Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19496/19.0T8SNT.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: VENDA DE FRACÇÃO AUTÓNOMA
ÁREA DE REABILITAÇÃO URBANA (ARU)
DIREITO DE PREFERÊNCIA
MUNICÍPIO
PREÇO DEVIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 - A realização da escritura de compra e venda sem aguardar pela resposta do preferente configura uma violação do direito de preferência.
2 - O “preço devido” referido no art.º 1410º do C.C. é a contraprestação que deve ser paga ao vendedor, não abrangendo IMT e despesas de escritura.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Na presente ação declarativa que Município … move contra P… e J…, o A. interpôs recurso da sentença pela qual a ação foi julgada improcedente e as RR. foram absolvidas dos pedidos contra si deduzidos, a saber:
- seja declarado o direito de preferência do A. sobre a fração autónoma L do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …;
- seja a R. J… condenada a proceder ao cancelamento da inscrição predial a seu favor;
- seja a R. P... condenada a celebrar com o A. a escritura pública de compra e venda daquela fração.
Na alegação de recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1. O Tribunal a quo andou mal e errou ao ter considerado demonstrada a matéria constante dos pontos b, c e d dos factos provados.
2. O imóvel em causa nos presentes autos encontrava-se inserido na Área de Reabilitação Urbana Simples de …, de acordo com o aviso n.º 7881/2019 de 7 de Maio publicado no Diário da República (Cfr. Documento. n.112), o que conferia ao aqui recorrente, na qualidade de entidade gestora da operação de reabilitação urbana, a possibilidade de exercer o direito de preferência.
3. No seguimento dos objetivos delineados no documento de delimitação e concretização da ARU (Área de reabilitação urbana), o Recorrente concebeu um projeto de arrendamento jovem, e com o propósito de prosseguir tal projeto, após Relatório de Avaliação realizado pela Comissão de Avaliação do Autor (R. de Avaliação - SM - …), o Exmo. Senhor Presidente da Câmara, através de despacho de 28-06-2019 exarado nesse mesmo relatório, decidiu exercer o seu Direito de Preferência, sobre a mencionada fração. (Cfr. Documento nº 3).
4. No dia 01-07-2019, o Autor procedeu à emissão de uma certidão a confirmar o exercício do Direito de preferência, (Cfr. Documento. Nº 4), a qual foi emitida pela Divisão de Assuntos Administrativos e contratualização (DAAC) e remetida para o Gabinete de Apoio ao Munícipe (GAMQ) a 03.07.2019.
5. Do documento n.º 5 resulta que o Recorrente remeteu um e-mail para a 1ª R. dando--lhe conta de que a aludida certidão se encontrava pronta para ser levantada, e do documento n.º 6 resulta que, posteriormente, o Autor voltou a enviar novo e-mail a reiterar o pedido de contacto, todavia a 1ª R. nunca respondeu aos e-mails, nem procedeu ao levantamento da certidão.
6. Através do documento n.º 17, dúvidas não existem de que, em setembro de 2019, através da consulta de uma Certidão de Registo Predial, o Autor tomou conhecimento da celebração de escritura entre a 1.ª e a 2.ª Rés, outorgada no dia 04-07-2019, ou seja, no exato dia em que a comunicação para levantamento da certidão foi remetida para a 1ª R.
9. O Autor não teve qualquer conhecimento prévio sobre a concretização da venda, considerando, até consulta da Certidão do Registo Predial, que a proprietária iria proceder ao levantamento da Certidão e, consequentemente, agendar a escritura de compra e venda materializando, desta forma, o Direito do Autor de exercer a preferência na venda.
10. A alienação, nos termos em que se concretizou, padeceu de vícios, impossibilitando o exercício do direito do Autor, e evidenciando o total incumprimento de prazos, para determinação e comunicação da vontade do beneficiário do Direito em apreciação.
11. Um dos princípios basilares do processo civil quanto à prova, senão mesmo o fundamental, é o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 607.º n.º 5 do Código de Processo Civil, nos termos do qual, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
12. Resulta do n.º 4 do preceito legal atrás referido, que a fundamentação da sentença contém uma exposição dos factos que o Juiz julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, tomando ainda o Juiz em consideração os factos que foram admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência.
13. A decisão do Juiz deve, assim, ser devidamente fundamentada, e proferida segundo um critério legal, isto é, o julgamento segundo a sua livre convicção.
14. No recurso em matéria de facto, cabe saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes no processo) pode exibir perante si, já que o recurso não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um eventual remédio para os defeitos do julgamento em primeira instância.
