sentença recorrida e determinar o prosseguimento dos autos para apuramento da factualidade provada, com produção da prova indicada, não sendo caso de proferir decisão a declarar o contrato de arrendamento nulo por simulação, como peticiona o apelante, por se mostrar controvertida a factualidade alegada.
Escreveu-se na sentença recorrida: “… Vejamos. Alega o réu que o contrato de arrendamento celebrado entre as partes foi simulado. Para o efeito, esclarece o réu que o imóvel em causa era da sua titularidade e que, em face de dificuldades económicas, recebeu da autora um empréstimo de 35.000,00€, tendo, em contrapartida, acordado com a autora a transferência da propriedade do aludido imóvel a seu favor e, simultaneamente, a outorga de um contrato de arrendamento que serviria como título para o gozo do mesmo imóvel, mediante fixação de uma renda cujo montante corresponderia a prestações a pagar pelo empréstimo recebido e juros respectivos. Mais alega o requerido que, pese embora o teor do contrato, em momento algum quis vender o seu imóvel ou celebrar o descrito contrato de arrendamento. Em face dessa factualidade, entende o requerido que o contrato é nulo, por simulação, pelo que importa analisar o respectivo regime legal. De acordo com o disposto no artigo 240.º do CC, “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado” (n.º 1). O negócio simulado é nulo, conforme decorre do disposto no n.º 2 do preceito em causa. De acordo com o subsequente artigo 241.º, quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. A partir desta noção, a doutrina tem defendido a necessidade da verificação simultânea de três requisitos para que haja um negócio simulado: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar). Se, em determinado caso concreto, não ocorrer o circunstancialismo fáctico integrador dos requisitos “supra” enunciados, poderá verificar-se qualquer falta ou vício de vontade, mas não, seguramente, o da simulação. Saliente-se que a simulação, que pode ser fraudulenta ou não, absoluta ou relativa, implica sempre a intenção de enganar terceiros, embora com esta intenção possa ou não cumular-se a de prejudicar outrem (animus nocendi). Quando, além da intenção de enganar, haja a de prejudicar, a simulação diz-se fraudulenta. Se o acordo simulatório se dirige à celebração de um negócio e as partes não querem, na realidade, celebrar esse negócio, nem qualquer outro, a simulação é absoluta. Noutros casos, o negócio simulado encobre outro acto que se diz dissimulado. É o caso da simulação relativa. A intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração traduz-se na consciência, por parte do declarante, de que emite uma declaração que não corresponde à sua vontade real: o declarante não só sabe que a declaração emitida é diversa da sua vontade real, mas quer ainda emiti-la nestes termos. Trata-se, portanto, de uma divergência livre, querida e propositadamente realizada. A divergência entre a vontade e a declaração deve proceder de acordo entre declarante e declaratário (pactum simulationis), isto é, o conluio (cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral, vol. II, pág. 169), a mancomunação (v. Galvão Telles, Dos Contratos em Geral, 2ª ed. 149), consistente em as partes declararem, intencional e concertadamente, terem realizado um acto, que, afinal, não quiseram realizar (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, Vol. I, 4ª ed., pág. 321). O terceiro requisito, ou seja, o de enganar terceiros, quer dizer iludir (animus decipiendi), e pode ter-se em vista enganar terceiro não para o prejudicar, mas para se defender um legítimo interesse próprio ou até para beneficiar esse terceiro. Em regra, porém, a simulação faz-se com o intuito de prejudicar, sendo, por isso, fraudulenta. O terceiro a que se refere o artigo 240.º não é, necessariamente, alguém que seja alheio ao negócio, mas antes alguém que seja alheio ao conluio. É aquele que não interveio no acordo simulatório (cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2ª ed., pág. 245 e Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 481). No caso de simulação relativa, a intenção de enganar terceiros resulta evidenciada pelo propósito das partes de criar uma aparência que não corresponde à realidade, celebrando com animus decipiendi um negócio aparente que dissimula o oculto ou encoberto. Analisada a matéria alegada pelo requerido em sua defesa, importa concluir dos factos em causa não resulta que se encontrem reunidos os pressupostos da simulação. Com efeito, não foi alegada a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, nem o acordo simulatório (pactum simulationis) entre requerente e requerido, nem o intuito de enganar terceiros (animus decipiendi). A defesa configurada pelo réu não se enquadra no instituto jurídico da simulação, na medida em que não resulta que as partes tenham tido intenção de emitir uma declaração falsa, que não correspondia à sua vontade real, ou seja, que tenham, propositadamente, emitido uma declaração negocial falsa, diferente da realmente pretendida, com intenção de enganar quem quer que fosse. Com efeito, não resulta da contestação que as partes tenham declarado vender/ comprar o imóvel e celebrar o consequente contrato de arrendamento com intenção de enganar ou prejudicar qualquer terceiro. O réu limita-se a alegar uma estratégia negocial que, conscientemente ou inconscientemente, foi executada entre as partes com vista à concessão do aludido empréstimo pela autora. Ou seja, não resulta do alegado que tenha sido celebrado este arrendamento, bem sabendo que a vontade declarada pelas partes não coincidia com a vontade real, para que, com os efeitos decorrentes desse aparente arrendamento, um terceiro fosse enganado ou prejudicado. Não existiu, de acordo com a configuração dada à defesa pelo requerido qualquer intuito de enganar terceiros. Claudicam, por completo, os pressupostos da simulação e, consequentemente, da nulidade do contrato de arrendamento. Não tendo ocorrido simulação, não pode ser considerada, consequentemente, a existência de dissimulação nem a validade de qualquer outro negócio que não o formalizado pelas partes. …”.
