Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
586/21.6Y5LSB.L1-9
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: CARTA DE CONDUÇÃO
PERDA DE PONTOS
CASSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O processo com vista à cassação da licença de condução, que corre termos junto da ANSR, tem natureza administrativa e destina-se apenas a verificar os pressupostos da perda de pontos operada automaticamente como consequência da prática de contraordenações graves ou muito graves ou crimes rodoviários, como de forma expressa consagra o art.º 148.º do Código da Estrada, sobre o sistema de pontos e cassação do título de condução.
II - Não existe qualquer nulidade porque ao contrário do que defende não estamos perante qualquer sanção acessória que careça de ser determinada. A perda de pontos, como se disse é uma consequência da prática das infrações. Não há que dosear quantos pontos perde pela prática de cada uma das infrações já que o legislador determinou o número de pontos perde o autor de cada uma das infrações previstas na lei. De forma automática. Do mesmo modo que determina que a perda total dos pontos atribuídos implica a cassação da licença de condução. Não deixando margem para qualquer decisão em sentido diverso, destinando-se a decisão administrativa destinada à verificação dos pressupostos da cassação.
III - Ao contrário do que parece afirmar o recorrente, a licença para conduzir e o direito que da sua concessão nasce, não tem a natureza de direitos civis, profissionais ou políticos. É um direito regulado e que depende da verificação de determinados pressupostos, como de forma clara igualmente se explica no Ac. TC n.º 154/2022, uma vez que sendo o exercício da condução automóvel uma atividade perigosa, conduzir não constitui um direito subjetivo. Antes depende da verificação inicial e periódica de determinadas capacidades e da idoneidade para a sua prática.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão proferida na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório:

B veio recorrer da decisão da primeira instância que julgou improcedente o recurso de impugnação da
Para tanto apresentou as competentes conclusões de recurso que a seguir se transcrevem:
A) O presente Recurso tem por objeto a Sentença proferida em 13 de outubro de 2022 pelo Tribunal a quo, através da qual foi decidido negar provimento ao Recurso de Impugnação Judicial que havia sido interposto pelo Arguido ora Recorrente, mantendo-se a decisão administrativa proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (“ANSR”), a qual havia condenado o Arguido na sanção de cassação do título de condução, em virtude de, no sistema de pontos vigente, terem sido subtraídos todos os pontos ao condutor, nos termos do preceituado no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada.
DA RECORRIBILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO
B) A Decisão proferida Tribunal a quo é recorrível, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 73.º, do RGCO, porquanto a sanção de cassação do título de condução se trata de uma verdadeira sanção acessória, ou, caso assim não se entenda, no que não se concede, sempre estaríamos perante um caso de aplicação de uma sanção que implica, invariavelmente, a perda de um direito, cuja interposição de recurso para os Tribunal Superiores é admissível, conforme aduzido no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 27.05.2020, Proc. n.º 1294/19.3Y2VNG.P1.
DA SENTENÇA A QUO
DA NATUREZA DA SANÇÃO DE CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
C) Sustenta o Tribunal a quo que, não obstante a sanção de cassação do título de condução de tratar de uma medida restritiva, se trata de uma sanção com fundamentos próprios e distintos de uma sanção acessória de inibição de conduzir, argumentando-se ser “conforme aos ditames constitucionais de proporcionalidade”, por um lado, a dupla condenação do Arguido em sanção acessória de inibição de condução e de cassação do título de condução e, por outro, lado, a falta de necessidade de formulação de um juízo casuístico sobre a necessidade e proporcionalidade da aplicação desta sanção — tratando-se de uma sanção de cariz automático com fundamentos próprios.
D) O Direito Administrativo tem conhecido transformações no que diz respeito à sua componente sancionatória, configurando a privação, temporária ou permanente, do exercício de direitos submetidos a um regime de condicionamento ou de habilitação administrativa uma sanção administrativa ‘stricto sensu’.
E) O Tribunal a quo, procurando sustentar a admissibilidade e conformidade constitucional da aplicação cumulativa de uma sanção acessória ou injunção de inibição de condução com a sanção — também ela necessariamente acessória — de cassação do título de condução, ficciona distinções inexistentes entre as sanções em causa.
F) É também pressuposto, para aplicação desta medida restritiva, à semelhança do que sucede com a aplicação das demais sanções acessórias, a prática de um facto ilícito anterior, que poderá fundamentar, atentas as necessidades de prevenção que se impuserem no caso concreto, o juízo casuístico sobre as condições de aptidão do arguido para o exercício de condução inerente à decisão de aplicação da sanção de cassação do título de condução.
G) A cassação do título de condução, ao configurar — como não poderia deixar de ser — uma sanção de cariz administrativo de natureza acessória, não pode ser aplicada de forma automática.
DA ALEGADA AUTOMATICIDADE DA APLICAÇÃO DA MEDIDA RESTRITIVA E DA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTOS PARA A APLICAÇÃO DA SANÇÃO DE CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
H) Na Sentença recorrida sustenta-se que automaticidade da aplicação da sanção de cassação do título de condução se encontra materialmente justificada com sustento na perda de idoneidade do condutor pela perda total dos pontos atribuídos, não deixando tal medida restritiva de aplicação automática “de ser proporcional pela circunstância de não serem relevados, para efeitos da sua aplicação, quaisquer outros fatores (e.g., condições pessoais do condutor, ponderação do grau de culpa ou ilicitude do caso concreto)”.
I) A sanção de cassação do título de condução assume a natureza de sanção acessória, ainda que, correspondendo a um processo administrativo autónomo, seja necessário efetuar um juízo com fundamentos próprios, mormente um juízo sobre a idoneidade e aptidão do arguido para o exercício da condução.
J) A decisão sobre a aplicação da medida de cassação do título de condução implica necessariamente um juízo de ponderação prévio sobre a aptidão e idoneidade do Arguido para o exercício de condução, sendo necessário, para a formulação de tal juízo, a ponderação do grau de ilicitude ou da culpa verificados no caso concreto.
K) Declarar como puníveis determinados ilícitos com sanção acessória não equivale a tornar obrigatória a aplicação, a    todos os casos, e independentemente da sempre necessária análise casuística, de tal sanção acessória.
L) É justamente por isso, aliás, que o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição determina, com plena aplicação a todo o direito sancionatório de carácter punitivo, que não pode haver sanções automáticas, i.e., que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.
M) Conforme afirmado pelo Tribunal a quo, “[e]mbora o direito a conduzir veículos motorizados na via pública não alcance o estatuto de direito fundamental, a verdade é que, considerando a relevância que tal atividade representa no quotidiano do cidadão comum, a mesma integra o exercício da liberdade geral de ação, compreendida no direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), pelo que se afigura atentatório das mais elementares garantias vigentes no direito sancionatório português, às quais se conferiu tutela constitucional, o entendimento de que uma sanção restritiva de um direito fundamental possa ser suscetível de aplicação automática, sem ponderação do grau de ilicitude ou da culpa verificados no caso concreto, que enformam o necessário juízo de aptidão para o exercício da condução.
N) Conforme aduzido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.05.2018, Proc. n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, a decisão de cassação do título de condução “tem carácter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vieram a verificar (…) [visando o sistema de pontos] apenas registar e evidenciar, através de  um registo central, com um sentido pedagógico, de satisfação das necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, os efeitos penais ou contraordenacionais das infrações cometidas, segundo a respetiva gravidade (…). Sendo que o efeito que possam ter para a determinação da cassação da carta, em virtude de uma eventual perda total de pontos, nos termos do artigo 148.º, n.º 4, al. c), do CE, é apenas o de facilitação do cálculo do número de infrações cometidas e da sua gravidade, sendo certo que tal resultado nunca será a partida certo, porquanto o próprio decurso do tempo e a posterior conduta tornarão contingentes os efeitos que daquelas infrações possam materialmente resultar, designadamente para a tal eventual cassação da carta (…)”.
O) Existem outros fatores, como seja a conduta posterior do Arguido ou próprio decurso do tempo, que devem ser necessariamente ponderados para efeitos de a eventual cassação da carta, sendo que, no casso concreto, a aplicação da sanção de cassação do título de condução, tem por fundamento factos praticados há mais de 5 (cinco) e 3 (três) anos, respetivamente, sem que outras infrações de idêntica natureza tenham sido praticadas pelo Arguido ora recorrente. Como resulta das regras basilares de direito sancionatório, nomeadamente no que à finalidade das penas diz respeito, o decurso do tempo neutraliza a utilidade preventiva geral e especial das sanções a aplicar.
P) O Arguido não só cumpriu integralmente tanto a injunção, como as penas, principais e acessórias, que lhe foram aplicadas no âmbito dos processos mencionados, como não voltou a cometer infrações de idêntica natureza àquelas subjacentes no presente processo de cassação de título de condução, tudo o quanto releva para efeitos de não aplicação, no presente caso, da medida de cassação do título de condução.
Q) Em linha com o que já havia sido feito pela Autoridade Administrativa na decisão por si proferida, o Tribunal a quo prescinde expressamente de densificados os elementos em que se baseia a aplicação, ao Arguido, da sanção acessória aqui em causa, inculcando a ideia de que, pelo contrário — e ao arrepio das exigências que vimos escalpelizando — a aplicação dessa sanção se processa de forma automática, apenas e tão-somente porque foram subtraídos todos os pontos ao condutor.
R) Sendo a cassação da carta fundamentalmente preventiva, caberia, desde logo, averiguar se as circunstâncias do caso eram reveladoras de uma especial perigosidade que justifique a sua aplicação ao Arguido.
S) No caso particular do Arguido, em virtude do seu exercício profissional, que exige que se tenha de deslocar de carro com grande frequência para reuniões, muitas delas fora de Lisboa, a carta de condução constitui um instrumento verdadeiramente fundamental da sua vida profissional, da qual provém o sustento do seu agregado familiar, pelo que, caso lhe seja aplicada a sanção de cassação do título de condução, o Arguido ficará cerceado na capacidade de exercer uma parte relevante das suas funções profissionais, devendo, por isso, a aplicação dessa sanção ser cauta, e devendo observar-se, além do mais, um princípio de proporcionalidade (exigido, designadamente, pela interpretação do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada em sentido conforme à Constituição, designadamente com o seu artigo 18.º, n.º 2).
T) O Tribunal a quo, ao não efetuar o juízo de subjetividade — intrinsecamente não automático — violou o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição do excesso.
U) A norma constante do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, interpretada no sentido de que, sendo pode o Arguido ser condenado de forma automática, pela mera decorrência da perda dos pontos atribuídos, na sanção de cassação do título de condução, sem se efetuar a apreciação casuística do grau de culpa e de ilicitude, necessários para a formulação do juízo sobre as condições de aptidão do arguido para o exercício de condução, é nessa interpretação, materialmente inconstitucional por violação artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º e 30.º, n.º 4, da Constituição, inconstitucionalidade que se deixa desde já arguida para todos os efeitos legais.
V) Pelo que, em face dos fundamentos expostos, deve a Sentença proferida ser revogada e substituída por outra que absolva o Arguido pela sanção por que vem condenado.
DA NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA PROFERIDA
W) O Tribunal a quo, na apreciação da nulidade da Decisão Administrativa invocada pelo Arguido em sede de Recurso de Impugnação Judicial, incorreu num vício argumentativo, que encontra a sua génese na prévia, mas errada, consideração de que a decisão de cassação do título de condução deve operar de forma automática, sem a necessidade de ponderações adicionais.