15. Ora, no caso concreto, conforme se demonstrará infra verificou-se uma violação do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que, da leitura da sentença recorrida resulta que o Tribunal não construiu a sua convicção perante todas as provas constantes dos autos e as produzidas na audiência.
16. Entende o recorrente que o tribunal a quo, não conjugou a prova testemunhal com a vasta prova documental existente nos autos, e que não foi impugnada de nenhuma forma.
17. A prova produzida impunha, desde logo que o Tribunal a quo tivesse dado como provada a matéria constante no ponto C, ou seja, tivesse considerado provado que o A. não comunicou à 1ª R. da sua intenção de exercer o direito de preferência na compra da predita fração e que no seguimento dos objetivos delineados no documento de delimitação e concretização da referida área de reabilitação urbana concebeu um projeto de arrendamento jovem e foi com o propósito de prosseguir tal projeto que o Presidente da Câmara Municipal … decidiu preferir.
18. Pois, além da prova documental constante dos autos, os depoimentos prestados pelas testemunhas A… (00:00:05:9 a 00:01:56.3, 00:01:59.7 a 00:03:26.7, 00:06:15.3 a 00:09:33.5, 00:10:13.7 a 00:16:11.4), e M…, (00:01:48.8 a 00:03:24.2) impunham que os factos vertidos no ponto c) fossem considerados provados.
19. O depoimento das testemunhas M… - (00:01:53.2 a 00:14:22.7) e A… (00:01:59.9 a 00:39:23.1), além de imporem uma decisão diferente quanto ao ponto C) dos factos não provados, impunha igualmente que o ponto D) elencado como não provado fosse julgado demonstrado – (00:01:53.2 a 00:14:22.7).
20. Perante os depoimentos acima identificados, e a prova documental carreada para os autos, é manifesto que o Tribunal a quo andou mal, ao ter julgado não provada tal matéria, pois resulta claro que o A. comunicou à 1ª R., pela mesma via do pedido (Balcão do Munícipe), da sua intenção de exercer o direito de preferência na compra da fração, e que no seguimento dos objetivos delineados do documento de delimitação e concretização da referida área de reabilitação urbana concebeu um projeto de arrendamento jovem e foi com o propósito de prosseguir tal projeto que o Presidente da Câmara Municipal… decidiu preferir.
21. Além de ter cometido erros quanto a apreciação da matéria de facto, entende o Recorrente que o Tribunal a quo andou igualmente mal quanto à apreciação e aplicação da matéria de direito.
22. O Direito de preferência previsto nos artigos 58º do decreto-lei 307/2009 e 155.Q do Decreto-lei 80/2015, consagra-se como um regime especial cujo principal objetivo consiste na proteção e salvaguarda do interesse público.
24. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 58.º do DL 307/2009, a entidade gestora tem preferência nas transmissões a título oneroso, entre particulares, de terrenos, edifícios ou frações situadas em área de reabilitação urbana.
25. Nos termos do disposto no artigo 155º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, os municípios têm o direito de exercer preferência nas transmissões de prédios, realizadas ao abrigo do direito privado e a título oneroso, no âmbito de execução de planos de pormenor ou de unidades de execução, designadamente para reabilitação, regeneração ou restruturação da propriedade.
26. No caso em apreço, o proprietário original, aqui 1ª Ré, procedeu à alienação do bem imóvel com total desrespeito pelo direito de Preferência da Autora, exercido na forma prazo legais, conforme previsto no diploma 862/76 de 22 de Dezembro.
27. Em 7 de Maio de 2019 foi publicado no Diário da República, 2ª série, nº 87, o aviso nº 7881/20019 do Presidente da Câmara Municipal… tornando público que se encontra aprovada, dentre outras, a delimitação da Área de Reabilitação Urbana de …; em 14-06-2019, por escrito, a primeira R., representada por A…, apresentou ao A. documento denominado Requerimento para Informação sobre o Exercício do Direito de Preferência na Alienação de Imóveis, facultando-lhe a possibilidade de preferir na venda da sua fração autónoma identificada pela letra L, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial …, sob o nº …, informando que o preço era de 80.000,00€; o prédio onde se situa a  fração em causa nos autos encontra-se situado na Área de Reabilitação Urbana de… delimitada pelo aviso.
28. Foi elaborado pela Comissão de Avaliação da Câmara Municipal… relatório de avaliação da fração em causa em 24-06-2019, tendo-lhe sido atribuído o valor de mercado de 105.000,00€ (cento e cinco mil euros).
29. Em 01-07-2019, o A. emitiu certidão onde refere que face aos elementos existentes neste Município e ao aviso referido em foi decidido exercer o direito de preferência sobre a predita fração, a qual foi remetida ao Gabinete do Munícipe.