Alegou o apelante na oposição:
- o prédio subjacente aos autos foi propriedade do requerido, adquirido por herança, até 8.07.2014, altura em que supostamente o vendeu à requerente, “que também usa o nome Sh. e L.”;
- estando a passar graves dificuldades económicas, o requerido contactou a requerente (que também usa o nome Sh., Lda.) [3], para que lhe fosse concedido um crédito no montante de €60.000,00, sendo condições de tal crédito, por indicação da requerente, que o requerido simulasse a transferência do imóvel para a sociedade financiadora, declarando que o valor entregue era a título de contrapartida dessa transferência, simulando a requerente (entidade financiadora) a outorga de um contrato de arrendamento do imóvel, passando o requerido a ser inquilino, onde era fixada uma renda cujo montante correspondia a prestações a pagar pelo empréstimo e juros estipulados no empréstimo que iria ser concedido, tendo o requerido direito a recomprar o imóvel.
- “O contrato de arrendamento era simulado, para defraudar a lei e o fisco”;
- assim, no dia 8.07.2014, foi outorgada escritura de compra e venda do prédio, em que o comprador é a Sh., Lda. (posteriormente, em 2.07.2015, vendido à L.), sendo a referida “venda feita mediante o pagamento de €60.000,00”;
- neste negócio simulado, a Sh. Lda. e S. entregou ao requerido a quantia de €35.000,00 e exigiram a título de juros (a que corresponde as alegadas 12 rendas dos autos no arrendamento simulado) a quantia de €6.000, e mais tarde exigiram mais €18.000 de rendas que corresponde a juros e prestações pela suposta concessão de crédito;
- o requerido ficou sem a propriedade do imóvel e ainda tem de pagar juros, a que chamam rendas, por um empréstimo de €35.000,00, o que consubstancia burla, correndo termos na PJ o respectivo processo;
- no dia da outorga da escritura de compra e venda do imóvel, o requerido assinou, de boa fé, o contrato de arrendamento simulado dos autos “(anteriormente já tinha assinado outro contrato de arrendamento simulado mas em nome da L. – empresa fantasma)”;
- em momento algum o requerido quis vender ou celebrar um contrato de arrendamento da sua própria casa, mas apenas titular o pagamento do empréstimo e juros, que prometeram fazer;
- “o referido contrato de arrendamento está ferido de nulidade, por fraude à lei, com vista à concessão ilegal de crédito e com vista a receber prestações e juros por um contrato de arrendamento simulado e não declarado nas finanças e sem emissão de qualquer recibo”.
A alegação do requerido evidencia algumas contradições, para além de discrepâncias com a documentação junta aos autos.
Mas vejamos se a factualidade alegada tem relevância jurídica.
Sufragamos o entendimento do tribunal recorrido de que a factualidade alegada não preenche os pressupostos da simulação, nomeadamente do acordo simulatório, entre requerente e requerido, com o intuito de enganar terceiros.
O conceito de simulação é-nos dada pelo nº 1 do art. 240º do CC que dispõe que “Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”, podendo a simulação ser absoluta, se os simuladores fingem celebrar um negócio, quando não querem realizar negócio algum [4], ou relativa, se fingem realizar um negócio diverso daquele que, na realidade, querem concluir (art. 241º do CC) [5].
Face à factualidade alegada pelo apelante, não há divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante – o contrato celebrado (de arrendamento, bem como o de compra e venda), foi a forma que as partes encontraram para formalizar (titular, nos dizeres do apelante) o contrato entre as partes celebrado, dentro da livre disponibilidade das partes (art. 405º do CC).
A simulação absoluta é de afastar liminarmente porque não se está perante um negócio fictício (as partes quiseram contratar).
Mas também é de afastar a simulação relativa porquanto a factualidade alegada não permite concluir que as partes não quisessem o negócio, pelo contrário, o contrato celebrado foi a forma encontrada para o celebrar.