X) Desta forma, foi considerado, na Sentença recorrida que, no que concerne à exigência legal de descrição, de forma suficiente, dos factos e/ou provas que permitiram avaliar que as circunstâncias do caso são reveladoras de uma perigosidade que justifique a aplicação da sanção de cassação do título de condução, basta apenas invocar os factos que determinaram a perda dos pontos atribuídos “não sendo exigido o apuramento de qualquer outra factualidade (e.g., atinente às condições pessoais do arguido, na atualidade)”.
Y) Não basta, para o preenchimento deste requisito legal, a mera constatação da perda de pontos atribuídos para que se possa, de forma automática, proceder à aplicação da sanção do título de condução, sendo necessário que a ANSR, na sua decisão, tivesse percorrido e explicitado, de forma suficiente, os elementos que fundamentam a aplicação, ao Arguido, da sanção acessória aqui em causa.
Z) Ao não referir adequadamente, como seria legalmente exigível, sobre as razões que, em última instância, justificam a aplicação da sanção acessória de cassação do título de condução, a Decisão ANSR, é nula, pois que a mesma não permite, consequentemente, ao ora Arguido o cabal exercício do seu direito de defesa,
AA) Por esta razão, deve a Sentença recorrida ser revogada pelo douto Tribunal ad quem, e substituída por outra que reconheça a aludida nulidade da Decisão Administrativa proferida pelo não cumprimento das exigências consagradas no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (“CPP”), aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO e ainda no artigo 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RGCO, a qual se deixa arguida para todos os efeitos legais, devendo, em consequência, ser determinada a absolvição do Arguido da sanção de cassação do título de condução por que vem condenado.
BB) Caso assim não se entenda, no que não se concede, deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça a irregularidade da Decisão da Autoridade administrativa, por falta de descrição, de forma suficiente, dos factos e/ou provas que permitiram avaliar que as circunstâncias do caso são reveladoras de uma perigosidade que justifique a aplicação da sanção de cassação do título de condução ao Arguido, vício que não carece sequer de arguição, por caber na previsão do artigo 123.º, n.º 2, do CPP (aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO), devendo, em consequência, ser determinada a absolvição do Arguido da sanção de cassação do título de condução por que vem condenado.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO:
a) deve a Sentença Recorrida ser revogada e substituída por outra que revogue a sanção aplicada ao Arguido;
ou, caso assim não se entenda,
b) Deve a Sentença proferia que ser declarada nula, por falta de fundamentação adequada para efeitos da aplicação da sanção acessória, nos termos conjugados do artigo 181.º, n.º 1, do Código da Estrada, do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO, e do artigo 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RGCO;
Ou, caso assim também não se entenda, no que não se concede,
c) Deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça a irregularidade da Decisão da Autoridade Administrativa, por falta de fundamentação adequada para efeitos da aplicação da sanção acessória, vício que não carece sequer de arguição, por caber na previsão do artigo 123.º, n.º 2, do CPP (aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO), devendo, em consequência, ser determinada a absolvição do Arguido da sanção de cassação do título de condução por que vem condenado
Por assim ser de JUSTIÇA!
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Recebido o recurso por despacho de 3-11-2022, veio o MP responder, tendo concluído a sua resposta nos termos que se seguem:
1. Nos presentes autos vem, o arguido, interpor recurso contra a decisão da M.ma Juíza que manteve a decisão proferida pela ANSR que determinou a cassação do título de condução n.º L-904098 nos termos do art.º 148.º, n.ºs 2, 4, alínea c) e 10 do Código da Estrada.
2. A cassação da carta resulta da perda total dos pontos resultante da prática de contraordenações ou crimes, sem que o arguido veja, entretanto, pelo decurso do tempo ou frequência de ação de formação, serem-lhe atribuídos outros pontos.
3. O art.º 148.º do Código da Estrada dispõe que da perda integral dos pontos resulta necessariamente a cassação da carta de condução. Mas a referida cassação ocorre no âmbito de um processo administrativo no qual se controla a 13 verificação dos pressupostos suscetíveis de conduzir à aplicação da cassação da carta.
4. Processo administrativo autónomo no qual estão asseguradas ao arguido as garantias de defesa e no qual o mesmo pode impugnar a verificação dos pressupostos para a aplicação da cassação da carta.
5. Não se pode considerar a cassação da carta como sanção acessória pois que desde logo sanção acessória prevê a existência de uma sanção principal, mas a cassação da carta é a sanção principal destes autos. Mais, não é o facto de ter sido aplicada pena de proibição de conduzir noutros autos (inclusive de diversa natureza) e que de tal condenação resulte a subtração de pontos para que a cassação da carta seja acessória das penas aplicadas naqueles autos.
6. A cassação resulta, como abaixo veremos, da sucessão de processos e o que isso acarreta em termos de aptidão do recorrente para realizar o exercício da condução mediante as regras imposta para aquela atividade.
7. O art.º 148.º do Código da Estrada não viola o princípio da proporcionalidade pois que a quantidade de pontos que cada arguido perde depende da gravidade da infração praticada. A retirada de mais ou menos pontos depende da maior ou menor gravidade da conduta praticada.
8. No entanto, já este ano, o TC se pronunciou especificamente sobre se o próprio modo de aplicação da cassação viola o princípio da proporcionalidade e se é necessária a ponderação de outras circunstâncias para além da verificação do “histórico de condução” tendo entendido que não pois que a cassação da carta se justifica pela perigosidade que representa aquele condutor em concreto.
9. Aderindo na íntegra aos fundamentos aduzidos pelo TC no Ac. n.º 154/2022 “Importa sublinhar que a cassação do título de condução, nas condições previstas na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, incorpora as principais variáveis de aferição da aptidão ou inaptidão do condutor para o exercício da atividade, como a gravidade e a frequência dos ilícitos praticados, o lapso do tempo em que se dê a respetiva ocorrência e o registo de ações de natureza corretiva. Trata-se, como é bom de ver, de um sistema gradual e matizado, que confere ao visado uma garantia de correspondência tendencial entre os factos valorados por via dos pontos a subtrair ou a adicionar e as consequências a eles associados, sendo certo que aqueles factos são adquiridos em procedimentos nos quais o arguido dispõe de meios adequados de defesa. Atendendo às suas múltiplas vantagens, o sistema parece encerrar um equilíbrio razoável entre o sacrifício imposto ao condutor e os direitos e interesses que se destina a salvaguardar, nomeadamente na dimensão específica da sua operação que temos vindo a apreciar, razão pela qual a norma sindicada consubstancia uma medida justificada de restrição da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, não violando as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. ”
10. No entanto já era este o entendimento que vinha sendo adotado pela jurisprudência.
11. A cassação do título de condução prevista no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c) e 10 do Código da Estrada é motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e por imperativos de segurança rodoviária (Ac. do TRP, datado de 0611-2009, proferido nos autos n.º 4289/18.0T8PBL.C1 in www.dgsi.pt).
12. Do regime da cassação do título de condução previsto no art.º 148.º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada, não decorre qualquer automaticidade contrária aos princípios da adequação e proporcionalidade previstos no artigo 30.º, n.º 4 da CRP pois “o processo de cassação é um processo autónomo que resulta da verificação de determinados pressupostos legais, que se baseia na aplicação automática do artigo 148.º do Código da Estrada e na prova documental existente no processo. Com efeito, a perda de pontos por si só não acarreta a perda de quaisquer direitos, a que alude o artigo 30.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. O que determinou a cassação do título e as consequências que daí decorrem para a vida do recorrente foram as sucessivas condenações do recorrente. Acresce que não estamos perante a perda definitiva da faculdade de conduzir, mas apenas a perda da habilitação que detinha e que durante dois anos fica impedido de obter novo título.” - Ac. do TRE, n.º 218/20.8T8TMR.E1, de 20-10-2020.
13. Na senda da jurisprudência considera-se que, relativamente à habilitação de conduzir, esta é uma autorização de atuação concedida ao arguido, autorização sujeita à verificação de condições de perícia e a requisitos positivos e negativos que, a todo o momento podem deixar de se verificar, momento em que a ponderação da segurança dos demais utilizadores da estrada impõe que esse cidadão não possa mais praticar aquela atividade.
14. A autorização de conduzir é concedida temporariamente enquanto se verifiquem os pressupostos que determinaram a sua concessão. Assim, a cassação da carta não contende com o art.º 30.º, n.º 4 da CRP uma vez que o agente apenas deixa de poder conduzir por deixar de reunir condições para o fazer.
15. A detenção de título que habilita a conduzir não assume carácter inalterável, mas tem um caracter transitório estando sujeita a diversas restrições e renovações que têm como objetivo garantir que o condutor continua a preencher as condições adequadas ao exercício da condução.
16. Neste sentido dispõe o sumário do Ac. do TRP, n.º 3577/19.3T8VFR.P1, datado de 12-05-2021 in www.dgsi.pt “II - O direito de conduzir viaturas automóveis em vias públicas não é um direito inato e absoluto, e por isso, carece de regulamentação e só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito. Trata-se de uma actividade que pode tornar-se perigosa para a segurança dos restantes utentes das estradas e por esse motivo, tem de ser sujeita a um, permanente e justificado, controlo das condições da sua manutenção. III - A conservação do título de condução fica, pois, sujeita à adopção de um correcto comportamento rodoviário. [...] IV -Verificando-se a perda de pontos o Presidente da ANSR actua sem qualquer discricionariedade na emissão da declaração de cassação, uma vez que tal perda operada em consequência das condenações sofridas, sinaliza o condutor em causa como detentor de um grau de perigosidade tal que o impede de continuar a exercer o direito a conduzir. Não se trata de perder um direito adquirido, porque tal direito nunca foi absoluto e incondicional, estando sujeito a condições e a controlo perpétuo.”
17. Também se pronunciou Tribunal Constitucional no Ac. n.º 154/2022 sobre essa temática: “Com efeito, o mecanismo previsto no artigo 148.º, n.º 4, comporta um escalonamento progressivo de consequências, em virtude das sucessivas subtrações de pontos que se forem sucedendo e que podem ser mitigadas pelas medidas aí previstas ou pelo mero decurso do tempo sem a prática de infrações. Tal evidencia que a decisão de cassação supõe um juízo próprio, distinto daqueles que estiveram na base das infrações às quais a lei associa a perda de pontos, juízo esse que, ainda que determinado exclusivamente pela aritmética da perda de pontos, incide precisamente sobre as condições de aptidão do visado para o exercício da condução. Não se trata, pois, de nenhum efeito automático da condenação penal, mas de um efeito jurídico produzido num ambiente normativo diverso e obediente a uma teleologia própria.”
18. Mais, veja-se que isso mesmo foi assumido na sentença recorrida pelo modo como a M.ma Juíza a quo sustenta a necessidade da medida da cassação de carta no caso concreto dos autos: “Perante a insistência do condutor em não adequar a sua conduta às regras estradais (o que determina a perda sucessiva de pontos), também não se elevam dúvidas quanto à exigibilidade desta medida restritiva.”