30. Em 04-07-2019, pelas 10 horas, a primeira R. vendeu à segunda, pelo preço de 80.000,00€ a referida fração autónoma.
31. Em 04-07-2019, foi inscrita, na descrição da aludida fração, a aquisição da mesma a favor da segunda R. por compra à primeira.
32. Em 04-07-2019, pelas 9 horas e 58 minutos, via email, o A. informou a primeira R. na pessoa de A… de que já havia resposta ao Requerimento para Informação sobre o Exercício do Direito de Preferência na Alienação de Imóveis apresentado pela primeira R., informando-a de que poderia proceder ao seu levantamento no Gabinete de Apoio ao Munícipe…
33. Para proceder a este contacto o A. utilizou o endereço de email a…, indicado no predito requerimento da 1ª R.
34. O A. tomou conhecimento da compra e venda referida em Setembro de 2019.
35. O ato foi, aliás, de tal forma intencional que a 1.ª Ré sequer quis saber a resposta do Autor ao seu requerimento, celebrando a escritura de compra e venda no dia em que a Autora lhe remeteu a comunicação para levantamento da Certidão a confirmar a pretensão do Autor em exercer o seu Direito de preferência.
36. O vício de nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão – que ocorre sempre que as premissas (fundamentação) apontem inexoravelmente para um determinado sentido decisório, vindo a decisão a revelar-se em antinomia ou, pelo menos, em dissonância com esse sentido (art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC) – não se confunde com o erro de julgamento fundado em errada interpretação dos factos.
37. Nos termos da Lei n.º 107/2001, de 08 de Setembro - Lei de Bases do Património Cultural, os municípios gozam, do direito de preferência em caso de venda ou dação em pagamento de bens classificados ou em vias de classificação ou dos bens situados na respetiva zona de proteção, sendo aplicável ao direito de preferência previsto neste artigo o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil, com as necessárias adaptações.
38. Refere ainda no disposto normativo legal que - Artigo 38.º escrituras e registos – o incumprimento do dever de comunicação estabelecido nos artigos anteriores constituirá impedimento à celebração pelos notários das respectivas escrituras, bem como obstáculo a que os conservadores inscrevam os actos em causa nos competentes registos
39. Quando efetuada contra o preceituado pelo artigo 35.º e pelo n.º 1 do artigo 36.º, a alienação, a constituição de outro direito real de gozo ou a dação em pagamento são anuláveis pelos tribunais sob iniciativa do membro da administração central, regional ou municipal competente, dentro de um ano a contar da data do conhecimento
40. Dispõe a norma geral do Código Civil - artigo 416.º - (Conhecimento do preferente) do Código Civil, querendo vender a coisa que é objecto do pacto o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projeto de venda e as cláusulas do respectivo contrato, o qual, recebida a notificação, deve exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.
41. O Decreto n.º 862/76, de 22 de dezembro - Diário da República n.º 297/1976, Série I de 1976-12-22, páginas 2819 – 2820 - Data de Publicação: 1976-12-22, que regulamenta o direito de preferência da Administração nas alienações, a título oneroso, de terrenos ou edifícios previsto na lei e ainda em vigor, assenta nas seguintes ideias fundamentais: simplificar as relações e comunicações entre os particulares e a Administração; impedir situações de dúvida ou incerteza sobre a observância dos deveres impostos àqueles e a esta, sendo certo que, dentro destas preocupações, fixam-se os prazos que se reputam adequados para as diversas comunicações que o direito de preferência implica.
42. Impõe-se o uso, para as comunicações, ou de carta registada, com aviso de receção, ou de entrega direta nos serviços, mas sempre com duplicado, para menção do respetivo recebimento, único meio de prova admitido para o facto.
43. Os particulares que pretendam alienar imóveis abrangidos pelo direito de preferência devem comunicar a alienação pretendida à entidade competente para o efeito. - Art.º 3.º - 1 – a qual deverá conter: a) A identificação do participante e a indicação da sua residência ou de outro local certo para onde deverá ser enviada a resposta da Administração; b) A identificação conveniente do imóvel ou dos imóveis, com a menção da sua situação e composição, dos ónus e encargos que sobre eles incidem e das respetivas inscrição matricial e descrição no registo predial; c) A indicação do preço estipulado para a venda do imóvel ou de cada um deles.
44. Quando a participação dos particulares não contiver os elementos legalmente exigidos, a Administração solicitará as indicações complementares necessárias, mediante ofício expedido pelo registo do correio, com aviso de receção, para a respectiva residência ou o outro local indicado para o efeito.