Mas ainda que se mostrasse a existência de um acordo simulatório, era essencial alegar/provar o intuito de enganar terceiro, seja para o prejudicar seja para o iludir.
Terceiro, alheio ao acordo simulatório, que se pretende enganar, pode ser o fisco, a Fazenda Nacional [6].
Como escrevia Manuel Domingues de Andrade, em Teoria da Relação Jurídica, Vol. II, Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, 1983, pág. 172, “Em regra a simulação faz-se com o intuito de prejudicar, sendo pois fraudulenta. … Mas até há pouco tempo, o interesse que mais frequentemente originava as simulações era o de lesar o fisco. … Finge-se, naturalmente, a espécie de contrato a que corresponde o imposto menos gravoso, com o intuito de prejudicar o fisco. …” [7].
O negócio é simulado se o acordo simulatório entre os outorgantes do contrato tem o intuito de defraudar, prejudicar, o fisco, que é o terceiro para efeitos do mencionado preceito legal.
Não está em causa declarar ou não o contrato ao fisco – do que se trata é de celebrar um contrato que, em termos fiscais, se pretende menos gravoso para os contraentes, sendo esse, precisamente, o intuito do acordo simulatório.
E sobre esta matéria não alegou o apelante (a quem incumbia o respectivo ónus) qualquer factualidade concreta, revelando-se as alegações sobre o intuito de “defraudar” o fisco meramente conclusivas, nenhum facto concreto tendo sido alegado que permitisse concluir pela alegada pretendida “fuga ao fisco” - em que medida o negócio celebrado se revelava menos gravoso para os outorgantes, em prejuízo do fisco (do Estado), e que os determinou a celebrar o negócio simulado.
Como concluiu o tribunal recorrido, a factualidade alegada pelo apelante nunca permitiria concluir pela verificação dos pressupostos da simulação, em que o apelante sustenta a nulidade do negócio objecto dos autos.
Mas o tribunal recorrido não está vinculado às alegações das partes no que tange à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art. 5º, nº 3 do CPC.
A factualidade alegada pode ser equacionada, analisada, à luz do negócio fiduciário, que não se confunde com a simulação.
O negócio fiduciário é um contrato atípico, englobando diferentes realidades, que vem sendo reconhecido como admissível quer pela doutrina [8], quer pela jurisprudência [9].
           Segundo André Figueiredo, em O Negócio Fiduciário Perante Terceiros, 2012, pág. 70, diz-se negócio fiduciário “o contrato do qual resulta, directa ou indirectamente, uma atribuição plena (ainda que temporária) de um bem ao fiduciário – maxime, de um direito de propriedade sobre uma coisa -, gravada porém por um vínculo funcional de natureza obrigacional que instrumentaliza a situação jurídica em que fica investido o fiduciário à prossecução de um interesse alheio – pertencente ao fiduciante -, e que impõe, nos termos estipulados, a (re)transmissão daquele acervo patrimonial e respectivos frutos para a esfera do fiduciante”.
            O negócio fiduciário não se confunde com a simulação, uma vez que, contrariamente ao que sucede na simulação, no negócio fiduciário as partes querem o negócio com todas as suas consequências jurídicas e efeitos típicos, muito embora o pretendam apenas para certo fim específico (por exemplo, para fim de garantia), fim esse que pode ser diferente (e geralmente é) do fim típico do contrato [10].
            Como escrevia Manuel Domingues de Andrade, na ob. cit., págs. 175/176, “Estes negócios fiduciários reconduzem-se a uma transmissão de bens ou direitos, realmente querida pelas partes para valer em face de terceiros e até mesmo entre elas, mas obrigando-se o adquirente (pactum fiduciae; cláusula fiduciária) a só exercitar o seu direito em vista de certa finalidade. Pode ser esta, principalmente, uma finalidade de administração (v.g. arrendamento) ou de alienação dos respectivos bens no interesse do fiduciante (fiducia cum amico), julgando-se só por este meio poder ela ser proveitosamente conseguida, ou uma finalidade de garantia (fiducia cum creditore), assim se pretendendo, entre outras vantagens, furtar o credor - fiduciário -, no caso de não ser pago, às demoras e contingências dum processo judicial. Atribuem, portanto, ao fiduciário uma posição jurídica cuja amplitude ultrapassa o necessário para normalmente se atingir o fim em vista”.
           O negócio fiduciário caracteriza-se, pois, pela transmissão de um bem (tanto do próprio fiduciante como de terceiro) para o fiduciário, que passa a assumir a titularidade plena e exclusiva desse bem, sempre com o escopo de o transmitir posteriormente para o fiduciante ou para quem este indicar, decorrido certo lapso de tempo ou verificado determinado facto.