19. A dificuldade que a sanção acarreta ao recorrente não está legalmente prevista como impeditivo de aplicação da cassação da carta
20. A cassação não atinge o direito ao trabalho, embora possa dificultar as deslocações do recorrente. De facto, não está o recorrente impedido de trabalhar. 
21. Não negamos que o recorrente experienciará certamente dificuldades acrescidas em várias áreas da sua vida por estar impedido de conduzir, dificuldades essas decorrentes do facto de, na atual sociedade, estar enraizado o uso do veículo automóvel para as mais variadas deslocações e tarefas do quotidiano. No entanto tal é a natureza das sanções.
22. Não é atingido preceito constitucional por estarmos no âmbito de um equilíbrio entre os “direitos” do recorrente e a segurança dos demais cidadãos (AC. do TRC 15/01/2020 proferido nos autos 576/19.9T9GRD.C1).
23. Mais uma vez vem ao nosso auxílio o Ac. do TC n.º 154/2022: “a cassação do título de condução se traduz numa inadmissibilidade de conduzir na via pública os veículos para os quais tal título habilitava o seu titular e que essa proibição é passível de dificultar o exercício de uma variedade de atividades, designadamente laborais. Porém, da circunstância de ter esses efeitos, que são inerentes à própria natureza da medida de cassação e sem os quais as finalidades que presidem à sua aplicação se esvaziariam, não se segue que a cassação seja um efeito automático de uma pena; ou que a cassação, por sua vez, implique a perda de quaisquer outros direitos que não o de conduzir na via pública os veículos mencionados no título cassado. ”
24. Vem o recorrente alegar que a decisão administrativa padece de vícios, devendo ser revogada.
25. Ora resulta da leitura da decisão proferida pela entidade administrativa que esta inclui os factos e as normas que ancoraram aquela decisão, refere-se à prova que a fundamenta e contém todas as especificações de facto e de direito tendentes à conclusão pela cassação do título de condução do recorrente devendo, assim, considerar-se devida e suficientemente fundamentada.
26. A mesma esclarece os motivos de facto de direito que levaram à cassação da carta pelo que não se vislumbra de que modo poderá entender-se que o destinatário da decisão não consegue, da leitura da mesma, perceber os motivos da decisão que o tem por destinatário.
27. Da leitura da sentença recorrida granjeiam-se, de modo claro e simples, os motivos e fundamentos da decisão.
28. Não existe falta de descrição dos factos e apreciação da prova na decisão administrativa nem na sentença recorrida pois que, em ambas as decisões, aí
estão suficientemente descritos os factos que sustentam a cassação bem como as provas que sustentam estes factos.
29. Atento o acima indicado entendemos que a decisão administrativa e a sentença recorrida para a decisão apenas têm de verificar a existência ou não de condenação transitada, qual a natureza da infração praticada, o número de pontos subtraídos e o número de pontos que remanescem ao arguido não carecendo de apreciar outras circunstâncias.
30. Pelo exposto, compulsada que foi a decisão administrativa não vislumbramos na mesma qualquer nulidade ou irregularidade.
31. Assim, em conformidade com os argumentos acima elencados, entendemos não assistir, razão à recorrente devendo ser negado provimento ao presente recurso e mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e, em consequência, mantendo, na íntegra, a douta decisão recorrida, V. Exas farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.
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O Sr. PGA junto desta Relação acompanhou a resposta apresentada pelo MP na primeira instância.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Tendo em conta as conclusões apresentadas há que analisar e decidir no presente recurso se a decisão recorrida:
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III – Fundamentação:
A decisão recorrida é a seguinte:
1. Relatório
Por decisão proferida, no dia 21 de agosto de 2020, no âmbito do processo de cassação n.º 269/2020, o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, determinou, ao abrigo do disposto no artigo 148.º, n.º 4, al. c) e n.º 10, do Código da Estrada, a cassação do título de condução n.º L-904098, pertencente ao aqui recorrente, B (melhor identificado nos autos).
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Notificado da decisão administrativa e não se conformando com a mesma, o recorrente impugnou-a judicialmente, alegando, em conclusão, em suma, que:
«[•••]
B) A cassação do título de condução configura uma verdadeira sanção acessória de natureza administrativa e sendo certo que o Código de Estrada, no seu artigo 148.0, nº 4, alínea c), declara a cassação do título de condução, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos do condutor, tal não significa - nem pode significar - que a sanção acessória tenha de ser sempre e invariavelmente aplicada de forma mecânica e automática (antes trata-se de uma sanção autónoma, com exigências e fundamentos próprios).
C) Uma vez cumprida integralmente, pelo ora Arguido, a sanção de inibição de condução, na qual foi condenado, a determinação da cassação do título de condução configuraria uma dupla condenação pelos mesmos factos.
D) A norma contante do artigo 148.0, nº 4, alínea c) do Código da Estrada, interpretada no sentido de que, sendo o Arguido condenado em pena acessória de proibição de condução ou em virtude da aplicação da suspensão provisória do processo lhe ser aplicada a injunção de proibição de conduzir, deve ser igualmente condenado, por mera decorrência daquela condenação, na perda de pontos e, consequentemente, na sanção automática de cassação do título de condução, é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.0 2, 29f n.º 5 e 30.º, n.0 4, da Constituição, inconstitucionalidade que se deixa desde já arguida para todos os efeitos legais.
E) De outro passo, na Decisão não refere adequadamente, como seria legalmente exigível, sobre as razões que, em última instância, justificam a aplicação da sanção acessória de cassação do título de condução, daí decorrendo (também) a nulidade da Decisão recorrida, a qual desde já se deixa arguida para todos os efeitos legais, de acordo com o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicável ex vi artigo 41.0 do RGCO e ainda no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO, o que igualmente se invoca para todos os efeitos legais.
F) Subsidariamente, e caso assim não se entendia - o que não se concede -, a Decisão seria sempre irregular, pelas razões apontadas na conclusão anterior, vício esse que não carece sequer de arguição, por caber na previsão do artigo 123.º, n.º 2, do CPP, aplicável ex vi artigo 41.º, do RGCO.
G) Sem prescindir, deverá ser relevada a circunstância de a sanção acessória de cassação do título de condução ser uma sanção fortemente penalizante, o que no caso do Arguido é particularmente evidente, uma vez que a carta de condução constitui um instrumento verdadeiramente fundamental da sua vida profissional, razão pela qual, pela aplicação de tal sanção, o Arguido ficará cerceado na capacidade de exercer uma parte relevante das suas funções profissionais, devendo observar-se, além do mais, um princípio de proporcionalidade (exigido, designadamente, pela interpretação do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada em sentido conforme à Constituição, designadamente com o seu artigo 18. º, n.º 2)».
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O processo foi remetido a este Tribunal, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 62.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações.
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O Ministério Público pronunciou-se implicitamente pela manutenção da decisão recorrida, ao determinar a remessa a juízo do presente recurso de contraordenação.
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Os autos dispõem de todos os elementos necessários à boa decisão da causa, sendo desnecessária a realização de audiência de julgamento, tendo o Ministério Público e o recorrente demonstrado não oposição à decisão do recurso mediante simples despacho.
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2. Fundamentação
2.1. Fundamentação de facto
Com relevância para a decisão da causa, por não terem os mesmos sido impugnados e por resultarem da prova documental junta aos autos (vd. CRC e Certidões Judiciais juntas a fls. 138 e ss.), encontra-se provados os seguintes factos:
1. No âmbito da fase preliminar do Processo Sumário n.º 54/14.0GAVFX, foi aplicada ao recorrente B, com a concordância do Juiz de Instrução Criminal, consignada em despacho de 15.03.2017, pela prática, no dia 12.03.2017, de um crime de condução em estado de embriaguez, a suspensão provisória do processo, sujeita, além do mais, ao cumprimento da injunção de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de três meses.
2. O recorrente cumpriu as injunções propostas naquele processo, tendo o mesmo sido arquivado.
3. Por sentença proferida no âmbito do processo crime n.º 151/19.8PCLSB, transitada em julgado no dia 09.12.2019, o recorrente foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no dia 08.02.2019, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de três meses.
4. A aludida pena acessória foi declarada extinta pelo cumprimento, por despacho proferido em 17.09.2020, transitado em julgado.
5. Por decisão proferida, no dia 21 de agosto de 2020, no âmbito do processo de cassação n.º 269/2020, o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, determinou a cassação do título de condução n.º L-904098, por perda de seis pontos, no seguimento da decisão de suspensão provisória do processo aludida em 1. e da sentença condenatória mencionada em 3., respetivamente.
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 Não ficaram por provar quaisquer factos com relevância para a boa decisão da causa.
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2.2. Fundamentação de Direito
Entende o recorrente, em síntese, que a norma constante do artigo 148.º, n.º 4, alínea c) do Código da Estrada, interpretada no sentido de que, sendo o arguido condenado em pena acessória de proibição de condução ou em virtude da aplicação da suspensão provisória do processo lhe ser aplicada a injunção de proibição de conduzir, deve ser igualmente condenado, por mera decorrência daquela condenação, na perda de pontos e, consequentemente, na sanção automática de cassação do título de condução, é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 5 e 30.º, n.º 4, da Constituição.
Importa, partindo do exposto, apreciar a presente causa.
O sistema de carta por pontos foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, que procedeu à alteração do Código da Estrada.
A cassação do título de condução é, hoje, estabelecida administrativamente mediante um sistema de doze pontos, atribuídos a cada condutor com a aquisição da licença de condução (cf. artigo 121.º-A, do Código da Estrada) que, sendo sucessivamente subtraídos por força de decisões definitivas sancionatórias de desobediência do agente a comandos de Direito Estradal, uma vez esgotados, dão lugar à perda da autorização administrativa para conduzir veículos rodoviários em estradas públicas e, bem assim, a impedimento legal para obter nova licença durante um período de dois anos (cf. artigo 148.º, n.º 4, al. c), 10 e 11 do diploma legal citado).
Embora o direito a conduzir veículos motorizados na via pública não alcance o estatuto de direito fundamental, a verdade é que, considerando a relevância que tal atividade representa no quotidiano do cidadão comum, a mesma integra o exercício da liberdade geral de ação, compreendida no direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
Destarte, a medida que prevê que o título que habilita tal atividade possa caducar ou ser revogado, e.g., com fundamento na prática de um conjunto de atos tidos por reveladores de inaptidão para a condução de veículos ou de desrespeito por normas de diligência e de proteção de terceiros inerentes ao seu exercício, deve ter-se como uma medida restritiva, devendo esta, em consequência, para ser conforme à Constituição, passar pelo crivo do regime geral consagrado no artigo 18.º, da Lei Fundamental e pelos requisitos da proporcionalidade em sentido amplo (v.g., da adequação, da exigibilidade e da justa medida) [neste sentido, vd. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2022, proferido no âmbito do processo n.º 532/2021 e em que foi relator o Sr. Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro em que o douto Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 148.º, n.º 4, alínea c) e números 10 e 11, do Código da Estrada, na redação dada pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto].
Ora, considerando a natureza tendencialmente perigosa do exercício da condução para bens e interesses constitucionalmente protegidos (e.g., vida, integridade física e património de terceiros), torna-se evidente a necessidade de o legislador prever medidas de contenção e restrição dessa atividade, espelhada, desde logo, na exigência de critérios (v.g., concernentes à idoneidade física e psíquica do condutor) para atribuição e manutenção de licenças e, bem ainda, de causas de caducidade e revogação do título quando, por razões supervenientes, o titular da licença deixe de reunir as condições para tal atividade.