45. O ofício considera-se recebido pelo particular na data da entrega constante do aviso de recepção, ou, se não for possível a entrega, por não ser encontrada pessoa a quem seja feita, na data em que tal facto conste daquele aviso.
46. Na falta de indicação da residência ou de outro local para onde deverá ser enviada a resposta da Administração ou de procuração, exigidas na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 3.º, considera-se como não tendo sido feita a participação.
47. Se a Administração desejar exercer o direito de preferência, fará a necessária comunicação ao particular, indicando o preço que oferece, se não aceitar o convencionado - Art.º 7.º - 1 – a qual deverá ser enviada pelo registo do correio, com aviso de receção, de forma a poder ser recebida dentro do prazo de quarenta e cinco dias, a contar do recebimento da participação pela entidade a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º, ou, se tiver havido pedido de esclarecimentos, a contar do recebimento da participação adicional a que se refere o artigo anterior.
48. O Tribunal a quo, com a decisão sob censura, premeia uma atuação indevida, já que não pode o A. aceitar que o julgador aplique apenas parte de um regime legal, sabendo--se que a comunicação deveria ter sido feita mediante participação em duplicado, com a assinatura reconhecida, apresentada diretamente no serviço competente ou enviada pelo registo do correio, sendo que, a prova da comunicação imposta, sob controlo notarial, só poderia ser feita através de recibo passado pelos serviços competentes para a sua receção no duplicado da participação, com a menção da data da sua apresentação.
49. Sem que o A. tenha incumprido com qualquer das obrigações pretende o tribunal a quo anular o direito que lhe assiste, retirando-lhe todos os efeitos, como se ele nunca tivesse sido realizado.
50. Na decisão sob censura, cometeram-se erros na aplicação da matéria de direito, nomeadamente, no que concerne aos efeitos do início da contagem de um prazo para o A. quando o pedido não se encontra devidamente instruído, mas ainda assim, foi devidamente disponibilizada certidão no mesmo local onde foi instruído o pedido (incompleto), impondo-se, por isso, uma solução inversa à decidida.
51. O presente recurso tem por objeto a decisão errada do Tribunal a quo, de considerar que, não foi comunicado pelo A. resposta ao pedido da 1ª R. para o exercício da preferência, e que por entender haver uma falta de resposta, que o prazo para o efeito já terá decorrido.
52. Quando na comunicação não se indica a residência ou o local para onde deve ser enviada a resposta da Administração ou de procuração, exigidas na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 3.º, considera-se como não tendo sido feita a participação, sendo certo que, a prova da comunicação imposta só poderá ser feita através de recibo passado pelos serviços competentes para a sua receção no duplicado da participação, com a menção da data da sua apresentação, o que não sucedeu no caso concreto, pois, na escritura sob censura não foi apresentado tal documento legalmente exigido.
53. O Tribunal a quo permitiu com tal decisão, manifestamente indevida, que o 1ª R. pudesse beneficiar de uma “habilidade processual”, ao ter apresentado um pedido de forma simplificada, contrariamente ao disposto no normativo legal em vigor, tendo aliás indicado um email para receber notificações do A., tendo-as recebido, conforme resulta do depoimento prestado pela testemunha A… (00:33:49.5 a 00:37:33.9), sendo depois exigido ao A. uma formalidade legal do mesmo normativo, afastada pela 1ª R. aquando do pedido
54. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 3.º n.º 1, 5º, nº 4 do diploma 862/76 de 22 de dezembro, e do disposto no artigo 416º do Código Civil.»
As RR. não responderam à alegação do recorrente.
São as seguintes as questões a decidir:
- da impugnação da decisão sobre a matéria de facto; e
- da violação do direito de preferência.
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Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
«1. Em 7 de Maio de 2019 foi publicado no Diário da República, 2ª série, nº 87, o aviso nº 7881/20019 do Presidente da Câmara Municipal… tornando público que se encontra aprovada, dentre outras, a delimitação da Área de Reabilitação Urbana de …
2. Em 14-06-2019, por escrito, a primeira R., representada por A…, apresentou ao A. documento denominado Requerimento para Informação sobre o Exercício do Direito de Preferência na Alienação de Imóveis, facultando-lhe a possibilidade de preferir na venda da sua fracção autónoma identificada pela letra L, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …da freguesia de ..., informando que o preço era de 80.000,00€.
3. O prédio onde se situa a fracção em causa nos autos encontra-se situado na Área de Reabilitação Urbana de… delimitada pelo aviso.