           O pacto fiduciário consiste no acordo principal, que contém a regulação interprivada do modo como a situação fiduciária deve ser exercida e do fim que se visa alcançar, constituindo a causa do acto de investidura [11], bem como do acto através do qual se restitui ao fiduciante ou a quem este indicar o bem da fidúcia.
           Ambos estes actos ou negócios são meramente instrumentais ou acessórios face ao pacto fiduciário, sendo este o cerne do negócio.
           O negócio fiduciário será qualificado como aberto se a natureza fiduciária do negócio for pública ou reconhecível por terceiros, e será oculto se apenas as partes tiverem conhecimento da conclusão desse negócio e o carácter fiduciário não for perceptível para terceiros.
           A factualidade alegada pelo requerido poderá permitir concluir pela outorga de um negócio fiduciário, em que a celebração do contrato de compra e venda e do(s) contrato(s) de arrendamento se configuram como obrigações que integram aquele negócio, sendo actos de execução instrumentais ou acessórios.
           E a alegação é feita no sentido da requerente ter sido interveniente no negócio fiduciário, sendo o contrato de arrendamento com esta celebrado parte obrigacional do mesmo.
           Por outro lado, as relações jurídicas fiduciárias constituem-se, modificam-se e extinguem-se segundo as regras gerais aplicáveis aos negócios jurídicos de natureza privada, estando por isso sujeitas às normas que disciplinam a (in)validade dos negócios jurídicos em geral.
           A factualidade alegada pelo requerido poderá permitir concluir pela anulabilidade do negócio celebrado, por usurário – art. 282º do CC [12].
           Em face do que se deixa dito, procede, necessariamente, a apelação, devendo revogar-se a sentença recorrida, prosseguindo termos o processo, a fim de ser apurada a factualidade relevante para a apreciação do mérito da causa.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, prosseguindo termos os autos.
Custas pela recorrida.
                                                       *
Lisboa, 2018.04.24

Cristina Coelho

Luís Filipe Pires de Sousa

Carla Câmara

[1] Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b), e por omissão ou excesso de pronúncia (al. d).
[2] Como referido supra, é pelas conclusões que se define o objecto do recurso, de acordo com o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC.
[3] De quem teve conhecimento através do jornal.
[4] A simulação traduz-se num “(...) fingimento que visa criar a aparência de um negócio que não foi querido pelas partes (simulação absoluta)” – Ac. do STJ de 22.2.2011, P. 1819/06.4TBMGR.C1.S1 (Fonseca Ramos), em www.dgsi.pt.
[5] Caso em que além do negócio simulado, patente, existe o negócio dissimulado, latente.
[6] Neste sentido, ver Carlos A. Mota Pinto, em Teoria Geral do Direito Civil, pág. 358
[7] O que repete a págs. 187. E a págs. 202, a propósito da arguição da simulação por terceiros interessados na nulidade do negócio simulado, escreve “Claro que a Fazenda terá interesse em arguir a simulação de quaisquer negócios quando lhe tenham causado prejuízo. E já sabemos que a pode arguir (e até mesmo que os simuladores tenham procedido sem a intenção fraudatória correspondente), variando as consequências conforme a simulação recaiu sobre a natureza ou os sujeitos do negócio, ou apenas sobre o seu valor”.
[8] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, em Contratos Atípicos, págs. 272/273.
[9] Cfr., entre outros, os Acs. da RP de 11.04.2002, P. 0230148 (João Vaz), do STJ de 17.12.2002,  P. 02A3267 (Pinto Monteiro), do STJ de 11.05.2006 P. 06B1501 (Salvador da Costa), da RE de 15.12.2009, P. 283/2002.E1 (Fernando Bento), do STJ de 16.03.2011, P. 279/2002.E1.S1 (Lopes do Rego), da RP de 5.02.2013, P. 4867/06.0TBVLG.P1 (Márcia Portela), do STJ de 7.03.2017, P. 3585/14.0TBMAI.P1.S1 (Roque Nogueira), e da RE de 28.06.2017, P. 687/16.2T8PTG.E1 (Tomé de Carvalho), todos em wwwdgsi.pt.
[10] Como se escreveu no referido Ac. da RP de 5.02.2013, “Na simulação relativa, o contrato simulado é criador de aparência; na fidúcia, o tipo adoptado investe o fiduciário na titularidade”.
[11] Ou seja, do acto através do qual se opera a transmissão do bem da fidúcia para o fiduciário.
[12] Com interesse sobre esta matéria, cfr. os Acs. da RL de 15.03.2012, P. nº 131/07.6TCFUN-6 (Teresa Soares), e do STJ de 12.09.2006, P. nº 06A1988 (Afonso Correia), ambos em www.dgsi.pt.