De facto, atenta a perigosidade adveniente do exercício da atividade da condução em vias públicas, evidenciada pela elevada sinistralidade rodoviária existente no nosso país, entende-se que o legislador consagre medidas tendentes e assegurar que os cidadãos que praticam tal atividade se encontram, para tanto, habilitados, reunindo aptidão e competência, para o seu desempenho de acordo com as regras de segurança rodoviária.
A cassação da carta de condução mediante um sistema gradativo de doze pontos surge, precisamente, neste contexto, inexistindo dúvidas de que se revela como um meio apto e adequado à prossecução dos fins visados.
Esta medida encontra, além do exposto, fundamento na perda de idoneidade do condutor para o exercício da condução, decorrente de comportamentos reiterados (reveladores de perigo para a circulação rodoviária e para os bens jurídicos constitucionalmente protegidos atrás mencionados), que determinaram a prolação de uma decisão condenatória (por ilícito contraordenacional ou penal). De facto, à perda de pontos encontra-se subjacente a prática de contraordenações graves e muito graves ou ainda a condenação, pela prática de um crime rodoviário, em pena acessória de proibição de conduzir ou à aplicação da injunção de inibição de conduzir, nos termos dos artigos 281.º, n.º 3 e 282.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (cf. artigo 148.º, n.º 1 e 2, do C.E.), sendo que, nestes últimos casos, para que exista perda dos doze pontos, necessário será que o condutor pratique este tipo de comportamentos, por duas vezes.
Perante a insistência do condutor em não adequar a sua conduta às regras estradais (o que determina a perda sucessiva de pontos), também não se elevam dúvidas quanto à exigibilidade desta medida restritiva.
Acresce que, como já elucidamos, a cassação apenas é possível quando o titular da carta de condução atinge o patamar da perda total de pontos, para o que será necessária uma tendencial e reiterada indisponibilidade para adequar o seu comportamento ao dever ser rodoviário, constituindo, por isso, uma medida de ultima ratio.
Pelo que, resta concluir que tal medida passa o crivo da proporcionalidade constitucionalmente exigida.
Por outro lado, salienta-se que a automaticidade apontada à aplicação desta medida restritiva, assim que verificada a perda dos doze pontos (consequência necessária da prática de uma infração grave ou de um crime), se encontra materialmente justificada, encontrando sustento na perda de idoneidade do condutor, objetivamente atestada, em face do histórico de condução por si apresentado, não deixando de ser proporcional pela circunstância de não serem relevados, para efeitos da sua aplicação, quaisquer outros fatores (e.g., condições pessoais do condutor, ponderação do grau de culpa ou ilicitude no caso concreto). No fundo, o legislador estabelece e clarifica, a montante, quais os fatores determinantes da aplicação de tal medida restritiva ao cidadão.
Quanto a tal, veja-se o explanado pelo Tribunal Constitucional [ac. citado], no sentido de que, «[...] mesmo nos casos em que — acidentalmente — a perda integral dos pontos do condutor seja consequência de subtrações exclusivamente fundadas nos termos do n.º 2 do artigo 148.0 do Código da Estrada, é sempre o resultado cumulativo de diversas subtrações de pontos, imputáveis a mais do que um comportamento. Com efeito, o mecanismo previsto no artigo 148.º, n.º 4, comporta um escalonamento progressivo de consequências, em virtude das sucessivas subtrações de pontos que se forem sucedendo e que podem ser mitigadas pelas medidas aí previstas ou pelo mero decurso do tempo sem a prática de infrações. Tal evidencia que a decisão de cassação supõe um juízo próprio, distinto daqueles que estiveram na base das infrações às quais a lei associa a perda de pontos, juízo esse que, ainda que determinado exclusivamente pela aritmética da perda de pontos, incide precisamente sobre as condições de aptidão do visado para o exercício da condução. Não se trata, pois, de nenhum efeito automático da condenação penal, mas de um efeito jurídico produzido num ambiente normativo diverso e obediente a uma teleologia própria.».
Aqui chegados e feitas tais considerações, entendemos que não assiste razão ao recorrente no que alega. A aplicação da medida sub judice, a acrescer ao cumprimento de uma pena acessória ou injunção de inibição de conduzir, é, em nosso ver, conforme aos ditames constitucionais de proporcionalidade.
Com efeito, a pena acessória de proibição de conduzir corporiza uma censura adicional à pena principal aplicada pelo facto típico praticado, visando prevenir a perigosidade deste, estando intimamente conexionada com o perigo que subjaz ao próprio facto ilícito típico de que depende a sua aplicação [acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16.05.2017, processo n.º 377/16.6GGSTB.E1].
Deste modo, embora não sejam totalmente alheias, o fundamento material e as finalidades de cada uma das medidas restritivas (penais e administrativa), não se confundem.
Como já elucidamos, a cassação da carta de condução, pela perda de doze pontos, constitui «[...]
o sancionamento pela prática reiterada de contraordenações graves ou muito graves (sejam elas quais forem) que revela a inidoneidade para o exercício da condução (...). Existe um mais, que não foi nem podia ser considerado e é, precisamente, esse mais (inidoneidade) a causa da cassação da carta de condução. O condutor revelou, com a sua conduta (prática sucessiva de contraordenações graves ou muito graves) que não tem condições para o exercício da condução. O condutor revelou, com a sua conduta (prática sucessiva de contraordenações graves ou muito graves) que não tem condições para o exercício da condução. Às coimas e sanções acessórias já aplicadas acresce agora uma outra sanção que já não pune os factos (as concretas contraordenações) praticados, mas a perigosidade, a ineptidão, a inidoneidade entretanto reveladas» [Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 03.12.2019, proferido no âmbito do processo n.º 1525/19.OT9STB.E1, disponível em dgsi.pt].
Por fim, muito com sustento no que vem exposto, não assiste razão ao recorrente quando invoca que a decisão sub judice contende com o principio do ne bis in idem, previsto no artigo 25.º, n.º 5, da Constituição, nos termos do qual «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo tipo de crime», sancionando, assim, a dupla penalização pelos mesmos factos típicos penais.
Basta atentar ao que se tem vindo a explanar, para perceber que, salvo melhor entendimento, não é isso que se encontra aqui em causa. Como vimos, a decisão em apreço sustenta-se na perda de idoneidade do condutor para o exercício da condução, em consequência das diversas condenações que o mesmo sofreu pela prática de infrações rodoviárias, sendo que os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contraordenacional gerador da perda dos pontos, não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação [vd. o acórdão citado do Tribunal Constitucional], pelo que a decisão administrativa recorrida não preteriu o princípio vertido no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
Com consideração no que vem exposto, entende este Tribunal que não assiste razão ao recorrente.
Pelo contrário, entendemos que a norma constante do artigo 148.º, n.º 4, alínea c) do Código da Estrada, quando interpretada no sentido de que, sendo o arguido condenado em pena acessória de proibição de condução ou em virtude da aplicação da suspensão provisória do processo lhe seja aplicada a injunção de proibição de conduzir, pode igualmente ver-lhe ser aplicada a cassação do título de condução, em resultado da perda de doze pontos, não é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional.
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Alega, por fim (e no seguimento dos argumentos aduzidos quanto à questão resolvida atrás) que a decisão administrativa é nula, por falta de fundamentação fáctica, porquanto a mesma não elenca, através da consignação de factos, os elementos que serviram de fundamento à aplicação da sanção que lhe aplica.
O artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações que a decisão administrativa deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas; c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias.
 Sem necessidade de grandes delongas, em face do que se tem vindo a explanar (mormente o que o Tribunal deixou vertido acerca da automaticidade apontada à sanção aplicada pela autoridade administrativa recorrida), cumpre dizer que a decisão administrativa está sujeita a um dever de fundamentação. Tal exigência pretende salvaguardar o direito de defesa do arguido, que, com efeito, só poderá ser efetivamente exercido com o adequado conhecimento dos factos que lhe são imputados e das consequências sancionatórias que os mesmos determinam, e, por outro lado, a apreensão externa dos fundamentos em que a decisão assentou, por forma a possibilitar o controlo da mesma por via de recurso.
Olhando ao teor da decisão administrativa, constata-se que a mesma verte no seu texto a factualidade que lhe permite concluir pela perda dos doze pontos e, consequentemente, determinar a cassação da carta ao recorrente, não lhe sendo exigido o apuramento de qualquer outra factualidade (e.g., atinente às condições pessoais do arguido, na atualidade), pelo que não assiste razão ao assistente no que alega, estando a decisão recorrida devidamente fundamentada, não padecendo, por isso, da alegada nulidade.
Em conclusão, importa negar provimento à impugnação judicial.
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3. DECISÃO
Com fundamento em tudo quando se expôs, o Tribunal nega provimento ao recurso judicial interposto B, confirmando, na íntegra, a decisão administrativa proferida, no dia 21 de agosto de 2020, no âmbito do processo de cassação n.º 269/2020, pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
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A Decisão administrativa impugnada e sobre a qual recaiu a sentença sob recurso tem o seguinte teor:
Processo de cassação n.º 269/2020
Por meu despacho de 17/03/2020 determinei a instauração do presente processo de cassação do título de condução n.º L-904098 de que B é titular, ao abrigo do estabelecido na alínea c) do n.º 4 do e no n.º 10 do artigo 148º do Código da Estrada, por se encontrarem reunidos os pressupostos que a determinam.
Com efeito, o condutor B, titular da carta de condução n.º L-904098, apresenta um total de 0 (zero) pontos, em virtude de ter sido condenado pela prática das infrações abaixo descritas e que se encontram averbadas no seu Registo Individual do Condutor:
- Processo crime n.º 54/17.0GAVFX:
a) Ministério Público - D.I.A.P. - Secção de Vila Franca de Xira - Procuradoria da República da Comarca de Lisboa Norte;
b) Crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infração ao n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal, praticado em 12/03/2017;
c) O Despacho de arquivamento pelo cumprimento da suspensão provisória ocorreu em 05/09/2017, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal;
d) Perda de seis pontos, nos termos do artigo 148.º n.º 2 do Código da Estrada;
e) Pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses.
- Processo crime n.º 151/19.8PCLSB:
a) Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz 3 -Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa;
b) Crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infração ao n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal, praticado em 08/02/2019;
c) Sentença judicial proferida e notificada ao arguido em 07/11/2019;
d) Trânsito em julgado da sentença em 09/12/2019, nos termos do artigo 411.º do Código de Processo Penal;
e) Perda de seis pontos, nos termos do artigo 148.º n.º 2 do Código da Estrada;
f) Pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses.
A condenação pela prática das infrações supra elencadas, todas praticadas após a data da entrada em vigor da Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, ou seja 1/06/2016, determinaram a subtração automática de pontos por cada uma das infrações, no total de 12 (doze) pontos.
Deste modo, ao total de 12 (doze) pontos detidos pelo condutor, foram automaticamente subtraídos 6 (seis) pontos por cada condenação em pena acessória de proibição de conduzir/despacho de arquivamento, em cumprimento do estabelecido no n.º 2 do art.º 148º do Código da Estrada, tendo o condutor ficado com 0 (zero) pontos.