4. Foi elaborado pela Comissão de Avaliação da Câmara Municipal de… relatório de avaliação da fracção em causa em 24-06-2019, tendo-lhe sido atribuído o valor de mercado de 105.000,00€ (cento e cinco mil euros).
5. Em 01-07-2019, o A. emitiu certidão onde refere que face aos elementos existentes neste Município e ao aviso referido em foi decidido exercer o direito de preferência sobre a predita fracção, a qual foi remetida ao Gabinete do Munícipe.
6. Em 04-07-2019, pelas 10 horas, a primeira R. vendeu à segunda, pelo preço de 80.000,00€ a referida fracção autónoma.
7. Em 04-07-2019, foi inscrita, na descrição da aludida fracção, a aquisição da mesma a favor da segunda R. por compra à primeira.
8. Em 04-07-2019, pelas 9 horas e 58 minutos, via email, o A. informou a primeira R. na pessoa de Ana Junqueiro de que já havia resposta ao Requerimento para Informação sobre o Exercício do Direito de Preferência na Alienação de Imóveis apresentado pela primeira R., informando-a de que poderia proceder ao seu levantamento no Gabinete de Apoio ao Munícipe de…
9. Para proceder a este contacto o A. utilizou o endereço de email a…, indicado no predito requerimento da 1ª R.
10. O A. tomou conhecimento da compra e venda referida em Setembro de 2019.»
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Importa ainda ter presente que resulta dos autos que a ação foi proposta a 6 de dezembro de 2019 e que o A. depositou a quantia de € 80.000,00 no dia 16 de dezembro de 2019.
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Na sentença recorrida, foram dados como não provados os seguintes factos:
«a. Em 01-02-2017, a primeira R. deu de arrendamento à segunda, que a tomou de arrendamento a fracção autónoma identificada pela letra L, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de…, sob o nº … da freguesia de…, da titularidade da primeira.
b. A segunda R. foi notificada pela primeira para exercer o direito de preferência na compra e venda da fracção que projectava fazer por 80.000,00€ e a segunda R. declarou exercer a preferência.
c. O A. comunicou à 1ª R. da sua intenção de exercer o direito de preferência na compra da predita fracção.
d. O A. no seguimento dos objectivos delineados no documento de delimitação e concretização da referida área de reabilitação urbana concebeu um projecto de arrendamento jovem e foi com o propósito de prosseguir tal projecto que o Presidente da Câmara Municipal de… decidiu preferir.»
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O art.º 640º do C.P.C. dispõe o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
“Todavia, para que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto seja admitida, não é necessário que todos os ónus estabelecidos no artigo 640º, do CPC, constem obrigatoriamente da síntese conclusiva.
Nesta conformidade, enquanto a especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados deve constar obrigatoriamente da alegação e das conclusões recursivas, já não se torna forçoso que constem da síntese conclusiva a especificação dos meios de prova, e muito menos, a indicação das passagens das gravações.
Quanto a elas, basta que figurem no corpo da alegação, desde que nas conclusões se identifique, com clareza, os concretos pontos de facto que se impugnam e a decisão que sobre eles se pretende que recaia” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 12 de julho de 2018, processo 167/11.2TTTVD.L1.S1).
Nas conclusões recursivas, a recorrente especificou como incorretamente julgadas as alíneas b, c e d da matéria de facto não provada.
No entender da recorrente, os factos vertidos em tais alíneas deviam ter sido considerados provados.
Apenas quanto à matéria vertida nas alíneas c e d, a recorrente especificou os meios probatórios que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação da alínea b da matéria de facto não provada como incorretamente julgada ficou certamente a dever-se a lapso, sendo de salientar que tal alínea não contém facto favorável à recorrente.
A recorrente afirmou que “comunicou à 1ª R., pela mesma via do pedido (Balcão do Munícipe), da sua intenção de exercer o direito de preferência na compra da fração”.
Não se compreende a expressão “pela mesma via do pedido”, uma vez que o Gabinete de Apoio ao Munícipe é um serviço de atendimento do próprio município. Através dele, o município receciona pedidos dos munícipes a ele dirigidos.
Resulta da matéria de facto provada que, “em 01-07-2019, o A. emitiu certidão onde refere que face aos elementos existentes neste Município e ao aviso referido em foi decidido exercer o direito de preferência sobre a predita fracção, a qual foi remetida ao Gabinete do Munícipe”.
Comunicar à R. P… não se confunde com estar a certidão no Gabinete de Apoio ao Munícipe pronta para ser levantada pela R. P…
Do “Requerimento para Informação sobre o Exercício do Direito de Preferência na Alienação de Imóveis” - documento junto aos autos a 23 de fevereiro de 2021 - consta que as notificações referentes ao pedido seriam efetuadas para o endereço eletrónico referido no ponto 9 da matéria de facto provada.