Tendo o condutor perdido a totalidade dos pontos que lhe foram atribuídos encontram-se reunidos os pressupostos da cassação do título de condução.
A cassação do título de condução opera como consequência necessária dos factos descritos, não facultando a lei qualquer discricionariedade na apreciação dos mesmos, tratando-se, assim, de um ato vinculado, conforme claramente estabelecem a alínea c) do n.º 4 e o n.º 10 do art.º 148º do Código da Estrada.
Nessa sequência, foi o condutor notificado, através do ofício n.º 193637/2020/UGCO/ANSR para, nos termos e efeitos do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na sua atual redação, se pronunciar quanto ao projeto de decisão de cassação do seu título de condução, tendo-se pronunciado nos seguintes termos:
O condutor, através de Mandatário, veio alegar, em suma, que o presente processo de cassação do título de condução, embora correspondendo a um processo administrativo autónomo, não poderá deixar de configurar, materialmente, uma verdadeira sanção de natureza necessariamente acessória, e que, não obstante o disposto no artigo 148º, nº4, alínea c) do Código da Estrada, tal não significa que a cassação tenha de ser sempre e invariavelmente aplicada de forma mecânica e automática, determinando o artigo 30º, nº4 da Constituição que não pode haver sanções automáticas, pois “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.”
Alega que, a norma constante do artigo 148º, nº4, alínea c) do Código da Estrada, interpretada no sentido de que, sendo o notificado condenado em pena acessória de proibição de condução ou em virtude da aplicação da suspensão provisória do processo lhe ser aplicada a injunção de proibição de conduzir, deve ser igualmente condenado na perda de pontos e, 
consequentemente, na sanção automática de cassação do título de condução é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº2 e 30º, nº4 da Constituição, cabendo, em obediência aos princípios constitucionais da legalidade, da necessidade, da igualdade e da proporcionalidade, ponderar cada situação concreta e as suas especificidades.
Refere que, sendo a cassação da carta fundamentalmente preventiva, caberia desde logo averiguar se as circunstâncias do caso eram reveladoras de uma especial perigosidade que justificasse a sua aplicação ao condutor, considerando o disposto no artigo 101º, nº1, do Código Penal.
Continua dizendo, na sua defesa, que a sanção de proibição de conduzir veículos com motor e a cassação do título de condução são alternativas entre si, e não cumulativas, nos termos do disposto no artigo 69º, nº1, alínea a) e nº7 do Código Penal, pelo que a prolação de uma decisão no sentido da aplicação da cassação do título de condução não pode verificar-se, sob pena de violação do princípio “ne bis in idem”, previsto no artigo 29º, nº5 da Lei Fundamental, nos termos do qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Acrescenta ainda que o projeto de decisão não fornece ao notificado todos os factos relevantes para a decisão e determinação das sanções, não permitindo o cabal exercício do seu direito de defesa.
Por último, refere que ficará cerceado na capacidade de exercer uma parte relevante das suas funções profissionais, uma vez que a carta de condução constitui um instrumento verdadeiramente fundamental da sua vida profissional.
Face ao exposto, requer que seja proferida decisão que determine a não cassação da carta de condução.
Analisando os argumentos apresentados, importa começar por referir que o condutor foi condenado em dois crimes rodoviários, tendo sido automaticamente subtraídos seis pontos por cada condenação em pena acessória de proibição de conduzir/despacho de arquivamento, em cumprimento do estabelecido no n.º 2 do art.º 148º do Código da Estrada, condenação que implica a perda de pontos na data do trânsito em julgado da sentença condenatória, data essa em que passa a constar do registo de infrações previsto no artigo 149.º do Código da Estrada.
A perda de pontos é uma consequência automática do trânsito em julgado da decisão judicial que condenou o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor (neste sentido veja-se, pela sua pertinência, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães - Processo n.º 176/16.6GTBRG.G1, de 23/01/2017 e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto - Processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, de 09/05/2018).
O efeito da perda de pontos decorre diretamente da verificação da prática de um facto ilícito, típico e censurável, e é independente do grau de culpa concretamente apurado ao respetivo condutor, já que o legislador teve o cuidado de graduar tal perda de pontos em função da gravidade de cada conduta, em termos contraordenacionais e em termos criminais, graduação esta que se encontra prevista no artigo 148º do Código da Estrada.
Alega o condutor, através de Mandatário, que o presente processo de cassação do título de condução, embora correspondendo a um processo administrativo autónomo, não poderá deixar de configurar, materialmente, uma verdadeira sanção de natureza necessariamente acessória, e que, não obstante o disposto no artigo 148º, nº4, alínea c) do Código da Estrada, tal não significa que a cassação tenha de ser sempre e invariavelmente aplicada de forma mecânica e automática, determinando o artigo 30º, nº4 da Constituição que não pode haver sanções automáticas, pois “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.”
Contudo, na sequência do já referido, a subtração de pontos é efeito automático da infração cometida e não assume em si mesma qualquer natureza sancionatória. A subtração de pontos não constitui qualquer pena acessória, porque estas têm, por natureza, um conteúdo sancionatório autónomo, ainda que coadjuvante da pena principal e “só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal” - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, p.93 e ss.
Verificados, pois, os pressupostos para a cassação do título de condução, a ordem de cassação do título de condução constitui um ato vinculado, sem qualquer margem de discricionariedade na apreciação, independentemente do comportamento ou condições pessoais do condutor. Sendo a perda de pontos uma consequência automática e da competência da Administração, não constitui uma sanção em si, pelo que não há lugar a qualquer graduação da mesma em função do grau de ilicitude ou da culpa verificados no caso concreto.
Refira-se ainda que a perda de pontos por si só não acarreta a perda de quaisquer direitos a que alude o nº4 do artigo 30º da CRP. O que determina a cassação da carta e as inerentes consequências que daí decorrem para a vida do condutor, são as sucessivas condenações que implicaram a sucessiva perda de pontos. O direito a conduzir decorre da titularidade da respetiva licença, mas não existe um direito absoluto, além de não estarmos perante a perda definitiva da faculdade de conduzir veículos automóveis, significando apenas que o condutor perde a habilitação que detinha para conduzir e que durante dois anos fica impedido de obter novo título (cfr. Ac. da RP proferido no âmbito do processo 316/18.0T8CVP.P1 de 30/04/2019).
O que está em causa é tão só a aplicação de uma medida de segurança de natureza administrativa, que contende com o juízo de ineptidão para o exercício da condução, juízo esse que é a contraface do anterior juízo que determinou a prévia concessão da autorização (também administrativa) do exercício expressa na concessão/emissão da carta de condução
O condutor alega que, a norma constante do artigo 148º, nº4, alínea c) do Código da Estrada, interpretada no sentido de que, sendo o notificado condenado em pena acessória de proibição de condução ou em virtude da aplicação da suspensão provisória do processo lhe ser aplicada a injunção de proibição de conduzir, deve ser igualmente condenado na perda de pontos e, consequentemente, na sanção automática de cassação do título de condução é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº2 e 30º, nº4 da Constituição, cabendo, em obediência aos princípios constitucionais da legalidade, da necessidade, da igualdade e da proporcionalidade, ponderar cada situação concreta e as suas especificidades.
Nessa sequência, quanto à questão da inconstitucionalidade invocada, importa chamar à colação o que foi decidido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1 que, em parte, se transcreve:
“Sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, diz o art.º 148º, nº 1, do Código da Estrada que “A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
Ou seja, resulta claramente das normas citadas que é a prática de contraordenações graves ou muito graves que determina a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução, a que alude o nº 4, al. c), do mesmo artigo. Por isso só também com o caráter definitivo da decisão condenatória ou o trânsito em julgado da sentença é que esse efeito de perda de pontos ocorre. Sendo bom de ver, portanto, que o efeito de perda de pontos, decorre diretamente da verificação, num plano jurídico-substantivo, de uma determinada contraordenação, isto é, da prática de um facto ilícito típico, censurável no qual se comine uma coima - art.º 1º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo DL nº 433/82, de 27/10 - independentemente da coima concretamente aplicada ou do grau de culpa do respetivo condutor concretamente apurado.
Em perfeita harmonia com os preceitos citados, diz o nº 2 do mesmo artigo que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
Ou seja, mais uma vez, agora de uma forma implícita, a perda de pontos é consequência da prática de uma infração, com reflexos na condução estradal, agora de natureza penal. Daí também a perda de pontos ser maior do que relativamente às contraordenações graves e muito graves. Circunstância que na projeção futura que os efeitos de tais condenações possam vir a ter, numa eventual cassação da carta de condução, evidencia o respeito que na atribuição de perda de pontos se teve pelo princípio da proporcionalidade, e nomeadamente na relação que resulta estabelecida entre a quantidade e qualidade das infrações cometidas, enquanto fundamento possível daquela cassação. (...)
Ora, o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução. Decisão esta que tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos temos do disposto no art.º 121º-A e 148º, nºs 5 e 7, do CE. Visando assim tal sistema apenas registar e evidenciar, através de um registo central, com um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, os efeitos penais ou contraordenacionais das infrações cometidas, segundo a respetiva gravidade, tendo fundamentalmente em conta, não as sanções aplicadas, mas as próprias infrações, como vimos supra. Sendo que o efeito que possam ter para a determinação da cassação da carta, em virtude de uma eventual perda total de pontos, nos termos do art.º 148º, nº 4, al. c), do CE, é apenas o de facilitação do cálculo do número de infrações cometidas e da sua gravidade, sendo certo que um tal resultado nunca será à partida certo, porquanto o próprio decurso do tempo e a posterior conduta do condutor tornarão contingentes os efeitos que daquelas infrações possam materialmente resultar, designadamente para a tal eventual cassação da carta, já que é a própria lei a prever que aos 12 pontos de que dispõe cada condutor, poderão ainda acrescer mais três, até ao limite máximo de 15 pontos, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, ou ainda um ponto mais em cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
Quer dizer, o sistema de pontos tem um sentido essencialmente pedagógico, seja pela subtração de pontos efetuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infração concretamente cometida, seja pela sua concessão, nos termos supra referidos, estimulando desse modo o condutor para comportamentos estradais de índole positiva, sendo que aquela subtração, e designadamente a que está diretamente em causa nos presentes autos, ocorre como efeito automático da infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo ou um índice da gravidade da infração cometida e do relevo que esta possa ter no somatório de outras, tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última se deve ou não manter, nos termos em que foi concedida pela administração. 0 sistema de pontos será assim também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. Inserir-se-á, portanto, tal desidrato, no âmbito dos poderes de administração do Estado. Aliás, tanto a atribuição da licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao respetivo titular os referidos 12 pontos, como a sua cassação, pela perda de todos os pontos, mas perda esta que tem materialmente subjacente a condenação ou a verificação prévia de infrações contraordenacionais ou penais, nos termos supra referidos, traduzem decisões de caráter administrativo: a primeira um ato administrativo permissivo de conteúdo positivo, ou mais precisamente autorização permissiva expressa na licença ou carta de condução, ou habilitação, relativa a direito cujo exercício “pode importar em sacrifícios especiais para um quadro de interesses públicos que convém acautelar”, entendendo o legislador introduzir limitações no exercício da liberdade individual de modo a garantir em certas atividades um determinado padrão de competência técnica, fazendo-o através de atos que são pressuposto da atribuição daquela licença de condução; enquanto que a segunda se traduz numa medida de segurança, também de caráter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente a alguém que já havia obtido a concessão de autorização-habilitação para conduzir, mas cujas condutas, material e processualmente determinadas, com respeito pela estrutura acusatória do processo, assim como pelas garantias de defesa e controlo jurisdicional efetivos, vieram revelar a existência daquela inaptidão, e em respeito, portanto, das normas constitucionais, designadamente das invocadas pelo recorrente - art.ºs 2º, 18º, nº 2, 20º, nº 1, 29º, nº 1, 30º, nº 4, 32º, nºs 1, 4, 5 e 10, 202º, nº 2, e 219º, nº 1, da CRP. E sendo tais condutas o fundamento material da cassação que eventualmente venha a ser determinada e não propriamente a atribuição de pontos, sendo estes somente o índice ou uma tradução numérica daquela gravidade, ainda por cima de um modo que resulta ser proporcionado àquela gravidade, não vislumbramos onde possa estar a inconstitucionalidade das normas dos artºs 148º, nºs 1 e 2, 149º, nºs 1, al. c) , e 2, do CE, 281º, nº 3, do Código de Processo Penal, bem como dos art.ºs 4º, nº 1, al. e), f), nº 3, al. e) e aa), 6º, nºs 2, 5 e do DL nº 317/94."
Refere o condutor, na sua defesa, que, sendo a cassação da carta fundamentalmente preventiva, caberia desde logo averiguar se as circunstâncias do caso eram reveladoras de uma especial perigosidade que justificasse a sua aplicação ao condutor, considerando o disposto no artigo 101º, nº1, do Código Penal.
Mas a cassação da carta de condução por perda total de pontos, nos termos do nº 4 da alínea c) do artigo 148º do Código da Estrada não se confunde com a medida de segurança de cassação do título de condução prevista no artigo 101º do Código Penal, sendo que esta última apenas pode ser aplicada no âmbito de um processo crime, desde que se verifiquem os requisitos a que se alude no citado preceito legal, enquanto que a primeira tem que ser aplicada no âmbito de um processo administrativo autónomo por parte do Presidente da ANSR, desde que se verifique a perda total de pontos, nos termos do artigo 148º do Código da Estrada, e não depende de qualquer juízo de necessidade, subsidiariedade ou proporcionalidade ou da verificação de qualquer um dos requisitos previstos no artigo 101º do Código Penal.
Alega o condutor que a sanção de proibição de conduzir veículos com motor e a cassação do título de condução são alternativas entre si, e não cumulativas, nos termos do disposto no artigo 69º, nº1, alínea a) e nº7 do Código Penal, pelo que a prolação de uma decisão no sentido da aplicação da cassação do título de condução não pode verificar-se, sob pena de violação do princípio “ne bis in idem”, previsto no artigo 29º, nº5 da Lei Fundamental, nos termos do qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Ora, a situação em apreço é claramente distinta das condenações do condutor em processos crime. Estamos perante consequências legalmente previstas dessas condenações anteriormente sofridas pelo condutor e não julgamento e punição dos mesmos factos. Cada uma das condenações sofridas pelo condutor implicou a perda de 6 pontos. Distinta dessa factualidade é o efeito dessa perda quando atingidos os 12 pontos de cada condutor, em princípio, dispõe.
No presente processo não é efetuada uma nova apreciação sobre os factos que estiveram na base das condenações que o condutor sofreu no âmbito dos processos crime, não havendo um novo sancionamento. Face às duas penas de proibição de conduzir que lhe foram aplicadas, foi instaurado processo administrativo nos termos do artigo 148º do Código da Estrada e que tem como objeto a cassação do título de condução do condutor e a interdição de obter novo título durante o período de dois anos, em consequência da perda total de pontos de que gozava, pelo que não se verifica qualquer violação do princípio ne bis in idem.
Acrescenta ainda o condutor que o projeto de decisão não fornece todos os factos relevantes para a decisão e determinação das sanções, não permitindo o cabal exercício do seu direito de defesa.
Mas o condutor foi devidamente notificado do projeto de decisão. Da notificação consta, de forma explícita e sem margem para dúvidas, a intenção de se proceder à cassação do título de condução, os dois processos crime no qual foi condenado e onde lhe foram aplicadas penas acessórias, bem como as normas legais pertinentes, nomeadamente o artigo 148º, nº2 do Código da Estrada, que prevê, como efeito automático da condenação em pena acessória de proibição de conduzir, a subtração de seis pontos ao condutor. A mesma notificação termina concedendo-lhe o prazo de 20 dias para se pronunciar, nos termos do artigo 50º do RGCO.
Não só foi dada ao condutor a oportunidade de apresentar defesa, como da notificação constam todos os elementos de que o mesmo carecia para tomar posição quanto à intenção de cassação do título de condução, não se verificando qualquer nulidade. Com efeito, da notificação efetuada ao condutor inferem-se expressamente os fundamentos determinantes da cassação do título de condução, com descrição concretizada, por referência aos nºs dos processos em causa, das infrações perpetradas pelo condutor, dos fundamentos da cassação, das normas jurídicas aplicáveis e dos efeitos jurídicos decorrentes da aplicação da medida. Perante tais informações, o condutor não poderia deixar de saber os pressupostos determinantes da cassação, porquanto lhe foram comunicados a natureza das sanções impostas e os processos onde as mesmas ocorreram.
Por último, refere que ficará cerceado na capacidade de exercer uma parte relevante das suas funções profissionais, uma vez que a carta de condução constitui um instrumento verdadeiramente fundamental da sua vida profissional.
Ora, a cassação do título de condução traduz-se numa medida de segurança, de carácter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente ao condutor cujas condutas, material e processualmente determinadas, vieram revelar a existência daquela inaptidão, sendo tais condutas o fundamento material da cassação (neste sentido, o acórdão da Relação do Porto - Proc. n.º 644/16.9PTPRT-A.P1 de 09-05-2018).
Tais condutas revelam um grau de censurabilidade acrescida, porquanto atingem valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade, como é a segurança da circulação rodoviária e a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, sendo premente a proteção do bem jurídico em causa.
Diga-se também, que atenta a perigosidade intrínseca do comportamento rodoviário assumido pelo condutor, a culminar em duas condenações por crime rodoviário, ambas cominadas com pena acessória de proibição de conduzir, e a premência dos bens jurídicos envolvidos, a cassação do título de condução encontra-se plenamente justificada em face das elevadas exigências preventivas que se verificam neste âmbito.
Acresce que, o facto de o condutor necessitar da carta de condução para o exercício da sua atividade profissional não consubstancia qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, nem obsta à verificação dos pressupostos legais da cassação.
Nestes termos, não existe previsão legal para o pretendido pelo requerente, nem é legalmente admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto, pelo que se considera improcedente a defesa apresentada.
Face ao que antecede, e verificados que estão os pressupostos da cassação nos termos da alínea c) do n.º 4 e 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, determino a cassação do título de condução n.º L-904098 pertencente a B.
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Do mérito do recurso:
O Recorrente invoca a nulidade da decisão administrativa, invocando em síntese que:
X) Desta forma, foi considerado, na Sentença recorrida que, no que concerne à exigência legal de descrição, de forma suficiente, dos factos e/ou provas que permitiram avaliar que as circunstâncias do caso são reveladoras de uma perigosidade que justifique a aplicação da sanção de cassação do título de condução, basta apenas invocar os factos que determinaram a perda dos pontos atribuídos “não sendo exigido o apuramento de qualquer outra factualidade (e.g., atinente às condições pessoais do arguido, na atualidade)”.
Y) Não basta, para o preenchimento deste requisito legal, a mera constatação da perda de pontos atribuídos para que se possa, de forma automática, proceder à aplicação da sanção do título de condução, sendo necessário que a ANSR, na sua decisão, tivesse percorrido e explicitado, de forma suficiente, os elementos que fundamentam a aplicação, ao Arguido, da sanção acessória aqui em causa.
Z) Ao não referir adequadamente, como seria legalmente exigível, sobre as razões que, em última instância, justificam a aplicação da sanção acessória de cassação do título de condução, a Decisão ANSR, é nula, pois que a mesma não permite, consequentemente, ao ora Arguido o cabal exercício do seu direito de defesa,
AA) Por esta razão, deve a Sentença recorrida ser revogada pelo douto Tribunal ad quem, e substituída por outra que reconheça a aludida nulidade da Decisão Administrativa proferida pelo não cumprimento das exigências consagradas no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (“CPP”), aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO e ainda no artigo 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RGCO, a qual se deixa arguida para todos os efeitos legais, devendo, em consequência, ser determinada a absolvição do Arguido da sanção de cassação do título de condução por que vem condenado.
BB) Caso assim não se entenda, no que não se concede, deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça a irregularidade da Decisão da Autoridade administrativa, por falta de descrição, de forma suficiente, dos factos e/ou provas que permitiram avaliar que as circunstâncias do caso são reveladoras de uma perigosidade que justifique a aplicação da sanção de cassação do título de condução ao Arguido, vício que não carece sequer de arguição, por caber na previsão do artigo 123.º, n.º 2, do CPP (aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO), devendo, em consequência, ser determinada a absolvição do Arguido da sanção de cassação do título de condução por que vem condenado.
Salvo o devido respeito a tese do recorrente não tem qualquer fundamento. Na verdade, o arguido defende a nulidade da decisão administrativa com fundamento na falta de fundamentação, e recorre da sentença que julgou improcedente tal nulidade, partindo de premissas erradas como sejam, em primeiro lugar a natureza da cassação da carta de condução, que qualifica como de sanção acessória, e a necessidade de verificação de uma perigosidade que justifique a aplicação da sanção de cassação do título de condução.
É que tendo em conta as regras reguladoras da decisão administrativa, constante do art.º 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27-10, verifica-se, sem qualquer margem para dúvidas que a decisão administrativa, e a sentença recorrida, se mostram devidamente fundamentadas. Aquela porque refere expressamente os factos em causa e as provas e esta porque analisa as questões suscitadas pelo arguido, já abordadas também na decisão impugnada, com recurso aos factos apurados, provas que os suportam e normas aplicáveis, devidamente interpretadas com recurso e menção jurisprudência mais recente sobre as questões suscitadas pelo arguido.
E dentro destas questões foi conhecida a invocada natureza de sanção acessória da cassação da licença de condução, tendo-se decidido, como se pode ler supra, que esta não reveste tal natureza, o que subscrevemos na íntegra, aqui se dando por inteiramente reproduzido tudo quanto a este propósito se mostra decidido pela primeira instância, e especialmente o que decidiu o Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.ºs 154/2022 e 260/2020, disponíveis in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220154.html.
O processo em causa, com vista à cassação da licença de condução, tem natureza administrativa e destina-se apenas a verificar os pressupostos da perda de pontos operada automaticamente como consequência da prática de contraordenações graves ou muito graves ou crimes rodoviários, como de forma expressa consagra o art.º 148.º do Código da Estrada, sobre o sistema de pontos e cassação do título de condução. Como bem se refere no referido Acórdão do TC, o preâmbulo da Lei 116015:
O sistema da «carta por pontos» foi introduzido na nossa ordem jurídica pela alteração ao Código da Estrada efetuada pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, diploma que concretiza o desiderato legislativo consignado na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 336/XII, que esteve na sua génese. Tal desiderato, encarado como um dos instrumentos principais da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio, consistia na introdução de um sistema de pontos cujo funcionamento permitisse «aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão», o que se esperava vir a ter, em linha com as experiências verificadas noutros países onde sistema análogo vigorava, «impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública». No essencial, o regime consiste na atribuição a cada condutor titular de um determinado título de condução de um certo número de pontos – doze pontos num momento inicial –, os quais variam consoante o condutor cometa ou abstenha-se de cometer, em certo período, determinados ilícitos de mera ordenação social ou de natureza criminal.