Resulta do ponto 8 da matéria de facto provada que, “em 04-07-2019, pelas 9 horas e 58 minutos, via email, o A. informou a primeira R. na pessoa de A… de que já havia resposta ao Requerimento para Informação sobre o Exercício do Direito de Preferência na Alienação de Imóveis apresentado pela primeira R., informando-a de que poderia proceder ao seu levantamento no Gabinete de Apoio ao Munícipe de…”.
O A. comunicou que já havia resposta ao requerimento e que a resposta podia ser levantada no Gabinete de Apoio ao Munícipe, mas não comunicou que a resposta era no sentido do exercício do direito de preferência.
A testemunha A… declarou que foi ao Gabinete de Apoio ao Munícipe no dia 3 de julho de 2019 e que lhe disseram que ainda não havia resposta; e que telefonou no dia seguinte de manhã e que lhe disseram que ainda não havia resposta.
Bem andou o tribunal recorrido em dar como não provado o facto vertido na alínea c da matéria de facto não provada.
Do documento 3 junto com a petição inicial consta o despacho do Presidente da Câmara… proferido a 28 de junho de 2019, no qual se pode ler o seguinte: “Exercer o direito de preferência (arrendamento jovem).”
O projeto de arrendamento jovem referido na alínea d) da matéria de facto provada não se mostra junto aos autos.
Assim, procede parcialmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, passando a matéria de facto provada a ter a seguinte redação:

11. No despacho do Presidente da Câmara Municipal de… proferido a 28 de junho de 2019, pode ler-se o seguinte: “Exercer o direito de preferência (arrendamento jovem).”
A matéria de facto não provada passa a ter a seguinte redação:

d. O A., no seguimento dos objectivos delineados no documento de delimitação e concretização da referida área de reabilitação urbana, concebeu um projecto de arrendamento jovem.
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O A. invocou o direito de preferência previsto nos art.ºs 58º do DL 307/2009, de 23 de outubro, que estabelece o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, e 155º do DL 80/2015, de 14 de maio, que procede à revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.
Nos termos do art.º 58º nº 1 do DL 307/2009, “a entidade gestora tem preferência nas transmissões a título oneroso, entre particulares, de terrenos, edifícios ou frações, situados em área de reabilitação urbana”.
Por força do nº 4 do citado artigo, “o direito de preferência exerce-se nos termos previstos no RJIGT, para o exercício do direito de preferência do município sobre terrenos ou edifícios situados nas áreas do plano com execução programada”.
Nos termos do art.º 155º nº 1 do DL 80/2015, “sem prejuízo do previsto no regime jurídico da reabilitação urbana, os municípios têm o direito de exercer preferência nas transmissões de prédios, realizadas ao abrigo do direito privado e a título oneroso, no âmbito de execução de planos de pormenor ou de unidades de execução, designadamente para reabilitação, regeneração ou restruturação da propriedade”.
Por força do nº 4 do citado artigo, “o procedimento do exercício do direito de preferência é fixado em decreto regulamentar”.
O Decreto 862/76, de 22 de dezembro, que regulamenta o direito de preferência da Administração nas alienações, a título oneroso, de terrenos ou edifícios, previsto na lei, dispõe o seguinte:
«Art.º 3.º - 1. Os particulares que pretendam alienar imóveis abrangidos pelo direito de preferência devem comunicar a alienação pretendida à entidade competente para o efeito.
2. A comunicação deverá conter:
a) A identificação do participante e a indicação da sua residência ou de outro local certo para onde deverá ser enviada a resposta da Administração;

4. A comunicação deverá ser feita mediante participação em duplicado, com a assinatura reconhecida, apresentada diretamente no serviço competente ou enviada pelo registo do correio.

7. A prova da comunicação imposta pelo nº 1 só poderá ser feita através de recibo passado pelos serviços competentes para a sua receção no duplicado da participação, com a menção da data da sua apresentação.
Art.º 4.º - 1. A entidade que receber a participação deverá transmiti-la desde logo aos órgãos competentes da pessoa ou pessoas coletivas que gozem do direito de preferência, se a elas não pertencer.

Art.º 5.º - 1. Quando a participação dos particulares não contiver os elementos legalmente exigidos, a Administração solicitará as indicações complementares necessárias, mediante ofício expedido pelo registo do correio, com aviso de receção, para a respetiva residência ou o outro local indicado para o efeito.