Por cada contraordenação grave ou muito grave, ou crime punível com pena acessória de proibição de conduzir, é subtraído certo número de pontos, nos termos previstos nos n.ºs 1 a 3 do artigo 148.º do Código da Estrada. Tratando-se de uma das contraordenações graves previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 148.º, a subtração é de três pontos, sendo de dois pontos quando esteja em causa qualquer outra contraordenação grave. Tratando-se de uma contraordenação muito grave a subtração é de quatro pontos, exceto se se tratar de condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, caso em que a subtração é de cinco pontos. Tratando-se de crime punível com pena acessória de proibição de conduzir, nos termos do artigo 69.º do Código Penal, a subtração é de 6 pontos. Existe ainda uma regra especial para os casos em que tiver lugar a condenação, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia.
Ao invés, por cada período de três anos (ou de dois anos para os condutores indicados no n.º 6) ou por cada período da revalidação do título de condução em que o condutor tenha frequentado voluntariamente ação de formação de segurança rodoviária, sem que sejam praticadas contraordenações graves ou muito graves, ou crimes de natureza rodoviária, são atribuídos ao condutor um certo número de pontos até um limite fixado na lei, entre quinze e dezasseis pontos – n.ºs 5 a 7 do citado artigo 148.º do Código da Estrada.
Quando a subtração de pontos reduza o seu número abaixo dos limiares fixados na lei surge para o condutor a obrigação de se sujeitar a determinadas ações de formação e provas de aptidão – alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada –, sendo certo que a perda de todos os pontos implica, nos termos da alínea c), a cassação do título de condução. A cassação do título que seja consequência dessa perda total dos pontos é decretada em processo administrativo autónomo, sendo a decisão judicialmente impugnável nos termos do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – n.ºs 10 e 13 do artigo 148.º do Código da Estrada. A cassação tem por efeito, não apenas a caducidade do título de condução – artigo 130.º, n.º 1, alínea d), do Código da Estrada –, e com ela a proibição de conduzir os veículos para que o título cassado habilitava, como a proibição de obter novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação – n.º 11 do mesmo preceito.
No caso vertente, o recorrente perdeu todos os pontos de que beneficiava em virtude de ter sido condenado, por decisões transitadas em julgado, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, os quais implicaram a sua condenação em penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do artigo 69.º do Código Penal (Ac. do TC n.º n.º 154/2022).
No caso, como se sabe, pois consta da decisão administrativa e da sentença recorrida, o arguido perdeu todos os pontos na sequência de anteriores, duas, condenações transitadas em julgado, pela prática do crime de condução sob o efeito do álcool, nos processos crime n.º 54/17.0GAVFX e n.º 151/19.8PCLSB, tendo sido condenado em ambos e cada um dos processos na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses.
Os factos estão identificados.
Do mesmo modo que se encontram identificados os meios de prova que os suportam: encontram averbadas no seu Registo Individual do Condutor.
Não carece a decisão de fundamentação. E não carece de fundamentação porque não há que realizar qualquer avaliação de perigosidade nem determinar qualquer sanção acessória. Como de forma clara consta da decisão recorrida, a cassação da licença de condução constitui uma consequência automática da perda de pontos, perda essa que a lei atribui à prática de determinadas infrações, como se disse, que pela sua gravidade revelam inidoneidade para o exercício da condução.
Não tem, pois, qualquer razão de ser o invocado pelo arguido, que não viu qualquer direito de defesa beliscado, como aliás se conclui da simples leitura da defesa que apresentou contra a decisão administrativa e as motivações do seu recurso.
Não existe qualquer nulidade porque ao contrário do que defende não estamos perante qualquer sanção acessória que careça de ser determinada. A perda de pontos, como se disse é uma consequência da prática das infrações. Não há que dosear quantos pontos perde pela prática de cada uma das infrações já que o legislador determinou o número de pontos perde o autor de cada uma das infrações previstas na lei. De forma automática. Do mesmo modo que determina que a perda total dos pontos atribuídos implica a cassação da licença de condução. Não deixando margem para qualquer decisão em sentido diverso, destinando-se a decisão administrativa destinada à verificação dos pressupostos da cassação.
Como se pode ler no Ac. do TC n.º 154/2022, que vimos seguindo: Verificados os factos geradores da perda de todos os pontos de que o condutor seja beneficiário num certo momento, a cassação do título de condução é decretada sem necessidade de ponderação de outros fatores hipoteticamente relevantes. De acordo com a norma impugnada, a cassação do título de condução constitui consequência necessária − e, por isso, automática − da perda de todos os pontos detidos por dado condutor; dito de outra forma, a perda de todos os pontos constitui condição suficiente para a cassação do título de condução. Trata-se, pois, de saber se a suficiência dessa condição, integralmente satisfeita pela perda total dos pontos, sem que relevem outros fatores de ponderação − como sejam a sua adequação às necessidades de prevenção especial que se façam sentir em concreto, o grau de culpa subjacente aos ilícitos que ditaram a perda dos pontos e a extensão das consequências que a cassação tenha nas condições de vida pessoal e profissional do visado −, é desadequada, desnecessária e desproporcional para a salvaguarda dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que informam a medida.
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AUTOMATICIDADE DA APLICAÇÃO DA MEDIDA RESTRITIVA E DA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTOS PARA A APLICAÇÃO DA SANÇÃO DE CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
Defende o recorrente que J)   A decisão sobre a aplicação da medida de cassação do título de condução implica necessariamente um juízo de ponderação prévio sobre a aptidão e idoneidade do Arguido para o exercício de condução, sendo necessário, para a formulação de tal juízo, a ponderação do grau de ilicitude ou da culpa verificados no caso concreto.
K) Declarar como puníveis determinados ilícitos com sanção acessória não equivale a tornar obrigatória        a aplicação, a    todos os casos, e independentemente da sempre necessária análise casuística, de tal sanção acessória.
L) É justamente por isso, aliás, que o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição determina, com plena aplicação a todo o direito sancionatório de carácter punitivo, que não pode haver sanções automáticas, i.e., que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.
M) Conforme afirmado pelo Tribunal a quo, “[e]mbora o direito a conduzir veículos motorizados na via pública não alcance o estatuto de direito fundamental, a verdade é que, considerando a relevância que tal atividade representa no quotidiano do cidadão comum, a mesma integra o exercício da liberdade geral de ação, compreendida no direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), pelo que se afigura atentatório das mais elementares garantias vigentes no direito sancionatório português, às quais se conferiu tutela constitucional, o entendimento de que uma sanção restritiva de um direito fundamental possa ser suscetível de aplicação automática, sem ponderação do grau de ilicitude ou da culpa verificados no caso concreto, que enformam o necessário juízo de aptidão para o exercício da condução.
Mais uma vez, a argumentação do arguido parte da mesma premissa: a de que a cassação da licença de condução constitui uma sanção acessória. O que não subscrevemos e já deixamos dito de forma clara.
Não se verifica qualquer atropelo à Lei Fundamental, como aliás no Ac. do TC que vimos seguindo igualmente se analisa e se conclui:  8.4. Afigura-se que um regime nos termos do qual a perda da totalidade dos pontos seja condição suficiente para a cassação do título de condução satisfaz o teste da idoneidade ou adequação. Com efeito, a perda dos pontos é decorrência de uma comprovada infração culposa de regras de cuidado no exercício da condução automóvel, a qual, pela sua gravidade e reiteração, permite antecipar um perigo acrescido para os bens jurídicos carecidos de tutela, o mesmo é dizer, inferir um estado de inaptidão do agente para a prática de condução diligente. É manifesto que a valoração desses comportamentos por via da subtração sucessiva de pontos de que cada condutor beneficia constitui uma forma perfeitamente adequada de determinar a inaptidão do seu agente para a condução de veículos motorizados. Ao mesmo tempo, a cassação do título de condução surge, pela sua própria natureza, como um instrumento legal adequado a obstar que um condutor cuja inaptidão foi determinada possa continuar a exercer a atividade, salvaguardando-se dessa forma os direitos e interesses em benefício dos quais o regime foi instituído.
O facto de a cassação do título depender somente da perda integral dos pontos, sem necessidade da ponderação de outros fatores que, pela sua natureza casuística e reserva de apreciação subjetiva, reduziriam a previsibilidade do efeito cassatório, constitui um poderoso fator de adequação da medida às finalidades de prevenção de comportamentos deletérios para a segurança rodoviária, na medida em que tal automaticidade de efeitos é uma garantia de certeza e objetividade. Ao poder calcular com precisão as consequências da sua conduta, ao saber que estas não dependem de valorações casuísticas e subjetivas, é razoável supor que aumenta significativamente a probabilidade de o agente corresponder aos incentivos que o regime se destina a produzir.
 8.5. Também se afigura que a norma em apreciação satisfaz o teste da exigibilidade ou necessidade, dado que a cassação do título de condução por via apenas da perda dos pontos surge como uma medida de ultima ratio, num quadro em que o agente venha mostrando reiteradamente uma indisponibilidade para observar regras de condução diligente. Com efeito, deve notar-se que a cassação do título de condução apenas é decretada quando o condutor perca a totalidade dos pontos de que dispõe, o que exige a comprovação de vários comportamentos ilícitos e culposos num determinado lapso temporal; note-se ainda que nenhuma infração, nem mesmo de natureza criminal, implica, por si, a perda de todos os pontos. Por outro lado, decorre das alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada que, atingidos diversos patamares de subtração de pontos, o condutor terá de se sujeitar a medidas de formação e de avaliação das suas competências, por forma a obstar à consolidação de um quadro de inaptidão. Assim, a cassação do título de condução só surge em última linha, quando a gravidade e reiteração dos comportamentos lesivos da segurança rodoviária ultrapassa um certo limiar.
Acresce não se poder exigir ao legislador que consagrasse a possibilidade de, para além da ponderação da natureza e gravidade das infrações que originaram a perda de pontos e da sua idoneidade para relevar a inaptidão do seu agente para a prática da condução, tal como refletida na quantificação de pontos que cada uma subtrai ao acervo de cada condutor, introduzir um segundo nível de ponderação de fatores casuísticos, tal como indicados pelo recorrente – fatores esses que, de certo modo, permitissem fazer a contraprova da indiciação de inaptidão contida nas condenações geradoras da perda de pontos.