2. O ofício considera-se recebido pelo particular na data da entrega constante do aviso de receção, ou, se não for possível a entrega, por não ser encontrada pessoa a quem seja feita, na data em que tal facto conste daquele aviso.
3. Se não for recebido pedido de indicações complementares dentro do prazo de trinta dias a contar da apresentação da participação, nos termos dos nºs 4 e 7 do artigo 3.º, considera-se suprida qualquer deficiência de participação, salvo o disposto no número seguinte.
4. Na falta de indicação da residência ou de outro local para onde deverá ser enviada a resposta da Administração ou de procuração, exigidas na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 3.º, considera-se como não tendo sido feita a participação.

Art.º 7.º - 1. Se a Administração desejar exercer o direito de preferência, fará a necessária comunicação ao particular, indicando o preço que oferece, se não aceitar o convencionado.
2. A comunicação da Administração será enviada pelo registo do correio, com aviso de receção, de forma a poder ser recebida dentro do prazo de quarenta e cinco dias, a contar do recebimento da participação pela entidade a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º, ou, se tiver havido pedido de esclarecimentos, a contar do recebimento da participação adicional a que se refere o artigo anterior.
3. É aplicável ao recebimento da comunicação da Administração o disposto no n.º 2 do artigo 5.º
4. Na falta de recebimento de comunicação da Administração dentro do prazo fixado no n.º 2, considera-se ter havido renúncia ao exercício do direito de preferência.
…»
Nos termos do art.º 13º nºs 1 e 3 do Decreto 862/76, na redação inicial, “os notários não poderão celebrar escritura de transmissão a título oneroso de imóveis sujeitos ao direito de preferência previsto no artigo 1.º sem a prova de haverem sido cumpridas as formalidades legais estabelecidas para a manifestação de vontade sobre o exercício daquele direito”, sendo que “são nulos os atos praticados com inobservância do disposto nos números anteriores”.
A redação deste artigo foi alterada pelo art.º 11º do Decreto-lei 194/83, de 17 de maio, passando a ter a seguinte redação:
“Os notários comunicarão à Administração a celebração das escrituras que operem a transmissão a título oneroso de imóveis sujeitos ao direito de preferência previsto no artigo 1.º, se o diploma que conceder a preferência indicar as freguesias abrangidas por esse direito”.
Na fundamentação da sentença recorrida, pode ler-se:
“decorridos os quarenta e cinco dias úteis, sobre a data do pedido e nada dizendo o A., tem-se por renunciado o direito de preferência por falta de tempestiva resposta.”
Contudo, a venda foi realizada antes de decorrido o prazo de 45 dias.
A realização da venda sem aguardar pela resposta do preferente configura uma violação do direito de preferência.
“Ação de preferência” é a epígrafe do art.º 1410º do C.C.
 Nos termos do nº 1 do citado artigo, o preferente “a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação.”
Assim, são dois os ónus que recaem sobre o preferente: interpor a ação no prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação; e depositar o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação.
Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, anotação ao art.º 1410º do C.C., defendem a seguinte posição:
“O preferente deve depositar, não apenas o montante da contraprestação paga ao alienante pelo adquirente, mas ainda a quantia correspondente a todas as despesas inerentes à aquisição. A palavra preço que vem já da legislação anterior (vide o §1.º do art.º 1566.º do Cód. de Seabra) não foi utilizada no artigo 1410.º no seu sentido rigoroso ou técnico. Tanto assim é que ela abrange, além da hipótese da venda, a da dação em cumprimento. E nesta figura não há nenhum preço em sentido técnico.
Falando em preço, o legislador quer referir-se, com uma palavra só, a todas as despesas feitas pelo adquirente para adquirir a coisa: contraprestação paga ao alienante, sisa, despesas de escritura, de registo (quando obrigatório), etc. (vide, neste sentido, Pinto Loureiro, Manual dos direitos de preferência, vol. II, pág. 315, e o acórdão do S.T.J., de 20 de Fevereiro de 1970, no B.M.J., n.º 194, pág. 203).
A orientação que tem prevalecido na nossa jurisprudência não corresponde, porém, à melhor interpretação do texto legal. Não é a que melhor traduz o pensamento da lei.
O depósito obrigatório do preço, imposto ao preferente logo no começo da acção, visa manifestamente, como sabemos, pelo momento em que é exigido, garantir o alienante contra o risco de ver destruído o contrato com o preferente, por carência de meios da parte deste (Antunes Varela, Rev. de Leg. e de Jur., ano 100.º, pág. 242); mas com ele se pretende também, como Teixeira Ribeiro (Rev. Dir. Est. Soc., I, págs. 142 e 143) justamente observa, reintegrar o preferido na situação em que se encontrava à data do contrato, dispensando-o do procedimento executivo contra o preferente e libertando-o do risco de insolvência deste.
Ora, se o principal ou um dos principais objectivos do depósito do preço é, realmente, o de deixar o preferente quite desde logo com o preferente sacrificado, é lógico e razoável que no depósito se incluam, além do preço stricto sensu, todas as despesas do contrato (sisa, escrituras e outras) de que o autor tenha conhecimento à data em que é ordenada a citação dos réus.”
Não é este o entendimento que o STJ tem seguido.
«O depósito do preço visa apenas garantir o vendedor contra o perigo de, finda a acção, o preferente se desinteressar da compra ou não ter possibilidades financeiras para a concretizar, perdendo aquele também o contrato com o primeiro comprador. Para remover tal perigo, é bastante o depósito da mencionada contraprestação.
Isso não significa que o preferente, no caso de procedência da acção, não tenha de satisfazer essas despesas acessórias: o que se afirma é apenas que, para prevenir aquele aludido perigo, basta o depósito da indicada contraprestação.
Por outro lado, resulta do disposto nos art.ºs 874º e 878º do CC que, no contrato de compra e venda, são realidades diversas o preço e “as despesas do contrato e outras acessórias”; e, noutras disposições do CPC – maxime, nos art.ºs 909º/2 e 1465º/1.b) – relativas à acção de preferência ou ao direito de preferência, faz-se clara distinção entre o preço, a sisa e as despesas da compra.
Ademais, é o sentido estrito – de contraprestação a pagar ao vendedor – aquele que corresponde ao significado que a palavra preço tem na linguagem vulgar, corrente. E o entendimento a que se adere não briga com o sentimento de justiça, dado que a acção do preferente tem na raiz um comportamento ilícito do vendedor – que não deu cumprimento ao dever que lhe era imposto pelo art.º 416º/1 do CC – e, muitas vezes, um comportamento negligente do comprador que, conhecendo a situação de facto, não curou de se assegurar de que, em concreto, estava excluída a possibilidade de exercício do direito de preferência por parte do respectivo titular» (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 10 de janeiro de 2008, processo 07B3588; no mesmo sentido, www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 8 de setembro de 2016, processo 1022/12.4TBCNT.C1.S1).
Considerar o “preço devido” referido no art.º 1410º do C.C. como a contraprestação que deve ser paga ao vendedor, sem abranger IMT e despesas de escritura é a posição que este tribunal perfilha, tendo presente que, de acordo com o art.º 9º nº 3 do C.C., “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador… soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Se o legislador quisesse que o depósito abrangesse as despesas, certamente haveria alusão expressa a tais despesas como acontece no art.º 1037º nº 1 al. b) do C.P.C. (art.º 1465º nº 1 al. b) do C.P.C. anterior), segundo o qual “o licitante a quem for atribuído o direito deve, no prazo de 20 dias, depositar a favor do comprador o preço do contrato celebrado e a importância da sisa paga, salvo, quanto a esta, se mostrar que beneficia de isenção ou redução e, a favor do vendedor, o excedente sobre aquele preço”.
Importa referir que o art.º 24º do Código do IMT dispõe o seguinte:
“1 - Se, por exercício judicial de direito de preferência, houver substituição de adquirentes, só se liquidará imposto ao preferente se o que lhe competir for diverso do liquidado ao preferido, arrecadando-se ou anulando-se a diferença.
2 - Se o preferente beneficiar de isenção, procede-se à anulação do imposto liquidado ao preferido, e aos correspondentes averbamentos.”
Acresce dizer que, por força do art.º 48º nº 4 do Código do IMT, “os secretários judiciais e os secretários técnicos de justiça remetem igualmente uma participação, em duplicado, … das sentenças que reconheçam direitos de preferência, que tenham sido concluídos ou lavrados no mês anterior e pelos quais se operaram ou venham a operar transmissões sujeitas a IMT.”
Tendo o A. cumprido os ónus previstos no art.º 1410º nº 1 do C.C., a ação de preferência tem de proceder.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, julgando a ação procedente e, consequentemente:
1 - declarando o direito de preferência do A. sobre a fração identificada no ponto 2 da matéria de facto provada;
2 - substituindo a R. J… pelo A. na venda referida no ponto 6 da matéria de facto provada e determinando a entrega à R. J… do preço depositado pelo A.;
3 - ordenando o cancelamento da inscrição predial a favor da R. J… referida no ponto 7 da matéria de facto provada;
Custas da ação e da apelação pelos recorridos.

Lisboa, 12 de janeiro de 2023
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Octávio Diogo