Como em praticamente todas as decisões que implicam a averiguação de factos e ponderação de variáveis, diversos graus de intensidade do escrutínio são possíveis. Os fatores relevantes para determinada decisão podem ser aferidos com graus crescentes de minúcia e de rigor; ora, se uma avaliação fina propicia, em princípio, uma decisão calibrada em função das características do caso concreto, também arrasta consigo inconvenientes de peso, como o aumento da morosidade, a complexidade dos procedimentos, a incerteza quanto aos efeitos do sistema, a perda de previsibilidade e uniformidade e a probabilidade mais ou menos significativa de erro de decisão. Ao adotar o sistema da «carta por pontos», tomando como variáveis decisivas a natureza e gravidade das infrações cometidas num certo período de tempo e a realização de ações geradoras de uma maior consciencialização para a necessidade de observância das regras de segurança rodoviária, o legislador atribuiu importância compreensível a considerações de simplicidade, objetividade e efetividade, que não seriam manifestamente servidas por um sistema de avaliação casuística. A medida não se mostra, pois, desnecessária ou inexigível.
Em todo o caso, deve salientar-se que esta matéria extravasa em larga medida o âmbito do presente recurso. O que gera a automaticidade que o recorrente contesta não é tanto a norma do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada – que apenas determina o limiar a partir do qual opera a medida de cassação –, mas sim a graduação de pontos em função da categoria da infração. De facto, ao alegar que o regime não permite valorar em concreto elementos associados às necessidades de prevenção especial e ao grau de culpa do agente – fatores que apenas relevam como critérios de fixação de sanções e não como instrumentos de aferição da aptidão para conduzir veículos –, o recorrente opõe-se menos ao artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, do que aos n.ºs 1 a 3 – não integrados no objeto do recurso −, pois são estes que estabelecem a relação entre pontos a subtrair e categorias de infrações.
Acresce que, ao contrário do que parece afirmar o recorrente, a licença para conduzir e o direito que da sua concessão nasce, não tem a natureza de direitos civis, profissionais ou políticos. É um direito regulado e que depende da verificação de determinados pressupostos, como de forma clara igualmente se explica no Ac. TC n.º 154/2022, uma vez que sendo o exercício da condução automóvel uma atividade perigosa, conduzir não constitui um direito subjetivo. Antes depende da verificação inicial e periódica de determinadas capacidades e da idoneidade para a sua prática.
Não há que analisar nem ponderar qualquer conduta posterior aos factos, pelas razões já aduzidas.
Quanto à violação do seu direito ao trabalho, igualmente se chama à colação o decidido pelo Ac. do TC uma vez que analisa e trata as questões suscitadas e argumentos invocados pelo arguido:
8.6. Finalmente, resta averiguar se a norma em apreciação viola o subprincípio da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito.
A resposta é decididamente negativa.
Como se viu, a automaticidade da cassação do título de condução como consequência da totalidade da perda dos pontos atribuídos ao condutor justifica-se, por um lado, pela necessidade de acautelar que a condução de veículos na via pública é exercida por quem revele a idoneidade para o fazer e, por outro, pela simplicidade, objetividade e efetividade do sistema da «carta por pontos», que permite um grau elevado de realização das finalidades a que se destina. Acresce que a restrição sob escrutínio não é a medida de cassação do título de condução em si mesma considerada, mas somente na exclusão de outros fatores de ponderação que relevem de cada caso concreto. Ora, está longe de ser evidente que a carga ablativa do sistema da carta por pontos – que se traduz, no essencial, na probabilidade de ocorrência de «falsos positivos» − seja significativamente superior ao de um sistema de avaliação casuística e que, ainda que o fosse, tal não encontre justificação na sua eficácia ostensivamente acrescida.
Importa sublinhar que a cassação do título de condução, nas condições previstas na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, incorpora as principais variáveis de aferição da aptidão ou inaptidão do condutor para o exercício da atividade, como a gravidade e a frequência dos ilícitos praticados, o lapso do tempo em que se dê a respetiva ocorrência e o registo de ações de natureza corretiva. Trata-se, como é bom de ver, de um sistema gradual e matizado, que confere ao visado uma garantia de correspondência tendencial entre os factos valorados por via dos pontos a subtrair ou a adicionar e as consequências a eles associados, sendo certo que aqueles factos são adquiridos em procedimentos nos quais o arguido dispõe de meios adequados de defesa. Atendendo às suas múltiplas vantagens, o sistema parece encerrar um equilíbrio razoável entre o sacrifício imposto ao condutor e os direitos e interesses que se destina a salvaguardar, nomeadamente na dimensão específica da sua operação que temos vindo a apreciar, razão pela qual a norma sindicada consubstancia uma medida justificada de restrição da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, não violando as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
9. Apreciemos agora a segunda questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente, que consiste em saber se a determinação da cassação do título de condução constitui uma segunda condenação do respetivo titular, violando a proibição do non bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
A argumentação do recorrente supõe que a determinação da cassação do título de condução corresponde a uma «dupla condenação», dado que o visado já teria sido condenado anteriormente em penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor pelos mesmos factos que deram origem à perda de pontos. No seu entender, o princípio do non bis in idem tem por finalidade assegurar a paz jurídica do visado e limitar o poder punitivo do Estado, impedindo que o mesmo facto − ou o mesmo «pedaço de vida» − seja valorado duas vezes, em processos distintos, com vista a uma dupla sanção.
A proibição de duplo julgamento ou valoração de factos com relevância penal não se confunde com a proibição de valorar multiplamente factos em sentido naturalístico, deles retirando uma pluralidade de consequências jurídicas. Basta, para o demonstrar, considerar a responsabilidade civil conexa com a criminal ou, mesmo no plano puramente penal, a admissibilidade do concurso ideal de crimes. O que o n.º 5 do artigo 25.º proíbe, como se salientou no recente Acórdão n.º 298/2021, é tanto a aplicação ao mesmo agente de uma dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes, como a respetiva sujeição a um segundo julgamento por factos penalmente relevantes relativamente aos quais haja sido já definitivamente julgado.
Não é esse o alcance da norma sob apreciação.
Em primeiro lugar, importa salientar que, ainda que no caso vertente os factos que conduziram à perda dos pontos do aqui recorrente e, por isso, à cassação da sua carta de condução, tenham sido condenações pela prática de crimes, essa é uma circunstância puramente acidental e que não se projecta na norma em apreciação.
Em segundo lugar, os factos relevantes para a decisão de cassação, segundo o critério previsto no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, e que são objeto de apreciação no procedimento previsto no seu n.º 10, são apenas os factos geradores da perda dos pontos, isto é, a definitividade de condenações por determinadas categorias de ilícitos contraordenacionais ou criminais, com abstração dos factos que estiveram na base dessas condenações. Tais factos – os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contraordenacional gerador da perda dos pontos – não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação.
Em terceiro lugar, a cassação do título de condução não se traduz numa dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes. Com efeito, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de segurança de cassação do título e de interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101.º do Código Penal e aplicável a delinquentes imputáveis, cujo decretamento constitui uma consequência jurídica de um crime, determinada no âmbito do processo penal, a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.
É certo que a condenação pela prática de crimes punidos com a pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal constitui um facto gerador de perda de pontos. Contudo, essa conexão é meramente reflexa, não só porque nenhuma condenação criminal, por si só, desencadeia a cassação prevista no artigo 148.º do Código da Estrada – nem o recorrente integrou tal questão no objeto do recurso –, como porque os critérios relevantes para essa cassação não se extraem dos factos que tipificam ilícitos criminais, mas sim da reiteração das condenações criminais ou contraordenacionais e da forma como elas revelam a incapacidade do condutor para observar as normas legais que garantem a segurança rodoviária.
Em suma, a norma sindicada não implica, nem que o condutor seja julgado novamente pelos mesmo factos, nem que por eles seja duplamente punido, pelo que não ocorre violação alguma do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
10. Resta apreciar a terceira questão de constitucionalidade, que consiste em saber se a circunstância de o decretamento da cassação do título de condução, ao implicar automaticamente a proibição de condução dos veículos por ele abrangidos, viola o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, designadamente por dificultar ao seu titular o exercício do direito ao trabalho.
O recorrente alega que a cassação do título de condução, tal como prevista no artigo 148.º do Código da Estrada, constitui o efeito necessário de uma pena criminal, dado que o seu decretamento dispensa qualquer apreciação de circunstâncias concretas reveladoras de inaptidão para o exercício da condição.
Para responder a esta argumentação, deve começar por notar-se que não está aqui em causa – e não pode estar – a norma que estabelece a conexão fixa entre a condenação (ou a sujeição a suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal) do condutor pela prática de certas categorias de ilícitos contraordenacionais e criminais e a perda de determinado número pontos, visto que tal matéria é exclusivamente regulada nos n.ºs 1 a 3 do artigo 148.º do Código da Estrada, que o recorrente não integrou no objeto do recurso. Com efeito, o n.º 4 apenas estabelece as diversas consequências associadas às perdas dos pontos, abstraindo das causas subjacentes. Por outro lado, o n.º 10 estabelece somente que o procedimento conducente à cassação do título de condução é autónomo daqueles que deram origem às perdas de pontos e apenas terá lugar quando suceda a perda total dos pontos atribuídos ao título de condução. Tendo em consideração este aspeto, a questão não pode ser aqui apreciada com a amplitude com que o recorrente a concebe.
Em todo o caso, vale a pena sublinhar que, mesmo nos casos em que – acidentalmente − a perda integral dos pontos do condutor seja consequência de subtrações exclusivamente fundadas nos termos do n.º 2 do artigo 148.º do Código da Estrada, é sempre o resultado cumulativo de diversas subtrações de pontos, imputáveis a mais do que um comportamento. Com efeito, o mecanismo previsto no artigo 148.º, n.º 4, comporta um escalonamento progressivo de consequências, em virtude das sucessivas subtrações de pontos que se forem sucedendo e que podem ser mitigadas pelas medidas aí previstas ou pelo mero decurso do tempo sem a prática de infrações. Tal evidencia que a decisão de cassação supõe um juízo próprio, distinto daqueles que estiveram na base das infrações às quais a lei associa a perda de pontos, juízo esse que, ainda que determinado exclusivamente pela aritmética da perda de pontos, incide precisamente sobre as condições de aptidão do visado para o exercício da condução. Não se trata, pois, de nenhum efeito automático da condenação penal, mas de um efeito jurídico produzido num ambiente normativo diverso e obediente a uma teleologia própria.
Por fim, é de reconhecer que a cassação do título de condução se traduz numa inadmissibilidade de conduzir na via pública os veículos para os quais tal título habilitava o seu titular e que essa proibição é passível de dificultar o exercício de uma variedade de atividades, designadamente laborais. Porém, da circunstância de ter esses efeitos, que são inerentes à própria natureza da medida de cassação e sem os quais as finalidades que presidem à sua aplicação se esvaziariam, não se segue que a cassação seja um efeito automático de uma pena; ou que a cassação, por sua vez, implique a perda de quaisquer outros direitos que não o de conduzir na via pública os veículos mencionados no título cassado. Para além disso, reitere-se que a aplicação da medida de cassação se inscreve num sistema gradativo de consequências, que comporta vários elementos de ponderação em favor e desfavor do condutor, pelo que está longe de poder ser vista, mesmo no ambiente normativo em que se insere, como de aplicação puramente automática.
Nenhuma interpretação inconstitucional foi realizada, nem a norma interpretada nos termos em que o foi se afigura inconstitucional.
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Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em:
Julgar não provido o recurso interposto por B e em consequência mantém-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça.


Lisboa, 12 de janeiro de 2023
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).
Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Cristina Luísa da Encarnação Santana
Simone Abrantes de Almeida Pereira
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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de  Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.